terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Lima Barreto (O Filho de Gabriela)

A Antônio Noronha Santos

"Chaque progrès, au fond, est un avortement
Mais l'échec même sert".
Guyau

Absolutamente não pode continuar assim... Já passa... É todo o dia! Arre! — Mas é meu filho, minh'ama.

E que tem isso? Os filhos de vocês agora têm tanto luxo. Antigamente,
criavam-se à toa; hoje, é um deus-nos-acuda; exigem cuidados, têm moléstias... Fique sabendo: não pode ir amanhã!

— Ele vai melhorando, Dona Laura; e o doutor disse que não deixasse de
levá-lo lá, amanhã...

— Não pode, não pode, já lhe disse! O conselheiro precisa chegar cedo à
escola; há exames e tem que almoçar cedo... Não vai, não senhora! A gente tem criados pra que? Não vai, não!

— Vou, e vou sim!... Que bobagem!... Quer matar o pequeno, não é? Pois
sim... Está-se "ninando"...

— O que é que você disse, heim

— É isso mesmo: vou e vou!

— Atrevida.

— Atrevida é você, sua... Pensa que não sei...

Em seguida as duas mulheres se puseram caladas durante um instante: a
patroa — uma alta senhora, ainda moça, de uma beleza suave e marmórea — com os lábios finos muito descorados e entreabertos, deixando ver os dentes aperolados, muito iguais, cerrados de cólera; a criada agitada, transformada, com faiscações desusadas nos olhos pardos e tristes. A patroa não se demorou assim muito tempo. Violentamente contraída naquele segundo a sua fisionomia repentinamente se abriu num choro convulsivo.

A injúria da criada, decepções matrimoniais, amarguras do seu ideal amoroso, fatalidades de temperamento, todo aquele obscuro drama de sua alma, feito de uma porção de coisas que não chegava bem a colher, mas nas malhas das quais se sentia presa e sacudida, subiu-lhe de repente à consciência, e ela chorou.

Na sua simplicidade popular, a criada também se pôs a chorar, enternecida pelo sofrimento que ela mesma provocara na ama.

E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.

No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis conseqüências de um misterioso encadear de acontecimentos, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente...

A dona da casa, à cabeceira da mesa de jantar, manteve-se silenciosa, correndo, de quando em quando, o olhar ainda úmido pelas ramagens do atoalhado, indo, às vezes, com ele até à bandeira da porta defronte, donde pendia a gaiola do canário, que se sacudia na prisão niquelada.

De pé, a criada avançou algumas palavras. Desculpou-se inábil e despediu-se humilde.

— Deixe-se disso, Gabriela, disse Dona Laura. Já passou tudo; eu não guardo rancor; fique! Leve o pequeno amanhã... Que vai você fazer por esse mundo afora?

— Não senhora... Não posso... É que...

E de um hausto falou com tremuras na voz:

— Não posso, não minh'ama; vou-me embora!

Durante um mês, Gabriela andou de bairro em bairro, à procura de aluguel.

Pedia lessem-lhe anúncios, corria, seguindo as indicações, a casas de gente de toda a espécie. Sabe cozinhar? Perguntavam. — Sim, senhora, o trivial. — Bem e lavar? Serve de ama? — Sim, senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. — Então, não me serve, concluía a dona da casa. É um luxo... Depois queixam-se que não têm aonde se empreguem...

Procurava outras casas; mas nesta já estavam servidas, naquela o salário era pequeno e naquela outra queriam que dormisse em casa e não trouxesse o filho.

A criança, durante esse mês, viveu relegada a um canto da casa de uma conhecida da mãe. Um pobre quarto de estalagem, úmido que nem uma masmorra.

De manhã, via a mãe sair; à tarde, quase à boca da noite, via-a entrar desconfortada. Pelo dia em fora, ficava num abandono de enternecer. A hóspede, de longe em longe, olhava-o cheia de raiva. Se chorava aplicava-lhe palmadas e gritava colérica: " Arre diabo! A vagabunda de tua mãe anda saracoteando... Cala a boca, demônio! Quem te fez, que te ature..."

Aos poucos, a criança torrou-se de medo; nada pedia, sofria fome, sede,
calado. Enlanguescia a olhos vistos e sua mãe, na caça de aluguel, não tinha tempo para levá-lo ao doutor do posto médico. Baço, amarelado, tinha as pernas que nem palitos e o ventre como o de um batráquio. A mãe notava-lhe o enfraquecimento, os progressos da moléstia e desesperava, não sabendo que alvitre tomar. Um dia pelos outros, chegava em casa semi — embriagada, escorraçando o filho e trazendo algum dinheiro. Não confessava a ninguém a origem dele; em outros mal entrava, beijava muito o pequeno, abraçava-o. E assim corria a cidade. Numa destas correrias passou pela porta do conselheiro, que era o marido de Dona Laura. Estava no portão, a lavadeira, parou e falou-lhe; nisto, viu aparecer a sua antiga patroa numa janela lateral. " — Bom dia minh'ama," — "Bom dia, Gabriela. Entre." Entrou.

A esposa do conselheiro perguntou-lhe se já tinha emprego; respondeu-lhe que não.

"Pois olha, disse-lhe a senhora, eu ainda não arranjei cozinheira, se tu queres..."

Gabriela quis recusar, mas Dona Laura insistiu.

Entre elas, parecia que havia agora certo acordo íntimo, um quê de mútua proteção e simpatia. Uma tarde em que Dona Laura voltava da cidade, o filho da Gabriela, que estava no portão, correu imediatamente para a moça e disse-lhe, estendendo a mão: "a bênção" Havia tanta tristeza no seu gesto, tanta simpatia e sofrimento, que aquela alta senhora não lhe pôde negar a esmola de um afago, de uma carícia sincera. Nesse dia, a cozinheira notou que ela estava triste e, no dia
seguinte, não foi sem surpresa que Gabriela se ouviu chamar.

— O Gabriela!

— Minh'ama.

— Vem cá.

Gabriela concertou-se um pouco e correu à sala de jantar, onde estava a
ama.

— Já batizaste o teu pequeno? Perguntou-lhe ela ao entrar.

— Ainda não.

— Porque? Com quatro anos!

— Porque? Porque ainda não houve ocasião...

— Já tens padrinhos?

— Não, senhora.

— Bem; eu e o conselheiro vamos batizá-lo. Aceitas?

Gabriela não sabia como responder, balbuciou alguns agradecimentos e voltou ao fogão com lágrimas nos olhos.

O conselheiro condescendeu e cuidadosamente começou a procurar um nome adequado. Pensou em Huáscar, Ataliba, Guatemozim; consultou dicionários, procurou nomes históricos, afinal resolveu-se por "Horácio", sem saber por quê.

Assim se chamou e cresceu. Conquanto tivesse recebido um tratamento médico regular e a sua vida na casa do conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno Horácio não perdeu nem a reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A proporção que crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida e reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a mais — um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.

Pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta. Lá vinha um dia, porém, que o Horácio rompia numa alegria ruidosa; punha-se a correr, a brincar, a cantarolar, pela casa toda, indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo e sem causa.

A madrinha espantava-se com esses bruscos saltos de humor, queria entendê-los, explicá-los e começou por se interessar pelos seus trejeitos. Um dia, vendo o afilhado a cantar, a brincar, muito contente, depois de uma porção de horas de silêncio e calma, correu ao piano e acompanhou-lhe a cantiga, depois, emendou com uma ária qualquer. O menino calou-se, sentou-se no chão e pôs-se a olhar, com olhos tranqüilos e calmos, a madrinha, inteiramente delido nos sons que saíam dos seus dedos. E quando o piano parou, ele ainda ficou algum tempo esquecido naquela postura, com o olhar perdido numa cisma sem fim. A atitude imaterial do menino tocou a madrinha, que o tomou ao colo, abraçando-o e beijando-o, num afluxo de ternura, a que não eram estranhos os desastres de sua vida sentimental.

Pouco depois a mãe lhe morria. Até então vivia numa semidomesticidade. Daí em diante, porém, entrou completamente na família do Conselheiro Calaça. Isso, entretanto, não lhe retirou a taciturnidade e a reserva; ao contrário, fechou — se em si e nunca mais teve crises de alegria.

Com sua mãe ainda tinha abandonos de amizade, efusões de carícias e abraços. Morta que ela foi, não encontrou naquele mundo tão diferente, pessoa a quem se pudesse abandonar completamente, embora pela madrinha continuasse a manter uma respeitosa e distante amizade, raramente aproximada por uma carícia, por um afago. Ia para o colégio calado, taciturno, quase carrancudo, e, se, pelo recreio, o contágio obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e sentava-se, vexado, a um canto. Voltava do colégio como fora, sem brincar pelas ruas, sem traquinadas, severo e insensível. Tendo uma vez brigado com um colega, a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu padrinho, ao saber do caso, disse com rispidez: "Não continue, heim? O senhor não pode brigar — está ouvindo?"

E era assim sempre o seu padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o pequeno, de quem não gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher — maluquices da Laura, dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de menores, ao morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o marido o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou com brilho o curso primário.

Não foi sem resistência que ele acedeu, mas os rogos da mulher, que agora juntava à afeição pelo pequeno uma secreta esperança no seu talento, tanto fizeram que o conselheiro se empenhou e obteve.

Em começo, aquela adoção fora um simples capricho de Dona Laura; mas, com o tempo, os seus sentimentos pelo menino foram ganhando importância e ficando profundos, embora exteriormente o tratasse com um pouco de cerimônia.

Havia nela mais medo da opinião, das sentenças do conselheiro, do que mesmo necessidade de disfarçar o que realmente sentia, e pensava.

Quem a conheceu solteira, muito bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas, casada, sem filhos, não encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o marido, sentiu o vazio da existência, a insanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade; e, por uma reviravolta muito comum, começou a compreender confusamente todas as vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem coisa alguma. Era uma parada de sentimento e a corrente que se acumulara nela, perdendo-se do seu leito natural, extravasara e inundara tudo.

Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurara neles. Essa, ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes e exaltados depois das suas contrariedades morais.

