domingo, 17 de março de 2013

Guimarães Passos (Poesias Avulsas)

Libreria Fogola Pisa
AOS FELIZES

a Henrique Silva
Pensais que invento penas por meu gosto,
Que em meus versos afeto sofrimento?
Néscios? Lede nas linhas do meu rosto,
E com verdade me dizei se invento.

Ride felizes, ride que o desgosto
Nunca deixou de vir; em breve o alento
Que hoje tendes tê-lo-eis como o sol posto:
Longe e brilhando apenas um momento.

"Mas, me direis, como te enganas! Ama,
Ama, que perderás essa tristeza,
Terás ventura, terás glória, fama..."

E eu, por vingar-me, sufocando o ai!
Do coração ferido, com firmeza,
Por meu turno respondo-vos - amai!

CONSELHO

Dulce, não busques a felicidade,
Basta sonha-la, não procures tê-la,
Que, há no seu brilho tanta falsidade
Que, todos, vendo-a não conseguem vê-la.

Esquece a mágoa que te gera o pranto;
Volve os olhos ao céu donde desceste,
E, assim, feliz te sentirás, enquanto
Não volveres de novo ao que esqueceste.

Para que um´hora nos julguemos cheios,
Da ventura que tanto ambicionamos,
Basta sonhar e desprezar os meios
De converter em real o que sonhamos.

Quantas vezes de um lago azul e quieto
A lua brilha no tranquilo fundo;
Vais apanha-la e logo o lodo infecto
Tolda a agua toda e deixa o lago imundo.

Toda a poesia ao teu olhar se turva,
Tens asco e horror d´essa realidade...
Dulce, é assim sob a grandiosa curva
Do céu o aspecto da felicidade.

Sonha que a tens no coração fremente,
Fecha os ouvidos ao que o mundo diz:
Para seres feliz, basta somente
Que tenhas a ilusão de que és feliz.

DILEMA
A José do Patrocínio

Se altivo - ouvirás contra ti mil rumores;
Humilde - qualquer um julgar-te-á seu vassalo;
Rico - servos terás como Sardanapalo;
Pobre - ai! de ti! ver-te-ás cercado de credores.

Se franco - eis a teu lado os vis caluniadores;
Ladino - ao teu encalço eis a lei, a cavalo;
Ama - serás tu só que sofrerás abalo;
Se amado - outro és e não terás amores.

Se só - tu maldirás a tua soledade;
Unido - chorarás a antiga liberdade...
Para seres, enfim, sem sofrer, que te ocorre?

Se alguém, sejas nada, inteligente ou rude;
Se dos que nada têm; se dos que gozam tudo,
Para teres razão, só tens um meio: morre!

ÉBRIO

Querem que eu ria, que o prazer alheio
Seja meu, que o partilhe e o acompanhe;
Que a ventura que banha aos outros, banhe
Meu negro peito de tristeza cheio.

Seja! Bradai; nenhum de vós estranhe
Mais nesta roda um rosto triste e feio;
Quero beber e rir, pois já não creio
Senão que existem males e champagne.

E uma taça após outra fui bebendo;
Sempre bebendo, vi dançar a mesa,
E os meus convivas fui desconhecendo.

Ébrio afinal, caí... mas não sozinho:
Comigo estavas, porque a natureza
Do meu amor embriaga mais que o vinho.

GUARDA E PASSA

... Non me destar, deh! parla basso
Michelangelo


Figuremos: tu vais (é curta a viagem),
Tu vais e, de repente, na tortuosa
Estrada vês, sob árvore frondosa,
Alguém dormindo à beira da passagem.

Alguém, cuja fadiga angustiosa
Cedeu ao sono, em meio da romagem,
E exausto dorme... Tinhas tu coragem
De acordá-lo? responde-me, formosa.

Quem dorme esquece... pode ser medonho
O pesadelo que entre o horror nos fecha;
Mas sofre menos o que sofre em sonho.

Oh! tu, que turvas o palor da neve,
Tu, que as estrelas escureces, deixa
Meu coração dormir... Pisa de leve.

LONGE

XXXIX

Longe de mim!... Só a amplidão vazia!
Sol, em que céu de bronze te escondeste?
Céu, porque assim tão baixo tu desceste
E esmagas-me se dó desta agonia?

Nem um adeus, ao menos me disseste;
Foste-te e eu, cego, já não tenho guia;
Meus olhos mais nem uma estrela fria
Verão, pois deles desapareceste.

Ah! nunca saibas meu pesar revendo
Tudo aquilo que vias estavas
Nos meus braços de medo e amor tremendo.

Longe de mim!... Por mais que chame e brade,
Apenas ouve as minhas vozes cavas
Esta saudade, esta imortal saudade!

MORTE

És negra, és negra, dizem-me os felizes,
Dizem que ao ver-te o vulto atro e sombrio,
Gelam-se os corações, tamanho frio,
Serena, espalhas onde quer que pises.

É que tu levas para um céu vazio,
Onde somente as dores tem raízes,
As esperança todas, e não dizes
Nada a quem fica, nem a quem partiu,

Anjo negro, terror da humanidade,
Morte, estilete que nos toca o fundo
D’alma, enchendo de mágoa e de saudade!

Morte, há no mundo tanta dor contida!
Que, tu, que findas todo o bem do mundo,
És a coisa melhor que há nesta vida.

PARADOXO

Se encontrares alguém no teu caminho,
Que do teu pranto menoscabe, rindo,
Que te ouvindo gemer, teus ais ouvindo,
Quebre na face o ritus do escarninho;

Se encontrares alguém que, descobrindo
No recesso da tua alma íntimo espinho,
Em vez de dar-te fraternal carinho,
Aprofunde-te a dor que estás sentido;

Não te zangues com ele, não te zangue
O desgraçado riso que lhe vires;
Toca-lhe o peito - poreja sangue;

Toca-o: verás que fementidos modos!
Sonda-o: verás, por tudo que lhe ouvires
Que ele é mais desgraçado que nós todos.

PRISIONEIRO

XL

Que era um pássaro apenas, me disseste,
Porém o nome dele tu ignoras,
Ouviste e ainda ouves vibrações sonoras,
Mas o doce cantor não conheceste.

Pensas em mim, e do tenor celeste
Escutas enlevada as sedutoras
Canções saudosas e comovedoras...
Que ave, perguntas, misteriosa é esta?

Que encantada harmonia, que doçura,
Que magoado cantar!... A todo o instante
Ouves esta garganta ardente e obscura.

Nunca a verás; não queiras vê-la, não!
Deixa que o meu amor oculto cante
N’áurea gaiola do teu coração.

SEMPRE

Se eu não te disse nunca que te amava,
Perdoa-me, mulher, sou inocente:
Eu vivia de amar-te unicamente,
Unicamente em teu amor pensava.

Se os meus labios calavam-se, falava
O meu olhar apaixonadamente,
Porque, se o labio oculta o que a alma sente,
Conta o olhar o que o labio não contava.

Meu rosto triste, meu cismar constante,
Meu gesto, meu sorrir, tudo exalava,
Tudo exprimia um coração amante.

Em tudo o meu amor se denunciava,
Via-me em toda a parte e o todo o instante,
Se estavas longe, se comigo estava.

TU, SÓ TU...

A Estrela d’Alva desaparecia
Quando eu parti naquela madrugada,
E a doce aurora, tímida e rosada.
Das nuvens de ouro levantava o dia.

Numa palmeira, que no espaço abria
O verde leque, para o céu voltada.
Da áurea garganta uma ave apaixonada
Cavatinas alegres despedia.

Manhã tão linda: o prado um firmamento
Glauco e cheiroso, estrelas multicores,
O chão bordando num deslumbramento!

E eu vendo o campo, eu vendo o céu tranqüilo,
Pensava em ti, dona das minhas dores;
Morta: só tu darias vida àquilo.

