segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ambrose Bierce (O Capitão do Camelo)

Tradução de Octávio Marcondes

Ambrose Bierce (1842-1914 - Estados Unidos)
Criativo e crítico, escritor e aventureiro (ele foi lutar na Revolução Mexicana e acabou desaparecendo. Carlos Fuentes transformou-o em personagem no seu romance Nuestro Gringo), Bierce deixou uma obra diversificada, como o livro de humor em forma de dicionário (The Devils Dictionary), muito popular, além de fábulas modernas, contos e outros relatos. Aqui, escolhemos uma amostra de sua criatividade um conto de puro non-sense, no melhor tradição anglo-saxã.


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O nome do navio era Camelo. Sob certos aspectos tratava-se de um barco extraordinário. "Media" 600 toneladas; mas depois de embarcar lastro suficiente para impedir que emborcasse como um pato morto, mais as provisões necessárias para uma viagem de três meses, era preciso ser muito meticuloso na escolha, tanto da carga, quanto dos passageiros. Uma vez, só para ilustrar, quando estava para zarpar veio um bote do porto com dois passageiros, um homem e sua mulher; eles haviam feito reservas no dia anterior, mas ficaram em terra para fazer mais uma refeição decente antes de se sujeitar ao "pé sujo de bordo", como o homem chamava a mesa do capitão. A mulher veio a bordo, e o homem se preparava para segui-la, quando o capitão, se inclinando na amurada, o viu.

- Bem - disse o capitão -, que é que o senhor pretende?

- Que é que eu pretendo? - disse o homem, se agarrando à escada. - Embarcar neste navio é o que eu vou fazer.

- Não, gordo deste jeito, o senhor não vai - gritou o capitão. - O senhor pesa no mínimo 120 quilos, e eu ainda não levantei a âncora. Ou vai querer que eu abandone minha âncora?

O homem disse que a âncora não era problema dele - que era como Deus o tinha feito (embora, pela sua aparência, desse a impressão que um cozinheiro tivesse dado uma mão ao Criador), e, por bem ou por mal, ele se propunha a embarcar no navio. Uma bela discussão se seguiu, mas finalmente um dos marinheiros jogou-lhe um colete salva-vidas, e o capitão, dizendo que assim ele ficaria mais leve, deixou-o embarcar.

Este era o Capitão Abersouth, anteriormente no comando do Atoleiro, o melhor marinheiro que alguém possa imaginar, sentado na murada da popa e lendo uma trilogia. Nada podia se igualar à paixão daquele lobo do mar pela literatura. Em cada viagem ele vinha com tantos pacotes de livros que não havia espaço para a carga. Eram romances no porão, romances no convés, romances no salão e ainda havia romances nos beliches dos passageiros.

O Camelo fora desenhado e construído por seu proprietário, um arquiteto do centro de Londres, e se parecia tanto com um navio quanto a Arca de Noé. Tinha sacadas e varanda; um beiral e portas na linha d'água. As portas tinham sinetas e campainhas. Em uma área tinha havido até uma tentativa fútil de se construir um navio. O salão dos passageiros era na ponte e coberto de telhas. A esta estrutura, com a aparência de uma corcova, o barco devia seu nome. Seu arquiteto havia construído várias igrejas (a de Santo Ignotus ainda é usada por uma cervejaria em Hotbath Meadows) e, possuído pela inspiração eclesiástica, dera ao navio um casco em forma de cruz, mas, descobrindo que as laterais atrapalhavam seu deslocamento na água, as removera, o que enfraquecera bastante a estrutura da quilha a meia nave.

O mastro principal era como um pedestal e no topo havia um cata-vento em forma de galo, de sua gávea se descortinava uma das mais belas vistas da Inglaterra.Era assim o Camelo quando me juntei à sua tripulação, em 1864, para uma viagem de descoberta ao Pólo Sul. Uma expedição sob os auspícios da Real Sociedade pela Promoção do "Fair Play". Numa reunião desta excelente associação, ficara decidido: 1 - que o favoritismo da ciência pelo Pólo Norte era uma indevida diferenciação entre dois objetivos igualmente meritórios, pela qual a Natureza já havia mostrado sua desaprovação castigando Sir Jonh Franklin e tantos outros de seus imitadores (o que era bem feito para eles); 2 - que esta empresa seria uma forma de protesto contra tal preconceito; e, finalmente, 3 - que nenhuma despesa ou responsabilidade devia reverter para a dita sociedade como corporação, mas que se criaria um fundo para o qual qualquer membro de forma pessoal poderia contribuir, se alguém fosse suficientemente idiota para isto (o que, justiça seja feita, ninguém foi). Aconteceu apenas que o cabo de amarração do Camelo arrebentou, num dia em que eu estava nele. O barco deixou o porto vagando com a corrente rumo ao Sul, debaixo dos insultos e imprecações de quantos o conheciam e, como eu, já não podiam voltar. Em dois meses ele cruzou o Equador, e o calor se tornou insuportável.

De repente começou uma calmaria. Tivéramos uma brisa perfeita até as três da tarde, e o navio vinha fazendo quase dois nós por hora quando, sem um aviso, as velas se inflaram ao contrário, isto devido ao ímpeto com que vínhamos, e então, quando ele parou de todo, as velas caíram, mais lisas que saia de mulher magra.

O Camelo não só parou por completo como começou um lento movimento de ré, rumo à Inglaterra. O velho Ben, nosso mestre, disse que calmaria igual só tinha visto mesmo uma, e esta, ele explicou, foi quando Pregador Jack, o marinheiro regenerado, se excitou demais num sermão e gritou que Miguel, o Arcanjo, sacudiria o Dragão de dentro do barco e faria o maldito provar a ponta de uma corda!

Nós permanecemos nesta situação deplorável boa parte do ano, até que, com impaciência crescente, a tripulação me delegou poderes de representação para procurar o capitão e ver se alguma coisa podia ser feita. Eu o encontrei, sob a coberta, entre um convés e outro, num canto empoeirado e coberto de teias de aranha, com um livro nas mãos. De um lado ele tinha, recém desembrulhados, três pacotes de "Ouida", do outro lado uma pilha de Miss M. E. Braddon que chegava à altura de sua cabeça.

Havia terminado "Ouida" e começara a atacar Miss Braddon. Ele estava muito mudado.

- Capitão Abersouth - eu disse, na ponta dos pés para poder ver por cima dos picos montanhosos de Miss Braddon -, o senhor poderia, por gentileza, me dizer até quando isso vai durar?

- Não tenho certeza - me respondeu sem tirar os olhos do livro. - Provavelmente eles vão transar pela metade do livro. Enquanto isso o jovem Monshure de Boojower vai entrar na posse de uma fortuna milionária. Então, se a bela e orgulhosa Angélica não vier atrás dele, depois de abandonar o advogado naval, então, pelo de Deus, eu não entendo nada do profundo e misterioso coração humano.

Eu me sentia incapaz de relatar aos homens de bordo a forma esperançosa que o capitão encarava nossa situação e subi para o convés bastante desanimado, mas foi só botar a cabeça para fora para notar que o navio movia-se com uma velocidade incrível.

Nós tínhamos a bordo um touro e um holandês. O touro estava preso ao mastro, pelo pescoço, com uma corrente, já o holandês tinha bastante liberdade e só era trancado à noite. Havia uma desavença entre eles - uma antipatia que tinha suas raízes no apetite do holandês por leite e no senso de dignidade pessoal do touro; seria penoso e cansativo relatar aqui o incidente específico que deu origem ao ódio. Aproveitando a siesta, que seu inimigo fazia depois do almoço, o holandês conseguira passar pelo mastro sem ser visto, e chegar até a proa, para pescar. Quando o animal, acordando, viu a outra criatura na sua frente pescando, deu uma folga na corrente, para pegar impulso, abaixou os chifres e atacou seu desafeto. O mastro era firme, a corrente era forte e com o touro rebocando o navio, como diria Byron: "caminhar sobre as águas foi coisa normal".

Depois disso nós deixamos o holandês exatamente onde estava, noite e dia. O velho Camelo andava como nem mesmo um furacão o faria andar. A bússola mostrando sempre o rumo Sul.

Nosso problema agora era outro. Há algum tempo não tínhamos comida suficiente, faltava carne em especial. Nós não podíamos sacrificar nem o touro nem o holandês; e o carpinteiro de bordo, tradicionalmente o primeiro recurso dos esfomeados no mar, era magro como um esqueleto. Os peixes nem mordiam nem se deixavam morder. Quase todos os cabos já haviam sido usados numa macarronada; tudo que era de couro, inclusive nossos sapatos, tinha acabado dentro de uma omelete; com trapos e betume fizéramos uma salada bastante razoável, e depois de uma breve carreira como dobrada à moda do Porto, nossas velas haviam dado adeus ao mundo para sempre. Só restavam duas alternativas, ou comíamos uns aos outros, como manda a etiqueta naval, ou lançávamos mão dos romances do capitão Abersouth. Terrível alternativa! - mas sempre uma escolha. E raramente, creio, marinheiros esfomeados têm o privilégio de encontrar à sua disposição um inteiro carregamento de nossos melhores autores contemporâneos já fritos pela crítica. Nós comemos toda aquela ficção.

As obras que o capitão já terminara de ler duraram seis meses, a maioria eram best-sellers e bastante substanciais. Depois que elas acabaram (é claro que alguma coisa tinha de dada ao touro e ao holandês) nós apertamos o capitão, tomando os livros de suas mãos assim que ele os acabava de ler. Algumas vezes, quando parecia que nós estávamos nas últimas e já nada podia nos salvar, ele saltava uma página inteira de considerações éticas, ou aquelas partes chatas com descrições monótonas, que eram imediatamente devoradas; e sempre, assim que ele começava a prever o desenvolvimento da trama (o que em geral acontecia pela metade do segundo volume), ele nos entregava o final do livro sem uma reclamação.

Os efeitos desta dieta não só não eram desagradáveis, mas ao contrário bastante interessantes. Nos sustentava fisicamente, nos exaltava o intelecto e moralmente não nos tornava muito piores de que já éramos. Nós falávamos como nunca ninguém falou, antes de nós. Coisas de uma absoluta falta de sentido eram ditas com muito espírito. Como na coreografia óbvia de um duelo de palco, onde cada golpe tem seu previsível contragolpe, nas nossas conversas, cada observação era a deixa para a outra fala que, por sua vez, provocava o seu preciso retorno. Uma seqüência que, quando interrompida, fazia perceber o vazio de que era feita; como um colar que, rompido o fio, deixasse ver suas contas, uma a uma, brilhantes e ocas.