Pelo tempo em que o seu afilhado entrara para o colégio secundário, o amante rompera com ela; e isto a fazia sofrer, tinha medo de não possuir mais beleza suficiente para arranjar um outro como "aquele". e a esse desastre sentimental não foi estranha a energia dos seus rogos junto ao marido para admissão do Horácio no estabelecimento oficial.

O conselheiro, homem de mais de sessenta anos, continuava superiormente
frio, egoísta e fechado, sonhando sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta. Casara-se por necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar viúvo; atiraram-lhe aquela menina pelos olhos, ela o aceitou por ambição e ele por conveniência. No mais, lia os jornais, o câmbio especialmente, e, de manhã passava os olhos nas apostilas de sua cadeira — apostilas por ele organizadas, há quase trinta anos, quando dera as suas primeiras lições, moço, de vinte e cinco anos, genial nas aprovações e nos prêmios.

Horácio, toda a manhã, ao sair para o colégio, lá avistava o padrinho atarraxado na cadeira de balanço a ler atentamente o jornal: " A bênção, meu padrinho! " — "Deus te abençoe", dizia ele, sem menear a cabeça do espaldar e no mesmo tom de voz com que pediria os chinelos à criada.

Em geral, a madrinha estava deitada ainda e o menino saía para o ambiente ingrato da escola, sem um adeus, sem dar um beijo, sem ter quem lhe reparasse familiarmente o paletó. Lá ia. A viagem de bonde, ele a fazia humilde, espremido a um canto do veículo, medroso que seu paletó roçasse as sedas de uma rechonchuda senhora ou que seus livros tocassem nas calças de um esquelético capitão de uma milícia qualquer. Pelo caminho, arquitetava fantasias; seu espírito divagava sem nexo. À passagem de um oficial a cavalo, imaginava-se na guerra, feito general, voltando vencedor, vitorioso de ingleses, de alemães, de americanos e entrando pela Rua do Ouvidor aclamado como nunca se fora aqui. Na sua cabeça ainda infantil, em que a fraqueza de afetos próximos concentrava o pensamento, a imaginação palpitava, tinha uma grande atividade, criando toda a espécie de fantasmagorias que lhe apareciam como fatos possíveis, virtuais.

Eram-lhe as horas de aula um bem triste momento. Não que fosse vadio, estudava o seu bocado, mas o espetáculo do saber, por um lado grandioso e apoteótico, pela boca dos professores, chegava-lhe tisnado e um quê desarticulado. Não conseguia ligar bem umas coisas às outras, além do que tudo aquilo lhe aparecia solene, carrancudo e feroz. Um teorema tinha o ar autoritário de um régulo selvagem; e aquela gramática cheia de regrinhas, de exceções, uma coisa cabalística, caprichosa e sem aplicação útil.

O mundo parecia-lhe uma coisa dura, cheia de arestas cortantes, governado por uma porção de regrinhas de três linhas, cujo segredo e aplicação estavam entregues a uma casta de senhores, tratáveis uns, secos outros, mas todos velhos e indiferentes.

Aos seus exames ninguém assistia, nem por eles alguém se interessava; contudo. foi sempre regularmente aprovado.

Quando voltava do colégio, procurava a madrinha e contava-lhe o que se dera nas aulas. Narrava-lhe pequenas particularidades do dia, as notas que obtivera e as travessuras dos colegas.

Uma tarde, quando isso ia fazer, encontrou Dona Laura atendendo a uma visita. Vendo-o entrar e falar à dona da casa, tomando-lhe a bênção a senhora estranha perguntou: "Quem é este pequeno?" — "E meu afilhado", disse-lhe DonaLaura. "Teu afilhado? Ah! sim! É o filho da Gabriela..."

Horácio ainda esteve um instante calado, estatelado e depois chorou nervosamente.

Quando se retirou observou a visita à madrinha:

— Você está criando mal esta criança. Faz-lhe muitos mimos, está lhe dando nervos...

— Não faz mal. Podem levá-lo longe.

E assim corria a vida do menino em casa do conselheiro.

Um domingo ou outro, só ou com um companheiro, vagava pelas praias, pelos bondes ou pelos jardins. O Jardim Botânico era-lhe preferido. Ele e o seu constante amigo Salvador sentavam-se a um banco, conversavam sobre os estudos comuns, maldiziam este ou aquele professor. Por fim, a conversa vinha a enfraquecer; os dois se calavam instantes. Horácio deixava-se penetrar pela flutuante poesia das coisas, das árvores, dos céus, das nuvens; acariciava com o olhar as angustiadas colunas das montanhas, simpatizava com o arremesso dos píncaros, depois deixava-se ficar, ao chilreio do passaredo, cismando vazio, sem que a cisma lhe fizesse ver coisa definida, palpável pela inteligência. Ao fim, sentia-
se como que liqüefeito, vaporizado nas coisas era como se perdesse o feitio humano e se integrasse naquele verde escuro da mata ou naquela mancha faiscante de prata que a água a correr deixava na encosta da montanha. Com que volúpia, em tais momentos, ele se via dissolvido na natureza, em estado de fragmentos, em átomos, sem sofrimento, sem pensamento, sem dor! Depois de ter ido ao indefinido, apavorava-se com o aniquilamento e voltava a si, aos seus desejos, às suas preocupações com pressa e medo. — Salvador, de que gostas mais, do inglês ou francês? — Eu do francês; e tu? — Do inglês. — Por que? Porque pouca gente o sabe.

A confidência saía-lhe a contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o supusesse vaidoso. Não era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de distinção, de reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas circunstâncias ambientes. O amigo não entrava na natureza do seu sentimento e despreocupadamente perguntou: — Horácio, já assististe uma festa de São João? — Nunca. — Queres assistir uma? Quero, onde ? — Na ilha, em casa de meu tio.

Pela época, a madrinha consentiu. Era um espetáculo novo; era um outro mundo que se abria aos seus olhos. Aquelas longas curvas das praias, que perspectivas novas não abriam em seu espírito! Ele se ia todo nas cristas brancas das ondas e nos largos horizontes que descortinava.

Em chegando a noite, afastou-se da sala. Não entendia aqueles folguedos, aquele dançar sôfrego, sem pausa, sem alegria, como se fosse um castigo. Sentado a um banco do lado de fora, pôs-se a apreciar a noite, isolado, oculto, fugido, solitário, que se sentia ser no ruído da vida. Do seu canto escuro, via tudo mergulhado numa vaga semi luz. No céu negro, a luz pálida das estrelas; na cidade defronte, o revérbero da iluminação; luz, na fogueira votiva, nos balões ao alto, nos foguetes que espoucavam, nos fogaréus das proximidades e das distâncias — luzes contínuas, instantâneas, pálidas, fortes; e todas no conjunto pareciam representar um esforço enorme para espancar as trevas daquela noite de mistérios.

No seio daquela bruma iluminada, as formas das árvores boiavam como espectros; o murmúrio do mar tinha alguma coisa de penalizado diante do esforço dos homens e dos astros para clarear as trevas. Havia naquele instante, em todas as almas, um louco desejo de decifrar o mistério que nos cerca; e as fantasias trabalhavam para idear meios que nos fizessem comunicar com o Ignorado, com o Invisível. Pelos cantos sombrios da chácara pessoas deslizavam. Iam ao poço ver a sombra — sinal de que viveriam o ano; iam disputar galhos de arruda ao diabo; pelas janelas, deixavam copos com ovos partidos para que o sereno, no dia seguinte, trouxesse as mensagens do Futuro.

O menino, sentindo-se arrastado por aquele frêmito de augúrio e feitiçaria, percebeu bem como vivia envolvido, mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma onda de pavor, imensa e aterradora, cobriu-lhe o sentimento.

Dolorosos foram os dias que se seguiram. O espírito sacolejou-lhe o corpo violentamente. Com afinco estudava, lia os compêndios; mas não compreendia, nada retinha. O seu entendimento como que vazava. Voltava, lia, lia e lia e, em seguida, virava as folhas sofregamente, nervosamente, como se quisesse descobrir debaixo delas um outro mundo cheio de bondade e satisfação. Horas havia que ele desejava abandonar aqueles livros, aquela lenta aquisição de noções e idéias, reduzir-se e anular-se; horas havia, porém, que um desejo ardente lhe vinha de saturar-se de saber, de absorver todo o conjunto das ciências e das artes. Ia de um sentimento para outro; e foi vã a agitação. Não encontrava solução, saída; a desordem das idéias e a incoerência das sensações não lhe podiam dar uma e cavavam-lhe a saúde. Tornou-se mais flébil, fatigava-se facilmente. Amanhecia cansado de dormir e dormia cansado de estar em vigília. Vivia irritado, raivoso, não sabia contra quem.

Certa manhã, ao entrar na sala de jantar, deu com o padrinho a ler os jornais, segundo o seu hábito querido.

— Horácio, você passe na casa do Guedes e traga-me a roupa que mandei consertar.

— Mande outra pessoa buscar.

— O que?

— Não trago.

— Ingrato! Era de esperar...

E o menino ficou admirado diante de si mesmo, daquela saída de sua habitual timidez.

Não sabia onde tinha ido buscar aquele desaforo imerecido, aquela tola má-criação; saiu-lhe como uma coisa soprada por outro e que ele unicamente pronunciasse.

A madrinha interveio, aplainou as dificuldades; e, com a agilidade de espírito peculiar ao sexo, compreendeu o estado d'alma do rapaz. Reconstituiu-o com os gestos, com os olhares, com as meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.

Disse-lhe coisas doces, ralhou-o, aconselhou-o, acenou-lhe com a fortuna, a glória e o nome.

Foi Horácio para o colégio abatido, preso de um estranho sentimento de
repulsa, de nojo por si mesmo. Fora ingrato, de fato; era um monstro. Os padrinhos lhe tinham dado tudo, educado, instruído. Fora sem querer, fora sem pensar; e sentia bem que a sua reflexão não entrara em nada naquela resposta que dera ao padrinho. Em todo o caso, as palavras foram suas, foram ditas com sua voz e a sua boca, e se lhe nasceram do íntimo sem a colaboração da inteligência, devia acusar-se de ser fundamentalmente mau...

Pela segunda aula, pediu licença. Sentia-se doente, doía-lhe a cabeça e
parecia que lhe passavam um archote fumegante pelo rosto.