Fonte:
http://www.avozdapoesia.com.br/obras.php?poeta_id=366&poeta=Guimar%E3es%20Passos

Guimarães Passos (1867 – 1909)

Sebastião Cícero dos Guimarães Passos
Nasceu: 22 de março de 1867, Maceió - AL
Faleceu: 9 de setembro de 1909, Paris - França

Aos 19 anos foi para o Rio de Janeiro, se juntou aos jovens boêmios da época, onde se alinhavam Paula Ney, Bilac, Coelho Neto, Luís Murat, José do Patrocínio e Artur Azevedo. Era a idade de ouro da boemia dos cafés, e não poderia haver melhor ambiente para o espírito do poeta.

Foi um dos parnasianos do grupo de Olavo Bilac e viveu no Rio de Janeiro à época da transição política da monarquia para a República. Com o advento desta perde seu emprego de funcionário público e torna-se adversário do regime, no que é perseguido pelo governo de Floriano Peixoto, exilando-se em Buenos Aires.

A par disto, Guimarães Passos teve uma vida agitada, dividida entre a boemia, os versos, e um casamento infeliz. No entanto, apesar das atribulações cotidianas, o poeta era um homem de humor fino, sempre fazendo blague com a própria desgraça - e a dos outros. É o que nos conta Laudímia Trotta, em sua biografia O Poeta Boêmio - Guimarães Passos.

Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, conta, com a graça costumeira dos seus textos, como se deu a vinda desse alagoano para o Rio:
“(...) um jovem poeta de Maceió resolveu acompanhar a bordo três amigos, que de viagem se faziam para a Corte, capital do império. O poeta era belo mancebo tropical. Alto, elegante, bíceps gigantes, largo busto, com o desabrocho da cintura estreita, longas mãos, cabeleira crespa formavam-lhe a beleza máscula; e quando ria, um riso jovial, entre a ironia satisfeita e a ingenuidade irônica, (...) Era forte, era são, esse mancebo amável. Chamava-se Sebastião Cícero dos Guimarães Passos''.

O moço poeta entrou para o navio com as melhores disposições de voltar a terra uma hora após. Como sempre foi e ainda é costume, apenas nas viagens por mar, afogar as despedidas numa bebida, qualquer bebida em comum, o poeta e os três viajantes abancaram no convés em torno a uma pequena mesa. A conversa animou-se.

Quando ela ia mais animada, Sebastião dos Guimarães Passos ergueu-se, estreitou nos braços os três amigos e, com o seu passo solene - o passo heráldico, como vieram depois denominá-lo -, encaminhou-se para o portaló. Aí viram seus olhos mover-se à paisagem e no oceano. O navio singrava havia meia hora e dentro em pouco estaria em alto-mar. Sebastião sorriu e voltou aos amigos.

Esse poeta da boemia, da época áurea da boemia dos cafés, tem vida e morte divididas em quatro navios: esse que o levou de Maceió para o Rio; aquele que o deixou no exílio em Buenos Aires, para se livrar de Floriano Peixoto; o terceiro, que o conduziu à Ilha da Madeira em busca de curar a tuberculose, que o mataria em Paris, a 9 de setembro de 1909, aos 42 anos; o quarto, e último navio, que repatriou os seus restos mortais, em 1922, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras.

FONTE:
Academia Brasileira de Letras

Laudímia Trotta (O Poeta Boêmio - Guimarães Passos)

Guimarães Passos teve uma vida agitada, dividida entre a boemia, os versos, e um casamento infeliz. No entanto, apesar das atribulações cotidianas, o poeta era um homem de humor fino, sempre fazendo blague com a própria desgraça - e a dos outros.

CERTA VEZ ENTROU na Confeitaria Colombo, na Rua do Ouvidor, ponto de encontro dos poetas parnasianos e demais literatos de então. Achegando-se de um colega sentado junto ao balcão do restaurante, entabulou conversa:

- Como vai? Me paga uma cerveja aí! - ao que o outro replicou:

- Oh, rapaz! Não estás vendo que estou de luto? Perdi meu pai há alguns dias...!

- Oh, desculpa, não havia percebido... Meus sentimentos...!

E arrematou:

- Então me paga uma cerveja preta!

COM O CASAMENTO se esfacelando, atolado em dívidas, Passos estava prestes a ser despejado do lugar onde morava.

Numa noite estava junto às grades do Passeio Público com alguns colegas, enquanto um deles declamava versos para os demais, algo como:

"...Se eu pudesse expulsar a saudade que em meu peito mora!"

Suspirando, "Guima" aparteou:

- Como eu a invejo...

- Inveja a quem? - perguntou o poeta que fora interrompido.

- A saudade... Por que pelo menos ela tem aonde morar...

MAS A HISTÓRIA mais bizarra foi a do leão no zoológico. Passos e um colega estavam no Centro da cidade, esfomeados e sem um níquel. Até que um deles teve uma idéia:

- Já sei! - Vamos comer da carne que dão às feras de sua Majestade! - ou seja, "vamos ao Zoológico".

Tomaram um bonde para São Cristóvão e, lá chegando, ficaram rondando a jaula do leão, que naquele momento era alimentado por um tratador. Este, um tipo mal encarado, não gostou do assédio dos dois e ameaçou abrir a jaula da fera - o que realmente fez.

"Guima" e o outro só pararam de correr um quilômetro depois…

Lêdo Ivo (A Passagem de uma Quimera: Sebastião Cícero dos Guimarães Passos)

Do livro de Lêdo Ivo, O Ajudante de Mentiroso. Educam, Editora Universitária Candido Mendes, 2009.
A fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, foi iluminada pelo esplendor do Parnasianismo. Entre os seus fundadores figuram grandes artistas do verso, como Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e grandes artistas da prosa, como é o caso de Machado de Assis (também excelso artista do verso, com a sua ardilosa competência formal e emoção contida), Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Coelho Neto. São todos eles integrantes de uma grande geração literária e política que, com a nitidez de seus talentos pessoais e o cunho específico de suas manifestações artísticas, se vinculava à doutrina vigente na época – uma doutrina em que a arte se convertia numa espécie de religião e impunha aos seus sequazes um compromisso com a durabilidade. Os sonetos marmóreos de Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia e a prosa em que Machado de Assis se esconde de si mesmo, e a si mesmo, num esplêndido processo de emascaramento pessoal, hão de simbolizar, para sempre, esse tempo ditoso da literatura brasileira, em que esta, após as explosões e efusões do Romantismo, exprimia o seu amadurecimento, dentro dos preceitos de um Parnasianismo e um Realismo regados pelas águas de incontáveis riachos obscuros.

É nesse cenário magnífico que o leitor de agora deve acolher o poeta alagoano Sebastião Cícero dos Guimarães Passos, nascido em Maceió, a 22 de março de 1867.

Hoje, transcorrido um século de criação da Academia Brasileira de Letras, ele é apenas um nome – ou menos que um nome. De tudo quanto escreveu, em verso e em prosa, com acentos tristonhos ou jocosos, havia restado um soneto, o popular “Teu lenço”, parada obrigatória nas antologias, até que essses preciosos escrínios deixaram de ser adotados nos colégios. Mas o leitor que se aproximar do grave e reflexivo “Guarda e passa” obterá a medida exata do seu talento, de sua capacidade formal e espelho de todos os sonhos que ele sonhou.

No dia 28 de janeiro de 1897, Guimarães Passos está presente à sétima e última reunião preparatória destinada à instalação da Academia Brasileira de Letras. É, assim, um dos seus fundadores. As cores do contraste realçam o império de uma hierarquia literária que, pelo que tenha de incômodo ou refutável – ou mesmo de arbitrária, dada a sua eventual infixidez –, não deve ser desprezada. E, ao redor dela, de seu caprichoso jogo de luzes e sombras, a ronda dos passantes literários inscritos na lista negra da posteridade ratifica a existência da literatura como um sistema – uma escola de esboroamentos e olvidos.

O poeta alagoano, que morreu em Paris, a 10 de setembro de 1909, e desapareceu com a sua morte, não pode e não deve ser colocado ao lado de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, a gloriosa tríade do nosso Parnasianismo. A sua estatura é bem mais modesta. O convívio acadêmico de que usufruiu tem a justificá-lo não só a aceitação e tolerância de que gozam os passageiros do mesmo barco da contemporaneidade, cercados de afetos e solidariedade geracional, como ainda a singularidade de sua condição.