Nós fizemos amor, uns com os outros, e conspiramos sombrios pelos cantos mais escuros do porão. Cada grupo de conspiradores tinha seus espiões e traidores que às vezes brigavam entre si. Às vezes havia confusão entre eles, dois ou mais indivíduos disputando o direito de espionar a mesma conspiração. Lembro-me quando o cozinheiro, o carpinteiro, o segundo cirurgião assistente e um marinheiro brigaram com ferros na mão pela honra de trair minha confiança. Outra vez, eram três os assassinos mascarados do segundo turno de vigia, debruçando-se ao mesmo tempo sobre o vulto adormecido do grumete que mencionara na semana anterior possuir: Ouro! Ouro! - acumulado durante oitenta anos (pois é, oitenta) de pirataria enquanto parlamentar pelo distrito de Zaccheus-cum-down e ia à missa todos os domingos. Vi o capitão no alto da ponte cercado de pretendentes à sua mão enquanto ele mesmo tentava adivinhar, sem desembrulhar, o conteúdo de um pacote de livros olhando pela fresta do papel e, ao mesmo tempo, fazia uma serenata para sua amada que se barbeava num espelho.

Nossas falas compunham-se de partes iguais, de alusões dos clássicos, citações diretamente das tabernas, amostras de fofoca copa-e-cozinha, do código de iniciados dos clubes esnobes e do jargão técnico da heráldica. Nós nos vangloriávamos muito de nossos ancestrais e admirávamos a brancura de nossas mãos, sempre que se pudesse ver alguma coisa através da camada de sujeira e graxa que as cobriam. Depois de amor, botânica, assassinato, incêndio, adultério e liturgia, o que mais ocupava nossa conversação eram as artes. A figura de proa do Camelo, representando um negro da Guiné sentindo um mau cheiro, e dois golfinhos corcundas pintados na popa assumiram uma nova importância. O holandês quebrara o nariz do negro com um pontapé e os restos da cozinha haviam praticamente coberto os golfinhos. Mas as duas obras eram objeto de peregrinações diárias de amantes das artes que a cada vez descobriam belezas ocultas, tanto na concepção quanto na excelente e sutil execução. Nós mudáramos muito; e se o suprimento de ficção contemporânea fosse igual à demanda, eu acho que o Camelo seria pequeno para conter as forças morais e estéticas despertadas pela maceração da imaginação dos autores no suco gástrico dos marinheiros.

Tendo conseguido transferir do seu cérebro para os nossos toda a literatura a bordo, o capitão apareceu na ponte de comando pela primeira vez desde que havíamos deixado o porto. Nós continuávamos no mesmo curso, e, fazendo sua primeira observação do sol com o sextante, o capitão constatou que estávamos a 83º de latitude Sul. O calor era insuportável; o ar como o bafo de uma fornalha dentro de uma fornalha. O mar fervia como um caldeirão e no seu vapor nossos corpos eram cozidos - nossa última ceia estava sendo preparada. Empenado pelo sol, o navio tinha popa e proa fora d'água; o convés da proa estava tão inclinado que o touro corria ladeira acima e o holandês se equilibrava precariamente no pico da proa em vertical. Havia um termômetro no mastro principal e nós nos reunimos em volta dele enquanto o
capitão fazia a leitura.

- Oitenta graus centígrados! - ele murmurou com evidente assombro. - Impossível! - virando-se rapidamente, ele correu os olhos sobre nós, e perguntou em voz alta:

- Quem ficou no comando enquanto eu passava os olhos nos livros?

- Bem, capitão - eu respondi, o mais respeitosamente possível -, no quarto dia no mar eu me vi, infelizmente, envolvido numa disputa, no meio de um jogo de cartas, com o imediato e o segundo oficial. Na falta desses excelentes marinheiros, senhor, eu me senti na obrigação de assumir.

- Matou eles, hein?

- Eles se suicidaram, capitão, questionando a eficácia de quatro reis e um ás.

- Bem, seu trapalhão, como é que você justifica esta temperatura absurda?

- Não é minha culpa, capitão. Nós estamos no Sul, muito ao Sul mesmo, e sendo agora o meio de julho, a temperatura é desconfortável, eu admito, mas, considerando a latitude e a estação, não chega a ser absurda.

- Latitude e estação! - ele gritou, pálido de raiva. - Latitude e estação! Sua besta emplumada, quadrúpede, alimária, você não sabe nada? Ninguém nunca disse a você que as latitudes ao Sul são mais frias que ao Norte, ou que julho é o meio do inverno aqui? Considere-se confinado ao seu alojamento, saia da minha frente agora mesmo, seu filho de uma égua, ou eu arrebento você.

Oh! Muito bem - respondi. - Eu não vou ficar aqui de qualquer forma, que não sou homem de aturar esse tipo de insultos, estou avisando. Faça como achar melhor.

Eu mal acabara de falar, quando um vento frio e cortante me fez olhar o termômetro. Segundo as novas noções de ciência geográfica o mercúrio vinha caindo rapidamente; no próximo segundo o instrumento estava completamente coberto por uma nevasca que impedia a visão. Enormes icebergs se levantavam do mar por todos os lados, erguendo-se monstruosamente dezenas de metros acima do mastro e nos cercando por completo. O navio se contorceu e tremeu, empurrado para cima; cada peça de madeira nele rangeu, e o barco fez um último balanço, como o coice de uma pistola. O Camelo congelou rápido. A parada brusca partiu a corrente atirando ao mar o touro e o holandês, que assim continuaram no gelo sua guerra pessoal.

Tentando descer para minha cabine, como me ordenara o capitão, ao passar pelos homens eu os vi caírem, à esquerda e à direita, como bonecos de boliche. A tripulação estava rigidamente congelada. Passando pelo capitão, eu perguntei com certa dose de ironia o que ele estava achando do tempo segundo o novo regime. Ele me respondeu com um olhar vago. O frio tinha chegado a seu cérebro e afetado suas faculdades. Ele disse:

- Nesse delicioso lugar, contentes e estimados por todos, cercados de tudo aquilo que torna a vida tranqüila, eles viveram felizes até o fim de seus dias. FIM.

Sua boca ficou aberta. O capitão do Camelo estava morto.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

História da Literatura (Classicismo) Parte III

Elegia:
poema de fundo melancólico, que fala dos sentimentos tristes ou é inspirada neles;

EXEMPLO DE ELEGIA

Elegia IV

Aquele mover de olhos excelente,
 Aquele vivo espírito inflamado
 Do cristalino rosto transparente;
 Aquele gesto imoto e repousado,
 Que, estando na alma propriamente escrito,
 Não pode ser em verso trasladado;
 Aquele parecer, que é infinito
 Pera se compreender de engenho humano,
 O qual ofendo em quanto tenho dito,
 Me inflama o coração dum doce engano,
 Me enleva e engrandece a fantasia,
 Que não vi maior glória que meu dano.
 Oh! bem-aventurado seja o dia
 Em que tomei tão doce pensamento,
 Que de todos os outros me desvia!
 E bem-aventurado o sofrimento
 Que soube ser capaz de tanta pena,
 Vendo que o foi da causa o entendimento!
 Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
 Trate-me com enganos, desamores,
 Que então me salva, quando me condena.
 E se de tão suaves desfavores
 Penando vive ua alma consumida,
 Oh, que doce penar! que doces dores!
 E se ua condição endurecida
 Também me nega a morte por meu dano,
 Oh, que doce morrer! que doce vida!
 E se me mostra um gesto brando e humano,
 Como quem de meu mal culpada se acha,
 Oh, que doce mentir! que doce engano!
 E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
 Mostrando refrear o pensamento,
 Oh, que doce fingir! que doce cacha!
 Assi que ponho já no sofrimento
 A parte principal de minha glória,
 Tomando por melhor todo o tormento.
 Se sinto tanto bem só na memória
 De vos ver, linda Dama, vencedora,
 Que quero eu mais que ser vossa a vitória?
 Se tanto vossa vista mais namora
 Quanto eu sou menos para merecer-vos,
 Que quero eu mais que ter-vos por senhora?
 Se procede este bem de conhecer-vos,
 E consiste o vencer em ser vencido,
 Que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
 Se em meu proveito faz qualquer partido,
 Só na vista de uns olhos tão serenos,
 Que quero eu mais ganhar que ser perdido?
 Se meus baixos espíritos, de pequenos,
 Ainda não merecem seu tormento,
 Que quero eu mais, que o mais não seja menos?
 A causa, enfim, me esforça o sofrimento;
 Porque, apesar do mal que me resiste,
 De todos os trabalhos me contento;
 Que a razão faz a pena alegre ou triste.
(Luís Vaz de Camões)


Ode:
composição pequena, de caráter erudito, com elevação do pensamento, sobre vários assuntos. As odes podem ser classificadas em pendáricas (cantam heróis ou acontecimentos grandiosos), anacreônicas (cantam o amor e a beleza), e satíricas (celebram assuntos morais e / ou filosóficos);

EXEMPLO DE ODE

Ode III

Se de meu pensamento
 Tanta razão tivera de alegrar-me
 Quanta de meu tormento
 A tenho de queixar-me,
 Puderas, triste lira, consolar-me.
 E minha voz cansada,
 Que noutro tempo foi alegre e pura,
 Não fora assim tornada,
 [Com tanta desventura],
 Tão rouca, tão pesada, nem tão dura.
 A ser como soía,
 Pudera levantar vossos louvores;
 Vós, minha Hierarquia,
 Ouvíreis meus amores,
 Que exemplo são ao mundo já de dores.
 Alegres meus cuidados,
 Contentes dias, horas e momentos,
 Oh! quão bem alembrados
 Sois de meus pensamentos,
 Reinando agora em mim duros tormentos!
 Ai, gostos fugitivos,
 Ai, glória já acabada e consumida,
 Cruéis males esquivos,
 Qual me deixais a vida!
 Quão cheia de pesar, quão destruída!
 Mas como não é morta
 A triste vida já, que tanto dura?
 Como não abre a porta
 A tanta desventura,
 Que em vão co'o seu poder, o Tempo cura?
 Mas, pera padecê-la,
 Se esforça meu sujeito e convalece;
 Que só, para dizê-la,
 A força me falece,
 E de todo me cansa e me enfraquece.
 Oh! bem afortunado,
 Tu, que alcançaste com lira toante,
 Orfeu, ser escutado
 Do fero Rodamante,
 E co'os teus olhos ver a doce amante!
 As infernais figuras
 Moveste com teu canto docemente;
 As três Fúrias escuras,
 Implacáveis à gente,
 Quietas se tornaram, de repente.
 Ficou como pasmado
 Todo o Estígio reino co'o teu canto;
 E, quase descansado
 De seu eterno pranto
 Cessou de alçar Sísifo o grave canto.
 A ordem se mudava
 Das penas que ordenava ali Plutão.
 Em descanso tornava
 A roda de Ixião,
 E em glória quantas penas ali são.
 Pelo qual admirada
 A Rainha infernal e comovida,
 Te deu a desejada
 Esposa, que perdida
 De tantos dias já tivera a vida.
 Pois minha desventura
 Como já não abranda ua alma humana,
 Que é contra mim mais dura
 E mui mais desumana
 Que o furor de Calírroe profana?
 Ó crua, esquiva e fera,
 Duro peito, cruel, empedernido,
 De algua tigre fera
 Da Hircânia nascido,
 Ou de entre as duras rochas produzido!
 Mas que digo, coitado,
 E de quem fio em vão minhas querelas?
 Só vós, ó do salgado,
 Húmido reino, belas
 E claras Ninfas, condoei-vos delas.
 E, de ouro guarnecidas,
 Vossas louras cabeças levantando
 Sôbola água erguidas,
 As tranças gotejando
 Saí alegres todas ver qual ando.
 Saí em companhia
 Cantando e colhendo as lindas flores;
 Vereis minha agonia,
 Ouvireis meus amores,
 E sentireis meus prantos, meus clamores.
 Vereis o mais perdido
 E mais mofino corpo que é gerado;
 Que está já convertido
 Em choro, e neste estado
 Somente vive nele o seu cuidado.
(Luís Vaz de Camões)


Fontes:
Garganta da Serpente
Imagem = compartilhada no facebook pela Libreria Fogola Pisa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 671)

Uma Trova de Ademar  

A lua, sem empecilho,
desfilando, linda e nua,
deixa também o seu brilho
“nas poças d’água da rua”!