— Já, Horácio? Perguntou-lhe a madrinha, vendo-o entrar.

— Estou doente.

E dirigiu-se para o quarto. A madrinha seguiu-o. Chegado que foi, atirou-se à cama, ainda meio-vestido.

— Que é que você tem, meu filho?

— Dores de cabeça... um calor...

A madrinha tomou-lhe o pulso, assentou as costas da mão na testa e disse-lhe ainda algumas palavras de consolação: que aquilo não era nada; que o padrinho não lhe tinha rancor; que sossegasse.

O rapaz, deitado, com os olhos semicerrados, parecia não ouvir; voltava-se de um lado para outro; passava a mão pelo rosto, arquejava e debatia-se. Um instante pareceu sossegar; ergueu-se sobre o travesseiro e chegou a mão aos olhos, no gesto de quem quer avistar alguma coisa ao longe. A estranheza do gesto assustou a madrinha.

— Horácio!... Horácio!...

— Estou dividido... Não sai sangue...

— Horácio, Horácio, meu filho !

— Faz sol... Que sol !... Queima...Árvores enormes... Elefantes...

— Horácio, que é isso? Olha; é tua madrinha!

— Homens negros... Fogueiras... Um se estorce... Chi! Que coisa!... O meu pedaço dança...

— Horácio! Genoveva, traga água de flor... Depressa, um médico... Vá
chamar, Genoveva!

— Já não é o mesmo... É outro... Lugar, mudou... Uma casinha branca...
Carros de bois... Nozes... Figos... Lenços...

— Acalma-te, meu filho!

— Ué! Chi! Os dois brigam...

Daí em diante a prostração tomou-o inteiramente. As últimas palavras não saíam perfeitamente articuladas. Pareceu sossegar. O médico entrou, tomou a temperatura, examinou-o e disse com a máxima segurança:

— Não se assuste, minha senhora. É delírio febril, simplesmente. Dê-lhe o purgante, depois as cápsulas, que, em breve, estará bom.

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 5

IX

PECADO


Ia agora Aires de Lucena todos os dias á casa de Duarte de Morais, quando de outras vezes apenas lá aparecia de longe em longe.

Havia ai um encanto que o atraía, e este, pensava o corsário não ser outro senão o afeto de irmão que votava a Maria da Glória, e crescera agora com as graças e prendas da formosa menina.
Mui freqüente era encontrá-la Aires a folgar em companhia do primo Caminha, mas á sua chegada ficava ela toda confusa e atada, sem ânimo de erguer os olhos do chão ou proferir palavra.

Uma vez, em que mais notou essa mudança, não se pôde conter Aires que não observasse:

- Estou vendo, Maria da Glória, que lhe meto medo?

- A mim, Senhor Aires? balbuciou ai menina.

- A quem mais?

- Não me dirá por quê?

- Esta sempre alegre, mas é ver-me e fechar-se como agora nesse modo triste e...

- Eu sou sempre assim.

- Não; com os outros não é, tornou Aires fitando os olhos em Caminha.

Mas logo tomando um tom galhofeiro continuou:

- Sem dúvida lhe disseram que os corsários são uns demônios!...

- O que eles são, não sei, acudiu Antônio de Caminha; mas aqui estou eu, que no mar não lhes quero ver nem a sombra.

- No mar têm seu risco; mas em seco não fazem mal; são como os tubarões, replicou Aires.

Nesse dia, deixando a casa de Duarte de Morais, conheceu Aires de Lucena que amava a Maria da Glória e com amor que não era de irmão.

A dor que sentira pensando que ela pudesse querer a outrem. que não ele, e ele somente, lhe revelou a veemência dessa paixão que se tinha imbuído em seu coração e ai crescera até que de todo o absorveu.

Um mês não era passado, que apareceram franceses na costa e com tamanha audácia que por vezes investiram a barra, chegando até a ilhota da Laje, apesar do Forte de São João na Praia Vermelha.

Aires de Lucena, que em outra ocasião fora dos primeiros a sair contra o inimigo, desta vez mostrou-se tíbio e indiferente.

Enquanto outros navios se aprestavam para o combate, a escuna Maria da Glória se embalava tranqüilamente nas águas da baía, desamparada pelo comandante, que a maruja inquieta esperava debalde, desde o primeiro rebate.

Uma cadeia oculta prendia Aires à terra, mas sobretudo à casa onde morava Maria da Glória, a quem ele ia ver todos os dias, pesando-lhe que o não pudesse a cada instante.

Para calar a voz da pátria, que ás vezes bradava-lhe na consciência, consigo encarecia a necessidade de ficar para a defensão da cidade, no caso de algum assalto, sobretudo quando saía a perseguir os corsários, o melhor de sua gente de armas.

Sucedeu porém que Antônio de Caminha, mancebo de muitos brios, teve o comando de um navio de corso, armado por alguns mercadores de São Sebastião; do que mal o soube, Aires, sem mais detença foi se a bordo da escuna, que desfraldou as velas fazendo-se ao mar.

Não tardou que se não avistassem os três navios franceses, pairando ao largo. Galharda e ligeira, com as velas apojadas pela brisa e sua bateria pronta, correu a Mana da Glória a bordo sobre o inimigo.

Desde que fora batizado o navio, nenhuma empresa arriscada se tentava, nenhum lance de perigo se afrontava, sem que a maruja com o comandante à frente, invocasse a proteção de Nossa Senhora da Glória.

Para isso desciam todos a câmara da proa, já preparada como uma capela. A imagem que olhava o horizonte como a rainha dos mares, girando na peanha voltava-se para dentro, a fim de receber a oração.

Naquele dia foi Aires presa de estranha alucinação, quando rezava de joelhos, ante o nicho da Senhora. Na sagrada imagem da Virgem Santíssima, não via ele senão o formoso vulto de Maria da Glória, em cuja contemplação se enlevava sua alma.

Por vezes tentou recobrar-se dessa alheação dos sentidos e não o conseguiu. Foi-lhe impossível arrancar d'alma a doce visão que a cingia como um regaço de amor. Não era a Mãe de Deus, a Rainha Celestial que ele adorava nesse momento, mas a loura virgem que tinha um altar em seu coração.

Achava-se ímpio nessa idolatria, e abrigava-se em sua devoção por Nossa Senhora da Glória; mas ai estava seu maior pecado, que era nessa mesma fé tão pura, que seu espírito se desvairava, transformando em amor terrestre o culto divino.

Cerca de um mês Aires de Lucena esteve no mar, já combatendo os corsários e levando-os sempre de vencida, já dando caça aos que tinham escapado e castigando o atrevimento de ameaçarem a colônia portuguesa.

Durante esse tempo, sempre que ao entrar em combate, a equipagem da escuna invocava o patrocínio de sua madrinha, Nossa Senhora da Glória, era o comandante presa da mesma alucinação que já sentira, e erguia-se da oração com um remorso, que lhe pungia o coração pressago de algum infortúnio.

Pressentia o castigo de sua impiedade, e se arrojava na peleja receoso de que o desamparasse enfim a proteção da Senhora agravada; mas por isso não lhe minguava a bravura, senão que o desespero lhe ministrava maior furor e novas forças.

X

O VOTO


Ao cabo do seu cruzeiro, tornara Aires ao Rio de Janeiro onde entrou à noite calada, quando já toda a cidade dormia.

Havia tempos que soara no mosteiro o toque de completas; já todos os fogos estavam apagados, e não se ouvia outro rumor a não ser o ruído das ondas na praia, ou o canto dos galos, despertados pela claridade da lua ao nascer.

Cortando a flor das ondas alisadas, que se aljofravam como os brilhantes reçumos da espuma irisada pelos raios da lua, veio a escuna dar fundo em frente ao Largo da Polé.

No momento em que ao fisgar da âncora arfava o lindo navio, como um corcel brioso sofreado pela mão do ginete, quebrou o silêncio da noite um dobre fúnebre.

Era o sino da Igreja de Nossa Senhora do Ó que tangia o toque da agonia Teve Aires, como toda a equipagem, um aperto de coração ao ouvir o lúgubre anúncio. Não faltou entre os marujos quem tomasse por mau agouro a circunstância de ter a escuna fundeado no momento em que começara o dobre.

Logo após abicava à ribeira o batel conduzindo Aires de Lucena, que saltou em terra ainda com o mesmo soçobro, e a alma cheia de inquietação.

Era tarde da noite para ver Duarte de Morais; mas não quis Aires recolher sem passar-lhe pela porta, e avistar-se com a casa onde habitava a dama de seus pensamentos.

Alvoroçaram-se os sustos de sua alma já aflita, encontrando aberta àquela hora adiantada a porta da casa, e as frestas das janelas esclarecidas pelas réstias de luz interior.

De dentro saía um rumor soturno como de lamentos, entremeados com reza

Quando deu por si, achava-se Aires, conduzido pelo som do pranto, em uma câmara iluminada por quatro círios colocados nos cantos de um leito mortuário. Sobre os lençóis e mais lívida que eles, via-se a estátua inanimada, mas sempre formosa, de Maria da Glória.

A nívea cambraia que lhe cobria o seio mimoso, afiava com um movimento quase imperceptível, mostrando que ainda não se extinguira de todo nesse corpo gentil o hálito vital.

Ao ver Aires, Úrsula, o marido e as mulheres que rodeavam o leito, ergueram para ele as mãos como um gesto de desespero e redobraram o pranto

Não os percebia porém o corsário; seu olhar baço e morno se fitara no vulto da moça e parecia entornar sobre ela toda sua alma, como uma luz que bruxuleia.

Um momento, as pálpebras da menina se ergueram a custo, e os olhos azuis, coalhados em um pasmo glacial, volvendo para o nicho de jacarandá suspenso na parede, cravaram-se na imagem de Nossa Senhora da Glória, mas cerraram-se logo.

Estremeceu Aires, e ficou um instante como alheio a si, e ao que passava em torno.

Lembrava-se do pecado de render ímpia adoração a Maria na imagem de Nossa Senhora da Glória, e via na enfermidade que lhe arrebatava a menina, um castigo de sua culpa.

Pendeu-lhe a cabeça acabrunhada, como se vergasse ao peso da cólera celeste; mas de chofre a ergueu com a resolução de ânimo que o arrojava ao combate, e por sua vez pondo os olhos na imagem de Nossa Senhora da Glória, caiu de joelhos com as mãos erguidas.

- Pequei, Mãe Santíssima, murmurou do fundo d'alma; mas vossa misericórdia é infinita. Salvai-a; por penitência de meu pecado andarei o ano inteiro no mar para não a ver; e quanto trouxer há de ser para as alfaias de vossa capela.

Não- eram proferidas estas palavras, quando estremeceu com um sobressalto nervoso o corpo de Maria da Glória. Entreabriu ela as pálpebras e exalou dos lábios fundo e longo suspiro.

Todos os olhos se fitaram ansiosos no formoso semblante, que ia se corando com uma tênue aura de vida.

- Torna a si! exclamaram as vozes a um tempo.

Ergueu Aires a fronte, duvidando do que ouvia. Os meigos olhos da menina ainda embotados pelas sombras da morte que os tinham roçado, fitaram-se nele; e um sorriso angélico enflorou a rosa desses lábios que pareciam selados para sempre.

- Maria da Glória! bradou o corsário arrastando-se de joelhos para a cabeceira do leito.

Demorou a menina um instante nele o olhar e o sorriso, depois volvendo-os ao nicho, cruzou as mãos ao peito, e balbuciou flebilmente algumas palavras de que apenas se ouviram estas:

- Eu vos rendo graças, minha celeste Madrinha, minha Mãe Santíssima, por me terdes ouvido...

Expirou-lhe a voz nos lábios; outra vez cerraram-se as pálpebras, e descaiu-lhe a cabeça nas almofadas. A donzela dormia um sono plácido e sereno. Passara a crise da enfermidade. Estava salva a menina.
--------------------
continua...

Contos do Folclore Brasileiro (A Bota)

 Meus senhores, eu sou a bota
 Meus senhores, eu sou a bota
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a porta
 Meus senhores, eu sou a porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a corda
 Meus senhores, eu sou a corda
 Que marre a bota e botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o sebo
 Meus senhores, eu sou o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o rato
 Meus senhores, eu sou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o gato
 Meus senhores, eu sou o gato
 Que comeu o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Meus senhores, eu sou o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o pau
 Meus senhores, eu sou o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o facão
 Meus senhores, eu sou o facão
 Que cortô o pau, que mata o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou a mulher
 Meus senhores, eu sou a mulher
 Que pega o facão, que cortô o pau
 Que matou o cachorro, que comeu o gato
 Que matou o rato, que roeu o sebo
 Que passe na corda, que marre a bota
 Que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

 Meus senhores, eu sou o homem
 Meus senhores, eu sou o homem
 Que vou dar na mulher, que pegou o facão
 Que corto o pau, que mato o cachorro
 Que comeu o gato, que matou o rato
 Que roeu o sebo, que passe na corda
 Que marre a bota, que botei na porta
 Que leva a vidinha fazendo patota
 Que leva a vidinha fazendo patota

Fonte:
Lima, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. 4ª ed. São Paulo, Ricordi, sd.

Ivan Jaf (A Gata Apaixonada)

 Gato sentado (Aldemir Martins)
Quando perguntam como é que eu consegui sair com a Carla, eu respondo que foi por causa do Aldemir Martins. O pintor famoso.

Eu estava, tranqüilo, estudando. Juro.

Lá pelas 3 da tarde o telefone tocou. Era ela, a vizinha da casa 3.

A mãe morreu há uns quatro anos.
O pai é superciumento, não a deixa sair de casa nunca.

– Oi, Rodrigo... Você tem um gato grande, malhado?

– Tenho. O nome dele é Sorvete.

– Sorvete?

– Quando a gente encosta a mão, ele se derrete todo.

– Ele briga com a minha gata, a Tati.

– Já aconteceu várias vezes. Acho que é ciúme.

– De outro gato?

– Não. De um quadro. Uma pintura. Do Aldemir Martins.

Dez minutos depois eu estava na sala da casa dela. Só nós dois.

– Você vai ver ela disse.

– É sempre na mesma hora. Já ouviu falar do Aldemir Martins?

– Já. É um pintor famoso pra caramba. Mora aqui em São Paulo.

– Morava. Morreu há pouco tempo. Minha mãe era apaixonada pela pintura dele. Ele ilustrava livros, revistas, jornais... Pintava cangaceiros, galos, passarinhos, peixes...

– Tô sabendo. Desenhava até rótulos de maionese, de vinho...

– Minha mãe comprava tudo que podia.

– A gente comia em pratos desenhados por ele, tinha lençóis, tapetes, cortina de banheiro...

Carla me levou pra um canto da sala. Em cima de uma imitação de lareira, havia uma tela do Aldemir Martins, pequena, com o desenho de um gato. Um gato gordo, vermelho e azul, um focinho enorme, mostrando as garras, sedutor, os olhos verdes calmos, hipnóticos.

– Minha mãe adorava esse quadro.

Então ela me puxou pra trás de uma cortina pesada, que cobria a vidraça que dava pro jardim.

Tati entrou na sala. Pulou pro beiral da falsa lareira e parou em frente ao quadro, olhando pro gato pintado. Ficamos assim uns 20 minutos, escondidos, calados. Até que ele apareceu. O velho Sorvete.

O gato mais descolado do pedaço. Veio gingando, passou entre os móveis, parou na frente da lareira, olhou pro alto, e não gostou nada do que viu.

Carla segurou no meu braço.

Sorvete pulou pro beiral.

Briga de gato é mais rápido que videogame. Tati pulou, atravessou uma janela aberta e fugiu pro jardim, com o Sorvete atrás.

– Minha mãe dizia que um artista é capaz de recriar a vida. Se Deus existe, com certeza é um artista. Mas acho que você vai ter de trancar o Sorvete em casa, Rodrigo.

– Não gostei daquilo.

– Não, Carla. A gente encontra outro jeito. Pra mim as pessoas, os bichos, qualquer coisa que se mexa... têm de ter liberdade. Têm de ter uma janela aberta.

– Mas o Sorvete é meio selvagem...

– Isso. É assim que eu gosto dele. Eu também sou meio selvagem. Sabe o que eu faço?

– Eu como o tomate inteiro. Eu não fico esperando a minha mãe partir e colocar na salada!

Ela riu. Não sei de onde eu tirei essa história do tomate. Aí me empolguei, e ia dar mais exemplos de como eu era selvagem, mas a cortina abriu de repente e o pai dela apareceu.

O cara ficou nervoso, quase chamou a polícia, mas depois a gente explicou, ele se arrependeu e acabou até deixando a filha sair comigo.

Eu e a Carla estamos namorando. Juro.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Cláudia Dimer (O Segredo)


Artur Azevedo (O Liberato)

Comédia

Oferecida ao Excelentíssimo Senhor Doutor Joaquim Nabuco

Representada pela primeira vez no Teatro Lucinda do Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1881.


 PERSONAGENS

 GONÇALO
 DOUTOR LOPES
 RAMIRO
 MOREIRA
 DONA PERPÉTUA
 ROSINHA

 A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, em 1880.

O teatro representa uma sala. Duas janelas ao fundo, duas portas de cada lado, quatro cadeiras e uma poltrona, consolos.

Cena I

Rosinha, debruçada a uma das janelas; Dona Perpétua, entrando da esquerda, primeiro plano; logo depois Gonçalo, da direita, segundo plano.

  DONA PERPÉTUA (Entrando de muito mau humor, com um vergalho na mão.) - Ora valha-me Deus! Não me faltava mais nada!...

 ROSINHA e GONÇALO (Descendo ao proscênio.) - O que foi?

 DONA PERPÉTUA - O diabo do negro - Deus me perdoe! - agora é que se lembrou de cair doente! Como até estas horas não saía do quarto, fui buscá-lo preparada com este vergalho, e encontrei-o ardendo em febre. Desavergonhado!

 GONÇALO (Timidamente.) - O Liberato?

 DONA PERPÉTUA - O Liberato, sim senhor Pois quem havia de ser? É surdo? Que inferno! Esta só a mim acontece!

 ROSINHA - É coisa de cuidado?

 DONA PERPÉTUA - Um negro nunca tem coisa de cuidado! E este diabo, se não fosse valer uns oitocentos mil réis...

 GONÇALO - Vou chamar o médico?

 DONA PERPÉTUA - Vá, homem de Deus, vá! Mexa-se, com todos os demônios! Parece estar a dormir!

 GONÇALO (Vai buscar o seu chapéu sobre o consolo que deve estar entre as duas janelas, e dirige-se para a esquerda, segundo plano. A Rosinha, que se dirige à porta da esquerda, primeiro plano.) - Onde vai?

 ROSINHA (Naturalmente.) - Vou ver o Liberato;

 DONA PERPÉTUA (Com autoridade.) Fique! (Rosinha volta e vai para a janela.) Por causa destas e de outras confianças, é que o demônio do negro...

 GONÇALO (Quase a sair, parando.) - Adoeceu?

 DONA PERPÉTUA - Cale-se. (Gonçalo desaparece) Agora vá lá ficar o dia inteiro, como é seu costume! Que marido! (Sai pela direita, segundo plano.)

 Cena II

Rosinha, só

[ROSINHA] (À janela. Ouvindo dar horas tem um gesto de impaciência e desce ao proscênio.) - Duas horas, e primo Ramiro nada de aparecer! A que será devida esta demora? É o primeiro domingo em que não aparece logo depois do meio dia! Estará doente? (Aplicando o ouvido.) Parece que sobem a escada... Deve ser ele... É ele, é, não me engano... (Aparece Moreira da esquerda, segundo plano.- Vendo-o, despeitada.) - Ora!

Cena III

Rosinha, Moreira

 MOREIRA (Entrando.) - Licença para um. (Dirigindo-se a Rosinha, com muita amabilidade.) Como tem passado, Dona Rosinha? Tem passado bem?

 ROSINHA (Secamente.) - Bem, obrigada.

 MOREIRA (Sentando-se na poltrona. Tem deixado o seu chapéu sobre o consolo que estará entre as duas portas da esquerda.) - Eu vou indo conforme Deus é servido. (Tomando uma pitada de tabaco, movimento este que repete quatro ou cinco vezes durante a peça.) Mamãe está boa?

 ROSINHA - Boa, obrigada. (Vai à janela, a ver se chega o primo.)

 MOREIRA - Não lhe pergunto por papai, porque o encontrei ali na esquina. Disse-me que ia chamar o médico para ver o negro, que caiu doente. Isto de negros, põem-se finos com duas lambadas. Lá na fazenda,
tenho o Doutor Bacalhau que faz milagres!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - O senhor viu por aí primo Ramiro?

 MOREIRA (Muito sério.) - Vi, minha senhora, e também vi seu tio!

 ROSINHA (Interessada.) - Onde?

 MOREIRA - Na tal conferência!

 ROSINHA - Que conferência?

 MOREIRA - Pois não sabe que se trama entre nós uma grande conspiração contra a propriedade particular?

 ROSINHA - Uma grande conspiração?

 MOREIRA - Que meia dúzia de rapazolas inconseqüentes, que nada tem que perder, que não possui um moleque ou uma negrinha para remédio, arvorou-se em defender a emancipação dos escravos, empunhando o facho da discórdia, e anda a proclamar urbi et orbi - pelos botequins, pelas gazetas e até pelos teatros - a dilapidação da fortuna particular?!

 ROSINHA - Deveras?

 MOREIRA - Em outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, isto seria uma quadrilha de ladrões; aqui chama-se a isto o Partido Abolicionista! (Erguendo-se percorrendo a cena, de muito mau humor.) Pois não! Uma gente sem eira nem beira, nem ramo de figueira: uns pobres diabos, carregados de esteiras velhas, que se ralam de inveja, quando vêm um cidadão prestante como eu, que possuo cinqüenta escravos, ganhos com o suor do meu rosto! (Surpreendendo um sorriso de Rosinha.) Sim, senhora: ganhei-os com o suor do meu rosto, a trabalhar, (Gesto como se tirasse suor da testa com o polegar.) e não a dizer baboseiras no teatro...

 ROSINHA - E foi no teatro que se encontrou com primo Ramiro?

 MOREIRA - No teatro, sim, senhora: agora há comédias também de dia. E seu primo dava palmas e gritava: — Bravo! - àquela caterva de desmiolados que desejam a ruína do país!

 ROSINHA - Oh!

 MOREIRA - Do país, sim, que depositou na grande lavoura as suas esperanças. — E seu tio, o Doutor Lopes, um homem formado, que deve ter juízo, nem sequer repreendia o filho!

 ROSINHA - Modere-se, Senhor Moreira!

 MOREIRA (Esbravejando.) - A ruína do país ainda não é nada!... Mas o aniquilamento da riqueza particular? E o meu dinheiro?

 ROSINHA - Vejo que o senhor é um patriota...

 MOREIRA - Patriotismo é isto (Bate no ventre.) e isto. (Sinal de dinheiro.) Já não bastava a famosa lei de 28 de setembro, que me obriga a educar moleques que não são meus filhos, e que, se são meus filhos, não são meus escravos! Canalha! (Muito exaltado, e ameaçando, com os punhos cerrados, a porta da rua.) Canalhas!

 ROSINHA - Modere-se.

 MOREIRA - Tem razão; o melhor é não dar-lhes importância. (Põe-se de novo a passear pela sala, proferindo frases entrecortadas. Acalma-se pouco a pouco. Rosinha, durante este passeio, vai de novo à janela ver se chega o primo, e volta. Pausa.)

 ROSINHA - Com que então, o senhor tem cinqüenta escravos, hein?

 MOREIRA (Muito amável, pegando-lhe na mão.) - Cinqüenta escravos que serão seus no dia em que consentir que eu peça a seus pais esta mãozinha.

 ROSINHA (Admirada.) - Que a peça? Mas... para quem?

 MOREIRA - Para mim mesmo; pois para quem há de ser?

 ROSINHA (Retirando-lhe a mão, sorrindo.) - Neste caso, desconfio, meu caro senhor, que os seus escravos nunca serão meus.

 MOREIRA (Desabridamente.) - Veremos.

 ROSINHA - Hein?

 MOREIRA - Pois não é tão bom possuir cinqüenta escravos? Cinqüenta e um, porque eu serei o mais humilde, o mais cativo de todos os seus cativos.

 ROSINHA - Se julga que os meus pais disponham de mim com a mesma facilidade com que o senhor pode dispor de seus escravos...

 MOREIRA - Mas, Dona Rosinha...

 ROSINHA - O senhor bem sabe que meu coração já está dado, e vamos e venhamos - muito bem
dado.

 MOREIRA - Ora o seu coração! Sei que a namora o tal primo Ramiro; mas entre o namoro de um rapaz estabanado, que vai dar palmas a discursos de demagogos de meia tigela, e o amor calmo e refletido de um homem de senso prático, deputado provincial, proprietário agrícola e senhor de cinqüenta escravos, não me parece que haja hesitação possível!

 ROSINHA (À parte.) - É divertido!

 MOREIRA - E depois, nunca ouviu falar das desastrosas conseqüências de matrimônios entre parentes consangüíneos? Quer ter filhos idiotas?

 ROSINHA (Baixando os olhos.) - Senhor Moreira..

 MOREIRA - E eu... como não sou seu primo...

 ROSINHA - Não é meu primo... (Rindo-se.) mas podia ser meu avô...

 MOREIRA - Não exagere: eu tenho apenas cinqüenta anos.

 ROSINHA - Justamente o número de escravos. Nada: prefiro ter filhos idiotas a ter um marido velho. Demais, Deus é bom e misericordioso: não há de permitir que eu seja mãe de idiotas.

 MOREIRA - Se tiver filhos perfeitos, onde irá buscar meios para educá-los? Seu primo é um simples praticante de secretaria...

 ROSINHA - Amanuense, aliás.

 MOREIRA - Ou isso. Eu tenho talvez o dobro da idade dele, não nego; mas gozo de uma posição social definida. Tenho influência política... Não sou amanuense. Ser lavrador é tudo...

 ROSINHA (Atalhando.) -... neste país essencialmente agrícola, já sei... Vou prevenir mamãe de sua visita... (Vai a sair pela direita, segundo plano, e volta-se.) Diga-me cá, Senhor Moreira: seus pais eram
primos? Ah! Ah! Ah!... (Sai)

Cena IV

Moreira, só

[MOREIRA] - Ri-te, ri-te, minha sirigaita. Eu cá farei a cama a teu primo, que é o único obstáculo que se levanta entre nós. Era o que me faltava ver! Ser vencido por amanuense, eu, que sou senhor de trinta escravos...sim, porque, cá entre nós, só tenho trinta escravos. — Ao pai já falei... Mas o Gonçalo nada resolve por si... Felizmente a velha não morre de amores pelo tal priminho... Hei de falar-lhe hoje mesmo... (Depois de uma pequena pausa.) Ah, Major Gaudêncio! Major Gaudêncio! você é que é a causa destas declarações inoportunas de um amor que não sinto. — O caso é este; o Major Gaudêncio, o padrinho desta pequena, é um velho octogenário, que quebrou relações com o compadre por via das impertinências da comadre, e retirou-se para Maricá. Ora, aqui há coisa de mês e meio, o Major Gaudêncio disse-me em confiança que fizera o seu
testamento e, não tendo parentes, instituíra a afilhada herdeira universal de todos os seus bens, que hão de orçar por trinta ou quarenta contos. — Estou, por conseguinte, empregando meios e modos para apanhar esta sorte grande... O diabo é que isto de primos...

Cena V

Moreira, Rosinha, depois Gonçalo

ROSINHA (Da direita, segundo plano.) - Mamãe pede-lhe que faça o favor de ir ter com ela; espera-o na sala de jantar.

 MOREIRA - Lá vou. (Vai saindo pela direita, segundo plano, e para.) Reflita bem: com seu primo, a miséria dos amanuenses; comigo, uma bela fazenda de café, cinqüenta escravos, meia dúzia de apólices de conto de réis e, quando quiser, um título de baronesa. (Sai.)

 ROSINHA (Só.) - Nem todo o ouro da terra, nem todos os títulos do mundo me fazem esquecer do meu Ramiro. (Aplicando o ouvido.) Sobem a escada... Oh! desta vez não pode deixar de ser ele! (Vendo entrar o pai da esquerda, segundo plano, despeitada.) Ora!

 GONÇALO - Já chamei o médico. Onde está mamãe?

 ROSINHA - Lá dentro, na sala de jantar. (Gonçalo vai saindo.) Está lá também o Senhor Moreira.

 GONÇALO (Parando.) - Ah, está lá o Moreira? (Coçando a cabeça.) Este Moreira... (Resolutamente, depois de uma pequena pausa.) Olha, minha filha, tu sabes como é tua mãe... Se ela quiser, não queiras!

 ROSINHA - O quê?

 GONÇALO - Não queiras senão teu primo. Bate-lhe o pé! Se eu estiver do lado da tua mãe, não faças caso: bate-me o pé também a mim...

 ROSINHA - Mas...

 GONÇALO - Aí vem teu primo. Amem-se à vontade. (Sai.)

 ROSINHA - Ele! Finalmente!... (Corre ao encontro de Ramiro, que entra como um raio, pela esquerda, segundo plano, e conserva o chapéu na cabeça.)

Cena VI

Rosinha, Ramiro

RAMIRO - Prima!

 ROSINHA - Por que não vieste há mais tempo?

 RAMIRO - Hoje quase morri!

 ROSINHA - Credo!

 RAMIRO - De entusiasmo!

 ROSINHA - Respiro.

 RAMIRO - Que talentos! que idéias! que eloqüência! que mocidade!

 ROSINHA - Nunca te vi assim!

 RAMIRO - Pudera! Se eu nasci hoje! Até agora, tu, só tu enchias o meu coração; doravante tens uma rival: a liberdade! É que nunca me lembrei de que um milhão e meio de homens amargam neste país a sorte mais bárbara, o mais horrível destino! (Passando.) Oh! viva a liberdade, formosa deusa que ilumina o mundo!

 ROSINHA - Que entusiasmo! Não me faças tu ter ciúme da liberdade!

 RAMIRO - Onde está teu pai!

 ROSINHA - Está lá dentro, mas dize-me...

 RAMIRO - Onde está tua mãe?

 ROSINHA - Lá dentro. Mas... o que tens tu?

 RAMIRO - E o Liberato?

 ROSINHA - Está doente.

 RAMIRO - Vai chamar teu pai, vai chamar tua mãe, vai chamar o Liberato!

 ROSINHA - Mas se te acabo de dizer que o Liberato está doente?

 RAMIRO (Com piedade.) - Doente! doente!... (Outro tom.) Quero aqui reunido um conselho de família!

 ROSINHA - Um conselho de família! Mas o que será, meu Deus!

 RAMIRO - Vai, Rosinha, vai... Trago no coração um peso enorme! Meu pai não pode tardar aí. A sua presença também é indispensável.

 ROSINHA - Mas como estás hoje! Tira o chapéu, dá cá a bengala. (Ramiro obedece. Triste.) Nem sequer me perguntaste como passei.

 RAMIRO (Tomando-lhe as mãos.) - Perdoa, Rosinha, perdoa. Amo-te muito, muito, muito! És um anjo, e eu só me considerarei digno de ti, depois deste conselho de família! - vai chamar teus pais.

 ROSINHA - Vou já. (Sai pela direita, segundo plano, depois de ter posto a um canto a bengala e o chapéu do primo. Ramiro vai ao encontro de Lopes, que entra da esquerda, segundo plano.)

Cena VII

Ramiro, Doutor Lopes

 RAMIRO - Ah, meu pai! Chega em boa ocasião! Mas por que não veio comigo?

 LOPES - Tinha que ir à casa consultar a lei e arranjar os quinhentos mil réis. (Batendo na cabeça.) Cá está a lei (Batendo na algibeira do peito.) e cá está o dinheiro.

 RAMIRO - Compreendo: o pecúlio do escravo.

 LOPES - Já lhes falaste?

 RAMIRO - Ainda não. Convoquei-os a um conselho de família, aqui na sala.

 LOPES - Entusiasmou-me o teu entusiasmo, e a tua humanitária lembrança me encheu de orgulho de ser teu pai. És o homem que eu sonhava, quando te acalentava ao colo. No período abolicionista que atravessamos, ser escravagista já não é mau nem absurdo: é ser ridículo.

 RAMIRO (Olhando para a porta da direita, segundo plano.) Eles aí vem... Eles e... e o Moreira, se não me engano.

 LOPES - O Moreira? Má notícia.

Cena VIII

Ramiro, Lopes, Rosinha, Dona Perpétua, Moreira, Gonçalo

DONA PERPÉTUA (Com impertinente volubilidade, enquanto Rosinha toma a benção a Lopes, e Gonçalo e Moreira, cumprimentam Lopes e Ramiro.) - Viva lá, senhor meu sobrinho! Então Vossa Excelência não se quis dar ao trabalho de entrar? Se nos queria falar, por que não foi lá ter, senhor fidalgo? Quem tem a dor de dentes é que vai ao barbeiro. Tão longe era de cá lá como de lá cá! (Vendo o Doutor Lopes) Olé! também aí está, senhor meu mano? Viva! Como vai de saúde o senhor advogado? Há de fazer o favor de me explicar que farsa é esta de conselho de família, que a Rosinha não soube dizer. Estamos todos reunidos. Diga lá o que pretende, senhor meu sobrinho das dúzias!

 LOPES (À parte.) - É uma máquina Marinoni a falar!

 MOREIRA - Perdão, mas ao que parece, sou aqui demais.

 LOPES (Com desembaraço.) - Na realidade, uma vez que se trata de um conselho de família...

 RAMIRO (Idem) - E não pertencendo o senhor Moreira à família...

 LOPES (Idem) - Que nos conste...

 DONA PERPÉTUA - Não pertence à família, mas... quem sabe? O mundo dá tantas voltas...

 MOREIRA - Isso é verdade, minha senhora: as voltas que o mundo dá! (Indo buscar o seu chapéu à esquerda.)

 DONA PERPÉTUA - Fique. (Toma-lhe o chapéu, e coloca-o onde estava.) O Senhor Moreira é pessoa de nossa amizade; pode assistir ao conselho; pode mesmo tomar parte dele.

 MOREIRA - Nesse caso, peço licença para representar aqui o Major Gaudêncio, que é um quase parente.

 DONA PERPÉTUA - Bem lembrado: representa o compadre Gaudêncio. (Moreira senta-se.)

 LOPES - A falar no Major Gaudêncio. Aqui tem, mano Gonçalo, uma carta de Maricá... Entregou-ma o carteiro, no corredor, quando eu subia.

 DONA PERPÉTUA (Tomando a carta que ia ser entregue ao marido.) - Dê cá. Nesta casa sou eu que abro as cartas. Lerei logo mais, não tenho aqui meus óculos. (Fica com a carta fechada na mão.)

 MOREIRA (Passando perto de Rosinha.) - Este mundo dá tantas voltas!

 RAMIRO (Que observou.) - O que lhe diria ele?

 LOPES - Bem, sentemo-nos. (Colocando a poltrona no centro da cena.) Este é o ligar de honra; deve ficar aqui o dono da casa, para presidir o conselho.

 DONA PERPÉTUA (Sentando-se na poltrona.) O dono da casa sou eu.

 LOPES - Perdão, mana, mas a casa é de Gonçalo.

 DONA PERPÉTUA (Repoltreada.) - Por isso mesmo.

 LOPES - A... mana manda mais que o galo.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se de um salto.) - Observo-lhe, senhor meu mano, que eu não sou galinha.

 LOPES - Bem! Não val’zangar-se. (Colocando duas cadeiras de cada lado da poltrona.) Senta-te aqui Ramiro. (Fá-lo sentar-se na primeira cadeira a começar da esquerda.) Rosinha, tu aqui. (Na segunda.) O Senhor Moreira ali. (Na quarta.) e eu aqui. (Na terceira. - Estão todos sentados na seguinte ordem, a começar da esquerda: Ramiro, Rosinha, Dona Perpétua, Lopes, Moreira.)

 GONÇALO (De pé.) - E eu?

 DONA PERPÉTUA - Fica onde quiseres. Enquanto deliberamos, vai lá dentro, pega numa agulha e cose. (Gonçalo procura com a vista uma cadeira, e, não a encontrando, vai debruçar-se na sacada ao fundo, ficando de frente para a cena.)

 DONA PERPÉTUA - Está aberto o conselho de família.

 RAMIRO (Erguendo-se.) - Tomo a palavra. Reuni-os para comunicar-lhes uma idéia grandiosa que há duas horas me anda dançando no cérebro.

 LOPES (A uma cara de Dona Perpétua.) - Não se assuste com essa coreografia, mana.

 RAMIRO - Nós possuímos um escravo.

 DONA PERPÉTUA - Um só, infelizmente. Meu pai, teu tio, morreu sem testamento.

 LOPES - Ab intestato.

 DONA PERPÉTUA - Deixou por única herança um escravo. (Lopes ergue-se. Ramiro senta-se.)

 LOPES - Não houve composição entre os herdeiros: o escravo não foi à praça... Como o negro, apesar de ser coisa, não era coisa que se dividisse, sim, porque afinal de contas, eu não podia ficar com a cabeça, ali a mana com uma perna, etc., resolvemos fazer o que em direito se chama uma partilha amigável. O escravo veio prestar serviços à mana, sem deixar, ipso facto de nos pertencer a todos. (Senta-se. Ramiro levanta-se.)

 RAMIRO - Muito bem. Este pobre Liberato, que assim se chama o escravo...

 LOPES - Paradoxo batismal;

 RAMIRO - Esse pobre Liberato há vinte anos que nos presta muito bons serviços.

 DONA PERPÉTUA (Erguendo-se.) Muito bons serviços? Ora, sou sua criada, senhor meu sobrinho! Muito bons serviços! Um desavergonhado! Um preguiçoso! Um beberrão!

 RAMIRO (Com violência.) - Desavergonhado! E quer que tenha vergonha um miserável escravo!

 LOPES (Idem.) - Preguiçoso! E quer que seja ativo quem nunca viu a recompensa do seu trabalho!

 RAMIRO (Idem.) - Beberrão! Nunca se constou que o Liberato bebesse! (Todos se erguem e falam ao mesmo tempo. Gonçalo desce ao proscênio. Confusão geral.)

 RAMIRO - É uma injustiça! Sugar-lhe o sangue durante vinte anos, e, ao cabo, tratá-lo desta sorte!
Isto brada aos céus!

 LOPES - Com isto já contava eu! E então quando a mana souber da idéia do Ramiro! O melhor é tratar já do depósito!

 DONA PERPÉTUA - É um preguiçoso, um beberrão, repito! Não presta para nada! Não me tem dado senão desgostos o maldito do negro!

 ROSINHA - Mas, meu Deus! o que é isto? Fale cada um por sua vez! Assim não se podem entender! Silêncio!

 MOREIRA - E então! Estamos na Assembléia Provincial? Entendam-se!

 GONÇALO - Isto parece mais a Praia do Peixe! Silêncio! Olhem os vizinhos!

 RAMIRO (Conseguindo falar mais alto que os outros, que se calam.) - Há dez anos, em 1870, penetrou um ladrão nesta casa. A senhora, minha tia, viu-o e deu um grito! O ladrão avançou, e matá-la-ia com um punhal, se o Liberato, interpondo-se, não o tivesse subjugado.

 LOPES - A mana deve a vida a esse desavergonhado, a esse beberrão!

 DONA PERPÉTUA - Grande coisa! Pois se o diabo tinha visto o ladrão, e se me ouvira gritar, não fez mais que o seu dever, que era salvar sua senhora!

 RAMIRO - Em que código está prescrito este dever?

 DONA PERPÉTUA - E sabe Deus se o negro não se achava ali com as mesmas intenções do ladrão...

 RAMIRO - Oh!...

 DONA PERPÉTUA - Os negros são capazes de tudo!

 LOPES - Você, mana, é um Clube da Lavoura... de saias...

 DONA PERPÉTUA - E você é um malcriado!

 RAMIRO - Bem, já vejo que perco o meu latim! A minha proposta está prejudicada.

 DONA PERPÉTUA - Mas o que nos queria propor este espirra-canivetes?

 RAMIRO - O quê? Ouça, mas não desmaie!

 LOPES - Tens razão. São necessárias certas precauções. Espera. (Batendo nas mãos.) Um... dois... e..

 RAMIRO - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA (Saltando.) - O quê?...

 RAMIRO e LOPES - A liberdade do Liberato.

 DONA PERPÉTUA - Isso nem resposta tem. Sabem que mais? Não sejam tolos, seus pedaços d’asnos! (Falam todos a um tempo. Confusão geral.)

 DONA PERPÉTUA - Era o que me faltava! Alforriar o Liberato! mas por que cargas d’água, seus idiotas?

 ROSINHA - Mas que palavras são essas, mamãe? Veja que está aqui o Senhor Moreira.

 RAMIRO e LOPES - O que queremos é justo, justíssimo! Um pobre diabo que trabalha de graça há vinte anos, e não nos custou um real!

 MOREIRA (Caindo na poltrona, às gargalhadas.) - Ah! Ah! Ah!... Só esta agora me faria rir! Ora estes abolicionistas que querem abolir o que não é seu! Ah! Ah! Ah!

 GONÇALO (À parte.) - Eles não arranjam nada como Dona Perpétua. Oh! com quem se vieram meter! Logo com ela! Boas!...

 LOPES (Dominando com sua voz as demais.) - Bem, agora falo eu! A mana quer receber em dinheiro a parte que lhe toca e a sua mulher... Oh! quero dizer: a seu marido? (Moreira ergue-se.)

 DONA PERPÉTUA (Encarando-o com desdém e encolhendo os ombros.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos, para ler esta carta. (Sai pela direita, segundo plano, abrindo a carta. Rosinha vai para a janela.)

 LOPES (A Gonçalo.) - O que diz você, mano Gonçalo?

 GONÇALO (Coçando a cabeça.) - Eu?... Eu?.... Olhe, eu vou ver o Liberato... O médico ainda não veio e... (Sai pela esquerda, primeiro plano.)

 LOPES (A Ramiro, enquanto Moreira vai conversar com Rosinha, à janela.) - Esta casa é hoje a imagem perfeita do país em que vivemos. Cada instituição tem hoje aqui o seu emblema. Nós somos os filantropos: a utopia, o direito; aquele fazendeiro pedante, a lavoura, uma força; a mana e a Rosinha, a representação nacional: imposição, sofisma, sujeição; Gonçalo, o povo, indiferença e pusilanimidade.

 RAMIRO - E lá está o pobre Liberato, para simbolizar a escravatura.

 LOPES (Indo gritar à porta, por onde saiu Dona Perpétua.) - Ah! é assim que nos trata a mana? Pois é uma questão de capricho! Daqui a uma hora o Liberato está livre! (Descendo ao proscênio.) Toma!

 DONA PERPÉTUA (Voltando, com a carta aberta na mão.) - Hein? Como é lá isso? (A Moreira, que desce ao proscênio.) Nem me deram tempo de procurar os óculos!

 LOPES - É isso mesmo! Lei número 2040 de 28 de setembro de 1871. Artigo quarto, parágrafo primeiro. pecúlio do escravo. Quinhentos mil réis! Não lhe digo mais nada! (A Ramiro.) Vamos, meu filho, vamos buscar a guia ao juízo de órfãos, para fazer o depósito no Tesouro.

 RAMIRO - Vamos! (Tomam os chapéus, e saem, arrebatadamente, pela esquerda, segundo plano.)

 Cena IX

 Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, à janela

 DONA PERPÉTUA (Atônita, de braços cruzados, depois de uma pausa.) - O que me diz a isto, Senhor Moreira?

 MOREIRA (Muito calmo.) - Digo, Senhora Dona Perpétua, que nunca vi coisa que me surpreendesse tanto! É o resultado das tais conferências abolicionistas! Só servem para semear a discórdia no seio das famílias! Mas que o Senhor Ramiro tenhas estas idéias, vá; até certo ponto merece desculpa... Mas seu irmão, minha senhora, o Senhor Doutor Lopes, um homem que me parecia tão bom, propor a alforria de um negro! Estou perplexo. Ter um negro, um só, e pretender libertá-lo! Eu cá, tenho sessenta e não liberto nem meio!

(Aproximando-se muito dela e baixinho.) E é ao Senhor Ramiro que vão dar a mão daquele anjo? (Aponta para Rosinha, que se tem conservado na janela.) Ao Senhor Ramiro?! Mas pelo amor de Deus, Senhora Dona Perpétua! o procedimento de seu sobrinho autoriza-me a reiterar o pedido que formalmente lhe fiz ainda há pouco, lá na sala de jantar.

 DONA PERPÉTUA (Muito alto.) - É sua a mão de minha filha, Senhor Moreira. (Rosinha volta-se subitamente e desce ao proscênio.) Não há mais que discutir. (Com autoridade, a Rosinha.) Está ouvindo, menina? O Senhor Moreira vai ser teu marido.

 ROSINHA (Naturalmente) - Isso não é comigo, mamãe. (Gesto de satisfação de Moreira.)

 DONA PERPÉTUA - Bem sei, é comigo.

 ROSINHA - Também não é com vossemecê.

 DONA PERPÉTUA - Queres dizer que é com teu pai. Neste casa só se faz o que eu quero.

 ROSINHA - Não duvido, mas eu não pretendo casar nesta casa e sim na igreja.

 DONA PERPÉTUA - Menina!

 MOREIRA (A Rosinha.) - Mas, minha senhora, se isto não é com a senhora, nem com seu pai, nem com sua mãe, com quem é então?

 ROSINHA - É com primo Ramiro.

 DONA PERPÉTUA e MOREIRA - Hein?

 ROSINHA - Certamente. Eu dei o meu coração a primo Ramiro. Para dá-lo a outro homem, é preciso que ele mo restitua.

 DONA PERPÉTUA - Pois tem o descoco de falar desse modo em presença de tua mãe?

 ROSINHA - Quero a minha liberdade. Parece-me que não sou o Liberato! (Vai de mau modo para a janela.)

 DONA PERPÉTUA - Não é o Liberato! Senhor Moreira, segure-me, senão, deito-me a perder.

 MOREIRA (Segurando-a.) - Minha rica senhora, o mundo está perdido. A liberdade anda agora como Salsaparrilha de Bristol.

 DONA PERPÉTUA - Uma menina educada no colégio da Baronesa de Geslin!

 MOREIRA (Segurando-a sempre.) - Já ouvi dizer que é o melhor colégio da corte!

 ROSINHA (Voltando da janela.) - Primo Ramiro aí vem, Senhor Moreira. Peça-lhe que ceda o meu coração. Ofereça luvas. (Vai encostar-se a um consolo da direita.)

Cena X

Dona Perpétua, Moreira, Rosinha, Doutor Lopes, Ramiro

LOPES (Entrando com Ramiro pela esquerda.) - Sai, num estado de tal excitação que me não lembrei de que hoje é domingo e o juízo de órfãos não funciona.

 MOREIRA (Sorrindo.) - Mesmos nos dias úteis, a estas horas já deve estar encerrada a audiência.

 RAMIRO - Vimos ainda uma vez propor-lhes uma conciliação. Recebam os quinhentos mil réis.

 DONA PERPÉTUA (Vai como responder, mas arrepende-se.) - Vou lá dentro buscar os meus óculos para ler esta carta. (Saindo.)

 LOPES - A mesma impertinência de ainda agora.

 MOREIRA - Não é preciso incomodar-se, Senhora Dona Perpétua: se me der licença, eu leio a carta.

 DONA PERPÉTUA - Por favor. (Passa-lhe a carta e Ramiro vai ter com Rosinha.)

 LOPES (Passeando pela sala, à parte.) - Nunca vi homem mais metediço.

 MOREIRA (Depois de ler a assinatura.) - A carta vem de Maricá, mas não é do Major Gaudêncio.

 DONA PERPÉTUA - De quem é então?

 MOREIRA - É do vigário da freguesia. (À parte.) O que será?

 DONA PERPÉTUA - Ah! o vigário é conhecido velho de meu marido. Leia.

 MOREIRA (Lendo.)- “Amigo e Senhor Gonçalo. Vou ter o pesar e ao mesmo tempo o prazer de dar a Vossa Senhoria duas notícias, uma boa e outra má.” (Aproximam-se todos com curiosidade. Grupo.) “Deus foi servido chamar à Sua presença o Senhor Major Gaudêncio”. E esta!

 DONA PERPÉTUA - Pois morreu o compadre?!

 TODOS (Consternados.) - Ah!

 MOREIRA (Continuando a leitura.) - “Abri hoje mesmo o seu testamento. Deixou tudo quanto possui à sua afilhada Dona Rosa, filha de Vossa Senhoria. Os escravos, porém, ficaram livres.”

 ROSINHA - E se o não ficassem, eu libertá-los-ia.

 RAMIRO - Muito bem, Rosinha!

 DONA PERPÉTUA - Era o que havíamos de ver! - Continue, Senhor Moreira.

 MOREIRA (Que tem lido para si o resto da carta, disfarça, fecha-a e entrega-a a Dona Perpétua.) - É só.

 LOPES (Que se acha ao lado do Moreira, e tem também lido.) - Perdão, mas o senhor não leu tudo.

(Toma a carta e abre-a.)

 MOREIRA - Ah! É verdade! Esquecia-me que tenho de jantar com um amigo político à Rua de São Clemente. Minhas senhoras e senhores, passem bem! (Toma o chapéu e sai.)

 ROSINHA - Na verdade, o Senhor Moreira era aqui demais: morreu meu padrinho, já não tinha a quem representar.

 LOPES (Que tem aberto a carta, lendo.) - “O testador impôs apenas uma condição: Dona Rosa só poderá aceitar a herança, casando com seu primo, o Senhor Ramiro Lopes.!

 RAMIRO e ROSINHA - Ah! (Corre um para o outro.)

 RAMIRO - Minha tia, agora não peço: exijo a liberdade do Liberato. A felicidade de sua filha está nas minhas mãos,

 Cena XI

 Dona Perpétua, Rosinha, Ramiro, Doutor Lopes e Gonçalo

GONÇALO (Entrando, fora de si.) - Sabem?... Sabem?... O Liberato...

 TODOS - O que tem?!

 GONÇALO - Morreu!

 TODOS - Morreu?!

 GONÇALO - De repente. Quando entrei no quarto, exalava o último suspiro.

 DONA PERPÉTUA (Desabridamente, depois da muda estupefação geral.) - E eu, que recusei os quinhentos mil réis!...

 LOPES - Com esse dinheiro far-lhe-emos um enterro decente. (A Ramiro.) Disseste que o Liberato simbolizava a escravatura; vês? Decididamente a morte é o único meio eficaz de emancipação.

[Cai o pano]

FIM

Adonias Filho (O Largo da Palma) 5. O Enforcado

 Embasamento histórico: Revolução dos Alfaiates (1798).

Foco narrativo - Narrativa em 3ª pessoa, mas enquadrada à ótica de um personagem: o ceguinho da Palma.

 Presente narrativo: “dia dos enforcados” – “quatro homens, um quase menino, todos mulatos”: A “execução, um espetáculo exemplar”.

Personagens - Ceguinho da Palma e Valentim.

Crítica sócio-histórica - “o governo e os graúdos”, a opressão, o terror, o medo, a insegurança.

Ambiente - Largo da Palma, Piedade.

Linguagem - Uso dos mesmos recursos expressivos que se fazem presentes nas outras novelas: metáforas, comparações, frases nominais, enumerações etc.

 Inversão (explorando o valor expressivo do adjetivo): Inúmeros os que passavam por ele, todos apressados, alguns como que corriam.” “E porque grande era o silêncio e ouviu o barulho dos grilhões de ferro, soube que se arrastavam os que caminhavam para a morte.”

Linguagem coloquial - Adequada ao personagem central (o ceguinho), encontramos expressões e palavras de linguagem coloquial. Palavras como: “birosca”, “porrete”, “estrebuchavam”. Expressões como “quero um gole da melhor” “engolir a aguardente” “boa pinga!” “é de arrebentar o coração” “exemplo de merda”; e o uso do pronome sujeito como complemento verbal: “Que a Senhora da Palma ajude eles”.

RESUMO

O ceguinho da Palma, como todos os chamavam, era um home que de tão magro e pequeno era quase um anão. Morava em umas estrebarias abandonadas junto com índios, negros libertos, ladrões e mendigos. Nas noites quentes dormia pela rua mesmo, mas quando chovia abrigava-se dentro da igreja. Estava sempre ali no Largo da Palma a pedir esmolas.

Diziam que ele havia ficado cego por ter falado mal da Santa da Palma e agora estava ali cumprindo castigo há anos, certo de que um dia a Santa o perdoaria e ele voltaria a enxergar. Talvez isso fosse mesmo verdade, já que ele se salvava de todas as pestes, tais como tifo e a varíola, que assombravam a Bahia às vezes, como se a Santa o quisesse vivo para pagar a penitência.

Em um certo dia, quando João-o-Manco, vigia da região, veio acordá-lo logo cedo, disse que aquele seria o dia em que iriam enforcar uns condenados no Campo da Piedade. A missa daquele dia tinha apenas umas dez pessoas, e ninguém negou esmola ao ceguinho como se todos temessem alguma coisa. O ceguinho da Palma sentia uma dor no coração, não de sua tristeza, mas de uma tristeza que nascia da cidade a esperar as mortes.

O ceguinho da Palma juntou-se ao povo que caminhava em direção ao Campo da Piedade. Parecia que naquele dia a Bahia havia parado para acompanhar os enforcamentos. Perto do Convento das Freiras, ele parou na birosca do Valentim e pediu uma bebida. Valentim era um filho de escrava liberta e pai desconhecido, que havia conseguido juntar dinheiro sabe-se lá como e comprado casa, terreno e montado essa bodega. Apesar das muitas especulações que haviam em torno dele, o certo é que Valentim tinha amigos na cidade de Salvador inteira.

Então os dois seguiram juntos rumo ao Campo da Piedade para acompanhar os enforcamentos. Para o cego a cidade parecia triste, mas para Valentim a Bahia nunca fora alegre, pois uma cidade que tem escravos não pode ser alegre. Aqueles enforcamentos serviriam para que o povo aprendesse a lição, pois D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, poderia perdoar ladrões e assassinos, mas não os inimigos do Rei.

Já se encontravam no Campo da Piedade, frente à grande forca de madeira da lei, grande o suficiente para que nem mesmo um anão deixasse de ver o espetáculo. E assim, os condenados foram chegando e sendo enforcados rapidamente um a um: Manuel foi o primeiro, depois Lucas, Luís e, por fim, João.

O ceguinho da Palma não sabe que fim levou Valentim perdido no meio da multidão. Foi retornando devagar, passo a passo em direção ao Largo da Palma, que reconheceu com os pés descalços ao pisar nas pedras ásperas e a grama macia. Sentiu o cheiro do incenso e imaginou que naquele momento já estariam a cortar as cabeças e mãos dos enforcados para deixar em exposição no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio. Então o ceguinho ajoelhou-se com as mãos na porta da igreja e essa foi a única vez em toda a vida que agradeceu à Santa da Palma por ter ficado cego.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_largo_da_palma
http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/largo-palma-resumo-obra-adonias-filho-701985.shtml

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Amélia Luz (Crônica: Catatau)


Amélia é de Pirapetinga/MG
______________________


(Para Paulo Leminski)

A noite era pequena para os seus sonhos eletrizantes. Caía a madrugada e ele perdido entre letras e metáforas trabalhava no seu ofício com servidão. Às vezes ele parecia calmo, outras ele parecia agitado e inquieto no seu processo de criação. Gênio, não se cansava nunca! Dedilhava com entusiasmo e arte o velho violão, companheiro fiel da sua solidão de poeta.

A palavra era a sua lâmina sangrando veias de onde escorriam mananciais de versos conferidos de polêmicas vitórias.

Sua existência não foi vã, embora incompreensível, vazou a lápide no canto imortal, cristal transparente, além da tumba...

- “Catatau”, saia debaixo do braço do autor, chegue mais perto, chegue... Permita-nos entendê-lo na sua complexidade léxica! 

Peleja criativo o poeta no seu verso universal buliçoso e alvissareiro na “Metamorfose” da vida que o fez assim, célebre escritor!

Sinaleiro de uma geração sem rumo seguiu trafegando nas veredas da contramão, ditador de um tempo, persistente que era nas suas certezas...

Vestimos hoje o colorido alegre das suas idéias (in)questionáveis.

Somos uns bandos de inocentes galopando irreverentes em suas trilhas, multiplicadores das suas verdades, sucedâneos vigilantes da sua memória. 

Sem gravatas e honrosas pompas lambuzamos nossas mãos na matéria prima que para nós deixou argila fresca com a qual construímos silêncios, vozes e manifestos transbordados em copos de essências puras.

Embebedamos a nossa consciência numa eterna alvorada, “Sintonia para pressa e presságio”.

Dos seus lábios não há mudez de morte. Há um grito poderoso a ecoar levando-nos a velar sempre pela preciosa obra literária que herdamos das suas mãos de mestre.

“Paulo, tu és pedra” Paulo,
filosofal, literária ou poética,
“sobre ti edificaremos”
nosso castelo de sabedoria... 

Fonte:
A Autora

Trova Ecológica 87 - Wagner Marques Lopes (Pedro Leopoldo/MG)


Artur da Távola (Eu Canto a Mulher Sofrida )


Sofrida é mulher por quem a vida passou machucando uma sensibilidade menina, feita de dádiva, confiança no próximo, esperança de melhorar o mundo.

Sofrida é a mulher que não viveu em vão, na delicia burguesa de ser objeto de sexo, admiração fácil ou mimo, preferindo o caminho penoso da independência, a procura honrada da própria dimensão pessoal, existencial, política.

Sofrida não é a pessoa derrotada ou apenas sofrente, fonte de dores e masoquismo sem fim: sofrida é a pessoa que tem energia e nervos para enfrentar na carne todas as disposições e contradições necessárias a viver e a conquistar o direito à vida, à liberdade, à solidão, ao afeto dos seus.

Sofrida é a pessoa que olha ao seu lado a miséria social e humana e não fica impassível ou indiferente, apenas porque se supõe livre de idêntico perigo.

Sofrida é a mulher de uma geração que assistiu à castração de seu sonho político, embora o veja crescendo, melhorando e se transformando pelo mundo a fora.

Sofrida é a mulher que viveu varias décadas em cada uma das três ultimas. É a pessoa que soube incorporar ao seu viver todas as dores necessárias à libertação: dos preconceitos próprios e alheios; dos atrasos ancestrais; da dor de viver adiante no tempo; das agressões retrógradas; das maldades profissionais; do medo da sua mensagem renovadora.

Sofrida é a mulher que teve restrições na sua carreira, ameaças, invasões do seu espaço vital por causa das suas idéias; por causa da sua capacidade de viver com intensidade tudo aquilo em que estava crendo do fundo de sua sincera convicção.

Sofrida é a mulher que assistiu à queda de muitos, ao cansaço de outros, à morte de terceiros, à dor, à tortura, ao vicio, à desistência à loucura, à resistência,à tenacidade, ou a convicção de todos os que se insurgiram contra qualquer forma de agressão humana, de opressão ou de injustiça.

Sofrida é a mulher que aí está, cada vez melhor porque de costas erguidas a despeito de tudo o que viu. Sofreu e passou.

Sofrida é a mulher que não desistiu de Ser; que não se alienou; que não fugiu da dor; que se embelezou com as rugas conseguidas; que se purificou com as impurezas que em si descobriu; que mergulhou com igual coragem na própria miséria e na própria grandeza, saindo melhor de ambas. 

Fonte:
Artur da Távola – Cada um no meu lugar, 1980

Monteiro Lobato (Um Homem de Consciência)


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.

Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons 

- Agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...

João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

- É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. 

Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. 

Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.

- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

- Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

- Mas como? Agora que você está delegado?

- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.

E sumiu.

Olavo Bilac (A Montanha)

Soneto formatado em imagem obtida no facebook em Sonetos Célebres.