Na escola que impunha aos seus senhores e vassalos a doutrina da impessoalidade e da durabilidade – e também de uma impassividade muita vez transgredida belamente – e exigia que eles fizessem poemas como quem esculpe e cinzela, conferindo-lhes a perduração das joias e estátuas, Guimarães Passos ficou a meio caminho. Os poemas e sonetos de Versos de um simples (1891) e Horas mortas (1901) quase nunca alcançam o páramo pétreo.

Decerto, quando menino, em Maceió, ele se lambuzou muito de açúcar e comeu muito doce de coco. A sua textura lírica aponta para as matérias moles e fofas, e, com o seu parnasianismo dulcificado, ele é quase um romântico retardado – um romântico que, sob a férula da nova escola triunfante, fosse obrigado a colocar os seus versos molengos e correntios, e até diáfanos, numa forma ou numa fôrma imponente ou hierática, assim como as dissimuladas ou austeras damas do Segundo Reinado colocavam os seios à Renoir na prisão dos espartilhos.

A esse propósito, vem a talho de foice a observação de Paulo Barreto ( João do Rio), seu sucessor na cadeira n° 26 da Academia. Em seu discurso de recepção, o grande prosador de Dentro da noite, que enriqueceu a nossa literatura com uma nota nova, assentada nos mistérios e errâncias das noites inconfessáveis, estabelece uma diferença entre a geração boêmia de Guimarães Passos e a sua própria geração. “Quem o substitui trocou sempre a quimera pela curiosidade, o entusiasmo pelo fato, o próprio sentimento pela sensualidade dos sentimentos alheios.” Para ele, Guimarães Passos, “o último romântico”, foi um ator, enquanto lhe cabia, a ele João do Rio, a condição de espectador – “o espectador incompleto dessa sociedade que se constitui”. E numa certeira identificação de si mesmo, considera-se “aquele que fixa tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo”.

O esplêndido espetáculo era a fervilhação e a renovação urbana do Rio de Janeiro no começo do século, com as avenidas que se abriam, os dias considerados vertiginosos, o vício e a graça unidos no mesmo segredo. A observação de João do Rio é sustentada pelo conceito estético da modernidade. O espectador de Os dias passam, com a sua prosa poética e nervosa concentrada nas torpitudes humanas da grande cidade, e a sua nova e insólita maneira de ver e de olhar, avulta na história literária brasileira como o nosso primeiro e primoroso voyeur; e ainda como o incansável e misterioso flâneur que, no conto “O bebê de tarlantana rosa”, revelou a modernidade perversa do Rio Janeiro, com o seu dia tornado noite pelo cinematógrafo e a sua noite equívoca povoada de pederastas, prostitutas e drogados – uma noite que, mesmo em sua moldura tropical, se afeiçoa às longas noites de Restif de la Bretonne, Baudelaire e Gerard de Nerval.

No novo ambiente cosmopolitizado que fustigava a boêmia literária, e sublinhava outros valores e condutas, não é de admirar-se que Guimarães Passos tenha sumido completamente, como fantasma de castelo inglês.

O perfil boêmio de Guimarães Passos suscitou largo anedotário, que, iniciado em sua vinda para o Rio, quando tinha vinte anos (o navio aportado em Maceió em que se encontrava, para despedir-se de amigos, se fizera ao largo sem que ele notasse), grassou até a sua morte, em Paris. E essa foi uma morte romântica: de poeta tuberculoso; uma morte na solidão de um quarto de hotel, após tanto rumor e efusão, e o riso suscitado por tantas peripécias miúdas. Mas, com o fluir dos dias, a torrente anedótica cessou. E vieram o silêncio e o esquecimento, anulando as ocorrências e figuras daquele tempo admirável, em que Machado, Rui, Joaquim Nabuco, Coelho Neto, Bilac e Raul Pompeia não se limitavam a ser grandes artistas literários, e eram também homens de jornal e de revistas, ao alcance do público, numa presença matinal como a do pão.

A edição das poesias de Guimarães Passos, promovida pela Academia Brasileira de Letras e estabelecida pelo filólogo e pesquisador Adriano da Gama Kury – que, com o seu plácido saber e empenho em buscar e descobrir o mínimo e o despercebido, tem algo de um microbiologista –, destina-se a devolver ao sol e à noite de hoje um poeta que, vivo, usufruiu de uma popularidade convizinha da glória. Um poeta que foi companheiro de Machado de Assis e Olavo Bilac – e, em parceria com este, publicou um Tratado de versificação e um Dicionário de rimas. Um poeta menor e secundário, seja, pronto a espelhar a sua dor bem doída e suas lágrimas nem sempre evaporadas. Mas há em sua menoridade e secundaridade uma emoção continuada, uma astúcia formal e uma singeleza e melancolia que enxotam do nosso espírito a gorda exigência estética e a exclusão desdenhosa. Há um certo encanto.

Ó tu, que turvas o palor da neve,
Tu, que as estrelas escureces, deixa
Meu coração dormir. Pisa de leve.

Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XVIII)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

AH! QUEREM UMA LUZ

Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.

Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores que estas flores —
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!

ASSIM COMO
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
                
CRIANÇA DESCONHECIDA

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
                
DIZES-ME
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?

Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta?  Não sei.
Sou diferente.  Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.

Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,

Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada.  Que mais há a dizer?

ENTRE O QUE VEJO

Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O "homem" vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.

É NOITE

É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?

ESTAS VERDADES

Estas verdades não são perfeitas porque são ditas.
E antes de ditas pensadas.
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias.
Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim.

É TALVEZ O ÚLTIMO DIA DA MINHA VIDA

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Paulo Vinheiro (Impedância)

Nosso dia é meio quente ou meio frio... às vezes nem sei o que é bom disso.

Irrelevante, irreal, translúcido, quebradiço
O dia se faz pasmo, letárgico, sombrio
Sob a luz do sol do meio-dia o amor passeia
Lágrima nos olhos e a calma conformada
A palidez se oculta no luto e no rubor solar
Espesso o ar nos faz um pouco mais lentos
E a marcha dobra e os joelhos doem

Quem fechará as portas dos sentimentos?
Quem cantará entre lágrimas tormentos?
Há quem conte estrelas nos céus do dia
Há que sonhe com que seu amor se levante
Assim antecipando o dia do juízo final
Mas é só amor demais que nos prende
Há que se deixar livre, solta, a ave que voa

Sob estrelas as lágrimas correm e só
O dia renasce e tinge o mundo de luz
Nada a fazer, mais nada a fazer...
O orgulho se quebra e conforme vamos
Nada a dizer... um sorriso talvez, talvez
Um tapa no orgulho e os olhos no chão
A resistência à elétrica descarga

E o choque esvai entre os olhares
As coisas no mundo retomam o seu lugar
E um lugar vazio se enche... tomara de luz
Nada morre, tudo se transforma
A inteligência, o sorriso, há de prevalecer
O mundo não abraça o luto com afeição
Não existem corvos, a não ser os que criamos

*Pelo passamento de Lídio Pinheiro

Ditados Populares do Brasil (Letra F)

Faça o que eu digo, não faça o que faço.
Falar o sujo, do mal lavado.
Falou do mau, prepare o pau.
Farinha pouca, meu pirão primeiro.
Fazer caridade com o pirão alheio.
Fazer castelos no ar.
Fazer corpo mole.
Fazer o bem sem olhar a quem,
Fazer ouvido de mercador.
Fazer tempestade em copo d’água.
Feijão e farinha, até com a mão se come.
Feliz foi Adão, que nunca teve sogra.
Ficar o dito por não dito.
Ficar para titia.
Filho criado, trabalho dobrado.
Filho de gato é gatinho.
Flagrado com a boca na botija.
Foi buscar lã, e saiu tosquiado.
Formiga quando quer se perder cria asas.
Fruta azeda e mulher feia só com cachaça.
Faça da sua vida uma canção de amor.
Falam de mim, mas não comem do meu pudirm.
Falam de mim por inveja.
Falam de ti por despeito.
Falar é fácil, fazer é que é difícil.
Fé em Deus e pé na taboa.
Feliz foi Adão que não teve sogra nem caminhão.
Feliz quem não tem sócio.
Fiado é com o diabo, aqui não é inferno.
Fracassar é triste, mais triste ainda é não tentar vencer.
Franguinha, eis aqui o teu poleiro.
Futucar o diabo com a vara curta.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XI – Às Claras

Quando o príncipe saiu de dissolver a Sociedade Tenebrosa do Apostolado, onde penetrara com a mesma audácia de Cromwell no parlamento inglês, o Satanás foi acompanhá-lo, já precavido de respostas contra as naturais recriminações que devia receber, desejoso de não se desligar nunca daquele cuja queda vivia preparando.

D. Pedro, sombrio e taciturno, caminhando para o Paço, apressadamente, não lhe dizia sequer uma palavra. E os dous seguiam, como nas noitadas de sempre, um ao lado do outro, muito amigos para os raros transeuntes que os viam e que deles respeitosamente se afastavam.

E, chegados que foram a régia habitação, penetraram, como sempre, por uma porta escusa, situada por baixo do passadiço que ligava o palácio ao velho convento do Carmo.

Nada, enfim, parecia indicar qualquer alteração na vida de ambos. A mesma ceia, que os esperava todas as noites, estava servida num aposento contíguo, térreo e um pouco úmido, espaçoso e cheio de armários.

Sentaram-se.

Depois da primeira libação, d. Pedro encheu novamente os copos, e, erguendo o seu, disse, maliciosamente, com um sorriso triste de homem que assistiu ao despedaçamento das próprias ilusões:

- A tua amizade! Satanás.

- A nossa!

- Sim. À nossa. Eu acredito na reciprocidade de sentimentos entre nós. Liga-nos um mesmo destino. E já a velha feiticeira do Valongo tinha profetizado que algum dos dous devia morrer pela mão do outro.

E acrescentou:

- Mas, dize-me cá uma cousa! Por que me odeias tu?

- Senhor!

- Não. Não negues. Nem é próprio de ti, nem eu acreditaria nas tuas afirmações e nos teus protestos.

O Satanás fez um gesto vago e incerto de significação.

- O teu ódio! continuou o príncipe, eu o tenho sentido de certo tempo a esta parte, pertinaz e insistente sobre mim. Eu o reconheci até no teu andar e na tua voz, por essas longas noites que temos vivido juntos derradeiramente.

- Qual, senhor! Eu sou novamente vítima de intrigas. O príncipe bem sabe que foi sempre invejada a confiança que me dispensava. E agora, como das outras vezes, seja-me permitido esperar que eu saia desta aventura reabilitado, como sempre me tem acontecido, na sua estima.

- Bem vontade tinha eu que assim fosse. Tu não sabes como é triste e amargo o brusco despedaçar das amizades longamente cimentadas. Tu não sabes como faz sofrer o espetáculo da ingratidão humana.

- Mas nesse caso, basta-lhe querer, basta-lhe examinar os fatos, para reconhecer que a minha dedicação nem por um momento deixou de acompanhá-lo. Eu estava, é certo, lá no Apostolado, mas lá estava para bem servi-lo.

- Não, Satanás! Tu lá não estavas para me servir... Mas também não é essa a grande acusação que te faço, não é por isso que venho falar-te do teu ódio.

- Então! por quê?

- Por quê? Mas não basta, por acaso, esse teu olhar; olhar que espeta, quando o olhar do amigo tem veludo e maciez para o repouso da nossa individualidade toda inteira?

- Senhor!

- Não, fez o príncipe. - Não protestes. Escuta-me.

E d. Pedro, nervoso, agitado, começou a passear pelo quarto o seu grande vulto esbelto de homem bem feito.

Depois, voltando a mesa, ele parou, um pé sobre a cadeira e o queixo repousando sobre a mão longa e fina de fidalgo. E pôs-se a olhar demoradamente para o Satanás.

Este nem se movia, impassível e quieto. Refluíra-lhe para o cérebro, numa pertinaz concentração de idéias, toda a força vital do seu querer. E estava meditando, estava procurando o desenlace desta cena que vinha perturbar-lhe a serenidade vingadora dos planos longamente projetados. Sentia por vezes ímpetos de atirar para longe a máscara da comédia, que a força das circunstâncias o obrigava a representar; desejos de ser ele mesmo nobre e altivo, como sempre fora.

Mas a imagem de Branca perpassava-lhe pela imaginação, destacando-se da treva absoluta do mistério como um pedido solene de vingança. E ele retesava os músculos na rigidez suprema da calma, porque a hipocrisia era a única arma que podia manejar contra aquele príncipe, desde o momento em que lhe não bastava a morte de um homem para fazer o sossego e a paz da sua vida, sempre condenada para a dor.

D. Pedro, porém, continuou:

- Escuta-me, Satanás! Eu primeiro quero dizer-te todo o sofrimento que me vai na alma com esse fúnebre desenlace infalível da nossa velha amizade. Porque eu muito te amei. Foste tu quem me ensinou o manejo das armas, quem acordou em mim esse velho instinto belicoso e aventureiro que fez a glória dos meus avós remotos, mas que os Braganças de agora iam esquecendo no espólio da sagrada herança de família. A ti eu devo enfim ser o que sou - esse rei cavaleiro da raça de Francisco de França, que muitos Pavias podem derrear mas que sai sempre incólume, abroquelado na sua valentia para salvar a sua honra.

E o príncipe fez uma pausa longa e demorada.

- Devo-te isso tudo, acrescentou depois. - Mas tudo isso te tenho pago em confiança e amizade. E tu, entretanto, só porque um dia eu fui roubar-te a amante, tu te fizeste mesquinho e vil, indigno da minha companhia, porque não tens coragem de lutar frente a frente contra mim, porque te embuças no anonimato covarde das conspirações.

E mais violento:

- Eu posso ser amigo do meu adversário. Mas desprezo o hipócrita que maquina nas trevas.

- Pois bem, senhor! cartas na mesa, disse o Satanás levantando-se.

- E assim que eu gosto de jogar as partidas.

- Então, diga-me primeiro: onde está minha filha?

- Tua filha! Quem é tua filha?

- Quem é minha filha! gargalhou Satanás na sua gargalhada louca de velhas armaduras que rangiam. - Quem é minha filha!

E resfolegou longamente, para continuar depois:

- Miserável sedutor! hipócrita tu mesmo! mentiroso e covarde!

D. Pedro avançou para o escultor.

Este deteve-o, porém, com um gesto forte de comando.

E prosseguiu:

- Eu vi-te, sem desonra para ninguém, penetrar na câmara nupcial destes fidalgos. Queriam ouro e brasões heráldicos, e tu levavas-lhe uma cornucópia toda inteira para lhes satisfazer a ganância e as aspirações. Eu vi-te descer ao mais baixo dos bordéis, onde a moeda de prata chega muitas vezes para saciar os apetites de um homem. Somente houve um lugar onde eu nunca te conduzi, cuja porta eu defenderia contra os teus pedidos e contra as tuas ameaças. Era o asilo da inocência e da candura. E foi lá que tu foste buscar minha filha!

- Tua filha! Tua filha! Mas fala! Eu não te entendo.

- Covarde! Tu me dizias ainda há pouco que eu me escondia para conspirar! E que fazes agora? E que fizeste tu?

O príncipe recuou dous passos, subjugado pelo olhar do Satanás.

E este continuou ainda, imprecativamente:

- Sim, eu te odiava e te acompanhava, colava-me a ti como a tua sombra, porque quero saber onde ocultas a minha filha, a pálida e meiga filha dos meus amores, que todos deviam adorar de joelhos, e que tu profanas com o teu hálito envenenado de crápula.

- Mas eu não sei de tua filha, e nem sabia que ela era tua...

- Tanto te rebaixaste que chegas a mentir! Amar Branca deveria ser entretanto a purificação das almas perdidas. Aquela criança tem tanta inocência e tanta candura, que o seu amor deve chegar para o perdão de Deus caindo sobre os infernos como bálsamo caindo sobre feridas. Mas tu, miserável que és, e miserável que nasceste! tu não pudeste te redimir nas asas brancas daquele anjo, que sempre e sempre parece remontar-se para os céus. E te acovardas, e tremes perante a voz vingadora do pai que se ergue contra ti, como a verdade possante da justiça.

- Cala-te, bradou d. Pedro. - Por Deus! Cala-te, Satanás!

- Ah! tens medo de me ouvir! Tens medo que eu te escarre ao rosto toda a tua infâmia!

- Cala-te, repetiu o príncipe desembainhando a espada e investindo contra o outro, cala-te!

O Satanás precaveu-se a tempo e aparou o bote com a sua arma de boa lâmina florentina.

E a luta começou então hercúlea e titânica. Mestres ambos e conhecedores dos segredos da esgrima, eles digladiavam-se silenciosamente, muito calmos, na grande exuberância vital das suas paixões.

Ouvia-se apenas o estuar das respirações arquejantes.

Mas, de repente...
––––––––––-
Continua…

III Concurso Literário “Literatura Da Natureza 2013” (Resultado Final)

1.   Menções Honrosas

Categoria “Poesia”

–  Douglas Mateus Mello (Fraiburgo-SC) – Cálido D’um Jamais Não!!!

–  Edílson Nascimento Leão (Urandi-BA) – O Mar

–  Emiliana Maria de Sousa Teixeira (Itapipoca-CE) – Ecos da Natureza

–  Helenice Maria Reis Rocha (?) – A Onda

–  Maria Doroteia Teixeira Santos Reis (Guanambi-BA) – Desafio e Esperança

–  Rozelene Furtado De Lima (Teresópolis-RJ) – Natureza Completa

–  Teresa C. C. M. Azevedo (Campinas-SP) – Acordai!

– Vinícius Pérrissé Maia Veras (Rio de Janeiro-RJ) – Não Te Verei Amanhã

Categoria “Prosa”

– Auta Leal Barbosa da Silva (Divinópolis-MG) – Borboletinha Azul

– Gilda Maria Martins Soares (Rio de Janeiro-RJ) – As Flores e o Homem


2.     Quadro de Medalhas

Categoria “Poesia”

Medalha de Ouro:
Lúcia Pérrissé Moreira Veras (Rio de Janeiro-RJ) - Chuva

Medalha de Prata:
Adriana Aparecida de Oliveira Pavani (Barra Bonita-SP) – Bendita Seja a Água

Medalha Bronze:
Terezinha Teixeira Santos (Guanambi-BA) – O Rio da Minha Infância

Categoria “Prosa”

Medalha de Ouro:
Aglaé Torres Cristófaro (São Paulo-SP) – Cortinas e Gritos de Água – A Viagem

Medalha de Prata:
Flávio René Kothe (Brasília-DF) – Ondas do Mar

Medalha de Bronze:
Maria Rita de Cássia Preto Miranda (São Sebastião do Paraíso-MG) – Vida a Vida

Fonte:
http://www.reinodosconcursos.com.br/index.php?pagina=1501479057_19

sábado, 16 de março de 2013

Wagner Marques Lopes (MG) (Fábula: As duas fofoqueiras)

Duas inveteradas fofoqueiras se espetavam:

- Eu sou a maior fofoqueira do mundo!...

 - Você se engana. Você é minha referência. Assim sendo, procuro estar sempre na sua frente. Na sua falta, o que será de mim?!... Imagino o dia que eu partir e o mundo acabar à sua volta!... Com quem você há de fofocar?!... Acredito que você irá chamar o Tédio, e depois de arengar com ele sobre a falta de graça da existência, entrará no mundo do Aborrecimento e ali, desastradamente, você irá fofocar, com seus próprios ouvidos, sobre a aridez, a obtusidade e a estupidez da própria vida!...

- Chega!... Terei que passar por tudo isso?!...

- Sim... E tem mais: finalmente você conhecerá o Desgosto... O vazio, um vale psíquico difícil de ser atravessado!...

- Seu discurso está me causando enfado... Deixe-me ir.

- Enfado maior é o provocado pela fofoca – pensou a outra.

         O Dicionário Houaiss, com três acepções, assim faz referência ao tédio:

1    sensação de enfado produzida por algo lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais.
2    sensação de aborrecimento ou cansaço, causada por algo árido, obtuso ou estúpido.
3    sensação de desgosto, ou vazio, sem causas objetivas claras.

           Moral

No seu destino cruel
de remanso traiçoeiro,
a fofoca tem papel
de engolir o fofoqueiro...

Fonte:
O Autor

João Martins de Athayde (As Proezas de João Grilo)

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

E nasceu de sete meses
chorou no bucho da mãe
quando ela pegou um gato
ele gritou: não me arranhe
não jogue neste animal
que talvez você não ganhe.

Na noite que João nasceu
houve um eclipse na lua
e detonou um vulcão
que ainda continua
naquela noite correu
um lobisome na rua.

Porém João Grilo criou-se
pequeno, magro e sambudo
as pernas tortas e finas
e boca grande e beiçudo
no sítio onde morava
dava notícia de tudo.

João perdeu o seu pai
com sete anos de idade
morava perto de um rio
Ia pescar toda tarde
um dia fez uma cena
que admirou a cidade.

O rio estava de nado
vinha um vaqueiro de fora
perguntou: dará passagem?
João Grilo disse: inda agora
o gadinho do meu pai
passou com o lombo de fora.

O vaqueiro bota o cavalo
com uma braça deu nado
foi sair já muito embaixo
quase que morre afogado
voltou e disse ao menino:
você é um desgraçado.

João Grilo foi ver o gado
pra provar aquele ato
veio trazendo na frente
um bom rebanho de pato
os pássaros passaram n"água
João provou que era exato.

Um dia a mãe de João Grilo
foi buscar água à tardinha
deixando João Grilo em casa
e quando deu fé, lá vinha
um padre pedindo água
nessa ocasião não tinha

João disse; só tem garapa;
disse o padre; donde é?
João Grilo lhe respondeu;
é do engenho catolé;
disse o padre: pois eu quero;
João levou uma coité.

O padre bebeu e disse:
oh! que garapa boa!
João Grilo disse: quer mais?
o padre disse: e a patroa
não brigará com você?
João disse: tem uma canoa.

João trouxe uma coité
naquele mesmo momento
disse ao padre: beba mais
não precisa acanhamento
na garapa tinha um rato
tava podre e fedorento.

O padre disse: menino
tenha mais educação
e por que não me disseste?
oh! natureza do cão!
pegou a dita coité
arrebentou-a no chão.

João Grilo disse: danou-se!
misericórdia, São Bento!
com isto mamãe se dana
me pague mil e quinhentos
essa coité, seu vigário,
é de mamãe mijar dentro!

O padre deu uma popa
disse para o sacristão:
esse menino é o diabo
em figura de cristão!
meteu o dedo na goela
quase vomita um pulmão.

João Grilo ficou sorrindo
pela cilada que fez
dizendo: vou confessar-me
no dia sete do mês
ele nunca confessou-se
foi essa a primeira vez.

João Grilo tinha um costume
pra toda parte que ia
era alegre e satisfeito
no convívio de alegria
João Grilo fazia graça
que todo mundo sorria.

Num dia de sexta-feira
às cinco horas da tarde
João Grilo disse: hoje à noite
eu assombro aquele padre
se ele não perdoar-me
na igreja há novidade.

pegou uma lagartixa
amarrou pelo gogó
botou-a numa caixinha
no bolso do paletó
foi confessar-se João Grilo
com paciência de Jó.

Às sete horas da noite
foi ao confessionário
fez logo o pelo sinal
posto nos pés do vigário
o padre disse: acuse-se;
João disse o necessário.

Eu sou aquele menino
da garapa e do coité;
o padre disse: levante-se
que já sei você quem é;
João tirou a lagartixa
Soltou-a junto do pé.

A largatixa subiu
por debaixo da batina
entrou na perna da calça
tornou-se feia a buzina
o padre meteu os pés
arrebentou a cortina.

Jogou a batina fora
naquela grande fadiga
a lagartixa cascuda
arranhando na barriga
João Grilo de lá gritava:
Seu padre, Deus lhe castiga!

O padre impaciente
naquele turututu
saltava pra todo lado
que parecia um timbu
terminou tirando as calças
ficou o esqueleto nu.

João disse: padre é homem
pensei que fosse mulher
anda vestido de saia
não casa porque não quer
isso é que é ser caviloso
cara de matar bebê.

O padre disse João Grilo
vai-te daqui infeliz!
João Grilo disse bravo
ao vigário da matriz:
é assim que ele me paga
o benefício que fiz?

João Grilo foi embora
o padre ficou zangado
João Grilo disse: ora sebo
eu não aliso croado
vou vingar-me duma raiva
que eu tive ano passado.

No subúrbio da cidade
morava um português
vivia de vender ovos
justamente nesse mês
denunciou de João Grilo
pelas artes que ele fez.

João encontrou o português
com a égua carregada
com duas caixas de ovos
João disse-lhe: oh camarada
quero dizer à tua égua
Uma pequena charada.

o português disse: diga;
João chegou bem no ouvido
com a ponta do cigarro
soltou-a dentro escondido
a égua meteu os pés
foi temeroso estampido.

derrubou o português
foi ovos pra todo lado
arrebentou a cangalha
ficou o chão ensopado
o português levantou-se
tristonho e todo melado.

O português perguntou:
o que foi que tu disseste
que causou tanto desgosto
a este anima agreste?
- Eu disse que a mãe morreu;
o português respondeu:
Oh égua besta da peste!

João Grilo foi à escola
com sete anos de idade
com dez anos ele saiu
por espontânea vontade
todos perdiam pra ele
outro Grilo como aquele
perdeu-se a propriedade.

João Grilo em qualquer escola
chamava o povo atenção
passava quinau nos mestres
nunca faltou com a lição
era um tipo inteligente
no futuro e no presente
João dava interpretação.

um dia perguntou ao mestre:
o que é que Deus não vê
o homem vê a qualquer hora
disse ele: não pode ser
pois Deus vê tudo no mundo
em menos de um segundo
de tudo pode saber.

João Grilo disse: qual nada
que dê os elementos seus?
abra os olhos, mestre velho
que vou lhe mostrar os meus
seus estudos se consomem
um homem vê outro homem
só Deus não vê outro Deus.

João Grilo disse: seu mestre
me diga como se chama
a mãe de todas as mães
tenha cuidado no drama
o mestre coça a cabeça
disse: antes que me esqueça
vou resolver o programa.

- A mãe de todas as mães
é Maria Concebida;
João Grilo disse: eu protesto
antes dela ser nascida
já esta mãe existia
não foi a Virgem Maria
oh! que resposta perdida.

João Grilo disse depois
num bonito português;
a mãe de todas as mães
já disse e digo outra vez
como a escritura ensina
é a natureza divina
que tudo criou e fez.

- Me responde, professor
entre grandes e pequenos
quero que fique notável
por todos nossos terrenos
responda com rapidez
como se chama o mês
que a mulher fala menos?

Este mês eu não conheço
quem fez esta taboada?
João Grilo lhe respondeu:
ora sebo, camarada
pra mim perdeu o valor
tem nome de professor
mas não conhece de nada

- Este mês é fevereiro
por todos bem conhecido
só tem vinte e oito dias
o tempo mais resumido
entre grandes e pequenos
é o que a mulher fala menos
mestre, você tá perdido.

- Seu professor, me responda
se algum tempo estudou
quem serviu a Jesus Cristo
morreu e não se salvou
no dia em que ele morreu
seu corpo urubu comeu
e ninguém o sepultou?

- Não conheço quem é esse
porque nunca vi escrito;
João Grilo lhe respondeu:
foi o jumento, está dito
que a Jesus Cristo servia
na noite em que ele fugia
de Belém para o Egito.

João Grilo olhou para o lado
disse para o diretor
este mestre é um quadrado
fique sabendo o senhor
sem dúvida exame não fez
o aluno desta vez
ensinou ao professor.

João Grilo foi para casa
encontrou sua mãe chorando
ele então disse: mamãe
não está ouvindo eu cantando?
não chore, cante mais antes
pois o seu filho garante
pra isso vive estudando .

A mãe de João Grilo disse:
choro por necessidade
sou uma pobre viúva
e tu de menor idade
até da escola saíste...
João disse: ainda existe
o mesmo Deus de bondade.

- A senhora pensa em carne
de vinte mil réis o quilo
ou talvez no meu destino
que à força hei de segui-lo
não chore, fique bem certa
a senhora só se aperta
quando matarem João Grilo.

João então chegou no rio
às cinco horas da tarde
passou até nove horas
porém inda foi debalde
na noite triste e sombria
João Grilo sem companhia
voltava sem novidade.

Chegando dentro da mata
ouviu lá dentro um gemido
dois lobos devoradores
o caminho interrompido
e trepou-se num pinheiro
como era forasteiro
ficou ali escondido.

Os lobos foram embora
e João não quis descer
disse: eu dormirei aqui
suceda o que suceder
eu hoje imito arapuan
só vou embora amanhã
quando o dia amanhecer.

O Grilo ficou trepado
temendo lobos e leões
pensando na fatal sorte
e recordando as lições
que na escola estudou
quando de súbito chegou
uns quatro ou cinco ladrões.

Eram uns ladrões de Meca
que roubavam no Egito
se ocultavam na mata
naquele bosque esquisito
pois cada um de per si
que vinha juntar-se ali
pra ver quem era perito.

O capitão dos ladrões
disse: não fala ninguém?

um respondeu; não senhor
disse ele: muito bem
cuidado não roubem vã
vamos juntar-nos amanhã
na capela de Belém.

Lá partiremos o dinheiro
pois aqui tudo é graúdo
temos um roubo a fazer
desde ontem que estudo
mas já estou preparado;
e o Grilo lá trepado
calado escutando tudo.

Os ladrões foram embora
depois da conversação
João Grilo ficou ciente
dizendo a seu coração:
se Deus ajudar a mim
acabou-se o tempo ruim
sou eu quem ganho a questão.

João Grilo desceu da árvore
quando o dia amanheceu
mas quando chegou em casa
não contou o que se deu
furtou um roupão de malha
vestiu, fez uma mortalha
lá no mato se escondeu.

À noite foi pra capela
por detrás da sacristia
vestiu-se com a mortalha
pois na capela jazia
sempre com a porta aberta
João pensou na certa
colher o que pretendia.

Deitou-se lá num caixão
que enterravam defunto
João Grilo disse: eu aqui
vou ganhar um bom presunto;
os ladrões foram chegando
e João Grilo observando
sem pensar em outro assunto.

Acenderam um farol
penduraram numa cruz
foram contar o dinheiro
no claro deu uma luz
João Grilo de lá gritou:
esperem por mim que eu vou
com as ordens de Jesus!

Os ladrões dali fugiram
quando viram a alma em pé
João Grilo ficou com tudo
disse: já sei como é nada
no mundo me atrasa
agora vou para casa
tomar um rico café.

Chegou e disse: mamãe
morreu nossa precisão
o ladrão que rouba outro
tem cem anos de perdão;
contou o que tinha feito
disse a velha: está direito
vamos fazer refeição.

Bartolomeu do Egito
foi um rei de opinião
mandou convidar João Grilo
pra uma adivinhação
João Grilo disse: eu vou;
no outro dia embarcou
para saudar o sultão.

João Grilo chegou na corte
cumprimentou o sultão
disse: pronto, senhor rei
(deu-lhe um aperto de mão)
com calma e maneira doce
o sultão admirou-se
da sua disposição.

O sultão pergunta ao Grilo;
de onde você saiu?
aonde você nasceu?
João fitou ele e sorriu
- Sou deste mundo d"agora
nasci na ditosa hora
em que minha mãe me pariu.

- João Grilo, tu adivinha?
o Grilo respondeu: não
eu digo algumas coisas
conforme a ocasião
quem canta de graça é galo
cangalha só pra cavalo
e sêca só no sertão.

_ Eu tenho doze perguntas
pra você me responder
no prazo de 15 dias
escute o que vou dizer
veja lá como se arruma
é bastante faltar uma
tá condenado a morrer.

João Grilo disse: estou pronto
pode dizer a primeira
se acaso sair-me bem
venha a segunda e a terceira
venha a quarta e a quinta
talvez o Grilo não minta
diga até a derradeira.

Perguntou: qual o animal
que mostra mais rapidez
que anda de quatro pés
de manhã por sua vez
ao meio-dia com dois
passando disto depois
à tarde anda com três?

O Grilo disse: é o homem
que se arrasta pelo chão
no tempo que engatinha
depois toma posição
anda em pé e bem seguro
mas quando fica maduro
faz três pés com o bastão.

O sultão maravilhou-se
com sua resposta linda
João disse: pergunte outra
vou ver se respondo ainda;
a segunda o sultão fez
João Grilo daquela vez
celebrizou sua vinda.

- Grilo você me responda
em termos bem divididos
uma cova bem cavada
doze mortos estendidos
e todos mortos falando
cinco vicos passeando
trabalham com três sentidos.

- Esta cova é a viola
com primo, baixo e bordão
mortas são as doze cordas
quando canta um cidadão
canta, toca, faz um verso
cinco vicos num progresso
os cinco dedos da mão.

Houve uma salva de palmas
com vivas que retumbou
o sultão ficou suspenso
seu viva também bradou
e depois pediu silêncio
com outro desejo imenso
a terceira perguntou.

- João Grilo, qual é a coisa
que eu mandei carregar
primeiro dia e segundo
no terceiro fui olhar
quase dá-me a tiririca
se tirar, mais grande fica
não míngua, faz aumentar?

- Senhor rei, sua pergunta
parece me fazer guerra
um Grilo não tem saber
criado dentro da serra
mas digo pra quem conhece
o que tirando mais cresce
é um buraco na terra.

João Grilo vou terminar
as perguntas do tratado
o Grilo disse; pergunte
quero ficar descansado
disse o rei: é muito exato
o que é que vem do alto
cai em pé, corre deitado?

- Aquele que cai em pé
e sai correndo pelo chão
será uma grande chuva
nos barros de um sertão;
o rei disse: muito bem
no mundo inteiro não tem
outro Grilo como João.

- João Grilo, você bebe?
João disse: bebo um pouquinho
e disse; eu não sou filho
de Baco que fez o vinho
o meu pai morreu bebendo
e eu o que estou fazendo?
sigo no mesmo caminho.

O rei disse: João Grilo
beber é cousa ruim;
o Grilo respondeu: qual
o meu pai dizia assim:
na casa de seu Henrique
zelam bem um alambique
melhor do que um jardim.

O rei disse: João Grilo
tua fama é um estrondo
João Grilo disse: eu sabendo
o que perguntar respondo;
disse o rei enfurecido;
o que tem o pé comprido
e faz o rastro redondo?

- Senhor rei, tenho lembrança
do tempo da minha avó
que ela tinha um compasso
na caixa do bororó
como este eu também ando
fazendo o rastro redondo
andando com uma perna só.

- João, qual é o bicho
que passa pela campina
a qualquer hora da noite
andando de lamparina?
é um pequeno animal
tem luz artificial;
veja o que determina.

- Esse bicho eu já vi
pois eu tinha de costume
de brincar sempre com ele
minha mãe tinha ciúme
ele andava pelo campo
uns chamavam pirilampo
e outros de vagalume.

O rei já tinha esgotado
a sua imaginação
não achou uma pergunta
que interrompesse a João
disse: me responda agora
qual é o olho que chora
sem haver consolação?

O Grilo então respondeu:
lá muito perto da gente
tem um outeito importante
um moó muito doente
suas lágrimas têm paladar
quem não deixa de chorar
é olho d"água de vertente.

o rei inventou um truque
do jeito que lhe convinha
- Vou arrumar uma cilada
ver se João adivinha;
mandou vir um alçapão
fez outra adivinhação
escondeu uma bacurinha.

- João, o que é que tem
dentro desse alçapão?
se não disser o que é
é morto não tem perdão;
João Grilo lhe respondeu:
quem mata um como eu
não tem dó no coração.

João lhe disse: esse objeto
nem é manso nem é brabo
nem é grande nem pequeno
nem é santo nem é diabo
bem que mamãe me dizia
que eu ainda caía
onde a porca torce o rabo.

Trouxeram uma bandeja
ornada com muitas flores
dentro dela uma latinha
cheia de muitos fulgores
o rei lhe disse: João Grilo
é este o último estrilo
que rebenta tuas dores.

João Grilo desta vez
passou na última estica
adivinhar uma coisa
nojenta que se pratica
fugir da sorte mesquinha
pois dentro da lata tinha
um pouquinho de xinica.

O rei disse: João Grilo
veja se escapa da morte;
o que tem nessa latinha?
responda se tiver sorte;
toda aquela populaça
queria ver a desgraça
do Grilo franzino e forte.

Minha mãe profetizou
que o futuro é minha perda
"Dessas adivinhações
brevemente você herda;"
faz de conta que já vi
como está hoje aqui
parece que dá em merda.

O rei achou muita graça
nada teve o que fazer
João Grilo ficou na corte
com regozijo e prazer
gozando um bom paladar
foi comer sem trabalhar
desta data até morrer.

E todas as questões do reino
era João que deslindava
qualquer pergunta difícil
ele sempre decifrava
julgamentos delicados
problemas muito enrascados
era João que desmanchava.

Certa vez chegou na corte
um mendigo esfarrapado
com uma mochila nas costas
dois guardas de cada lado
seu rosto cheio de mágoa
os olhos vertendo água
fazia pena o coitado.

Junto dele estava um duque
que veio denunciar
dizendo que o mendigo
na prisão ia morar
por nãp pagar a despesa
que fizera com afoiteza
sem ninguém lhe convidar.

João Grilo disse ao mendigo:
e como é, pobretão
que se faz uma despesa
sem ter no bolso um tostão?
me conte todo o passado
depois de ter-lhe escutado
lhe darei razão ou nào.

Disse o mendigo: sou pobre
e fui pedir uma esmola
na casa do senhor duque
e levei minha sacola
quando cheguei na cozinha
vi cozinhando galinha
numa grande caçarola.

- Como a comida cheirava
eu tive apetite nela
tirei um taco de pão
e marchei prolado dela
e sem pensar na desgraça
botei o pão na fumaça
que saía da panela.

- O cozinheiro zangou-se
chamou logo seu senhor
dizendo que eu roubara
da comida seu d\sabor
só por eu ter colocado
um taco de pão mirrado
aproveitando o vapor.

- Por isso fui obrigado
a pagar esta quantia
como não tive dinheiro
o duque por tirania
mandou trazer-me escoltado
pra depois de ser julgado
ser posto na enxovia.

João Grilo disse: está bom
não precisa mais falar;
então pergunto ao duque:
quanto o homem vai pagar?
- Cinco coroas de prata
ou paga ou vai pra chibata
não lhe deve perdoar.

João Grilo tirou do bolso
a importância cobrada
na mochila do mendigo
deixou-a depositada
e disse para o mendigo:
balance a mochila, amigo
pro duque ouvir a zoada.

O mendigo sem demora
fez como o Grilo mandou
pegou sua mochilinha
com a prata balançou
sem compreender o truque
bem no ouvido do duque
o dinheiro tilintou.

Dise o duque enfurecido:
mas não recebi o meu;
diz o Grilo: sim senhor
e isto foi o que valeu
deixe de ser batoteiro
o tinido do dinheiro
o senhor já recebeu.

- Você diz que o mendigo
por ter provado o vapor
foi mesmo que ter comido
seu manjar e seu sabor
pois também é verdadeiro
que o tinir do dinheiro
represente seu valor.

Virou-se para o mendigo
e disse: estás perdoado
leva o dinheiro que dei-te
vai pra casa descansado;
o duque olhou para o Grilo
depois de dar um estrilo
saiu por ali danado.

A fama então de João Grilo
foi de nação em nação,
por sua sabedoria
e por seu bom coração
sem ser por ele esperado
um dia foi convidado
pra visitar um sultão.

O rei daquele país
quis o reino embandeirado
pra receber a visita
do ilustre convidado
o castelo estava em flores
cheios de grandes fulgores
ricamente engalanado.

As damas da alta côrte
trajavam decentemente
toda côrte imperial
esperava impaciente
ou por isso ou por aquilo
para conhecer João Grilo
figura tão eminente.

Afinal chegou João Grilo
no reinado do sultão
quando ele entrou na côrte
foi grande decepção
de paletó remendado
sapato velho furado
nas costas um matulão.

O rei disse: não é ele
pois assim já é demais!
João Grilo pediu licença
mostrou-lhe as credenciais
embora o rei não gostasse
mandou que ele ocupasse
os aposentos reais.

Só se ouvia cochichos
que vinham de todo lado
as damas então diziam
é esse o homem falado?
duma pobreza tamanha
e ele nem se acanha
de ser nosso convidado!

Até os membros da côrte
diziam num tom chocante:
pensava que o João Grilo
fosse um tipo elegante
mas nos manda um remendado
sem roupa esfarrapado
um maltrapilho ambulante.

E João Grilo ouvia tudo
mas sem dar demonstração
em toda a corte real
ninguém lhe dava atenção
por mostrar-se esmolambado
tinha sido desprezado
naquela rica nação.

Afinal veio um criado
e disse sem o fitar:
já preparei o banheiro
para o senhor se banhar
vista uma roupa minha
e depois vá na cozinha
na hora de almoçar.

João Grilo disse: está bem;
mas disse com seu botão:
roupas finas trouxe eu
dento do meu matulão
me apresentei rasgado
para ver nesse reinado
qual era a minha impressão.

João Grilo tomou um banho
vestiu uma roupa de gala
então muito bem vestido
apresentou-se na sala
ao ver seu traje tão belo
houve gente no castelo
que quase perdia a fala.

E então toda repulsa
transformou-se de repente
o rei chamou-o pra mesa
como homem competente
consigo dizia João:
na hora da refeição
vou ensinar essa gente.

O almoço foi servido
porém João não quis comer
despejou vinho na roupa
só para vê-lo escorrer
ante a côrte estarrecida
encheu os bolsos de comida
para todo mundo ver.

O rei muito aborrecido
perguntou para João:
por qual motivo o senhor
não come da refeição?
respondeu João com maldade:
tenha calma, majestade
digo já toda a razão.

- Esta mesa tão repleta
de tanta comida boa
não foi posta para mim
um ente vulgar à toa;
desde a sobremesa à sopa
foram postas à minha roupa
e não à minha pessoa.

Os comensais se olharam
o rei pergunta espantado:
por que o senhor diz isto
estando tão bem tratado?
disse João: isso se explica
por estar de roupa rica
não sou mais esmolambado.

Eu estando esmolambado
ia comer na cozinha
mas como troquei de roupa
como junto da rainha
vejo nisto um grande ultraje
homenagem ao meu traje
e não à pessoa minha.

Toda corte imperial
pediu desculpa a João
e muito tempo falou-se
naquela dura lição
e todo mundo dizia
que sua sabedoria
igualava a Salomão.

Ditados Populares do Brasil (Letra E)

É BOI sonso que arromba a cerca.
É COBRA engolindo cobra.
É DANDO que se recebe.
É DE CHEIRAR e guardar.
É DE NOVO que se acerta o galho.
É MELHOR adormecer sem ceia, a acordar com dívidas.
É MELHOR passar por ignorante do que ignorante ser.
É MUITA areia pro meu caminhão.
É ONDE a porca torce o rabo.
É PEIXE fora d’água.
É TEMPO de murici, cada um cuide de si.
EM BOCA fechada não entra mosca.
EM CADA cabeça uma sentença.
EM CASA de enforcado, não se fala em corda.
EM CASA de ferreiro, espeto de pau.
EM CIMA de queda, coice.
EM RIO de piranhas, jacaré nada de costa.
EM TERRA de cego quem tem um olho é rei.
EM TERRA de sapo, mosquito não dá rasante.
ENCHER lingüiça.
ENGANA-SE quem pensa que o céu é perto.
ENGOLIR um boi, e engasga-se com um mosquito.
ENQUANTO há vida, há esperança.
ENQUANTO não encontro a mulher certa… me divirto com as erradas.
ESTRELA dalva é minha guia.
É DE NOITE que a saudade aperta.
É DURO velório sem cachaça.
EM CIMA da morte, ganhando o pão da vida.
EM CIMA da morte procuro a sorte.
EM CIMA de quatro pneus cheios, um coração vazio.
É MELHOR perder do que não competir.
É MELHOR uma amiga na sombra do que uma sombra amiga.
É MELHOR a crítica do inimigo do que o elogio do falso amigo.
ENQUANTO eu vago pelo mundo um coração pulsa por mim.
ENQUANTO Maria reza, “Mercedes Benze???.
ENTRE, amigo, a casa é sua, mas se for pra fiado, é melhor ficar na rua…
ENTRE a morena e a loura prefiro as duas.
ENTROU porque quis; aqui não é garagem.
É PENSANDO ser rico que se fica pobre.
ERRAR é humano; persistir no erro é bigamia.
ESPELHO reflete sem falar, a mulher fala sem refletir.
ESQUENTA mas não ferve.
ÉS TÃO hipócrita que choras pelo olho de vidro.
ESTE mundo é a ante-sala do outro.
ESTE não geme na rampa.
É TRISTE cair; mais triste ainda é não tentar subir.
É TRISTE sonhar com o amor e acordar sozinho.
EU NÃO rejeito parada nem paro em beira de estrada.
EU QUERIA ser pobre um dia, porque ser pobre todo dia é duro.
EU QUERIA ser uma lágrima só pra rolar em tua face.
EU TE vejo com os olhos do coração.
EU VEJO a face, Deus o coração.
EU VI os seios da saudade no decote da ausência.
ENSINAR Padre-Nosso a vigário.
ENTRAR mudo e sair calado.
ENTRAR por um ouvido e sair pelo outro.
ENTRE duas pedras, só coco.
ENXUGAR gelo.
ERVAS daninhas crescem depressa.
ERVAS ruins, geadas não matam.
ESCREVEU não leu, o pau comeu.
ESMOLA grande, o cego desconfia.
ESTAR claro, como água.
ESTAR com a pulga atrás da orelha.
ESTAR com nó na garganta.
ESTAR em cima da carne-seca.
ESTAR em papos-de-aranha.
ESTAR entregue às moscas.
ESTAR na casa do sem jeito.
ESTAR no mato sem cachorro.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 21. Rufina (5)

Tornei a ver a minha Rufina, afinal.

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de trás o prático de farmácia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mãe era uma guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo da Medicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se mais idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Mas a velhice é uma coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituída de uma beleza decomposta. Não o consegui. Teriam talvez uma espécie de beleza interior. Mas por que então não se revelava cá fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho?

Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De repente, quem havia de descobrir! Lá no fundo, sentadinha entre uma preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a própria, a autêntica, a única, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida -a boa criatura! Toda ela era uma só imagem de lindeza una e vibrante como uma interjeição.

Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombro e à cabecinha redonda um quê dessa graça aconchegada e sólida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos. Mergulhei-me na figura de Rufina.

Nisto, veio de lá o prático de farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito com a mais intempestiva lentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus. Depois, saltou. -Lamentei sinceramente que não tivesse caído. Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atrás de um quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas paredes.

Quando o bonde chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meu banco, que era o da frente, para repor em zero o relógio de marcação das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato, dando costas à linda criatura. Tão depressa o condutor se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.

Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada. Sacudiu-me então uma tal intensidade de desespero e de cólera, que me pus a rir e a rilhar os dentes.

Foi este o dia mais negro dos meus últimos dez anos. Dei ponto na repartição, e fui fazer um passeio de bêbedo por bairros distantes e ignorados.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte X – Para Vingar

O Satanás vivia infeliz nas suas pesquisas para descobrir o paradeiro de Branca. Por mais que se fizesse a sombra de d. Pedro, por mais que o seguisse em todas as costumeiras migrações noturnas, por mais que se lhe pusesse debruçado sobre o espírito a acompanhar-lhe a sucessiva eclosão de idéias, não conseguira nunca descortinar um bocadinho desse mistério, que ficava para além sepulto no abismo apavorante dos segredos.

Vinham-lhe por vezes dúvidas, suspeitas de que d. Bias tivesse mentido, vontade de sujeitá-lo a um novo inquérito, planos de prendê-lo e de arrancar-lhe a verdade até mesmo pela tortura.

Mas d. Bias desaparecera. