sábado, 17 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja – III – Branca de Neve

Nesse momento o Visconde gritou do alto da sua janela:

— Estou vendo outra poeirinha lá longe!...

— Deve ser a minha amiga Branca de Neve — disse a princesa Cinderela. — Branca mora perto de mim e quando passei por lá vi que sua carruagem já estava na porta do castelo.

E foi isso mesmo. Minutos depois ouviu-se um toc, toc, toc. O marquês abriu a porta e anunciou:

— A princesa Branca das Neves.

Narizinho danou outra vez.

— Branca de Neve, bobo! — corrigiu de passagem, indo receber a recém-chegada.

Introduziu-a, fez as apresentações e levou-a a sentar-se Junto de sua amiga Cinderela. Branca reconheceu imediatamente a famosa boneca, apesar de ser a primeira vez que a via.

— Eu trouxe um presentinho para você — disse tirando da bolsa um pacote. — É um espelho mágico que responde a todas as perguntas feitas. Tome.

Abriu o pacote amarrado com fita de ouro e deu-o a Emília. Que alegria! A boneca abraçou o espelho, beijou-o, bafejou nele e depois o limpou bem limpo com o seu lencinho de cambraia. Por fim não resistiu à tentação de fazer ali mesmo uma experiência.

— Diga-me, senhor espelho, qual a boneca que conta histórias mais bonitas?

— É a ilustre marquesa de Rabicó! — respondeu o espelho na sua voz mágica.

Emília suspirou. Embora nada dissesse, Narizinho percebeu que aquele suspiro era de tristeza de já ser casada e não poder portanto casar-se com o espelho.

Branca de Neve contou toda a história da sua vida, prometendo vir mais vezes ao sítio brincar com a menina e a boneca. Prometeu também trazer os anõezinhos que a haviam salvado das unhas da má madrasta.

— Onde vivem hoje aqueles sete anõezinhos ? – perguntou Emília.

— Vivem comigo no castelo. Tudo lá brilha que nem ouro, porque não pode haver no mundo criaturas mais trabalhadeiras.

— Oh! — exclamou a boneca — por que não dá um deles a tia Nastácia? A coitada vive se queixando de que está velha e precisada de quem a ajude na cozinha.

— Impossível! — respondeu Branca. — Eles são sete, e se sair um quebra á conta. A gente não deve mexer com o número sete, que é mágico.

Nesse ponto da conversa o Visconde gritou de novo do alto da sua janela:

— Estou vendo duas poeirinhas lá longe!...

— Duas? — repetiu Branca de Neve. — Com certeza é Rosa Vermelha e sua irmã Rosa Branca. Nunca andam sem ser juntas.

Eram elas, sim. Logo que a carruagem parou no terreiro, Rabicó, com toda a sua burrice, anunciou:

— As senhoras Pé de Rosa Branca e Pé de Rosa Vermelha!

Desta vez Narizinho deu-lhe um beliscão disfarçado, enquanto recebia as duas princesas. Rosa Branca disse logo ao entrar:

— A Bela Adormecida manda comunicar que não pode vir.

— Que pena! — exclamou Narizinho. — E por quê?

— Não sei. Suponho que está se preparando para espetar o dedo noutro espinho e dormir mais cem anos.

Emília imediatamente veio perguntar pelo urso que tinha virado príncipe e casado com Rosa Branca.

A princesa deu uma risada gostosa.

— Pois se o urso virou príncipe, como há de existir ainda?

— Sei disso — replicou Emília toda espevitada. — Mas pelo menos a pele há de existir. Eu queria tanto ver uma pele de urso que virou príncipe...

Depois contou que sabia a história das duas e que muito se indignara com as brutalidades do anão de barba comprida.

— Você querendo fazer-lhe o bem e o burro ai!... não me belisque, Narizinho! sempre com más-criações.

— Anões são gentinha perigosa — disse Rosa Vermelha. – Se uns comportam-se que nem anjos, como aqueles sete do castelo de Branca, outros são verdadeiras pestes. É muito perigoso lidar com essa gentinha.
–––––––
Continua... Cara de Coruja– IV – O Pequeno Polegar

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte XVII


REGÊNCIA.

Fique atento à regência de verbos e nomes, sobretudo daqueles que exigem a preposição “a”, para não cometer erro no emprego da crase.

REGÊNCIA VERBAL.

Regência Verbal é um assunto complicado, não acha? Não deveria ser, mas é. Existem vícios que desvirtuam a correta regência de diversos verbos.

O verbo “desfrutar” é muito empregado com regência errada. Por ser transitivo direto, não exige preposição antes de seu complemento. No entanto, o que mais se vê é um “de” insistente acompanhando-o, como na frase: “Eu e meu amigo desfrutamos das férias num paradisíaco balneário”. Errado! O correto é: “Eu e meu amigo desfrutamos as férias num paradisíaco balneário”.

RELER.


Releia com o máximo de atenção o texto que escreveu, antes de passá-lo a limpo, para não deixar ficar erros bobos, tolos, que poderão comprometer seriamente sua nota final.

Lembre-se: é fundamental pensar, planejar, escrever e reler seu texto. Mesmo com todos os cuidados, pode ser que não consiga se expressar de forma clara e concisa. A pressa pode atrapalhar. Com calma, verifique se os períodos não ficaram longos, obscuros. Veja se não repetiu palavras e idéias. À medida que relê o texto, essas falhas aparecem, inclusive erros de ortografia e acentuação. Não se apegue ao escrito. Refaça o texto, se for preciso. Não tenha preguiça, passe tudo a limpo quantas vezes forem necessárias. No computador, esta tarefa se torna mais fácil. Faça sempre uma cópia do texto original. Assim se sentirá à vontade para corrigi-lo quantas vezes quiser.

RELIGIÃO.

Não faça propaganda de doutrinas religiosas na redação. Mantenha-se sempre imparcial.

A religião, qualquer que seja ela, é uma questão de fé; a dissertação, por sua vez, é uma questão de argumentação, que se baseia na lógica. São, portanto, duas áreas situadas em diferentes planos. Não há como argumentar de modo convincente com base em dogmas religiosos; os preceitos de fé independem de provas ou evidências constatáveis. Torna-se, assim, completamente descabido fundamentar qualquer tema dissertativo em idéias que se situem em um plano que transcende a razão.

REPETIÇÃO.

Evite:

Dizer a mesma coisa duas vezes para explicar melhor.

Pormenores (detalhes), divagações, exemplos excessivos.

Palavras terminadas em “ão”, “ade”, “ente”, etc, pois provocam eco (rima inconveniente e condenável) na redação.

Repetições de palavras e de idéias, principalmente no mesmo parágrafo. Troque-as por sinônimos. A repetição de palavras denota falta de cultura, de conhecimento geral e pobreza de vocabulário, além de certa preguiça mental.

O emprego repetitivo das palavras eu, nós, ele, ela, e, que, porque, daí, aí, então, mas (esta, por exemplo, pode ser substituída por contudo, todavia, no entanto).

REPORTAGEM.

É uma notícia em profundidade. Caracteriza-se pela exposição enriquecida e profunda do fato.

REQUERIMENTO.

É um documento (texto administrativo), manuscrito ou datilografado, no qual o cidadão (interessado), depois de se identificar e se qualificar, faz um pedido (solicitação) à autoridade competente. Só é usado quando é pedido ao serviço público. Se traz a solicitação de várias pessoas, chama-se Memorial.

RESUMO.

Num resumo, não comente as idéias do autor. Registre apenas o que ele escreveu, sem usar expressões como segundo o autor..., o autor afirmou que....

Resumo é uma síntese das idéias, fatos e argumentos contidos num texto. Para fazê-lo, empregue suas próprias palavras, evitando, na medida do possível, reproduzir cópias do texto original.

Ler não é apenas passar os olhos no texto. É preciso saber tirar dele o que é mais importante, facilitando o trabalho da memória. Saber condensar as idéias expressas em um texto não é difícil, basta reproduzir com poucas palavras aquilo que o autor disse.

RETICÊNCIAS.

Nas dissertações objetivas, evite as reticências. A clareza na exposição é preferível a esperar que o leitor adivinhe o que você quis dizer.

As reticências marcam uma interrupção da seqüência lógica do enunciado, com a conseqüente suspensão da melodia. É utilizada para permitir que o leitor complemente o pensamento suspenso.

A língua escrita apresenta muitas diferenças em relação à língua falada. Observe como as reticências às vezes são utilizadas para criar o clima de mistério: “era sexta-feira...”

REVISÃO.

Revise a redação. Ela tem começo, meio e fim? Defendeu seu ponto de vista de maneira convincente? Escreveu parágrafos com tópico frasal e desenvolvimento? Respeitou as normas gramaticais vigentes?

Quando for revisar a redação, redobre os cuidados com a crase e a concordância. Triplique a atenção com a voz passiva sintética (do tipo "vendem-se carros") e do sujeito posposto ao verbo.

RISO.

Tire partido dos dados imprevisíveis e inadequados para conseguir o interesse do leitor pelo texto (e, muitas vezes, o riso).

— Ah, estou com vontade de passar a noite com a Luiza Brunet de novo. — O quê? Não me diga que já passou a noite com ela? — Não, mas já tive vontade antes.

Nem acreditei que aquele rapaz, tão jovem, olhava para mim! Então, ele gritou: — Tia, o porta-malas está aberto! — Fui para casa, com o porta-malas aberto e a cara mais fechada do que fundo de touro subindo a ladeira.

ROMANTISMO.

Afaste-se do romantismo fácil, mas não se furte à sinceridade da apresentação de seus sentimentos.

E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

Os céticos dizem que as mulheres são verdadeiras surpresas, nem sempre muito agradáveis. Mas, como saber, se não tentar chegar ao fundo dos nossos sentimentos? E, se amo, tenho de arriscar, concordam comigo?

SILEPSE.

É a concordância com a idéia, não com a palavra escrita.

Vossa Majestade continua bondoso!

Os brasileiros somos muito otimistas.

Corria gente de todos lados, e gritavam.

SIMPLICIDADE.

Escreva com suas próprias palavras e produza novas idéias.

Use palavras conhecidas, adequadas e períodos curtos. Escreva com o máximo de simplicidade. Amarre as frases, organizando as idéias. Cuidado para não mudar de assunto de repente. Conduza o leitor de maneira leve pela linha da argumentação.

Alguns estudantes pensam que, utilizando palavras pomposas, artificiais, difíceis e rebuscadas, conseguirão impressionar os corretores de provas. Puro engano! Os vocábulos devem ser os mais comuns possíveis. Portanto, escreva com simplicidade. O uso de termos complicados não é prova de que você sabe escrever bem.

Neste tempo em que é preciso, ainda que ocasionalmente, jactar-se do que produzimos intelectualmente, far-nos-á muito bem que tenhamos, por hora, um projeto desenvolvimentista uniforme capaz de...

Ora, qualquer banca corretora, ao ler o texto acima, vai saber muito bem tratar-se de um plágio de alguém, ou, então, achar que você é um marciano!

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Album de Recordações (A. A. de Assis e Luiz Otávio)

Montagem das trovas sobre foto obtida no livro de A. A. de Assis, "Vida, Versos e Prosa", Maringá: Eduem, 2010. pag. 52

Nemésio Prata Crisóstomo (Cavalgada de Trovas)


Leitura

O ato de ler praticado
com prazer, pelo leitor;
no final, seu resultado,
assemelha-se ao do amor!

Sentimentos

Entre lágrimas e risos,
respostas às emoções,
liberamos sentimentos
represos nos corações!

Sem Inspiração!

Passei horas meditando,
pensando no que dizer;
terminei nada compondo,
sem nada para escrever!

Amigo!

Não queiras por teu amigo
quem não pode ser provado
no dar água, pão e abrigo,
para alguém necessitado!

Livro

Deus me livre, por um dia
me faltar um Livro a mão;
de tristeza eu morreria,
em pungente solidão!

Professor

De tudo que eu aprendi
pra chegar a ser “doutor”,
se, bem, eu o compreendi:
devo muito ao Professor!

Médico

Para cuidar da saúde
com desvelo e competência
busco Médico amiúde,
amigo, de preferência!

Uma Trova Ecológica

Por aqui passava um rio
caudaloso e pleno em vida;
hoje mal se vê um fio
d'água suja e poluída!

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Aníbal Lopes (Praça da Jorna)

Praça da Jorna do Couço
Não busquei lá trabalho
nem discuti o preço da jorna
mas nas lembranças que baralho
há muita memória que retorna

Gente apinhada na minha lembrança
procurando desesperada, o que fazer
rua cheia de pouca esperança
alguns voltando sem nada trazer

Deambulam sortudos de faina garantida
contrastando com os de fraca procura
todos fazendo pela vida
e a vida para todos sendo dura

Escolhe-se o braço mais forte
hábil no manejo do cabo da enxada
de fora ficam os da má sorte
herdeiros de uma alma magoada

Aluga-se força produtiva
sob a égide do manageiro
não chega a paga furtiva
a quem encheu o celeiro
––––––––––-
Nota
Praça da Jorna = A «praça de trabalho» ou «praça de jorna» é pois um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho (jornal).
(Soeiro Pereira Gomes, in http://voarforadaasa.blogspot.com/2008/12/blog-post.html)

Fontes:
Poema enviado por Lino Mendes
Imagem =http://andarurbano.blogspot.com/2008/11/praa-de-jorna-feira-das-vaidades.html

Fiodor Dostoiewski (Uma Árvore de Natal e Um Casamento)


Um dia destes, vi um casamento... mas não, prefiro falar-vos de uma árvore de Natal. Achei o casamento bem bonito, mas a árvore de Natal me agradou mais. Nem sei como, olhando para o casamento, me lembrei da árvore. Eis como o caso se passou.

Há cerca de cinco anos fui convidado, na véspera de Natal, para um baile infantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de negócios, cheio de relações e maquinações, e, assim, não se há de estranhar que o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no meio da multidão, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e surpreendido.

Como houvesse chegado ali por acaso e não tivesse nenhum assunto comum com os outros, passei a noite de maneira muito independente. Havia mais um cavalheiro que, como eu, não tinha, decerto, conhecidos no grupo, e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes de todos. Era um homem alto, magro, muito sério, vestido muito decentemente. Notava-se que a felicidade da família não lhe comunicava a menor alegria; mal se retirava a um cantinho, cessava de sorrir e franzia as sobrancelhas espessas e negras.

Afora o dono da casa, não conhecia vivalma em todo o baile. Via-se que ele se entediava horrivelmente, mas que resolvera manter até o fim o papel do homem que se diverte e é feliz. Soube depois que era um provinciano vindo à capital a algum negócio importante e complicado. Trouxera carta de recomendação para o nosso hospedeiro, que o protegia, porém, não con amore, e o convidara, por cortesia, para o baile infantil. Não jogavam cartas com o provinciano, ninguém lhe oferecia um charuto nem com ele entabulava conversação, talvez porque reconhecessem de longe o pássaro pela plumagem, e, deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer das mãos, a alisar a noite inteira as suas suíças. Eram, aliás, umas suíças realmente belas - porém ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fitá-lo, sentia-se inclinada a pensar que primeiro vieram ao inundo as suíças e só depois o homem, para cofiá-las, inserido entre elas.

Além desse personagem, que tomava parte na felicidade do dono da casa, pai de cinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar, outro conviva caíra no meu agrado. Mas este era de aspecto completamente diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam Julião Mastakovitch. Percebia-se à primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o dono da casa como este para o cavalheiro que afagava as suíças. o dono e a dona da casa falavam-lhe com amabilidade extraordinária, cortejavam-no, enchiam-lhe o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam, recomendando-os, vários convidados, ao passo que a ele não o apresentavam a ninguém. Notei até uma lágrima nos olhos do hospedeiro quando Julião Mastakovitch observou que raras vezes passara o tempo de maneira tão agradável como naquela noite. Comecei a sentir-me acabrunhadíssimo em presença de semelhante figura, e, depois de haver admirado as crianças, retirei-me a um pequeno salão, totalmente vazio, e fui sentar-me sob o florido caramanchão da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de toda a peça.

Eram as crianças incrivelmente gentis, e não queriam, apesar de todas as exortações das mamães e das governantas, parecer-se com as pessoas grandes. Num piscar de olho desmontaram toda a árvore de Natal, e conseguiram quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber a quem eram destinados. Achei particularmente engraçado um menino de olhos pretos e cabelos frisados que à viva força me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais que todos, atraía-me a atenção sua irmã, menina de onze anos, um amor de criança, meiga, cismativa, pálida, com grandes olhos sonhadores à flor do rosto. Parecia que os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salão onde eu estava sentado e, a um cantinho. pôs-se a brincar com as suas bonecas. Os convidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e alguém observou, cochichando, que ela já tinha trezentos mil rublos reservados como dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu olhar caiu sobre Julião Mastakovitch o qual, de mãos cruzadas atrás das costas e inclinando a cabeça para um lado, parecia acompanhar com particular atenção o mexerico de alguns senhores. Pouco depois, não pude furtar-me a admirar a sabedoria dos anfitriões na distribuição dos brindes às crianças. A menina que já tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma boneca sumptuosíssima.

Desde então os presentes foram diminuindo de valor, de acordo com a diminuição da importância dos pais daquelas crianças felizes. Afinal, a última' um menino de dez anos, magrinho, baixinho, sardento e ruivo, ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, Das lágrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e até sem vinhetas. Filho da governanta dos meninos da casa, uma pobre viúva, era um pequeno muitíssimo encolhido e tímido, metido num pobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu livrinho, andou muito tempo à volta dos brinquedos dos outros. Tinha uma vontade imensa de brincar com as outras crianças, mas não se atrevia; claro, já sabia e compreendia a sua situação.

Gosto muito de observar crianças. São sobremodo curiosas as suas primeiras manifestações independentes na vida. Notei, pois, que o menino ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se. Pegou a sorrir para os outros, a cortejá-los, deu a sua maçã a um pequeno gordo que já tinha o lenço cheio de presentes. e até se ofereceu para carregar outro, só para que não o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos após um rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. o ruivinho nem teve coragem de chorar. Logo apareceu sua mãe, a governanta, e ordenou-lhe não se intrometesse nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salão onde estava a menina bonita. Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianças entraram a enfeitar a sumptuosa boneca.

Fazia já meia hora que eu estava sentado no caramanchão de hera, e quase adormecera ao zunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos trezentos mil rublos de dote, que se entretinham a respeito da boneca, quando de repente vi entrar no salão Julião Mastakovitch. Aproveitando a distração dos presentes com uma briga surgida entre as crianças, saíra do salão principal sem fazer barulho.

Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada palestra com o pai da futura noiva rica, a quem mal acabara de conhecer, explicando-lhe as vantagens de qualquer emprego público sobre os demais. Parou à porta, tomado de hesitação, e parecia calcular alguma coisa nas pontas dos dedos.

- Trezentos... trezentos - murmurava.- Onze... doze... treze... até dezesseis, são cinco anos... Façamos de conta que sejam quatro por cento, são doze... cinco vezes doze, sessenta; estes sessenta... bem, calculados por alto, ao cabo de cinco anos serão quatrocentos. Está certo... Mas naturalmente o malandro não os terá colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou até dez por cento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mínimo, sim, quinhentos mil, na certa. .. o excedente gasta-se no enxoval, hum...

Acabou a meditação, assoou-se, e, indo a sair do salão, súbito avistou a menina e estacou. Como eu estivesse assentado atrás dos vasos de flores, não me pôde ver. Tive a impressão de que o homem se achava muito excitado. Seria o cálculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivo qualquer? Não sei. seja como for, o certo é que esfregava as mãos e não conseguia permanecer no mesmo lugar.

Quando a sua agitação chegou ao cúmulo, parou um instante e lançou um segundo olhar, muito resoluto, à futura noiva. Quis aproximar-se dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, como quem tem sentimentos criminosos, aproximou-se da criança nas pontas dos pés. Com um sorrisinho nos lábios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, não esperando a agressão, gritou assustada.

- Que é que você está fazendo aqui, bela menina? - perguntou ele em voz baixa.

E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.

- Estamos brincando...

- Com ele? - disse Julião Mastakovitch fitando o menino de esguelha.

E logo acrescentou:

- Escuta, meu amigo, por que não vais para o salão?

O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julião Mastalovitch olhou de novo em redor e aproximou-se outra vez da pequena:

- Que é que você tem aí bela menina? Uma bonequinha?- Uma bonequinha - respondeu a criança de cara fechada, cabisbaixa.

- Uma bonequinha... Mas você sabe, gentil menina, de que é feita a bonequinha?

- Não sei... - cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabeça.

- De trapos, minha alma... Mas tu, meu filho, deverias ir para o salão brincar com os teus camaradas, - disse Julião Mastakovitch encarando o menino com severidade.

As duas crianças franziram a testa e agarraram-se pela mão. Não queriam separar-se.

- Sabe você por que lhe deram essa bonequinha? - perguntou Julião Mastakovitch baixando cada vez mais a voz.

- Não.

- Porque você é uma criança boa e se comportou bem a semana toda.

Perturbado a mais não poder, Julião Mastakovitch lançou mais uma vez um olhar em roda, e baixou a voz de modo que a sua pergunta, formulada em tom impaciente e embargada pela emoção, saiu quase imperceptível:

- Diga-me, gentil menina: você gostará de mim se eu fizer uma visita a seus pais?

Havendo proferido tais palavras, Julião Mastakovitch quis beijar a pequena mais uma vez; mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro, puxou-a pela mão e, compadecido, começou, ele próprio, a choramingar.

Dessa vez Julião Mastakovitch aborreceu-se deveras.

- Vai-te embora - disse ao menino - Vai para a sala brincar com os teus camaradas.

- Não vá, não - protestou a menina. - Você é que deve ir-se embora. Deixe-o aqui, deixe-o - disse quase soluçando.

Alguém fez barulho à porta. Assustado, Julião Mastakovitch ergueu no mesmo instante o corpo majestoso. O menino ruivo, porém, assustou-se ainda mais do que ele, largou a mão da menina e, devagarinho, roçando a parede, caminhou do salão à sala de jantar. Para não despertar suspeitas, Julião Mastakovitch também passou à sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta e, mirando-se ao espelho, parecia até envergonhado de si mesmo, talvez arrependido da sua sofreguidão. Teria sido o cálculo feito na ponta dos dedos que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe, apesar de toda a sua seriedade e gravidade, um procedimento de criança? Aproximava-se de chofre do seu objectivo, embora este não viesse a tornar-se um objectivo real antes de cinco anos, no mínimo.

Acompanhei o respeitável cavalheiro a sala de jantar, e ali testemunhei um espectáculo curioso. Rubro de raiva e despeito, Julião Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuando cada vez mais, já não sabia para onde correr:

- Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui, patife! Vai, fedelho, procura os teus camaradas!

Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi esconder-se debaixo da mesa. Então o seu perseguidor, no auge da excitação, puxou do bolso o grande lenço de baptista e, brandindo-o, procurou enxotar o menino do seu esconderijo.

Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar que Julião Mastakovitch era um tanto gordo: rapaz bem nutrido, corado, barrigudo, de pernas robustas, - em uma palavra, como se costuma dizer, redondo e forte como uma noz.

Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado por um sentimento de indignação e, quem sabe, de ciúme.

Não pude conter uma gargalhada. Julião Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a sua importância, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu o dono da casa. O ruivinho saiu logo do esconderijo e pôs-se a limpar os joelhos e os cotovelos. Julião Mastakovitch, com um gesto rápido, levou ao nariz o lenço que tinha na mão, seguro por uma das extremidades.

O dono da casa fitava-nos aos três, perplexo, mas, como homem que conhece a vida e a considera pelo lado sério, resolveu aproveitar a circunstância de encontrar-se quase a sós com o seu hóspede.

- É este o menino - disse indicando o ruivinho - que tive a honra de lhe recomendar...

- É? - respondeu Julião Mastakovitch, que ainda não voltara inteiramente a si.

- É filho da governanta de meus filhos - prosseguiu o dono da casa em tom de solicitação -, uma senhora pobre, viúva de um funcionário honesto; portanto, Julião Mastakovitch... se for possível...

- Mas não é? - exclamou sem demora Julião Mastakovitch. - Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, é totalmente impossível. Pedi informações... No momento não há vaga, e, ainda que houvesse, já se tem dez candidatos, cada um mais qualificado que este..

- Sinto muito... muitíssimo..

- É pena - disse o dono da casa. - É um menino bonzinho, modesto...

- Pelo que vejo, é um grandíssimo vadio, - estourou Julião Mastakovitch, com uma careta histérica. - Sai daí, menino. Que é que tu queres aí? Vai brincar com os teus camaradas; disse ainda, voltando-se para o ruivinho.

Não conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio. Por minha vez, não pude deixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele desviou de mim os olhos, e em voz bem alta perguntou ao dono da casa quem era aquele rapaz esquisito.

Saíram os dois da sala cochichando. Vi que Julião Mastakovitch, ouvindo as explicações de seu hospedeiro, abanava a cabeça, meio desconfiado.

Ri a bom rir com os meus botões, e voltei ao salão. Rodeado de mamães, de papais e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisa com muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresentá-lo. Esta segurava pela mão a menina com quem, dez minutos antes, Julião Mastakovitch representara a sua cena no pequeno salão. Agora ele estava-se derramando em extáticos elogios à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da gentil menina. Manifestamente engodava a mamãezinha, que o escutava quase com lágrimas de enlevo. Os lábios do pai sorriam. o dono da casa alegrava-se com essas alegres efusões. Os próprios convidados tomavam parte no júbilo; até os brinquedos das crianças foram suspensos para não se perturbar a conversa. Era uma atmosfera quase religiosa.

Logo depois, ouvi a mãe da interessante pequena, comovida até o fundo da alma pedir a Julião Mastakovitch, com expressões escolhidas, que lhe desse a subida honra de distinguir-lhe a casa com sua preciosa visita, e ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demais convidados, no momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as conveniências, em louvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e principalmente a Julião Mastakovitch.

- É casado esse cavalheiro? - perguntei em voz quase alta a um conhecido que estava mais perto dele.

Julião Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.

- Não - disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado com a leviandade que eu de propósito cometera.

Passava eu, há pouco tempo. em frente à igreja de ***, quando um grande ajuntamento me despertou a atenção. Em redor falava-se de um casamento. O dia estava nublado, começava a chuviscar; entrei na igreja abrindo caminho através da multidão. Logo avistei o noivo. Era um rapaz baixo, gordo, bem nutrido, de ventre ponderável, muito enfeitado, que corria para todos os lados, se agitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmúrio de vozes anunciando a chegada da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem de admirável beleza, para quem a primavera apenas começava. Mas estava pálida e parecia triste a linda noiva. Olhava distraída e tinha os olhos vermelhos, o que me deu impressão de lágrimas recentes. A severidade clássica de suas feições emprestava-lhe à beleza uma expressão algo solene. Através daquela severidade, daquela gravidade, de toda aquela tristeza, transpareciam os traços de uma criança inocente, algo de incrivelmente ingénuo, juvenil e ainda não formado, que parecia, sem palavras, implorar piedade.

Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezasseis anos. Examinando atento o noivo, nele reconheci Julião Mastakovitch, que eu não via desde cinco anos.

Olhei para ela... Meu Deus! Fendi a multidão outra vez para sair da igreja o mais breve possível. Ainda ouvi um espectador dizer que a noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote... e não sei mais quanto para o enxoval.

- Então o cálculo era justo; disse comigo.

- E saí para a rua.

Pedro Du Bois (Parênteses)


ser a vida entre parênteses
na explicação dos teores ocultos
no desplante: mentir explicações
de contados elementos na imagem
modulada no limite do esgarçamento:
conta apresentada em favores;
desligar o som e explicar o silêncio
do quarto entreaberto em atos.
O sentido do rosto contra o espelho
melancólico das imagens. Texto
tosco das palavras sem sentido.

Fontes:
Poema enviado pelo autor
Imagem = http://mentesdementes.zip.net

Larissa Fadel (Cristais Poéticos)


VALSA DO DESENCANTO

Meu querer passeia distraído em minh' alma
A felicidade espia
vai embora
A tristeza chega
Impiedosamente demora

A madrugada me instiga a esquecer
me chama
na chama
do meu ser

Chove em meus olhos
Anoitece todas as luas
Espero a estrela no mar entornar

Navego em refrões que um dia cantaste
Lembro que outrora meu riso roubaste

Hoje me aqueço
nos tons da lembrança
Coleciono saudades pra vingar da esperança

Recordo que em mim já sentiu poesia
Lamento que hoje não quer mais saber

Saio às pressas com os olhos de chuva
O vento que vem é o mesmo que vai
Balanço no tempo impávido e cruel
Seria mais doce provar outro fel

Fito teus olhos
hoje como vidro
Mas um dia espelho meu

Acordo e persigo meus anos e planos
Estanco em meu medo
Estraçalho meus sonhos

Desencanto traduz
Valsa que conduz
A chuva dos olhos vai demorar
Sozinha em mim é melhor ficar...

RESSURREIÇÃO

Longe do chão navego sem rumo
Sossego segredos em céus e planetas
Sinto asas brancas em suspiro flutuar
Fascinante perigo que ouso alcançar

Inspiro magia de raio e cor
Me visto de estrela em calendário lunar
Ascendo sorrisos para cura e dor
Eterna renúncia que se faz por amor

Delírio de alma, raio , explosão
Entrega de sonhos em tom de emoção
Fogo feroz que não quer machucar
Perfeita beleza que quer delirar

Outro caminho a sorte perfuma
Olhos chorando sem pra trás olhar
Abraço perdido na vida errada
Luz de velas no encontro da madrugada

Lembrança de chuva que molha o sorriso
Silêncio de rua onde sonhos se vão
Viajante de cosmos, visão do paraíso
Mudança de rota no vôo do coração

Pedaço de mim que se foi mais uma vez
Chama que ascende saudade e intuição
Vida minha que amanheceu por dentro
Ternura em acordes de antiga canção

Sabor de sereno desabrochando a flor
Encontro marcado de rio e mar
Olhos chorando o impacto da colisão
Conjugando o fascínio de nova paixão!

VIM TE BUSCAR

Hoje vim te buscar no meu pensamento
Quem me trouxe até aqui soprou forte
Foi o vento

Na viagem colhi fruta madura
Flores do campo pra te aliviar
Vi pássaros, ouvi trovões
A chuva veio pra me molhar

Não resistindo ao encanto da chuva
Deixei a agua cair sobre o meu corpo
Lavei a alma e coração
Senti leveza
Quis voar

Meu vôo foi intenso
Comecei tirando devagarinho os pés do chão
Aprendi a flutuar
Uma andorinha que andava apressada parou para olhar
Me convidou para com ela ver o verão chegar

Assim fomos juntas
E como mágica comecei a voar
Voava leve e solta
Vi terras, cachoeiras e florestas
Num instante já estava no mar

Nadei com baleias e golfinhos
Conheci a estrela do mar
Mergulhei nas profundezas do oceano
Vi corais e navios perdidos
Vi a vida atë então desconhecida
Vi a luz da lua a jorrar na ägua o encanto do luar

De volta estava com os pés na terra
Já estava quase lá
De tão lindo que foi caminho
Jurei um dia voltar

Te encontrei sozinho, sentado num canto a chorar
Me aproximei de mansinho sem saber o que falar
Não sabia o que houvera
Nem tampouco como parar
De repente a primavera
Veio com as flores perfumar

O perfume exalou
De novo quis voar
Desta vez minha companhia
O vento ajudou a carregar

E Entre terras tão distantes
Não mais quis te deixar
Vem comigo meu amor
Este mundo desbravar!

SONHO MORTO

Fala as horas nesse imenso céu
Canto estrelas sem existir
Distancio as rimas desse dia
Sei que é hora de partir

O mundo que não veio
Tinha o cheiro de jasmim
risos, lagos, outras cores
doces versos e mar sem fim

Mas o tempo trouxe o lamento
e todos os dias eu recordava
presente imperfeito da solidão
soneto de amor numa canção

Debrucei na janela da alma
lá derramei todo meu ser
vazio de coração que ama
grito de sofrido querer

Desejei todas as dores
caminhei na noite fria
deixei sonhos e amores
em troca de flores e calmaria

Hoje escrevo sem a lágrima
sem amor, sem ilusão
letra fria de uma história
que arrebentou um coração.

SONHO QUE NÃO VEIO

Atravesso a madrugada
Me falta o sonhar que queria
Os versos que me acompanham
Não querem a aurora do dia

Viajo pra dentro de mim
Ânsia louca do meu ser
Vibro como cordas de uma lira
Canto uma história sem fim

Doce é o manto da ilusão
Aconchego de novo ninho
Tantas são as cores da emoção
vaga noite, lume, passarinho

Fonte são teus olhos
Cais do porto de solidão
diamante desse amar
Ondas que teu nome levou
das areias daquele mar

Lembrança que partiu
Saudade que ficou
Sereno de silêncio
amor que navegou

Palavras que soam o instante
Gotas de ternos orvalhos

Que doce poesia eu poderia compor
se teus dedos tocassem meu amor

Que doce poesia eu poderia ser
Se tuas mãos abraçassem minha saudade

Que doce poema poderia dizer
se me desse a flor do teu querer

Mas fico na madrugada
e perco agora a palavra
não sei o que dizer

Ajoelho pra esperança
Colho eu a desejada flor
Enquanto o dia não vem
Fico eu com a calada dor

NOVO RETRATO

Não tenho mais promessas de ficar só
Tenho as tenras andanças
Areia, sal, terra e pó
Tenho solitárias lembranças
Contidos pecados
E na garganta um nó

Tenho saudade de coisas
Que ainda não sei
Fiquei sem tempo pra isso
Nem sei se terei

Tenho uma rota definida
Em constante mutação
Se é contraditório
Eu sou a mutação

Sou mais feliz agora
Do que antes fui
Mas tenho uma lágrima aqui
Que ainda insiste em cair

Lágrima de vontade
De saudade
De paixão
Mistura de quem ama
No cantinho de ilusão

Me abriga o sol lá fora
Olho o tempo, passam as horas
Queria eu tudo poder dizer
Aqui tudo transcrever
Mas a mente vai mais longe
E nos dedos sangra esse querer

Abstraio as largas emoções
Deixo a paisagem na memória
Fotografo a história
Que no futuro chegará

Me interpreto no acústico desse lugar
Sem rimas ou versos
Na ânsia de chegar

Na tempestade das palavras
Concebo o que de mais belo há
Posso até ver anjos
Posso ser
Posso crer
Posso amar

Posso amar o beijo lento
Me entregar nas altas ondas
Posso no fogo me deitar

Posso ser mulher
Ser criança
E nessa ampulheta
Brincar com o tempo que me balança

Por fim posso ser
Essa pele branca
Esse jardim
Posso ser tudo
Com um toque suave e profundo
Do seu eterno ser em mim.

NOVA ESTAÇÃO

Para colorir a estação
a primavera despertou
vieram estrelas
oásis
o sonho dos meus dias
a chuva regando a flor!

Melodia
já era dia
clareou!

Surgiu o meu compasso
nas mãos de outro sonhador
cor verde
que a chuva molhou!

Minha alma adormecida
meus quereres inesquecíveis
a porta aberta
minha música
minha dança
emoção!

Ao som de muitos tempos
não teve recordação
fui errante e saudade
o presente se manifestou!


E eu que tanto esperava a primavera
coroei minha jornada
floreei minha estrada
fiz belo meus dias

E vc que tanto esperou estações
atiçou sentidos
acordou adormecidos
fez o dia nascer!

E eu de novo
uma vez criança
outra mulher que dança
outra vez
e vou!

Não por onde pisei
não por ali, nem por aqui
somente vou
somente sou
somente viva

Sou êxtase
esse êxtase que se extrai
das mais belas notas da lira
que se entrega ao som do vento

que volta como onda
que pisa na areia
que desenha estrela
que não olha pra trás
estou!


Estou como quem pode estar
talvez um acorde
que no tempo andou
somente estou
me basta
o ontem...já passou
um pouco serena, ainda pequena
mas estou!

Sigo adiante
para uma terra nem tão distante
com o coração pulsante
com vontade de futuro
mas sem medo do escuro
com desejo no pulsar

Componho as notas da vida
curo minha ferida
faço minha própria canção
já aprendi a dançar

E na primavera que brota
minha primeira rima
é composição de cores
é ter de volta amores
é poder voar!

Quem me rodopiou foi o tempo
com ele senti medo do vento
mas com ele sei que vou chegar
e vou!

Vou novamente andando
me domando
navegando nesse imenso mar

Não vou por ali
não!
Não vim para seguir caminhos traçados
planos cansados
trajetórias impostas

Vim para desbravar o tempo
devastar o vento
e seguir minha brisa

Vim para ser sonora
como nos tempos de outrora
enfim me encontrar

Então vou!
Por aqui, por ali, por lá!

Não tenho uma nota só
tenho a partitura
mas por terminar


O fim sou eu que faço
porque meu caminho hoje eu traço
seja no deserto, nas estrelas, no mar

Não possuo a música inteira
mas tenho vontade de cantar

Audácia
Caminhos
Trilhas
Pedras
e flor

É primavera meu amor!

Fonte:
http://www.novaordemdapoesia.com/search/label/Larissa%20Fadel

Carlos Nascimento Silva (Desconcerto)


— Papai Noel não existe — disse Ninico, baixinho, concentrado no fundo do copo de conhaque Napoleão.

Já eram onze horas da noite e os quatro, em volta da pequena mesa de tampo de mármore mal polido, terminavam a quinta rodada, um pouco sonolentos, meio nostálgicos pelo passamento da data, o bar vazio de fregueses, o Joaquim da Maria a cabecear cochilos sobre o alto banco de madeira, por trás do balcão.

— O quê que você disse? — assustou-se Feliciano, levantando a cabeça para olhar o amigo — Que Papai Noel não existe? O que você quer dizer com isso?

— Ele quer dizer que Papai Noel não existe — confirmou Mariano, tautológico, os olhos vidrados, mirando de esguelha a luz amarelada do poste, no outro lado da rua — Ora, você não sabe que o Ninico adora afirmações controvertidas? Ele sabe muito bem que não pode provar isso. E só provocação.

— Não... eu acho mesmo que não existe. Não é polêmica, não, só que ele não existe — confirmou Ninico mansamente, ainda olhando o fundo do copo.

— Deixa de bobagem, isso você sabe desde os cinco anos! Feliciano, terra a terra, evitando a armadilha da filosofia barata de Mariano.

— Tá bom, se vocês querem passar a noite de Natal dizendo coisas sem sentido, por que não? — Mariano, cansado. — Eu não tenho ninguém me esperando em casa; nem vocês. Só o João. Mas vocês têm que concordar comigo que não se pode provar isso: nem afirmar, nem negar. Não de forma consistente — concluiu exato, taxativo.

— Como você coloca, em termos puramente lógicos, é claro que não. Mas você também vai ter que concordar que, nesses termos, o que se pode discutir é muita pouca coisa. Afinal, se você descarta o que não é passível de prova, o que se pode discutir? O que está provado? Mas isso, por definição, não dá margem à opinião, portanto, à discussão — Feliciano, perdendo a paciência com Mariano. — De mais a mais, isso é uma conversa, só isso, uma discordância entre duas pessoas que têm diferentes opiniões.

Mariano ia responder à aporia absurda, mas emburrou, e caiu um silêncio incômodo sobre a mesa. Amigos antigos, aquilo não era anormal em sua convivência diária. Cada qual conhecia, demasiadamente bem, o pensamento do outro, havia mais de vinte anos, o que permitia um entendimento rápido entre eles. Os desacordos eram conhecidos, paredes intransponíveis de há muito reconhecidas, respeitadas, ou talvez, apenas toleradas, meras impossibilidades interpessoais: convicções vivenciais, definiria Feliciano.

E foi, com surpresa, que os três ouviram João Pedroso dizer:

— Não, Ninico, você está errado. Todos vocês estão errados. Não só ele existe como pode ser provado. Quero dizer, eu posso provar, e outros, talvez, também.

Ninico tirou os olhos do copo, lentamente, discordante, suspeitoso. Os dois outros olharam o amigo sorrindo, suspicazes. Não era discordância, mas incredulidade ou, talvez, a expectativa de uma brincadeira do João. Mas o rosto do amigo estava sério, vincado.

— Ah! Pára com isso, João! Você também? — exclamaram ambos, rindo, com pequenas variações de palavras, mas a mesma significação.

João Pedroso olhou cada um dos amigos com o rosto tenso, amargurado, e não se deu ao trabalho de responder a qualquer deles, o pensamento vagueando por um mundo antigo, perdido, passado.

— Eu nunca contei isso a vocês. Nunca falei disso a ninguém, aliás. Só de pensar, já me faz sentir mal, como uma nuvem escura de tempestade, um certo mal-estar, algo maligno.

O ambiente da mesa mudara. A descontração da conversa se fora, deixando uma tensão progressiva nos corpos, no ar. A própria iluminação no bar, na rua, mudara, como que enfraquecida por uma queda de voltagem tão comum naquela cidadezinha. Ninico contraiu os músculos dos ombros, os intercostais, sem se dar conta. Os demais, mexeram-se nas cadeiras, incomodados, sem saber com o quê.

— Eu devia ter uns sete anos, por aí, e o colégio já se tinha encarregado de tirar algumas ilusões que minha mãe alimentara por toda a meninice. Esta não foi, certamente — disse João Pedroso com o ar sonhador de quem relembra a primeira infância — a última delas.

Ele já não se lembrava mais das circunstâncias exatas, das causas ou do motivo que o levara a fazer o comentário com a mãe, mostrando a sabedoria que adquirira longe do ninho que, afinal, o enganara com aquela mentirinha.

— Eu estava me mostrando, para minha mãe, orgulhoso de como eu já estava crescido, virando homenzinho. Não era uma recriminação a meus pais, nem nada parecido, e fiquei muito assustado com sua reação violenta, seus gritos que só terminaram com minhas lágrimas, abraços, beijos e pedidos de desculpa.

João Pedroso virou o resto do conhaque e olhou os amigos buscando encorajamento.

— Em resumo, minha mãe disse que o Natal só existia para quem acreditava nele. Era pegar ou largar, simples assim. Quem era bom, obedecia aos mais velhos e acreditava no que o Natal significava era recompensado com os presentes, mimos e doces que eu sempre conhecera. Em caso contrário, nada feito: a escolha era de cada um. E esse era o motivo pelo qual muitos meninos não acreditavam em Papai Noel, ou o inverso, como queiram.

João Pedroso pediu mais uma rodada de bebida, nesta altura muito bem-vinda, e contou que relatara aos colegas de colégio o que ouvira da mãe.

— Vocês podem imaginar como fui alvo das mais cruéis caçoadas no grupo escolar. Foi uma experiência bastante dura, dada minha idade. Não só riam de mim, me apontavam, no pátio da escola, como aquele que acreditava em Papai Noel e isso resultou num forte isolamento dentro do grupo.

É claro que o menino havia procurado diminuir o atrito insuportável. Naquela altura, a apostasia de suas crenças era o que menos o preocupava, mesmo que ele desconhecesse a palavra. Além disso, sua confiança na mãe estava abalada.

— Vocês entendem? Não era apenas uma questão de coragem moral, o que já é bem difícil para adultos quanto mais para uma criança pequena. Mas uma ruptura entre meu mundo primeiro, materno, e minhas crenças grupais, etárias, se vocês quiserem, enfim, do meu mundo, ou do mundo que se armava, não só à minha volta mas com minha participação, já que eu era parte integrante, ativa, dele.

A divisão era profunda, não pela questão em si, apenas, mas por tudo que significava. Afinal, aos sete anos não se tem senso crítico, e a cisão se tornou funda, sem termo médio que a diminuísse.

— De mais a mais — continuou João Pedroso — a forma como minha mãe colocara a questão, ou seja, em termos de crença, tornou impossível uma decisão. Claro, hoje eu posso ver isto com algum distanciamento. Mas naquela idade, eram pontos irreconciliáveis, um abismo de incerteza e indecisão que não podia ser aproximado. Enfim, uma polaridade insuportável que se estendia a toda matéria ética, estética, religiosa, abrangendo, mais tarde, todas minhas convicções sociais, políticas, econômicas. Em resumo, o mundo das idéias e das ações, como vocês mesmos colocavam o assunto, ainda há pouco.

— E então — perguntou Ninico, com seu jeito manso — como você saiu dessa?

— Não saí. Não havia como sair, e do meu ponto de vista infantil não só a questão não era nítida como seria a causa do mais completo desastre, dada a importância que o Natal tinha para mim, naquela época. Acho que minha aversão à data vem daí. Reparem nas implicações: ou me tornava um pária social, isto é, dentro da minha sociedade, a escola, meus amigos, ou minha mãe saberia de minha descrença, já que o Natal nada me reservaria, se ela tivesse razão. Mas o pior ainda não estava aí: não importava o que eu declarasse a uns e outros, a divisão permaneceria, interna, dentro de mim, mesmo que eu “quisesse” aceitar uma ou outra opinião, uma ou outra crença, já que era disto que se tratava. E então, a angústia foi excessiva e adoeci.

— Meu Deus, João, por que você não falou com sua mãe?

Obviamente não tinha sido esta a intenção dela — apartou Feliciano. — Ou mesmo seu pai, um tio, avô.

— A criança tem sua lógica própria. A reação dos dois lados, minha mãe e os amigos, foi tão oposta que o assunto se tornou, tabu, proibido, para mim. João Pedroso contou, então, como sua doença veio diminuir o conflito. Chegavam os primeiros dias de novembro e o médico o proibira de qualquer esforço, o que incluía sua ida à escola. Em casa, filho único, acamado nos primeiros dias pela febre nervosa, João Pedroso teve que enfrentar muitas horas de solidão e decorrente ensimesmamento. Filho obediente, ele queria muito acreditar no que a mãe lhe dissera, o que foi facilitado pela ausência dos colegas e amigos. Outra vez no ninho materno, a adequação ao movimento da casa, seus tempos, suas práticas, permitiram finalmente ao menino o retorno à cultura materna, matriarcal? E a doença se evaporou, como se jamais se houvesse instalado. A seqüência das férias consolidou seu melhor estado de saúde, e mesmo a aproximação do Natal não lhe trouxe maiores sobressaltos, uma vez que sua divisão interior quase desaparecera.
***
Cerca de meio século depois, João Pedroso saiu para o alpendre elevado, aonde raramente ia, tanto pelo vento cortante dos dias frios, como pela inclemência da luz, que galgava os céus, fronteira à fachada do sobrado nos dias de verão, e dirigiu-se à terceira coluna de tijolos ingleses envernizados. Contou sete blocos, de baixo para cima e, lentamente, sacou o pequeno tijolo, no silêncio da casa ainda adormecida. Apanhou algo que meteu no bolso da calça e voltou a encaixar o bloco em seu lugar, bem justo, sem deixar qualquer irregularidade que o diferenciasse dos demais.

A construção esquinada cavalgava um outeiro que lhe permitia sobrever, da rua em cotovelo que subia à esquerda, as casas menores, pouco acima do peitoril de suas janelas, enquanto à direita, telhados e beirais acompanhavam a íngreme descida. A quem passava, na rua, pouco mais lhe era permitido notar que a alta estante de livros, quase a atingir o teto de um dos cômodos, quando as pesadas cortinas não estavam corridas.

João Pedroso herdara do pai, na década de sessenta, o que a cidadezinha preguiçosa gostava de considerar sua mais bela construção, produto da corretora de café, então localizada no rés-do-chão do prédio, amanhada com proficiência e algum descortino comercial, desde os anos trinta.

Diferentemente do pai, João Pedroso nunca tivera a mesma capacidade, ou sua habilidade no jogo do comércio atacadista. Compras infelizes e vendas precipitadas tinham dilapidado o capital diligentemente acumulado, e a década de setenta viu a ruína do rendoso negócio paterno. Não que João Pedroso trabalhasse pouco ou mal. Ao contrário, a época adulta fora um nunca findar de trabalhos, esforços e preocupações cujos resultados, sempre negativos, haviam aportado no naufrágio mais completo.

“Quase como uma maldição”, repetia ao correr da vida, como um refrão ominoso, um dobre de finados. E então seu pensamento voltava ao pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, metido sob o tijolo da sétima fileira da terceira coluna do alpendre.

Foi quando João Pedroso começou a jogar, na esperança de equilibrar o orçamento da casa, já que ao da firma não restava qualquer esperança. Da loteria estadual ao bingo, e deste ao bookmaker da cidade mais próxima, foi uma evolução tão rápida quanto danosa, desastrosa. A tentativa de sonegação fiscal da corretora de café, por um desses acasos improváveis, redundou numa multa que montava a quase dez vezes o valor do imposto, como uma pá de cal sobre a firma paterna.

A venda da parte inferior do prédio e suas instalações evitou mal maior, permitindo a João Pedroso manter a moradia no sobrado, embora o passadio fosse escasso e fortemente controlado. Móveis, roupas, enfim, qualquer despesa era eternamente, ou quase, protelada, ao custo de muito cuidado no uso de cada objeto, sentindo-se mesmo, na casa, a falta de qualquer comodidade que não viesse dos bons tempos. Ternos, gravatas, camisas sociais de colarinho engomado, o vinco das calças de tropical, os sapatos engraxados, tudo era alvo do trabalho cotidiano da mulher e duas pretas, retaguarda doméstica raramente entrevista entre o corredor e as áreas de serviço, partes da casa sem forro, construídas em telha-vã. O João Pedroso dos amigos era, por assim dizer uma ponta de iceberg, mostruário, vitrina da vida do sobrado e, por ele, a cidadezinha jamais saberia do real estado das finanças familiares. E assim ele arrastara os últimos anos, vivendo de pequenos expedientes, de despesas inexistentes.

Mas naquela manhã da véspera de Natal João Pedroso não estava preocupado com isto. Não dormira bem, rolando na vasta cama de casal que fora dos pais, ora puxando as cobertas até o pescoço, com arrepios de frio, ora empurrando-as para longe do corpo, em calores inusitados. E tão logo a luz cinzenta da manhã se filtrou pelas venezianas de madeira azul-claras, saltou do leito e, de camisolão e chinelas, dirigiu-se ao alpendre em silentes passos de gato. De posse do objeto demandado e, talvez porque o não tivesse tocado por mais de cinqüenta anos, meteu-o no vasto bolso sem lançar-lhe uma única mirada, dirigindo-se ao banheiro, para as abluções matinais.

Durante o café, enquanto passava uma vista ao jornal, João Pedroso sentia o pequeno papel — um bilhete? — como um objeto morno, no bolso do paletó, a pesar-lhe incomodamente o peito, e perguntou-se por que o pegara, após tantos anos, e com que finalidade.
***
— Bem, foi então que Alberto chegou — disse João Pedroso, baixinho, dando uma bicada no conhaque, sem mesmo se aperceber.

— Que Alberto, o Gaguinho da Maria Preta? — interrompeu Feliciano, mal contendo a curiosidade.

— Não, não é do tempo de vocês. O Alberto Monteiro era meu primo, por parte de pai. Moleque traquinas e malcriado, o Alberto era o terror de minha mãe e das criadas. Um ano mais velho que eu, era sempre quem inventava os malfeitos, as travessuras, quem começava as brigas e brincadeiras brutas, maldosas. Vocês sabem, cuspir, do sobrado, na cabeça dos passantes, prender barata viva entre a xícara e o pires da mamãe ou amarrar os cadarços dos sapatos da negrinha, por baixo da mesa. Toda a casa ficava em polvorosa, entre os malfeitos e as zangas e castigos. E, como não podia deixar de ser, em muitos eu embarcava, mesmo a contragosto.

Enfim, mesmo assustado com sua ousadia, eu admirava o Alberto e me divertia, como qualquer criança, com as traquinadas que ele inventava. Quando a Maria Preta correu como alma penada pelo meio da casa, embrulhada no lençol, por causa do calango que o Alberto colocara debaixo de seu travesseiro, a mamãe perdeu a paciência e nos decretou três dias de castigo, presos no quarto grande, sem revistas ou brinquedos. Saíamos só para as refeições, na sala de jantar, com papai e mamãe de cara feia e voltávamos para o “retiro espiritual”, como ela dizia, a fim de que “puséssemos a mão na consciência”, como “meninos de família” e não “bugres do mato”.

Faltavam poucos dias para o Natal, mas não foram dias muito amargos, mesmo com a liberdade perdida, já que Alberto não sossegava, nem mesmo preso num quarto. Arremedava a mamãe, imitava a Maria Preta, tecia planos mirabolantes para quando saíssemos da “prisão”, jurava vingança contra a negrinha que, segundo ele, fora a delatora, no episódio do lagarto.

— Enfim, apartou Mariano — uma criança normal.

— É claro, normal — sorriu João Pedroso pela primeira vez, desanuviado pela lembrança do primo — mas duvido que você ainda o classificasse dessa forma, caso ele passasse um dia em sua casa. Enfim, contei isso para vocês terem idéia de como era o Alberto, naquela época. E assim, ao final do segundo dia de castigo e como minha mãe mencionasse manhosamente o Natal a meu pai durante a refeição, quando voltamos ao nosso castigo contei ao Alberto o que ela me dissera sobre assunto tão palpitante. Alberto quase engasgou de tanto rir, de minha credulidade.

— Ô, João, Papai Noel são nossos pais! Ela te contou essa história pra você ser um bom menino, ficar quietinho e não encher a paciência dela. Ela me acha um bom menino? Eu acredito em Papai Noel? Então como você explica que eu ganhe presentes de Natal todo ano? A bola de futebol, a bicicleta, como você explica isso?

— Bem, é inútil dizer o quanto essa terceira guinada nas minhas crenças, em tão curto período de tempo, mexeu com a minha cabeça. Então ela tinha mesmo me enganado Pensei na vergonha que eu passara na escola, nas caçoadas, nos meus esforços para acreditar nela, nas minhas boas intenções e prometi, a mim mesmo, nunca mais ser tão crédulo, nem mesmo com meus pais. Prometi, também de mim para mim, sem nada dizer ao Alberto que, quando saíssemos do maldito quarto, ele não seria o único a inventar maldades. Só que eu teria mais cuidado, muito mais cuidado do que ele. Além de fazer as travessuras, eu cuidaria para não ser implicado nelas. E então meu prazer seria duplo, já que o castigo cairia sempre sobre outra pessoa. E por que não a negrinha que me fizera ficar trancado por três dias?

Assim, o último dia de castigo foi o mais prazeroso deles. Alberto, cansado de não fazer nada, se calara, emburrado, num canto, enquanto eu aproveitava para imaginar um monte de pequenas maldades com todos da casa mas, principalmente, como evitar que se pudesse saber a autoria do malfeito.

Aquela semana de Natal foi muito atribulada, lá em casa, para eles e para nós, e mamãe acabou telefonando ao tio para que fosse buscar o Alberto, pois que, com dois, ela já não estava agüentando. O primo se foi e, livre dele, eu pude armar meus álibis com mais facilidade. Ninguém entendeu como tanta coisa saía errado sem causa aparente. E foi um Natal realmente atabalhoado.

— E nunca te pegaram? — perguntou mansamente Ninico.

— Você quer dizer alguém lá de casa? Mamãe, papai, as empregadas? Não. Segundo eu pensava, eu já tinha sido apanhado, não é mesmo? E só podia me vingar não pagando pelo malfeito que viesse a cometer; esse era meu primeiro e último cuidado, ou não haveria vingança. Alguém mais, qualquer um, devia pagar o preço, desde que não fosse eu, ou as contas não seriam acertadas. Lembrem-se, eu me sentia credor de um mau pagador. O equilíbrio só viria no caso de, tendo sido mau, eu receber meu presente de Natal, como Alberto dissera que receberia.

— Em resumo, através de ações, não de palavras, você discutia ética com sua mãe — definiu Mariano.

— Não creio que tenha sido apenas isso — retrucou Feliciano. — Já não se tratava apenas de “provar” a existência ou não de Papai Noel, ou do espírito de Natal, como querem alguns, mas o valor prático do comportamento ético como fonte de justiça. A vingança, que equilibraria a balança, nos força a entrar no terreno da justiça, como compensação ao bem e ao mal, se entendi bem a sua reação infantil. E agora já não mais estamos no terreno da filosofia, mas da religião ou, como você disse no início da história, da crença.

— Mas eu creio que se tratou sempre disto, não? Quero dizer, a história de João. A discussão ética foi sempre uma ferramenta, não um fim em si mesmo — raciocinou Ninico em sua voz mansa — desde que eu disse que Papai Noel não existia. Só não entendo como você pretende provar aexistência dele.

— Bem, me deixem terminar a história e vocês vão entender — retrucou João Pedroso, com rosto amargurado.

As lembranças infantis das traquinadas já estavam longe, como ficou claro para todos, e o ambiente tenso voltou a tomar conta dos amigos, do bar, da noite.

— A noite de Natal chegou e eu fui me deitar cedo, cheio de expectativa, como vocês podem imaginar. Não sem antes, no entanto, realizar todos os ritos anuais ensinados por minha mãe. E deles fazia parte uma grande meia pendurada, símbolo da gratidão, a mão aberta à oferenda. Escolhi a maior de todas, a meia de futebol de que eu tanto gostava e prendi-a em um prego na parede da sala. Custei muito a pegar no sono em meio a tanta excitação. Afinal, tratava-se mais do que de um simples Natal.

Por trás daquilo, houvera muito sofrimento. Aos sete anos, porém, não há insônia que dure mais de cinco minutos, e eu dormi como um anjo até manhã alta, o sol entrando pelas venezianas, zangado por ter que se espremer tanto, como minha mãe dizia, me chamando de preguiçoso. Já acordei pulando da cama, desinsofrido, e corri descalço, de pijama, à sala, onde ficava a árvore de Natal. Não havia nada para mim sob a árvore enfeitada. Eu não pude acreditar e olhei, então, para onde deixara a minha meia de futebol. Mas tampouco ela estava lá. Ficou apenas um pedaço de papel, espetado no prego da parede, com um poema cujo texto é o seguinte:

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim
Anda o mundo concertado.

— O Desconcerto do Mundo — gritou Ninico — a mensagem de Camões é clara: não há justiça no mundo, exceto para ele. Como vocês vêem, eu estava certo. Papai Noel não existe — gargalhou triunfante.

— Neste caso — gritou Feliciano, acima da risada de Ninico — quem espetou o bilhete no prego e levou a meia? Você se ateve ao significado do bilhete, não à sua existência! Sua análise foi parcial, então Papai Noel existe! — concluiu vitorioso.

— Pronto, voltamos à discussão maluca! — Mariano, cada vez mais cético. — Que importa quem colocou o bilhete no prego? E se foi a mãe ou o pai de João, como castigo por seus atos? Ou seja quem for? Como deduzir daí a existência de Papai Noel?

— Pelo próprio bilhete, meu amigo. Ele está escrito num dialeto esquimó oriental que, segundo o lingüista da universidade, só é falado em determinada região do Pólo Norte — disse João Pedroso cansado, o rosto tenso, colocando o papel amarelado pelo tempo sobre o mal polido mármore do tampo da mesa do café.

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Carlos Nascimento Silva, 64 anos, nasceu em Varginha — MG, e foi criado no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura Brasileira e professor universitário aposentado. Começou a escrever — poemas, pequenos contos, crônicas — aos 14 anos. Admirador de Leon Tolstoi, Thomas Mann, Guimarães Rosa e Machado de Assis, chegou a perder um ano escolar porque, em vez de ir para o colégio, devorava livros, escondido, na biblioteca de sua avó.

A Casa da Palma (Relume Dumará, 1995), seu primeiro romance publicado, foi premiado pela União Brasileira de Escritores e pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Publicado na Alemanha (Das Palmenhaus, Europaverlag, 1998), obteve grande sucesso de crítica e de público. Em 2006, o escritor lançou novo romance, “Desengano”, pela Editora Agir.

Fonte:
Contos para um Natal brasileiro. RJ:Relume Dumará / Ibase, 1996.

O Natal nas Trovas do Clã do Paranaense Heitor Stockler de França


Pelas ruas da cidade,
Encontrei com Jesus Cristo...
- Faze e prega a caridade,
Para o Céu bem chega isto!
APOLLO TABORDA FRANÇA – CURITIBA - PR

Falta de paz nos arrasa,
tal punhal cravado fundo...
Pois que a paz comece em casa
e se espalhe pelo mundo!
CRISTIANE BORGES BROTTO – CURITIBA - PR

Natal é mais que uma festa
ou simples noite de luz.
É amor que Deus manifesta:
- Bem-vindo Cristo Jesus!
CAMILO BORGES NETO – CURITIBA – PR

Agora tenho na mente,
muita coisa a realizar:
- Ver a família contente
com o natal a chegar...!
GLYCÍNIA DE FRANÇA BORGES-CURITIBA - PR

Proponho com devoção:
Permutemos os presentes...
Eu te dou meu coração,
tu me dás mil beijos quentes.
HEITOR STOCKLER DE FRANÇA – PALMEIRA – PR

No seu lar pleno de amor
neste Natal reine a paz,
rememorando o esplendor
de dois mil anos atrás.
HELY MARÉS DE SOUZA - UNIÃO DA VITÓRIA – PR

Quanto amor e quanta luz,
namangedoura se faz...
Pois, nasceu Cristo Jesus,
na grande noite de paz.
LÚCIO DA COSTA BORGES – MORRETES – PR

Desejamos paz e bem
nesta época de amor...
Resplandeça em nós também
uma fé com mais ardor.
MARIA AMÉLIA BERTOLINI ENNES – BRUSQUE - SC

Vejo o menino Jesus
sorrindo pra humanidade,
irradiando intensa luz,
transcendente de bondade!
MARITA FRANÇA – CURITIBA – PR

Seja estrela sorridente
no seu modo de viver,
e com força transcendente
faça o bem acontecer!
VIDAL IDONY STOCKLER – CURITIBA - PR

No Natal, paz e venturas,
se deseja com ardor,
esta data de farturas...
celebramos com amor!
WALDEREZ DE ARAÚJO FRANÇA – PARANAGUÁ - PR

Que o natal traga a engrenagem
da paz... do amor... da magia,
unindo o sonho à linguagem,
ao mundo azul da poesia...!
VÂNIA MARIA SOUZA ENNES – CURITIBA – PR

Fonte:
Trovas enviadas por Vânia Maria Souza Ennes

Imagem = montagem por José Feldman

Carlos Leite (Mensagem Natalícia: Um conto de Natal)


Naquela véspera de Natal, o senhor Freitas regressava a casa, sozinho como sempre, pois, já há muito tempo que não convivia com ninguém, pois tinha um feitio muito especial que afastava os amigos.

Um saco de plástico na mão esquerda, chapéu-de-chuva no braço direito, uma gabardina muito comprida e muito usada; botas gastas e a "comerem" a bainha das calças já muito coçadas; óculos encarrapitados no seu grosso nariz, e uma boina muito velha na cabeça. Corpo vergado pelo peso de muitos anos - era assim o senhor Freitas!

O dia estava a findar e, o movimento nas ruas era enorme, pois, toda a gente queria chegar a casa o mais cedo possível, com os presentes para os seus familiares e amigos. Chuviscava.

Ninguém parecia reparar naquela personagem, nem este, parecia notar a presença de outros.

Uma criança se abeirou dele:

- Senhor, uma esmolinha por favor... Senhor, uma esmolinha por favor...

- Eu não dou nada a ninguém - vai-te embora daqui!" - Respondeu-lhe com mau modo o velhote.

Mas a pequena insistia

- Hoje é Natal - dê-me uma esmolinha por favor...

- O Natal é só para os outros, garota! O Natal para mim é um dia igual aos outros... ... Ai, ai que eu caio, ai...aiii…

E o senhor Freitas escorregou numa casca de banana e caiu mesmo. Logo a criança, muito aflita, gritou-lhe:

- Cuidado, senhor...

- Ai...ai, meu braço. Maldita casca de banana!...

- O senhor magoou-se? Terá algum osso partido? coitadinho... - Não se cansava de perguntar, muito aflita, a garotinha.

O velhote parecia que nem a ouvia:

- Ai, o meu braço que me dói tanto... Ó garota, apanha-me essas maçãs e também o pão. Ajuda-me a levantar. Mas cuidado, cuidado... Ai, ai o meu braço…

- Tenha calma, eu ajudo o senhor a levantar-se... Vá lá, com muito cuidadinho; vá, vá, pronto. Agora, vou levá-lo ao hospital.

O senhor Freitas, teimosamente, tentava prescindir dos seus préstimos:

- Não preciso de nada, garota! Eu vou sozinho... Mas, ai, ai... O meu braço...

Carinhosamente, a garota tentava convencê-lo a ir tratar-se:

- Está a ver?... o senhor precisa da minha ajuda. Não seja teimoso, nem mauzinho. O senhor até tem cara de homem bom!

- Eu cara de homem bom? Eu bom? Tu estás enganada - ou pretendes enganar-me... Ai…

- Olhe que é preciso ter uma grande paciência para lidar consigo! Você tem cara de homem bom e pronto - é a minha opinião!

Como sempre, o senhor Freitas estava desconfiado:

- Deixa-te disso garoto, que a mim não me consegues convencer com essa cara de anjo. Tu queres é o meu dinheiro, nada mais. Ai, o meu rico braço que cada vez me dói mais!

Já revoltada, a garota respondeu-lhe:

- Sou muito pobrezinha e não tenho ninguém que me dê de comer, mas juro que não quero o seu dinheiro, como diz...

- Tretas! É só lérias, pois todos que de mim se abeiram, só querem o meu dinheiro! E vens tu agora, com falinhas mansas, a dizeres que não o queres! E isto só por eu ter cara de homem bom!... Ai... O meu braço que me dói tanto...

A garota revoltada e já com lágrimas nos olhos, retorquiu-lhe:

- O senhor está a ser injusto para comigo!... Por acaso nunca ouviu falar em solidariedade humana?

Embora com muitas dores, o senhor Freitas não desarmava:

- Puuff, sei lá o que é que isso! A única coisa que conheço é o valor do dinheiro!

Mas não ficou sem resposta:

- Então, meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço que deve estar partido, e, talvez assim fique sem dores e com o braço curado! Por acaso o senhor não compreende o significado do Natal?!

- Lá jeito para discursos, tens tu, garota! - Comentou o velho "resmungão".

- Vou-me embora. Como vê, eu não quero o seu dinheiro. Simplesmente, estava a tentar ajudá-lo.

Dando meia-volta, ia-se a afastar, deixando o senhor Freitas muito estupefato.

- Como assim?! Vais-te embora? Tens coragem de me deixares aqui sozinho? Finalmente tu és como os outros que por aqui passam, sem repararem neste pobre velho - que até tem um braço partido...

Ao ouvir isto, a garota parou e respondeu-lhe:

- Mas o senhor é que não quer a minha ajuda!

O velhote ouviu e "engoliu em seco". Mas, logo continuou:

- Aonde está a tal tua solidariedade que ainda há pouco apregoavas? Sim, aonde é que ela está? Ao deixares aqui sozinho um pobre velho, doente e com um braço partido? Ai, ai que me dói tanto!

A garota sorriu e já mais confiante, retorqui-lhe:

- Meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço. Talvez assim se cure...

Já em tom quase suplicante, o velhote pediu-lhe:

- Mas o dinheiro não me vai curar! Preciso da tua ajuda! Eu pago-te o que tu quiseres, mas, por favor, ajuda-me a ir ao hospital! Pois preciso de me curar. Ajuda-me, garota!... Por favor!

- Dê cá o saco e o guarda-chuva: Agora, encoste-se ao meu ombro e vamos ao hospital...

E era bonito de ver.

Um velho sovina, curvado pelo peso de muitos anos, encostado ao corpo frágil de uma criança, a caminho do hospital onde ia ser tratado.

Naquela noite de Natal, o senhor Freitas, finalmente, devia de ter compreendido a mensagem de Deus:
"Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade"

Fonte:
Texto enviado por Carlos Leite Ribeiro (Marinha Grande – PORTUGAL)

Trova Ecológica 60 - Eliana Ruiz Jimenez (SC)

Autran Dourado (Ópera dos Mortos) Parte I


Sobre o autor:
http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/autran-dourado-1926.html
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É um dos romances que melhor espelha a temática e o rigor formal de Autran Dourado.

Cruzando as vozes dos diversos personagens em comentários e contrapontos, Autran Dourado mostra que o título de seu romance não foi escolhido ao acaso. Como no gênero musical a que faz referência, é a certeza de um fim trágico e as emoções arquetípicas que percorrem esta Ópera dos Mortos, uma meditação sobre os fantasmas do passado e, sobretudo, um exercício de virtuosismo narrativo.

Sua narrativa é um mergulho no passado da família Honório Cota a partir de um velho sobrado que, em sua arquitetura barroca, já corroída pelo tempo, vai revelando o destino de seus moradores, marcados pela tragédia, numa cidadezinha no interior de Minas Gerais.

O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração, adverte um narrador que aos poucos se confunde com a cidade onde reinava o coronel Lucas Procópio Honório Cota. Homem valente, que impunha respeito pela força e truculência, traços que passavam distante da personalidade de seu filho e herdeiro, João Capistrano. Melancólico, em luta permanente para se livrar do fantasma do pai, este fracassa na política — sua única chance de se impor na cidade, e passa o resto de seus dias trancado no sobrado que ergueu como uma espécie de monumento à família.

Com o correr dos anos, o casarão vai se impregnando cada vez mais dos fantasmas dos antepassados, que transformam tudo, de objetos a ambientes, em signos da morte. É neste ambiente opressivo e desolado que Rosalina, filha única de Capistrano, vai viver depois da morte de seus pais. Solteira, isolada do mundo e tendo como única companhia a empregada Quiquina, que é muda, ela passa seus dias fazendo flores de pano e vagando entre relógios parados e paredes carcomidas.

A rotina do sobrado vai ser alterada com a chegada de José Feliciano. Biscateiro, em busca de trabalho de cidade em cidade, Juca Passarinho, como é chamado por todos, vai aos poucos entrando no universo enigmático da casa e, principalmente, na vida da austera Rosalina.

A obra é dividida em nove capítulos cujos títulos servem de temática ao desenvolvimento dos mesmo; cada capítulo induz o leitor a uma leitura visual pelo interior e exterior dos personagens e à medida que a narrativa se desenrola, o leitor vai recebendo explicações sobre os acontecimentos anteriores e entendendo que, na verdade, são os mortos que comandam essas vidas.

Percebe-se na narrativa que o sobrado é o ponto de referência para se retornar à história da família Honório Cota uma vez que as suas ruínas contam o passado de três gerações. Com dois pavimentos, a parte de baixo, austera e pesada, fora construída pelo Coronel Lucas Procópio Honório Cota (pai). A parte de cima, leve e elegante, fora construída pelo filho João Capistrano Honório Cota.

No sobrado decadente da família Honório Cota, restou a filha Rosalina, o imponente relógio-armário parado na hora da morte de sua mãe, as flores de pano e a escrava Quiquina que se encarrega de vendê-las pelas ruas da cidade por onde Rosalina raramente aparece, sempre trancada entre as paredes sufocantes, as lembranças da família, dos mortos e do passado.

A narrativa portanto, focaliza o íntimo de Rosalina, que assume as personalidades contraditórias do pai e do avô, Lucas Procópio, herdando deles não apenas características físicas e psicológicas. Do pai herda também o orgulho ferido de um fracasso político. Todo o texto é organizado em torno da morte. Rosalina só nasce após sucessivos abortos da mãe e ela própria perde o filho no desfecho da narrativa. Solitária, vivendo apenas com Quiquina, que é muda, a protagonista se enclausura no sobrado construído pelo pai.

Isolada das pessoas da cidade, Rosalina passa os dias fazendo flores de pano entre os relógios parados. Após a morte da mãe, seu pai pára o relógio da sala sem nenhuma explicação e Rosalina repete o gesto quando seu pai morre. No desfecho, Rosalina não morre, mas, enlouquecida, é levada embora da cidade, o que pode ser considerada uma forma de morte, pois Quiquina pára o último relógio da casa.

Para romper com o silêncio da casa (Quiquina é muda) entra em cena Juca Passarinho, sonoro, falante (cujo nome é José Feliciano, ou seja, tanto o nome quanto o apelido lembram felicidade). Desde sua aproximação da cidade, Juca pressente a tragédia que causará sua ruína: tem pesadelos, a primeira visão da cidade é a voçoroca (sinal de destruição) e o cemitério (sinal de finitude). De fato, o fim trágico, característico de ópera, irá confirmar a suspeita de Juca. Transformando Rosalina e sendo transformado por ela, suas vidas são esmagadas pela engrenagem. São os fantasmas de Rosalina que tudo transformam em morte. A presença dos mortos na casa e na vida de Rosalina só é possível através do culto dos vivos, ou seja, da própria Rosalina. É nesta dimensão n egadora da morte que surge a importância do ritual.

Sozinha, reprimida por um amor que não deu certo, Rosalina que se embriaga todas as noites, se envolve sexualmente com Juca Passarinho. Mesmo sob o olhar de censura de Quiquina, eles passam a se encontrar com freqüência. Dividida em duas, pois à noite Rosalina assume uma personalidade completamente diferente da aparência diurna, confundindo Juca que se vê transformado (não tem mais a alegria do passarinho), ela engravida. Resultado de uma união profana, o filho nasce morto.

Diante disso, Rosalina enlouquece e é levada para longe da cidade. Desta vez, numa atitude antecipada no texto, Quiquina pára o último relógio da casa. As pessoas percebem, então, que não seria mais possível uma reconciliação com a família Honório Cota.

AÇÃO / ESPAÇO / TEMPO

Predominam, em Ópera dos Mortos, as ações passadas no "sobrado", centro da solidão de onde emanam lembranças e sentimento de ódio, rancor e amargura. Além do sobrado, temos a presença de outros lugares fechados: a cozinha de Quiquina, a sala e o quarto de Rosalina, o cemitério da localidade. Qualquer transição da personagem para outro território é vista como violação, transgressão. O sobrado é o "além" para a gente da cidade e até mesmo para as suas moradoras. É sagrado para Rosalina e Quiquina. Ele presentifica os mortos, uma vez que o seu valor é o não-tempo, ou seja, o tempo em que não há avanço, progresso, sucessão. Em Ópera dos Mortos, a morte está fortemente presente como a situação-limite, o evento que constitui uma determinação insuperável da vida e não pode ser contornado ou transformado pela ação. No entanto, a esta concepção existencial, contrapõe-se a deliberada decisão de Rosalina em negar o tempo presente e o tempo futuro para ater-se ao tempo passado o que possibilita, simbolicamente, a conservação daqueles que um dia viveram no sobrado. A presença dos mortos se dá, portanto, segundo a manutenção de um vínculo interanímico, estratégia que pressupõe o contato sem palavras entre vivos e mortos, para além do espaço e do tempo. Espaço, tempo e indivíduo se equivalem, o que significa ver o homem, em sentido ontológico, como um ser em contato com outros seres, consigo mesmo e com as coisas que constituem seu mundo.

Os habitantes do sobrado, espaço central da narrativa em Ópera dos Mortos, são chamados de A Gente Honório Cota. Honório vem de "honor" – honra, e a honra é defendida pelos dois de maneira diferente. Apresentados logo após a descrição minuciosa do casarão, Lucas e João serão vistos como a causa da vida conflituosa de Rosalina.

NARRAÇÃO

Ópera dos Mortos é um drama, tendo um narrador onisciente e distante que fala a uma outra pessoa o que se passou com os moradores do sobrado daquela cidadezinha do interior: Lucas Procópio (o avô), João Capistrano (o pai) e Rosalina, a filha, são personagens centrais dessa ópera, que tem como personagens secundários Juca Passarinho (o amante), Quiquina (a empregada) e seu Emanuel (o velho amigo que trabalhara para seu pai), tão importante quanto os demais.

A figura do narrador é uma peça fundamental em Ópera dos Mortos. Os costumes da gente da cidade pequena e a história de uma família vão servir de pano de fundo para uma narrativa que, por vezes, assume características reais, como que para provar sua verossimilhança.

O termo "univocidade" talvez não seja o mais apropriado para este tipo de narrador, mas é o que faz referência à esta voz que controla a narrativa: a de alguém da cidade que toma para si as vozes do povo local ao usar o termo “a gente”. Esse “a gente’ é a voz de um ser único, mas de sentimentos múltiplos, que acabará por induzir o leitor à história de suas memórias. É fato que os monólogos interiores de Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina tomam força sozinhos, mas o narrador amarra o corpo do romance ao iniciá-lo com suas lembranças: E agora chega, não? Estou vendo que o senhor quer é gente. Paciência, só um pouco mais, um gostinho só (...) Não fazem mais disto hoje em dia. E como num teatro anuncia-se, na última linha do primeiro capítulo a personagem principal:

(E então, silêncio. Rosalina vai chegar à janela). O leitor tem a sensação de um deslocamento espaço-temporal ao ouvir a descrição memorialística do sobrado, pois deseja voltar-se para ver se realmente Rosalina está à janela:

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, não com aqueles olhos embaciados, aquela neutralidade morna. Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

Não se percebe que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é denominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. E é isso que o narrador faz, prendendo o leitor-ouvinte à teia dos acontecimentos. É a partir deste momento que o narrador começa as construções de suas metáforas. O narrador, na verdade, vai bem mais além do que apenas apresentar e encerrar a história dos personagens (a presença da opinião pessoal e não só das memórias e fatual nos primeiro e último capítulos); ele serve de guia e detentor da travessia de vida dos personagens. É ele quem invoca as passagens do tempo: “Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até o tempo do Coronel Honório”; “De repente a gente voltava ao sobrado”, como que para indicar ao leitor que, mesmo que os relógios da casa pare, o tempo não pára. Após dar direito aos personagens para que se movam e contem sua história, o narrador chega ao final da história voltando-se para o sobrado coo se não quisesse ter ou não tivesse influência nos problemas de Rosalina. Enunciado e enunciação caminham juntos e o passado torna-se presente.

Há duas grandes imagens no romance: o sobrado e o relógio. Construído pelo avô Lucas, o sobrado é terminado pelo filho João; o relógio, do tipo armário, tem um pêndulo que vai de um lado a outro, representando assim Lucas e João na vida de Rosalina. Rosalina é dupla: sobrado e relógio, bem como o sangue do pai e do avô que corre em suas veias. Juca Passarinho a escuta dizer: “Eu pensava que era igual a ele (o pai), não sou igual a ele não, sou igual a ele, o outro (o avô)”.

Há todo um envolvimento mítico em torno desse sobrado chegando mesmo a ser personificado, conforme lemos no texto:

...o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida, mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida....

PERSONAGENS

Lucas Procópio Honório Cota - é o avô de Rosalina, que lhe deixará como herança seu comportamento sexual livre. Vivia povoando a terra com filhos naturais. De caráter intempestivo, temido por suas maldades e dureza. É interessante ver que o legado (comportamento sexual livre) fica para a neta e não para o filho e o narrador nos confirma porquê: “Não, João Capistrano não era do mesmo feitio do pai”; ele só se parece com o pai:

Quando falava dos grandes planos que tinha para sua vida... e se exaltava a seu modo, os olhos lumeando muito, as mãos magras ligeiramente trêmulas é que Quincas Ciríaco cuidava vislumbrar nele a sombra do pai. mas era um Lucas Procópio em repouso, medido, compassado, não aquele turbilhão de homem.

Lucas é Procópio, que em grego significa “o que progride, o que sonha”. Ele progride ao construir a casa mais bela do lugar e fará ali o seu chão. Lucas é com o filho João uma antítese. Quincas Ciríaco, o empregado do armazém, tem medo de ser filho de Lucas, o “coisa-ruim” (uma vez que ele possuía todas as mulheres da cidade que desejava) e diz: “Só mesmo sabendo é que a gente vê que aqueles sobrados são duas casas”. Em verdade, é João Capistrano quem constrói a parte de cia do sobrado, unindo-se ao pai, dando-lhe continuidade.

João Capistrano Honório Cota - "alto, magro, descarnado como uma ave pernalta de grande porte”. Gostava das alturas: Se os balcões levavam grades de ferro batida, se a cachorrada dos beirais era aparente de onde ficaria suspenso no ar para cumprimentar o povo. Capistrano, originado de capistro, significa cabestro, mordaça e esse nome só serve para confirmar a vida controladora que legará à filha Rosalina. A vida seguiria normal, não fosse a crescente raiva de João pelos habitantes da cidade por conta de um briga política, que o levará a desprezá-los e mostrar-se superior a eles. É essa superioridade que levará a filha à clausura no sobrado e a impedirá de se relacionar com Juca Passarinho, uma vez que ele também é um habitante de fora do sobrado.

O Sobrado seria a síntese de Lucas Procópio e Joäo Capistrano.

José Feliciano (Juca Passarinho) - Tinha este apelido por causa das suas características com o passarinho. Pousava aqui e alí. Não fixava residência em parte alguma. Mas quando viu o sobrado resolveu pousar ali definitivamente. Vivia procurando uma sombra e encontrou a do sobrado. Tinha medo do fogo em todos os sentidos. Fogo para ele significava perigo de vida e quando ele se aproximou da cidade viu uma voçoroca e se aterrorizou com o fogo que lhe pareceu diabólico: Que é aquilo, seu Silvino? quase gritou, disse espantado José Feliciano apontando o buracão enorme como o leito de um grande rio seco, que ia desde as margens da estrada até se perder de vista, se confundindo com o vale, vermelho, negro. Ah, disse Silvino, o senhor nunca viu uma voçoroca? Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanho nunca na minha vida.

Rosalina - Rosalina tem em sua vida um grande problema: sóbria, sente-se o pai, João; embriagada, sente-se o avô, Lucas:

Quem sabe Lucas Procópio não morreu de todo, vivia ainda dentro dela? Ela semente de Lucas Procópio. No canto mais escuro da alma onde brotava toda a sua força sombria. Uma força que precisava ser libertada, queria ar livre. [...] Sei, não sou Lucas Procópio, de jeito nenhum. Era mais o pai, o homem reto, cidadão. Não lhe imitava os gestos, a postura diante da vida? Sou igual a papai, sou ele não.

Rosalina, porém, sabe que “Sou de alma o coronel João Capistrano Honório Cota”, enquanto que no corpo habita o espírito de Lucas Procópio. A personagem é composta de dualidades: se é Lucas ou João, erotismo ou repressão. Ela é sobrado (duas partes, a de baixo, que o avô construiu; a de cima, cuja obra o pai completou dizendo Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele, e que o narrador apresenta ao leitor-ouvinte como uma obra do estilo Barroco, o período das antíteses, do duplo, do céu e da terra, de cima e de baixo, de Lucas e João; é relógio, no pêndulo que vai para lá e para cá, levando-a de menina a mulher; é o relógio da independência, que o avô usava, e é relógio de ouro, que o pai usava. Rosalina é uma mulher séria e reservada, ao mesmo tempo que se entrega para Juca, o forasteiro, como se o espírito se encontrasse com o corpo e se fundisse na mesma substância.

Aos poucos, porém, vai surgindo uma outra Rosalina, uma terceira na construção imagética da personagem. Depois de sua entrega, ela sente nojo de Juca, apesar da vontade de tocá-lo novamente. É a repressão lutando com a libertação do desejo do corpo, movendo essa engrenagem chamada Rosalina. Esse jogo de vai e vem provocará a aparição de uma outra mulher: não duas mas três pessoas distintas numa só pessoa, ou melhor – duas Rosalinas que embora se parecessem eram diferentes, a gente via, reparando bem, a primeira, a antiga, crispada e dura, a segunda redonda e pacificada, tranqüila no remanso dos gestos, e uma Rosalina solitária, sem encontro possível a não ser através do choque, da posse através do corpo, não pelos olhos e pela mente, desesperada e noturna, que em nada se parecia com as outras duas a não ser pelo fato de morarem no mesmo corpo.

É Juca quem faz a descoberta das três mulheres em uma, que se “arredondava a olhos vistos”. Sim, Rosalina está grávida, o caçador sem munição acertou o alvo. Ele começava a sentir a segunda (a solitária) “tão mansa, maternal” e muda seu comportamento. O sexo traz a morte entre eles. Juca vai se afastando de Rosalina à medida que sente nela a mudança, que sente que ela agora se comporta “feito uma fêmea de bicho não recebe macho depois de prenhe”, como diz Quiquina. Esse afastamento se concretiza quando Juca encontra as portas da casa fechada, antes ficavam apenas encostadas, para que ele pudesse entrar à noite sem ser visto por Quiquina, e a luz do quarto (que fica na parte superior do sobrado) está apagada: a fase João Capistrano voltou ao seu lugar.

Juca Passarinho é chamado pelo narrador de ‘caçador sem munição” porque ele nem sempre tinha realmente munição para caçar codornas, meio de alimentação comum ao local. Sua espingarda, símbolo de representação fálica, não lhe permite boa pontaria (devido ao problema já citado anteriormente); apesar de atirar a esmo, acaba por acertar um outro alvo, que é Rosalina. É o respeito e a submissão que ele devota a ela que vai permiti-lo o direito de conhecê-la. A personagem, então, permite a inserção de Juca em sua vida.

Grávida, Rosalina se fasta de Juca e permite que somente Quiquina a veja em seu “estado interessante”. No momento de seu parto, a gestante abandona seu lado Lucas para ser João, Quiquina pensa: “Não grita para não dar parte de fraca, coitadinha.” Ela não assume sua fraqueza nem nos momentos mais cruéis da dor do parto. Os pensamentos de Quiquina são a realidade de Rosalina, embora a empregada tivesse vontade de deixar o bebê morrer, para que a patroa volte a ser o que era antes, um membro da gente Honório Cota.

O parto de Rosalina deveria negar a descontinuidade da vida, uma vez que ela aconteceria num outro ser, mas o bebê está morto, embora não se saiba se a criança nasceu morta, pois o narrador “fecha os olhos” e as janelas para o que acontece após o parto, e a semente que estava no corpo desce à terra, ao lugar das voçorocas que “engolem” a cidade com suas goelas vermelhas, sedentas de sangue, confirmando que, se a vida é imortal, a continuidade do ser não o é. Caberá a Juca Passarinho enterrar o fruto da “imundície” praticada por ambos nas noites no sobrado:

Apanhou o embrulho e ficou olhando apalermado olhando Quiquina sem saber o que fazer com aquele peso úmido e sujo. Indagava com os olhos o que devia fazer, embora soubesse, porque não conseguia articular uma só palavra, como se ele é que fosse mudo. Quiquina fez assim com as mãos, comas unhas, igual um cachorro cavando ligeiro um buraco na terra. Depois voltou os olhos para debaixo do banco onde ele estivera sentado, e ele viu a pá; sabia agora o que ela queria dizer.

Juca não suporta mais a cadeia sentimental em que vive e decide ir-se embora do sobrado e da cidade. Ao fim da narrativa, o narrador traz o leitor de volta ao cenário inicial: De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria a porta para nós. O cenário da ópera abre-se ao público, para que este possa ouvir os acordes finais. Rosalina entoa uma cantiga em meio às noites de solidão, sem Juca e sem o filho. É vista saindo do cemitério, à noite, vestida como uma noiva. É preciso chamar seu Emanuel (que significa o que está conosco (Deus)), o amigo que administra seus bens, para transformar em atitude a cantilena de Rosalina, cuja letra ninguém é capaz de entender. Diz o narrador que “nestas horas a gente imagina, inventa muito.”

É vestida de branco e com uma rosa branca no cabelo que Rosalina desce as escadas para sair do sobrado. Sua superioridade está em outra esfera, dando “um sorriso meio abobalhado, para ninguém”. Emanuel cumprimenta-a, como um vassalo a uma rainha, como se ela ainda pertencesse à gente Honório Cota, mas sua engrenagem está parada: ela está em longes terras, “os olhos vidrados com que não viam”, nem Lucas nem João, apenas ela Rosalina, senhora do tempo que passou e que não mais voltará. Os mortos comandam enfim, o mundo dos vivos e a vida de Rosalina, que se esvai na loucura dos dias e na clausura de seu sobrado, seu mundo, seu universo, seu cosmos.

Vê-se, então que em Ópera do Mortos, o erotismo faz-se presente na vida de Rosalina, mas é sempre traspassado pela profunda repressão que a personagem vive. O que há entre Rosalina e Juca Passarinho é o movimento do ser dentro de si, uma engrenagem em movimento. Ao sair de sua posição de “senhora” para a de “amante”, Rosalina transgride o interdito de não se envolver com o que vem de fora do sobrado. Essa transgressão vai lhe gerar uma angústia

Assim ficou muito tempo, até que pudesse se mover e abrir os olhos. De onde vinha, onde estava, mesmo quem era? Eu, Rosalina, conseguiu pensar com dificuldade. Eu, viva. À dor de viver, preferia estar morta, não ter acordado nunca. Eu, por quê? Por que, como se procurasse uma conexão com o mundo e a existência. Eu, como uma liturgia, um batismo: para começar a viver, para se livrar do vazio, da angústia, do nojo no corpo.

E dúvida. No entanto, a transgressão sustenta o interdito, para dar prazer à experiência interior. Sendo assim, ao se permitir estar com Juca Passarinho, Rosalina confirma a ordem dos acontecimentos. Juca é o elo, a ponte entre ela e a cidade e amá-lo à noite (depois de se embebedar com vinho Madeira, seu favorito) faz com que ela volte a ser a reclusa durante o dia; nesta, o espírito do pai; naquela, o do avô.

Rosalina faz flores de seda e papel crepom durante o dia e Quiquina as vende na rua. Ela é o outro elo entre o sobrado e a vida que está lá fora, é a marca da continuidade da vida perante o descontínuo do ser: ela é parteira. Leva as flores para vender, em especial as rosas, as favoritas de Rosalina, pois combinam com seu nome. Enquanto faz flores, a jovem esquece o mundo. Como o trabalho não absorve a mente de Rosalina após sua entrega a Juca, há a liberação do corpo para a presença do erotismo; entretanto, esse erotismo é ambíguo, pois pode ser repressão e permissão ao mesmo tempo.

Para haver transgressão é preciso haver o proibido. O vinho às escondidas, as rosas de pano mais bonitas que ela guarda para si e o desejo por Juca Passarinho são os “proibidos” de Rosalina. A repressão que a memória do pai falecido provoca nela (em nome da honra, são a gente Honório Cota, ela deve ser melhor que os demais habitantes da cidade) funciona mais quando ela tenta esquecer e disfarçar que esteve com Juca, depois que ele a “conheceu”, no sentido bíblico da palavra. Juca pensa: “ela se guarda pra de noite, pensava quando a via neutra e fria, entretida com as flores de pano.”

Rosalina, porém, abandona aos poucos o fazer suas flores e liberta o erotismo em sua vida. O trabalho não é capaz de controlar o desejo, a sexualidade de Rosalina. Ao mesmo tempo, as ações cedem lugar ao interior, ao plano do pensamento, quando é impelida pelo instinto repressor, Rosalina chama seu envolvimento com Juca Passarinho de “águas lodosas e enganosas que estão escondidas”. Liberdade e repressão duelam nas entranhas de Rosalina; como as voçorocas simbolizam seu interior, o final desse duelo surpreenderá a cidade.

Em Ópera dos Mortos, Autran Dourado em plena sintonia com a escritura moderna do século XX utiliza símbolos para narrar uma história entremeada de acontecimentos.

O "Sobrado" representa na narrativa de Ópera dos Mortos um importante actante, visto que ele está presente nos mais significativos momentos da história (conflito, clímax e desfecho). Torna-se, portanto, de suma importância conhecê-lo, para que possamos entender a narrativa. O sobrado é a memória da Gente Honório Cota, seu passado, seu presente e seu futuro. É a casa da Ópera. A grande metáfora do romance.

Em Ópera dos Mortos encontra-se a radicalização da estrutura lúdica do barroco, o que promove a isomorfia entre forma e conteúdo. Já no primeiro bloco tem-se uma teoria do barroco, quando o narrador (coro) descreve o sobrado. As mudanças, os vários ângulos, a ilusão, o jogo de movimento e repouso, fazem da obra também um meta-romance. Ao parodiar o barroco, Autran Dourado une linguagem, estrutura e forma; para ele, o barroco não é apenas um conceito histórico, capítulo da história da arte, mas alguma coisa viva e atuante, que me estimula na elaboração da minha própria criação literária. Observamos que o barroco é um estilo marcado pela tensão harmônica de contrários. Como arte da contra-reforma, o barroco revela não a dúvida, mas a própria unidade dual do ser humano: corpo/espírito, luz/sombra, sagrado/profano, antropocentrismo/teocentrismo, entre outras. Há um forte apelo para os sentidos e para a experiência humana, por isso Autran Dourado abre Ópera dos Mortos com a frase: "O senhor querendo saber, primeiro veja", isso é propiciado pelo jogo de contrários do barroco e o aparente exagero. Ao observar as imagens barrocas, sejam elas literárias ou pictóricas, o espectador adquire novos pontos de vista, novos horizontes, porque elas não podem ser interpretadas (não se pode sabê-las) com o ponto de vista pré-existente.

Na linguagem literária, tal apelo se mostra nas imagens ambíguas produzidas pelas metáforas e oxímoros, mas essas figuras surgem aqui como produtoras de significado, o que vale dizer, de mundo, e não como mera ornamentação da linguagem.

Em Ópera dos Mortos a ambigüidade característica do barroco radicaliza-se, a ponto de unirem-se casa e personagens barrocas (o sobrado e Rosalina). Os elementos do barroco, parodiados pelo autor já na primeira parte são imagens que constroem que construirão a casa:

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagine; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado, veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo veja: a casa ou a história.

O rio (repouso e movimento), o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, constróem a casa, a habitação das personagens principais (lembramos que o próprio sobrado é personagem).

Em Ópera dos Mortos observa-se que a riqueza simbólica é plena, porque se alarga abrangendo toda a narrativa, desde a representatividade como signo à sua vasta significação simbólica. Nos capítulos "Sobrado" e "Flor de Seda", constata-se a intenção do narrador ao nomeá-los, desenvolvendo-os com maestria e sensibilidade, revelando a importância de ambos para a obra como um todo. "O Sobrado", uma verdadeira "caixa" de segredos que centrava o conflito, o clímax e o desfecho da narrativa, é o cenário ideal para a apresentação da Ópera dos Mortos, visto que ele foi criado, meticulosamente, como um símbolo, tanto da arquitetura barroca como da fusão dos Honório Cota. Um espaço físico que também é personagem não se podendo deixar de notar a sua presença imponente e sombria. No capítulo "Flor de Seda" nota-se a sensibilidade, a delicadeza e a sofisticação de Rosalina. Uma mulher forte que desabrocha ao tornar-se frágil, ao acordar pra vida e sentir aflorar os seus desejos, ao perceber que era a flor do sobrado e que ainda exalava perfume capaz de seduzir e encontrar um homem. No entanto, para que esse rito de passagem aconteça, outros elementos da narrativa têm importante significação na sucessão desses acontecimentos. Primeiro, a "escada", símbolo da unidade, entre os dois pavimentos do sobrado, uma ponte de ligação entre o passado e o presente, às vezes o caminho da fuga; em segundo lugar, a "janela", uma espécie de fenda que permitia que um pouco do interior do sobrado fosse revelado, isto sob a névoa da cortina na qual Rosalina se escondia; em terceiro lugar, as "voçorocas", imensas crateras que ameaçam engolir tudo, o símbolo da destruição; em quarto lugar, "os relógios" instrumentos que simbolizam o tempo dos Honório Cota, e sonorizam o espaço sombrio e misterioso do sobrado.
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continua...Parte final
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Fontes:
Denilson Albano Portácio - Universidade Federal do Ceará
Laura Goulart Fonseca - doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva - Departamento das Filosofias e Métodos - FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/opera_dos_mortos