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Deus, Garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o que há de melhor
pelos garimpos do mundo...

–Flávio Roberto Stefani/RS–

Uma Trova Potiguar


Velha fonte... O largo antigo...
Sob as ruínas... Num canto...
Hoje tu choras comigo,
dividindo o mesmo pranto!

–Mara Melinni/RN–

Uma Trova Premiada

1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema - JORNAL - M/H


Sou, na tua vida, agora,
o artigo já sem valia
de um jornal jogado fora
por falta de serventia...

–Maria Nascimento/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A vida é dura batalha
que não aceita um “talvez”
e nem outorga medalha
aos filhos da timidez!

–Hermoclydes S. Franco/RJ–

U m a P o e s i a


A chuva está no arquivo
e na vida do sertanejo,
que é pra ter coalhada e queijo
pra manter o homem vivo,
o trovão é curativo
o relâmpago, uma injeção,
a nuvem é cirurgião
e quem traz chuva é o vento;
a chuva é medicamento
pra doença do verão.

–Antônio Lisboa/RN–

Soneto do Dia

ESTRELA CADENTE.
–Vinícios Gregório/PE–


Viver perto um do outro a vida inteira
Prometemos nos vendo frente a frente.
Era noite... E deitados numa esteira,
assistimos o céu brilhar pra gente...

De repente nós vimos reluzente,
uma estrela cadente bem ligeira.
Cada qual fez pedido em sua mente,
como fazem de forma corriqueira.

Sem contar um ao outro o seu desejo,
nos olhamos quietinhos, nesse ensejo,
esconder os pedidos, foi besteira...

Nosso olhar foi sincero e distraído,
e entregou um ao outro o seu pedido:
viver perto um do outro a vida inteira.

Lenda Portuguesa (A Lenda dos Távoras)

Os dois irmãos D. Tedo e D. Rausendo, que segundo a tradição eram descendentes de Ramiro II de Leão, são protagonistas de um ciclo lendário que busca as suas bases na reconquista cristã anterior à formação do reino de Portucale. A História porém não dá crédito à existência destes dois cavaleiros pelos quais frei Bernardo de Brito mostra um especial carinho na sua Monarquia Lusitana.

Em Paredes da Beira possuía o emir de Lamego, em 1037, um castelo bem provido de tudo e repleto de excelentes guerreiros. Bem protegido pelas penedias, o castelo revelava-se inexpugnável num ataque de tipo clássico.

Efetivamente, os dois irmãos estavam cansados de perder homens contra aquelas muralhas e, assim, decidiram tentar a conquista de Paredes pela astúcia.

Sabendo que em manhã de S. João os mouros saíam do castelo para festejar, banhando-se nas águas do Távora, o final do ciclo primaveril, D. Tedo e D. Rausendo cobriram as cotas com vestes mouras e foram emboscar-se com os seus guerreiros nas proximidades do castelo.

Era madrugada quando os mouros começaram a sair alegres e sem preocupações. Atrás das rochas, os cristãos aguardavam que passasse o tempo suficiente para que a distância se alongasse o bastante entre eles e os mouros em festa. Depois entraram pelas portas escancaradas, sem resistência dos poucos muçulmanos que se haviam quedado intramuros.

Alguns, que conseguiram escapar ao morticínio de Paredes, dirigiram-se correndo ao Távora a dar a má nova, alertando desse modo os despreocupados festeiros.

Entretanto, D. Tedo tomou conta do alcácer e distribuiu os seus guerreiros pelos pontos de defesa, enquanto D. Rausendo descia até ao rio com os restantes homens.

Preparados, no rio, os mouros defenderam caro as suas vidas e D. Rausendo teria sido derrotado se o irmão não acorresse rápido ao aperceber-se do que acontecia.

Diz-se que nesse dia as águas do Távora correram vermelhas: D. Tedo a cavalo, no meio do rio, vibrava golpes ferozes no inimigo. Tanto espadeirou que quando conseguiu chegar junto do irmão mais de metade dos mouros jaziam mortos por terra ou boiando nas águas.

O resto da batalha foi fácil, e se algum mouro sobrou para contar aquela carnificina, foi um homem feliz. Por isso, o povo de Paredes da Beira chamou ao local daquela sangrenta luta Vale d'Amil, em memória dos corpos que juncavam o chão e as águas, mouros mortos aos mil.

Diz a tradição que depois desta batalha os dois irmãos adoptaram o apelido Távora, como recordação da vitória alcançada, e tomaram por armas um golfinho sobre as ondas para que sempre se rememorasse D. Tedo espadeirando nas águas sobre o seu ginete de guerra.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa 

Mia Couto (O Último Voo do Flamingo)

O livro começa com uma carta do “tradutor”, que é o narrador do livro, onde ele conta os motivos que o levaram a narrar essa história. Pouco tempo depois da guerra terminar em Moçambique, alguns soldados da Tropa de paz da ONU que estavam na região começaram a explodir. Para tentar entender o que estava acontecendo, o italiano Massimo Risi é enviado à Tizangara, cidade fictícia onde se passa a narrativa, para investigar os estranhos acontecimentos. Para tanto, o governante local contrata o tradutor para acompanhar Risi em sua investigação.

Há um orgão masculino decepado largado no chão da cidade e resolve-se fazer uma vistoria para tentar descobrir a origem do órgão ali jogado. Como ninguém sabia o que fazer, resolvem chamar Ana Deusqueira, a primeira e única prostituta de Tizangara, para reconhecer. Após olhar com ares de especialista, ela informa que o órgão não é de nenhum morador local. Todos partem e Risi dirige-se à pousada local com seu tradutor.

Lá chegando, o italiano é advertido que se aparecer um louva-deus pelo local, não deve mata-lo. Ao ir para o quarto, Risi se depara com Temporina, uma estranha mulher com belíssimo corpo de jovem, mas rosto de velha. Antes de dormir, o tradutor conta histórias de sua infância e de seu pai, o velho Sulplício, para Risi.

No outro dia, o italiano encontra Temporina no corredor e ela diz estar grávida dele, o que Risi nega, já que apenas havia sonhado com a mulher. O hospedeiro, que ouviu a conversa, entra no quarto e adverte Risi para tomar cuidado com Temporina. No meio da conversa, o hospedeiro repara que tem um louva-deus morto no chão e começou a gritar “Hortênsia! Você matou-lhe!”. Risi, sem nada entender, expulsa o homem do quarto e pede explicações para o tradutor.

Então, ele conta que naquela terra acreditava-se que um louva-deus era um ancestral morto voltando para visitar seus parentes vivos. Aquela seria Hortênsia, tia de Temporina e última neta dos fundadores de Tizangara. O tradutor então chama Temporina e pede para que essa conte sua história. A jovem conta que na realidade não tem nem vinte anos e que havia ficado com a cara cheia de rugas e velha por ter recebido castigo dos deuses, uma vez que quando jovem ela recusara todos os homens e acabou passando o “prazo de sua adolescência”. Ela resolve então conduzir Risi à casa de Hortênsia, que fora usada pelos soldados da ONU e talvez lá ele pudesse descobrir algo.

Hortênsia havia sido uma bela mulher que passava os dias na varanda de sua casa toda bem arrumada, somente para se exibir. Nunca tinha saído com nenhum homem e permaneceu sua vida toda solteira. Ao morrer, deixou tudo para um sobrinho tonto. Dizia-se que mesmo após morrer Hortênsia continuava cuidando dele e toda manhã tinha um prato de comida à mesa.

Enquanto isso, Estêvão Jonas, o governante local, escreve uma carta ao Chefe Provincial para informar o que estava acontecendo em Tizangara. Na carta em tom confessional, Jonas conta que os soldados estão explodindo, mas que ninguém sabe o porquê ainda. Além disso, diz ele que quando sua mulher o toca, suas mãos se esquentam como se fossem carvão aceso, chegando um dia inclusive a pegar fogo. Ele teme um dia explodir também.

Massimo Risi e o tradutor vão ao gabinete de Jonas para ouvir o depoimento de Deusqueira, que havia sido gravado pelo governante. A fita começa a tocar e nela a prostituta conta que os homens realmente explodem e o que causa as explosões são as mulheres. Porém, Jonas para a fita diversas vezes e não se entende exatamente o que ela sabe sobre o assunto. Até que a reunião é interrompida por outra explosão.

Sem mais saber o que fazer, Risi e o tradutor resolvem ficar andando pela cidade para se distraírem, ao que encontram o hospedeiro. Ele estava a procurar o irmão tonto de Temporina, que havia saído de casa dizendo que ia matar o italiano. Num dado momento, Risi tem uma visão de Temporina vindo em sua direção e tem um desmaio. Eles resolvem voltar para a pensão e o hospedeiro conta as histórias das primeiras explosões.

Conta ele que quando teve a primeira explosão, as pessoas acharam que ainda era a guerra e se esconderam na floresta. Lá, ele encontrou sua mãe, que lhe contou uma velha história sobre o flamingo. Num tempo em que não havia noite, era sempre dia, um flamingo disse que faria seu último voo e que iria para outra terra, a terra das estrelas. Quando o flamingo partiu, o bater das asas fundiu-se com o horizonte; até que o flamingo se extinguiu e a noite nasceu naquela terra.

No outro dia, prendem o padre Muhando, que dizia ter sido quem causou as explosões. Quando conseguiram conversar com ele, Risi e o tradutor ouvem sua história incerta e não lhe dão confiança. Eles percebem que Muhando, que vivia a xingar Deus pelas ruas, realmente enlouquecera e não sabia direito o que estava falando.

No dia seguinte, o tradutor resolve visitar seu pai e Risi pede para acompanha-lo por temer ficar sozinho. O velho Sulplício não os recebe bem e se recusa a falar com o estrangeiro. Por fim, ele acaba fazendo uma série de críticas à presença estrangeira no país, à colonização e aos dirigentes locais, que se dizem salvadores, mas também fizeram muita coisa ruim. O tradutor conta logo depois que Estêvão Jonas assumiu o comando, Sulplício, na época policial, prendeu o sobrinho de Jonas. Dona Ermelinda ficou furiosa e em um instante o moço estava solto e Sulplício é que ficou preso com as mãos amarradas. Ermelinda ainda tacou sal nas feridas e ordenou que só o soltassem no dia seguinte. Após essas histórias ouve-se uma nova explosão e Sulplício diz que essa não era uma explosão de estrangeiros, mas sim uma das explosões reais, de gente ali da terra mesmo.

Quem havia explodido era o sobrinho tonto de Hortênsia, irmão de Temporina. Risi e o tradutor foram para a cidade tentar entender o acontecido e encontraram o padre Muhando, já liberto, a praguejar contra Deus por ter deixado o moço morrer. Em seguida, encontraram o maior feiticeiro da cidade, Zeca Andorinho, que contou a eles que havia feito sobre encomenda dois feitiços para Risi. Um deles era um likaho de sapo, que faria ele inchar e explodir. O outro, um likaho de cágado, que o protegeria.

Então, Zeca Andorinho diz que fez o likaho de sapo para os homens que explodiram e começa a contar sobre eles, mas sua fala é incerta e não se sabe exatamente o que ele quer dizer com aquilo. Porém, deixa Risi avisado que, apesar de Zeca ter feito o likaho de cágado para protege-lo, o italiano deveria tomar cuidado onde pisava.

Um dia, o tradutor entra no quarto de Risi e o descobre arrumando suas malas para partir. Sem mais saber o que fazer, perdido em um labirinto, ele resolvera ir embora. Então, ele mostra uma gravação que fez de Deusqueira onde ela conta como foi quando o zambiano explodiu.

No dia seguinte o italiano sai com Temporina para ir se despedir do padre Mujando e o tradutor resolve ir à casa de Estêvão Jonas para informa-lo da partida de Risi. Chegando lá, estava uma grande confusão, pois ele gritava e xingava Ana Deusqueira dizendo que ela que havia causado as explosões. Ela, por sua vez, diz que ele é que era o culpado, pois ele desviava o dinheiro destinado para remoção das minas e plantava mais ainda para conseguir mais dinheiro. Dona Ermelinda chega e, para o espanto de todos, acode Deusqueira e expulsa Estêvão de casa.

O tradutor vai informar aos outros o que havia acontecido e Temporina decide ir se juntar à Deusqueira. Um tempo depois, ela volta dizendo que Estêvão e seu capanga, Chupanga, decidiram fugir para outro país e que iriam explodir a barreira para que a cidade toda fossem inundada e não sobrassem provas das minas. O tradutor e outros resolvem ir atrás para impedir, mas Risi deveria ficar ali, pois o negócio deveria ser resolvido por gente ali da terra. Apanharam Chupanga no meio da estrada e o levaram à Tizangara na presença de Zeca Andorinho e do velho Sulplício. Decidem não matar Chupanga, mas ele deve ir embora e levar Ermelinda junto.

Voltam Risi, o tradutor e Sulplício para casa. À noite, o tradutor vê seu pai tirar os ossos para dormir, coisa que o velho sempre disse que fazia, mas ele nunca tinha acreditado nessas histórias do pai. Dormem os três ali fora sob a árvore e, ao despertarem no meio da noite, descobrem que não há mais país. Tudo tinha sido engolido por um grande abismo. Chega, então, um barco carregando os ossos de Sulplício, que os coloca de volta ao lugar e chama Risi para ir ver onde os explodidos se encontravam. O italiano nega e Sulplício entra no barco e vai embora. Risi então escreve seu último relatório dizendo que o país havia sumido. Ele faz um avião com o papel e joga em direção ao abismo. Os dois se sentam e ficam esperando um novo barco chegar, esperando um outro voo do flamingo.

Lista de personagens

Massimo Risi: italiano encarregado pela ONU de investigar as estranhas explosões em Tizangara.
Tradutor: homem designado pelo governante locar para acompanhar Risi e servir de tradutor.
Sulplício: pai do tradutor.
Temporina: mulher com esbelto corpo de jovem e rosto de velha.
Dona Ermelinda: primeira-dama local, esposa de Estêvão Jonas.
Estêvão Jonas: governante local.
Ana Deusqueira: primeira e única prostituta de Tizangara.
Padre Muhando: padre que enlouquecera e vivia pela rua gritando injúrias a Deus.
Zeca Andorinho: maior feiticeiro de Tizangara.
Chupanga: capanga de Estêvão Jonas.
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ANÁLISE DA OBRA

Contexto histórico


No início do século XVI, Portugal iniciou a ocupação do território onde hoje é Moçambique, mas em 1885, com a Conferência de Berlim (que partilhou a África conforme os interesses das superpotências), Moçambique se tornou uma ocupação militar. No início do século XX, o país havia se tornado uma ocupação colonial portuguesa.

Em 1964 teve início a Guerra de Independência de Moçambique entre a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e as Forças Armadas de Portugal. Esta guerra durou dez anos e assolou o país, que conseguiu sua independência em 25 de junho de 1975. Porém, os novos estados independentes não tinham como manter a infraestrutura do país e houve uma grande crise econômica.

Durante todo o conflito, a FRELIMO, que tinha ligações políticas com países comunistas (URSS e outros), foi criando em Moçambique "zonas libertadas", que eram administradas pelas forças de libertação. Com a conquista da independência, a FRELIMO tentou implantar no país uma série de melhorias na educação, agricultura, saúde e outras áreas. Porém, com a crise econômica, os planos não surtiram efeito e acabaram por agravar a crise.

Nesse cenário de instabilidade económica e sócio-política, dá-se início à Guerra Civil Moçambicana em 1976, entre o exército de Moçambique e o exército rebelde da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). Após 16 anos de guerra, em 4 de outubro de 1992, a FRELIMO e a RENAMO assinam um Acordo Geral de Paz, em Roma. O governo de Moçambique solicita, então, o apoio da ONU para o desarmamento das tropas restantes. A tropa das Nações Unidas em Moçambique, a ONUMOZ, apoiou esse trabalhado durante cerca de dois anos e, em 1994, ouve a formação de um exército unificado e a organização das primeiras eleições gerais multipartidárias.

Um país em pedaços

A ação de "O último voo do flamingo" se dá nos primeiros anos após a guerra de Independência e os anos de guerrilha. Nas palavras do próprio Mia Couto quando da obtenção do Prêmio Mário António em 2001, este romance fala sobre a "perversa fabricação de ausência - a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto de esperança praticado pela ganância dos poderosos". Dessa forma, "O último voo do flamingo" nasce como fruto de uma nação profundamente agredida pelos anos de ocupação, pelas guerras e pela ganância dos poderosos, uma terra que não suporta mais essa situação.

As explosões que ocorrem em Tizangara, terra fictícia onde se passa a narrativa, são tanto de estrangeiros quanto de moçambicanos. Os anos de conflito em Moçambique deixaram para trás tanto minas terrestres reaisquanto minas metafóricas, que seriam os conflitos sócio-políticos e outras mazelas da população local. Assim, poderíamos dizer que Moçambique se tornou uma "nação-mina", pronta para explodir a qualquer momento.

No livro de Mia Couto, os soldados da ONU explodem sem deixar nenhum rastro, exceto seu boné azul e o orgão. Essas estranhas explosões que acontecem aos estrangeiros são explicações dadas pelo povo local, que busca em sua própria cultura uma forma de entender o que acontece a seu redor. Dessa forma, a explosão de um estrangeiro de forma sobrenatural seria como uma vingança da própria terra, fato que encontra eco nas palavras do feiticeiro Zeca Andorinho e do velho Sulplício.

Como as explicações para os estranhos acontecimentos só se dão através do mito local, o italiano Massimo Risi não consegue entender o que está se passando mesmo falando português. Para ele o problema não é a língua, mas entender aquele mundo. Assim, é buscando nas raízes e na memória local é que se consegue reconquistar e preservar a identidade africana. E, através disso, consegue-se "explodir" toda forma de domínio.

Esse domínio, porém, às vezes nem é só estrangeiro. Em "O último voo do flamingo" vemos o domínio totalitário dos próprios governantes locais, que se esqueceram para o que lutaram nos anos de guerra e passaram somente a pensar na própria ganância. Nessa obra, o ataque não se dá somente à presença opressora de povos estrangeiros, que da África parecem nada entender, mas também àqueles poderosos que, movidos pela ganância, se esquecem de sua própria terra.

O país arrasado pelos problemas sociais, económicos e políticos, dividido quanto a sua própria identidade, é simbolizado ao final do livro pela própria terra que explode. As duas personagens centrais, Massimo Risi e o tradutor, restam sozinhos nesse abismo que sobrou da terra onde antes existira todo um país a espera do que virá a acontecer. Ao final, o estrangeiro continua sem entender o país e a própria África, que continua um mistério. Só resta aos dois esperar que um outro voo do flamingo faça o sol voltar a brilhar depois de tanta escuridão.

Comentário do professor Deco Duarte, do Colégio Gregor Mendel:

"O último voo do flamingo", do moçambicano Mia Couto - um dos autores lusófonos mais influentes da contemporaneidade -, desloca nosso olhar para o continente africano, em especial para a vila fictícia de Tizangara, no interior de Moçambique, local onde um acontecimento incomum chama a atenção da comunidade internacional: os soldados da ONU, enviados para vigiar o processo de paz após anos de guerra civil, começam a explodir sem uma razão aparente, restando deles apenas o órgão genital. Para investigar o fato, é enviado à região o italiano Massimo Risi, inspetor da ONU. Logo à sua chegada, Estevão Jonas - o administrador local -, em uma demonstração do progesso do lugarejo, oferece ao estrangeiro um tradutor, apesar da fluência dele na língua local. Será esse tradutor, que também é o narrador da história, um dos responsáveis pela mudança gradativa da visão de mundo do italiano. De um ceticismo inicial em relação aos valores locais, Massimo terá de se adequar a um modo novo de ver as coisas, despindo-se de seus valores eurocêntricos, os quais parecem de pouca valia naquele universo mágico. "O último voo do flamingo" é uma narrativa de formação, na qual ocorre um processo de africanização do europeu, numa espécie de colonização às avessas. Ao apaixonar-se pela estranha Temporina - mulher jovem com o rosto de velha -, o italiano será capaz de compreender as coisas da terra e despir-se da racionalidade ocidental.

Mia Couto é um autor muito atento às questões políticas de seu país, e o episódio serve de pretexto para o desfile de um sem número de temas que dizem respeito à constituição atual de Moçambique e que podem pegar o leitor brasileiro mais desinformado de surpresa. A obra trabalha com questões como o respeito às tradições locais, a ingerência estrangeira em assuntos internos de uma nação, a corrupção política, a riqueza da cultura oral, dentre outros. Assim, muitos dos personagens espelham esses temas em sua constituição: Estevão Jonas, o administrador local, encarna a corrupção e o desrespeito pelas tradições locais; Sulplício, o pai do tradutor, simboliza, por sua vez, a ancestralidade e o saber da experiência muitas vezes renegado em prol da novidade e da modernização. Vale ainda dizer que toda a narrativa se passa dentro de um clima que se assemelha àquilo que se convencionou chamar de "Realismo mágico" na literatura, apesar das negativas do autor em aceitar esse rótulo. Uma viagem profunda dentro de uma cultura que guarda muito de nossas raízes.

Fontes:
Guia do Estudante (Resumo)
Guia do Estudante (Análise)

domingo, 16 de setembro de 2012

Olympio Coutinho / MG (Histórias de trova) Capítulo I - Doce pássaro da juventude

Comecei a fazer trovas muito cedo, inspirado em uma trova apresentada em sala de aula de Português e atribuída a Alexandre Dumas:

“São as rosas que florescem,
são os espinhos que picam,
mas são as rosas que caem,
são os espinhos que ficam”.


Era em Ubá, em 1958, e foi colocada no quadro negro pelo professor Francisco De Fillipo visando nos exercitar em análise sintática. A trova chamou minha atenção e resolvi tentar fazê-las. Não foi muito difícil: eu tinha 18 anos, andava apaixonado e estávamos na entrada dos que, mais tarde, seriam chamados “os anos dourados”: a ânsia pela liberdade e a gostosa sensação que ela proporciona estavam soltas no mundo – e também no Brasil. Comprei, sem qualquer referência, alguns livros de trovas, rabiscava algumas em um diário que mantinha (e que tenho até hoje - uma delícia para ler agora!) e elas foram saindo.

Ubá, no início dos anos 60, os anos dourados, era uma cidade pequena, quase todos se conheciam e o que um e outro faziam todos ficavam rapidamente sabendo. Aconteceu comigo, que fiquei conhecido como poeta e trovador. Escrevia trovas nos jornais locais: Folha do Povo e Cidade de Ubá, e, uma vez, recebi um encargo de um amigo de então e amigo até hoje: Honório Joaquim Carneiro. Nascera sua filha Helena e ele pediu-me uma trova em sua homenagem. Fiz:

“Vi a alegria nascendo
em meio aos meus desencantos,
foi quando, filha, nasceste:
Helena dos meus encantos”.


Em sua coluna na Folha do Povo, Honório publicou a trova com um exagerado título: “A Trova do Século”. De outra vez, ao ser cobrado por alguns conhecidos que pediam, ironicamente: “Ô, poeta, faz uma quadrinha aí!”, afastei-me, mas voltei logo e declamei:

“Deus me livre dos amigos,
eu peço aos Céus de mãos postas,
depois que vi que os “amigos”
falam de mim pelas costas”.


A primeira namorada também ganhou trovas de amor, mas cito uma humorística nascida ao me olhar no espelho, antes de um encontro, e perceber-me “banguela”, devido à perda na piscina de um pivô, por sinal fruto de negligência minha:

“Só porque perdi um dente
ela deixou-me na mão;
ficou o espaço vazio
na boca e no coração”.


(Um parênteses: por volta de 1980, a calvície fazendo de minha cabeça um “aeroporto de piolhos”, a trova ganhou nova versão:

“Só porque fiquei careca
ela deixou-me na mão;
sinto frio na cabeça
e também no coração.”


Mas, de volta a 1960, o romance foi desfeito e a dor de cotovelo levou-me a fazer trovas assim:

“Hoje em dia pouco resta
do nosso amor, que passou;
tristes restos de uma festa,
depois que a festa acabou”.


Depois, vieram as fofocas e as trovas mudaram de tom:

“Afirmas que recebeste
o que nunca lhe escrevi;
gostaria de reler
esta carta que não li!”.


Mas, as duas seguintes é que mais deram o que falar (lembrando que estávamos em 1960 e a cidade era mineira e do interior):

“Não tenhas, Maria, medo
se o nosso amor teve fim,
o nosso grande segredo
eu guardo só para mim”


e

“Eu tenho, Maria, medo,
que, em tuas horas vazias,
tu contes nosso segredo
às minhas outras Marias.”


Mais tarde, outra Maria entrou em minha vida, ensejando trovas mais líricas:

“Felicidade, Eleninha,
me deste a definição
ao pousar sua mãozinha
ternamente em minha mão”.


Em 1961, já mais amadurecido em relação ao “fazer trovas”, dediquei-lhe outra, que dizia assim:

“Eram alegres meus olhos
e tristes eram os teus;
por serem tristes teus olhos
ficaram tristes os meus”.


Mais tarde, em 1965, esta trova foi enviada para concorrer aos I Jogos Florais da Comunidade Lusíada, promovido pelo Elos Clube, em São Paulo, e, entre as três vencedoras, era o única de um brasileiro – os outros dois vencedores eram portugueses.

Continua…

Fonte:
O Autor

Elane Rangel / RJ (Trovas: O Pinheiro e a Gralha Azul)

Trovas enviadas pela trovadora carioca, homenageando os símbolos do Paraná.

O que mais me contagia
nos meus passeios no sul,
é ver  a  graça  e a magia
do  vôo  da  gralha-azul.

Para perpetuar a vida
da araucária na região,
voa a gralha, destemida,
carregando o seu pinhão.

O  pinheiro  simboliza
o   Estado do  Paraná;
a gralha-azul,eterniza
sua  permanência  lá.

Os pinheiros – que beleza !
quanta graça neles há ...
dão mais vida à natureza,
enriquecem  o  Paraná !

Pra conservar o pinheiro
como  um símbolo do sul,
temos que zelar, primeiro,
pela  nossa  gralha-azul.

Diz a gralha: homem, reparte
com a  terra  o  teu  pinhão !
eu  já  fiz  a  minha  parte,
eu  já  dei  o  meu  quinhão !

Com  as  reservas, precárias,
de  terras  livres  no  sul,
pra plantar, hoje, araucárias,
só  se  for  a  gralha azul !

A gralha-azul  perpetua
a vida das araucárias;
com habilidade, atua,
cultivando aquelas áreas.

Semeia a gralha, sensata,
a floresta de pinheiro,
e o homem vem e a desmata
por ambição do dinheiro!

Vem a gralha-azul e enterra
o  pinhão  no  seu  celeiro,
o  que  faz brotar  da  terra
as  florestas  de  pinheiro.

Fonte:
Trovas enviadas pela autora         
                 

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 670)

Uma Trova de Ademar 

Tenho fábrica de poemas
e um galpão de fantasia.
Sou desbravador de temas...
Sou viciado em Poesia.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Não existe luta inglória
quando o guerreiro é valente.
Quem passa fazendo história
não passa completamente.
–Dedé Monteiro/PB–

Uma Trova Potiguar 


Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
–Prof. Garcia/RN–

Uma Trova Premiada 


2007  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  MENSAGEM  -  M/H.


Vou te escrever... prometias....
e desta jura refém,
espero dias e dias
mas a mensagem não vem...
–Marina Bruna/SP–

...E Suas Trovas Ficaram 


Não eternize a amargura
se alguém rasgou sua vida,
que a mão do tempo costura
toda a extensão da ferida.
–Carmem Ottaiano/SP–

U m a P o e s i a 


No fim da minha jornada
esqueço os meus apogeus;
parto para a eternidade
pra ficar junto dos meus,
e parto muito feliz,
pois as poesias que eu fiz
vou declamá-las pra Deus!
–Ademar Macedo/RN–

Soneto do Dia 

SÚBITA MÃO DE UM FANTASMA OCULTO.
–Fernando Pessoa/PRT–


Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão nocturna que me guia.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.

Imagem recebida pelo facebook da Libreria Fogolla Pisa

Haruko (Haikais Para Depois das Chuvas)

Haruko é o pseudônimo haicaista de Clevane Pessoa

Do ovo da manhã
rompe a casca a ave amarela
que se chama sol...

Ontem,todas águas
encharcaram terras,ossos,
-pela manhã,o sol...

passarada ao sol
pela estiagem, dançam , cantam
e procuram grãos...

saboreio o sol
desvisto meus agasalhos
luz cobre a alma e a pele…

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=723&categoria=T

Ana Paula Lavado (Poemas Avulsos)

VOZES DO VENTO

Quando te disse
Que era da terra selvagem
Do vento azul
E das praias morenas...
Do arco-íris das mil cores
Do Sol com fruta madura
E das madrugadas serenas....

Das cubatas e musseques
Das palmeiras com dendém
Das picadas com poeira
Da mandioca e fuba também...

Das mangas e fruta pinha
Do vermelho do café
Dos maboques e tamarindos
Dos cocos, do ai u'é...

Das praças no chão estendidas
Com missangas de mil cores
Os panos do Congo e os kimonos
Os aromas, os odores...

Dos chinelos no chão quente
Do andar descontraído
Da cerveja ao fim da tarde
Com o Sol adormecido...

Dos merenges e do batuque
Dos muquixes e dos mupungos
Dos imbondeiros e das gajajas
Da macanha e dos maiungos.

Da cana doce e do mamão
Da papaia e do caju...

Tu sorriste e sussurraste
"Sou da mesma terra que tu!"

“NENHUM VERSO…”

Nenhum verso fala de mim
 nem do que eu penso
 nem do que eu sinto
 nem do que eu sou.

Na realidade,
 as palavras são apenas
 um jogo de letras
 mais ou menos cinzelado
 ao gosto de cada um.
 E poucos, muito poucos
 fazem delas seres vivos e humanos.

Eu não lhes dou vida.
 Trabalho-as com mais ou menos nexo
 ou talvez sem nexo,
 porque dele não sinto falta
 nem faz falta o que sou!

“CÁLICE DE PORTO”

Hoje já não pergunto porque não voltas.
 Apresso-me apenas para chegar a destino nenhum
 e apagar as luzes que te vestiram.
 Depois permaneço deste lado do palco. Este lado
 que se mantém inalterável e escuro, onde a vida
 não é mais que um reflexo isento de espelhos.
 Quisera ter-te… mas não passei de um adereço
 dispensável na representação.
 Resta-me apenas o cenário onde ainda te revejo
 e vou confundindo a realidade para que o sonho
 não se suicide.
 De alma nua, amo apenas o mar que nos uniu
 e odeio a mar que nos afastou.

Havíamos ficado, noites inteiras depois de um brinde
 onde juramos eternidade. Perdidos no riso
 ou exaustos na paixão, deixamos vazios, todos os cálices
 daquele Porto que escolhias por amor.
 As horas morriam no silêncio dos nossos corpos
 emudecidos de prazer, numa cama
 que ficou gravada pelas nossas mãos.

Se a morte chegasse, pediria apenas um cálice
 de Porto dourado. E morreria bebendo cada beijo teu!

À NOITE…PARA TI

Rendi-me ao encanto da noite e olhei-te.
Como se olha uma aguarela pintada nas cores do oceano,
deixei que a minha vontade se pintasse na mesma cor.
Esqueci os segredos,
troquei as memórias por um pedaço de mar
e sonhei-te. Sonhei-te nas palavras
de um sonho ainda por escrever,
e deixei que a dança me levasse, esquecendo
que quando a lua adormece
todos os sonhos podem acabar.
Desprendi os gestos, soltei a atitude
e reinventei cada pedaço de mim
para que as palavras não se esgotassem no tempo .
E aos primeiros raios de sol, fechei os olhos
e prolonguei o sonho,
sucumbindo a cada lembrança de um beijo teu.

MOMENTO

A cada momento a vida surpreende-me
e atraiçoa-me as forças.
Não é justo.
Até as palavras deixam de ter atitude
e o sentido passa a ser por conta de outrem.
Acendi a luz do candeeiro de pé
mas as paredes continuaram vazias.
Um silêncio ensurdecedor, arrepiante.
Quisera ouvir a tua voz…
mas até a memória me atraiçoa!

ALI O VERDE É MAIS VERDE

Ali o verde cheira a verde
Ali tudo é verde
O ar cheira a verde
O Arco-íris é verde
Em tantos tons de verde
Que até o Sol seria verde

Fontes:
http://www.minhaangola.org/#/ana-paula-lavado/4538290896
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/poetas/ana-paula-lavado/
http://ferrao.org/2008/04/ana-paula-lavado-vozes-ao-vento.html

Ana Paula Lavado (1960)

Ana Paula Lavado Pereira, nasceu em Angola a 19 de Julho de 1960.

1979 – 1980  – Pelo Instituto Superior do Serviço Social do Porto, Porto fez formação com a
 designação da qualificação atribuída ao Ano Propedêutico (12º ano).

1979 -1981 – Formação no Instituto Britânico do Porto - Delegação de Barcelos, com a qualificação de frequência do 1º ano

1982 – Formação no IEFP (Biblioteca Municipal de Barcelos), concluindo o 3º ano. 

1982 – 1992 – “Sócia Gerente de Empresa Têxtil” na empresa Ana Paula & Lopes, Lda, Barcelos

De 1993 -1995 – Cargo de “Diretora Técnica”, com responsabilidade pelo setor produtivo e qualidade, na área de alojamento e restauração, empresa Anjal Lda, Mangualde

1995 – 1998 – Área da Restauração, desempenhando o cargo de “Gerente de Restauração” com responsabilidade por todo o funcionamento da unidade empregadora de Cardosos Lda, Esposende.

1998 –2000 – Estágio profissional na Biblioteca do Porto na área de “Técnica de Restauro e encadernação, nível 3”.

05/2004 –  07/2004 fez formação na IEFP, Viana do Castelo, tendo sido conferida a qualificação pedagógica para dar formação.
2007 - 2009 – Restauro e Encadernação de livros e documentos, exercendo o cargo de “ Técnica de Restauro” na empresa Ana Paula Lavado Pereira, Esposende.

Publicação de dois livros de Poesia:
- «Vozes do Vento» em 2007
- «Um Beijo... Sem Nome» em 2008


NOTA BIOGRÁFICA DA POETA

Arredondou a barriga da mãe no ano de 1960.
O sol de Angola brilhou à sua chegada.
Já roida pela saudade veio para Portugal.
Como muitos... como muitos...
Deambulou, buscando poiso.
Encontrou-o no local onde o Cávado enche a barriga do mar.
Em Esposende amou, teve 4 filhos e maturou as palavras.
Perdeu... cresceu... chegou à idade da madureza.
Em 2007 lançou "Vozes do Vento".
Talvez atordoada com as rajadas do vento norte,
Encantada pela suave modorra das águas prateadas do rio,
Dois mil e oito aparece-nos com as palavras aguareladas pelo Henrique do Vale
em "Um Beijo... Sem Nome".
Esta Mulher,
Mãe,
Amante,
Poeta,
é
Ana Paula Lavado


Fonte:
http://www.minhaangola.org/#/ana-paula-lavado/4538290896

Lenda Portuguesa (Maria Mantela)

Na igreja matriz de Chaves existiu, em tempos, uma lápide, no colateral direito, com o seguinte epitáfio: «Aqui jaz Maria Mantela Com sete filhos ao redor dela».

Diz a lenda que rememora Maria Mantela que certa vez, era ela ainda menina, criticou severamente uma pobre que lhe pediu esmola, levando ao colo dois gémeos. Anos mais tarde Maria Mantela casou e, passado tempo, engravidou.

Iniciado o trabalho do parto, quando a parteira lhe disse, depois de ter nascido o primeiro filho, que se esforçasse para sair o segundo, e o terceiro, e o quarto, e por aí fora até ao sétimo, a mulher ficou louca de vergonha.

Assim que recuperou o ânimo, pagou muito bem à parteira para que escondesse o facto de ter tido sete filhos gémeos e entregou os recém-nascidos à serva que assistira aos nascimentos para que os deitasse ao rio. A criada, cheia de pena dos meninos, meteu-os num cesto e pôs-se a caminho do rio para cumprir o que lhe tinha sido ordenado. Não replicou ante a desumanidade do seu mandado porque bem sabia que isso só lhe podia valer aborrecimentos. Além de que a ama, no estado de espírito em que se encontrava, não lhe daria ouvidos, sendo provável até que lhe desse o mesmo fim que aos meninos.

Perto das Caldas de Chaves, assim entregue a estes pensamentos e com a asa do cabaz enfiada no braço, a serva encontrou o marido da sua senhora Maria Mantela, o qual lhe perguntou o que levava no cesto. Apanhada de surpresa, a pobre rapariga, depois de titubear umas palavras incompreensíveis, acabou por achar a solução:

— São cachorrinhos que eu vou deitar ao rio, senhor.

O amo, ou por curiosidade ou por já desconfiar de qualquer coisa, levantou a cobertura e percebeu. Pegou no cesto, pô-lo sobre o cavalo e disse à rapariga que fosse dizer à ama que estava cumprida a ordem.

Dali partiu com os filhos em busca de amas que os criassem. Deixou cada um em sua aldeia e durante muito tempo Maria Mantela não desconfiou que os meninos estavam vivos e se iam criando e educando.

Diz a lenda, ao mesmo tempo que especifica os nomes das igrejas, que estes sete meninos foram ordenados padres e viveram a sua vida em sete aldeias circunvizinhas de Chaves. E Maria Mantela viveu o resto da sua vida grata ao marido por ter aceite aqueles sete filhos de um só parto. E tanto os amou que exigiu descansar juntamente com os sete, no seu leito de eternidade:

«Aqui jaz Maria Mantela Com sete filhos ao redor dela.»

Poderá parecer estranho ao nosso entendimento de homens do século XX o problema posto nesta lenda em que se fala de gémeos que por serem devem morrer. Creio não errar ao dizer que o problema se funda em antigas crenças segundo as quais as mulheres honestas só podiam, e deviam, ter um filho de cada vez do seu marido. O facto de lhes nascer mais do que um filho no mesmo parto deveria pressupor desonestidade no seu comportamento e consequente desonra do marido.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa

Marina Colasanti (Achadas e Perdidas?)

Uma bala perdida alcançou o ator Older Cazarré no sono, e o matou. No dia 1.2 do mês, uma menina de nove anos tinha sido ferida por uma bala perdida, quando brincava em sua casa, em Vila Isabel (sua casa estava sendo atingida pela terceira vez). E no dia seguinte, em Costa Barros, cinco crianças foram feridas pelas sobras de um tiroteio entre PMs e,traficantes. O mês em nada se diferencia dos meses anteriores. E, como todos os meses no Rio de Janeiro, tempo de safra das balas perdidas.

 Pergunto-me por que continuamos usando essa expressão "bala perdida". Afinal, perdido é aquilo que sumiu, que não mais conseguimos encontrar. E as balas perdidas sabemos muito bem onde vão parar. Só no prédio de Cazarré a polícia recolheu cinco delas, sendo que uma estava encravada na cabeceira da cama do subsíndico José Carlos Freire, a um palmo da sua cabeça.

 Perdido é também aquilo que foi destruído, que é irrecuperável. Mas as balas perdidas são recuperabilíssimas; para reavê-las, basta afundar o canivete na parede de uma casa pacífica ou na cabeceira de uma cama, e mergulhar o bisturi na carne. E certamente não foram destruídas. Destruídos são a pele, o osso, o órgão. Destruídos são a segurança. E a vida.

 Usa-se a palavra "perdida" também no sentido de distante, longínqua. Mas bem gostaríamos que as balas perdidas estivessem distantes. Antes aparentemente longínquas porque limitadas às áreas de banditagem, estão se aproximando a cada dia, varando nossas vidraças e nossa serenidade. Bala perdida, hoje, é justamente aquela mais próxima do que todas as outras, a que nos atinge.

 Perdida significa ainda prostituta, a que, por dinheiro se concede. E mais uma vez a palavra não encaixa nessas balas que, como pipas negras, cruzam nossos ares. Bala prostituta não é aquela que atinge quase ao acaso pessoas de bem, pessoas que nada têm a ver com as transações nefandas em cujo nome a bala é disparada. Bala prostituta é aquela que cumpre sua tarefa, que mata por dinheiro, e que só por dinheiro se "concede".

 E, ainda dentro do mesmo sentido, perdida quer dizer aquela que "sai do bom caminho". Mas como aceitar que o percurso de uma bala, visando a morte, seja considerado um bom caminho? Ainda que saia da arma de um traficante para o peito de outro traficante ou mesmo da arma de um policial para o peito de um meliante, a bala traça sempre o pior de todos os caminhos. E repugna considerar bom um caminho da morte, apenas porque obedece à mira. Não existe bom caminho para as balas. Nem na guerra, nem na caça. E muito menos no cotidiano de uma cidade.

 Assim também a consciência hesita em aceitar seu sentido como "errada". Não apenas porque não podemos concordar com a existência da bala certa, mas porque, se é verdade que a bala perdida errou o alvo, é igualmente verdade que acertou sua função. Pois quem fabrica o projétil e o enche de pólvora não está lhe incutindo um alvo, mas apenas dando-lhe a capacidade de penetrar, rasgar e explodir, que são sua razåo de ser. Bala errada, e portanto bala perdida, é para seu fabricante a que se perde n~ grama, sem condições de ferir ninguém, nem hoje nem nunca. E a bala que desperdiça seu poder mortífero.

 Nem lhe cabe o sentido de "aflita" ou "ansiosa", que o dicionário registra. Uma bala nunca está ansiosa. Uma bala não hesita, não treme. Uma vez disparada, é objetiva e direta. Ansioso pode estar aquele que aperta o gatilho. E aflito fica quem recebe o tiro, ou quem vê o próprio filho atingido enquanto brinca no quintal de casa.

 Há sentidos, porém, que se lhe aplicam. É certo, sim, dizer que a bala é perdida, porquanto "pervertida". A bala que fere ou mata aquele que apenas cruzou seu percurso, como se cruza uma linha de trem, é certamente mais pervertida do que a pervertida bala que mata a vítima visada.

 E é "amoral" essa bala. É amoral porque mata pessoas inocentes — embora as culpadas também não devessem ser mortas. É amoral porque não obedece sequer à questionável moral do submundo, porque escapa à moral da guerra que a dispara. E é amoral porque dela ninguém pode se defender. Quem parte para um duelo sabe o que busca, quem parte para a guerra sabe ao que vai de encontro, mas quem dorme em sua cama não sabe o risco que corre.

 Perdida quer dizer ainda "sem esperança ou salvação". Uma cidade cruzada por balas perdidas é uma cidade sem esperança ou salvação. Mas as balas perdidas podem tomar-se uma espécie em extinção, quando a sociedade põe um basta nas balas achadas.

Fonte: 
Marina Colasanti. Eu sei, mas não devia. RJ: Editora Rocco, 1996.

Dilercy Adler (Participe até Novembro da Antologia "Mil Poemas para Gonçalves Dias")


Precisamos de 1000 poemas. A data para envio de trabalhos foi prorrogada até novembro de 2012. A participação é sem custos para o poeta. Envie para os seus contatos. Ficar-lhe-ia muito agradecida.
Grata e Saudações Gonçalvinas,
Dilercy Adler


NORMAS DOS TRABALHOS:

a) ANTOLOGIA “MIL POEMAS PARA GONÇALVES DIAS”


- cada Poeta poderá apresentar até cinco (cinco) poemas homenageando Gonçalves Dias. Formato A4, times New Roman, tamanho 12, espaço 1,0.

- enviar adjunto currículo literário resumido (no máximo seis linhas), em que conste data de nascimento, cidade e país de origem; com foto atualizada,

- a aceitação dar-se-á na ordem de recebimento da (s) obra(s), até se completarem os 1000 (mil) poemas. Um mesmo autor poderá mandar uma poesia, caso queira enviar outra obra posteriormente, dentro do limite de cinco (05) por Poeta, poderá fazê-lo, indicando que já enviou uma primeira obra; sendo colocadas todas juntas.

Envio de Poesias para: dilercy@hotmail.com

ESTUDOS E PESQUISAS
- cada autor ou co-autor poderá enviar até dois (02) textos, com o máximo de 20 (vinte) páginas, formato A4, Times new Roman, tamanho 12, espaço 1, incluindo bibliografia e fotos.

- ao enviar sua obra, deverá vir acompanhada pequena bio-bliografia, com foto atualizada, em que conste o motivo de participar da antologia; cidade e país de origem;

- a publicação se dará na ordem de recebimento da (s) obra(s).

Envio de Trabalhos para: vazleopoldo@hotmail.com

Fonte:
Dilercy Adler

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 669)

Uma Trova de Ademar

A pergunta é meio louca,
mas, conhecendo o roteiro;
quero é dar beijo na boca...
“Vida boa é de solteiro”!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Vejo tanta mulher feia,
mas muitos homens também.
Pondo todos na cadeia
não sobra quase ninguém.
–José Feldman/PR–

Uma Trova Potiguar 


Marido que à noite escapa
com mulheres e aguardente,
o remédio é chá de tapa,
sem açúcar, forte e quente!
–José Lucas de Barros/RN–

Uma Trova Premiada 


2002  -  Belém/PA
Tema  -  CAROÇO  -  M/H


Vizinha, não quero zanga,
mas os teus seios, que juras
serem caroços de manga,
parecem jacas maduras!
–José Tavares de Lima/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Pergunta o médico, enfim,
à mãe de um gago, a tratar:
– Sempre gagueja ele, assim?
– Não! Só quando quer falar!
–J. Revoredo Neto/RN–

U m a P o e s i a 


MOTE:
Feijoada sem tempero,
Pra mim não é feijoada.

GLOSA:
Pensei que fosse exagero
da cozinheira nervosa,
quero ver ficar gostosa
Feijoada sem tempero,
Nem pega gosto e nem cheiro,
não vai ter gosto de nada;
outra mulher convidada
também deu sua versão:
agua suja de feijão,
Pra mim não é feijoada!
–Augusto Macedo/RN–

Soneto do Dia 

AZAR.
–Renata Paccola/SP–


Certo dia, acordei de mau humor –
resquício de uma noite mal dormida.
Peguei o carro, e então fundiu o motor,
Segui para o metrô, enfurecida.

Tentei continuar com minha lida,
mas fiquei presa num elevador.
Neste compartimento sem saída,
passei horas de angústia e terror,

e saí sob o som de bate-estaca.
Depois, no meio de um supermercado,
senti a dor de um burro quando empaca.

Foi aí que vi, quase ao meu lado,
irônicos dizeres numa placa:
“Sorria. Você está sendo filmado!”

Ignácio de Loyola Brandão (O Que Há Depois do Além?)

Museu de Paris exibe o mítico rolo em que Jack Kerouac escreveu On The Road, o ícone beat que acenava para um horizonte a ser descoberto; filme de Walter Salles sobre o livro já estreou lá

Um livro inteiro escrito em um rolo de papel. Foi espantoso saber disso. Jack Kerouac sentou-se entre 2 e 22 de abril de 1951, e datilografou sem parar e sem precisar tirar o papel da máquina em nenhum momento. Mais de 60 anos atrás, aquele jovem de 29 anos não sabia que tinha inventado o formulário contínuo que só entraria em cena mais de 40 anos depois. Como seria esse rolo? Estávamos acostumados a usar o papel sulfite A-4, cuja largura era a mesma do rolo das máquinas de escrever comuns. Escrevia-se cerca de 20 a 30 linhas, em espaço duplo e acabava a lauda, era preciso trocá-la. O gesto se repetia em casa, nas redações, escritórios, faculdades, escolas, por toda a parte. Puxada a lauda, colocava-se outra, girava-se o rolo e recomeçava. Nunca imaginei que precisasse explicar este processo banal, a fim de que as novas gerações crescidas com o computador, entendessem a questão. Por esta razão, ter escrito de uma vez só, em um rolo de papel, se tornou um fato mítico, único na literatura. Vinha em seguida o que o livro significou, o impacto que provocou, o espanto que ocasionou.

As notícias, naqueles anos 1950, diziam que o livro On The Road, que abalaria o mundo, teria sido escrito em um rolo de papel para teletipo, o que também poucos das novas gerações sabem o que é. Um aparelho existente em redações, escritórios, bolsas de valores, que recebia informações, notícias, cotações, vivia ligado 24 horas, parecia funcionar sozinho, uma vez que era acionado a distância. De uma cidade para outra, de um Estado, de um país. Funcionava o tempo todo, portanto necessitava ser alimentado por um rolo de papel que devia durar horas.

Em seguida, divulgou-se que On The Road não tinha sido datilografado em rolo de teletipo. Como seria então? Passaram anos até vermos a primeira foto de Jack Kerouac, o escritor, segurando o rolo na mão. Eu vi pela primeira vez na contracapa da edição integral de On The Road publicada pela L&PM, em 2008. Mas que rolo seria esse?

A batida do jazz em uma narrativa. No entanto, fosse apenas isso, um livro escrito em um rolo de papel, tudo não passaria de mera curiosidade, uma bossa criada por um autor, nada mais. Quando On The Road foi publicado em 1957 - exatamente o ano em que cheguei a São Paulo, foi como se um tsunami tivesse acontecido na literatura. Normas caíam por terra, regras eram desobedecidas, uma nova maneira de narrar estava em curso, a palavra beat, que vinha tanto de beatitude quanto da batida do jazz, entrou em circulação. Era o grito (usou-se muito essa palavra) da geração que fumava maconha, usava benzedrina, cocaína, peyote, álcool, e não colocava limites para o sexo.

Acreditávamos que era a revolta de uma geração contra o establishment americano e ficávamos confusos. Onde brasileiros e americanos se igualavam? Contra o que eles brigavam exatamente? De que modo poderíamos seguir on the road? Teria sentido? Descobriríamos com os anos a nossa estrada. Mas o início estava ali na linguagem, na soltura, na liberdade.

Roberto Muggiati em seu artigo Kerouac, os beats e o bop (C2+Música, aqui no Estado, no último dia 9 ), diz que a expressão "on the road" já era usada nos anos 1930 no jargão dos músicos de bandas que "viviam na estrada". O que era novo para nós? A linguagem que, no dizer de Kerouac (sempre citado por Muggiati), era "o fluxo mental tranquilo, de ideias e palavras pessoais secretas... pausas marcadas que são a essência de nossa fala... satisfazer primeiro a si mesmo e o leitor também receberá o choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis que operam na sua mente". Era um novo formato de narrativa, anticonvencional.

À minha frente, o lendário scroll. Descobri a realidade do rolo no dia 31 de maio deste ano, em Paris. Cheguei tarde, deitei, no dia seguinte, pulei da cama, tomei café da manhã e voei pelo Boulevard Saint-Germain em busca do Musée des Lettres et Manuscrits. O rolo do On The Road estava lá. Corria ao encontro de Jack Kerouac e de mim mesmo no número 222. Atravessei a "cour", empurrei uma porta modesta e penetrei no museu. Estava em meio a tudo o que gerou On The Road, o mais emblemático romance de uma época, que bateu de frente contra tudo o que era estabelecido, careta, quadrado, square, burguês (palavras hoje deterioradas). Quem queria escrever, naquele tempo, queria escrever o On The Road de seu país.

O mundo transfigurou. Em um segundo, me vi em São Paulo na Alameda Santos, 93, nos meus 23 anos. Era a pensão da Nina. Mais do que pensão, aquela casa foi o ponto de partida de um grupo pertencente à mesma geração. Ali nos reuníamos, conversávamos, discutíamos Sartre, Simone, Camus, Marx, Stanislavski, Grotowski, Carson Mccullers, Henry Miller. Ali bebíamos, brigávamos, escrevíamos, tocávamos violão e cantávamos. Havia ainda tantos mundos a serem percorridos ao longe.

Como sair do nada e ver lá na frente?. Aqueles quartos de pensão, minúsculos, com três ou quatro, às vezes mais, jovens empoleirados, eram tão sufocantes quanto nossa cidade natal tinha sido, quanto São Paulo era, e o Brasil também. Em que país estreito vivíamos? Como sair disso? Líamos demais, víamos filmes e teatro demais, roubávamos revistas e jornais estrangeiros das bancas e livrarias (não tínhamos como pagá-las, eram caras) e tínhamos uma certeza, o mundo ia além daquilo. Queríamos saber o que havia para a frente, queríamos buscar lugares distantes, pessoas longínquas, línguas estranhas, não queríamos repetir a mesmice e não sabíamos o que sonhávamos criar.

Os sábados eram particularmente excitantes quando o caderno de variedades do Jornal do Brasil chegava com artigos do Nelson Coelho, então o especialista em literatura americana. Não se passava semana sem uma notícia sobre a beat generation. Correspondente do Jornal do Brasil em Nova York, Nelson estava no olho do furacão. E o JB era dos mais importantes e lidos do Brasil.

Eu era o primeiro que acordava, trabalhava das 10 ao meio-dia. Corria à Praça Osvaldo Cruz e comprava dois JB. Na praça, tomava o café da manhã, média de café com leite e um misto. Lia ali no balcão, sonhando com as mesas dos cafés que víamos nos filmes e nas fotos de Paris, de Nova York, das "cidades" civilizadas. Na volta, o caderno de variedades corria de mão em mão, depois era guardado no quarto do Zé Celso Martinez que enchia os artigos de frases sublinhadas.

Um dia, essa loucura será publicada integral. Havia uma febre para ler On The Road, de maneira que a primeira edição legível que nos chegou (era difícil comprar livros americanos por aqui) foi a da editora argentina Sudamericana: Por La Carretera, um título que nos soava horrível, mas sabíamos que seria complicado ler Kerouac no original. Linguagem coloquial, gírias, expressões do jazz, havia de tudo. Também em espanhol não foi fácil, perdíamos o ritmo. Somente duas décadas depois leríamos On The Road em português, com o título Pé na Estrada, editado na Brasiliense por um Caio Graco inquieto, ousado, mente aberta. Foi em 1984. A Brasiliense tinha Luiz Schwarcz, que ali começou. On The Road teria a sua mãozinha?

Sabe-se que a primeira edição americana, na qual se basearam, por décadas, todas as traduções, sofreu cortes e interferências do editor Malcolm Cowley. Informam as legendas da exposição que Kerouac, pressionado, edulcorou o texto, fez cortes, cedeu, estava cansado de batalhar e ser derrotado. Em uma carta, exibida no museu, Allen Ginsberg, outro ícone da beat generation, previa: "Um dia, On The Road será publicado integralmente, em toda sua loucura." Foi. Em 2007, finalmente a Viking Press lançou o texto original, no Brasil lançado em 2008 pela L&PM, em tradução de Eduardo Bueno e Lúcia Brito. Na contracapa, Jack Kerouac segura o célebre rolo.

O manuscrito que é uma "estrada" também. Já se sabe tudo o que o livro é, foi, será. O que estava ainda em minha cabeça - e na de muitos - era a questão do rolo. Como se fosse um papiro sagrado, uma Torá. Assim entrei no Musée des Lettres et Manuscrits, paguei e desci correndo, tinha avistado a vitrine onde repousava o rolo. Naquela hora da manhã, não havia ninguém no museu. A vitrine tem nove metros de extensão e o rolo de 36, 5 metros repousa (estará ali até agosto) sobre um tecido macio para não ser machucado. Ao olhar, entendi. Não era papel de teletipo e sim papel vegetal, de desenho, que Kerouac montou página a página, colando com durex. Uns dizem que Kerouac comprou o papel, outros que foi um amigo dele, desenhista, Bill Cannastra, que lhe deu de presente.

Para caber na máquina de escrever, uma Underwood (exposta no museu), Kerouac acertou as margens. Pode-se ver ainda o picotado da tesoura em certos pontos. Para economizar, o espaçamento entre as linhas é o mínimo possível, acho que o 1, de modo que as frases praticamente se amontoam, apertadas. Imaginei o editor com aquele rolo na mão, tentando ler. Legendas explicam que o final do rolo inexiste. Segundo o autor, ele foi comido pelo seu cachorro Potchky. Cada detalhe alimenta uma lenda. Há uma imagem usada pelos que viram o rolo na vitrine: ele simboliza a estrada, the road. Datilografado a toda velocidade, sem parágrafos, 6 mil palavras por dia (12 mil no primeiro dia, tal a febre, e 15 mil no último, tal a ânsia de terminar), Kerouac confessou que foi alimentado a café. Como Balzac fazia?

Imenso banner num canto do museu traz as edições pelo mundo. Línguas estranhas, indefiníveis para mim naquele momento e que prefiro deixar assim, como um mistério: Kelije - Op weg - Na Gestei - Vejene - Naputu - Pe Drum - B Dopoze - Uton - Kepyak - Aopote - Á Vegum Út. Sabe-se que o livro foi traduzido para 95 línguas. Não vi a capa de nenhuma das edições brasileiras.

Numa das vitrines estão as cadernetinhas de capa preta envernizada que Kerouac usava para suas anotações. Centenas delas, todas iguais. Emocionei-me ao ver como ele trabalhava, anotando sem parar. Organizado, comprava sempre as mesmas cadernetas. Em Na Estrada, filme de Walter Salles, o personagem usa um bloco semelhante. Produziram para a filmagem ou tais cadernetas ainda existem nos Estados Unidos? Essa permanência das coisas me fascina

Cinco anos de trabalho para um longa-metragem. O filme está em cartaz em Paris simultaneamente. Fui ver em uma de minha salas prediletas, o cinema Pagode, na Rue Babylone. Foi um templo chinês decorado com dourados, e brocados, cheio de charme em sua decadência. Ali está sendo a exibida a versão original com legendas em francês. Quando o livro saiu, em 1957, Kerouac escreveu a Marlon Brando, tido como um ator da contestação, oferecendo a adaptação e o papel, Brando jamais respondeu. Os direitos foram comprados por Francis Ford Coppola em 1968. Godard recusou, depois também Gus Van Saint. Finalmente, Walter Salles entrou na estrada. Foram cinco anos de versões e revisões, de viagens e busca de locações. Walter Salles imprimiu o ritmo duplo que domina o livro: movimento, velocidade, e momentos de introspecção e contemplação. Pausas e acelerações. Num entrevista, o cineasta fez uma declaração que me emocionou: "A modernidade de Kerouac estava em seu desejo de explorar tudo, de viver, de sentir tudo à flor da pele. De não recusar o momento." Um dia, Walter e Lawrence Ferlinghetti, 93 anos, ícone majestoso da época beat (a sua livraria e editora City Lights era o ponto de convergência dos beatniks), circulando por São Francisco, pararam na ponte de Berkeley, imobilizada pelo congestionamento. Nesse momento, o poeta exclamou:

- You see, there's no more away!

Algo como: veja só, não há mais nada depois do além. E o cineasta comenta: "Naquela época do On The Road ainda havia um mundo a ser descoberto, cartografado. Borges dizia que o grande prazer da literatura era nomear o que ainda não havia sido nomeado. Hoje, temos a impressão de que tudo está visto, fotografado, documentado, repertoriado... On The Road é um antídoto contra o imobilismo e isto é que me fascinou no livro." Ou seja, não há mais nada a se procurar. Mais de 50 anos depois, Ferlinghetti e Walter Salles respondiam àquela inquietação que tivemos aos 20 anos

Kerouac, que morreu aos 47 anos, faria neste ano 90. Os expoentes da beat morreram: Allen Ginsberg, Gregory Corso e William Burroughs. Resta Ferlinghetti, hoje com 93 anos. Estranha foi a morte de Kerouac, vivendo ao lado da mãe, mergulhado em programas estúpidos de televisão, reacionário, alcoólatra, inchado, deprimido, desiludido com tudo, negando ter provocado uma revolução na literatura. Enquanto hoje desesperadamente procura-se a mídia e a exposição, a imensa visibilidade funcionou ao contrário para Jack. Levou-o ao inferno.

Fonte:
O Estado de São Paulo. Caderno 2. 23 de junho de 2012

Lenda Portuguesa (O Degredado de Ledão)

Nas faldas de Mantel há um lugarejo chamado Ledão.

Há muito tempo atrás, havia aí uma certa pedra jeitosa que os lavradores costumavam pôr nas grades, quando andavam a gradar.

Uma vez, um homem de Ledão foi degredado para a Moirama por certo azar que teve na vida. Andava por lá a trabalhar no campo, a meias com um burro e um camelo, mas andava muito triste e saudoso da sua terra. Não tinha, porém, modo de voltar para casa, já que, pelo crime que cometera, não lho permitiam as autoridades, e ainda por ser tão pobre que não tinha meios de fazer a viagem por conta própria.

Ao vê-lo tão triste, um mouro da Moirama disse-lhe, um dia, que o punha em Portugal se ele lhe prometesse fazer uma coisa que ele queria pedir. Já se vê que o degredado prometeu logo tudo, mesmo antes de saber o que lhe queria o outro.

O mouro, visto isso, pediu-lhe que mal chegasse a Ledão fosse procurar aquela pedra bonita que era costume pôr nas grades de destorroar a terra. Deveria então cortar-lhe um bocado, metê-lo no bolso e deitar o restante ao rio Douro. Depois fitou o outro bem nos olhos e, como que por encanto, o português viu-se na sua terra, muito próximo de Ledão.

A primeira coisa que fez foi correr a procurar a tal pedra para cumprir o prometido. Cortou-lhe um pedaço e deitou o restante ao rio. E a pedra, ao tocar na água, transformou-se numa bola de ouro, que, aos saltos, foi deslizando sempre à tona até desaparecer, levada para a Moirama.

Ao ver esta maravilha, o homem correu margem abaixo tentando agarrá-la, sem o conseguir. Lembrou--se então do pedaço que tinha metido no bolso e, puxando-o de lá, ficou muito satisfeito ao ver que também ele se transformara em ouro: era o pagamento do prometido.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa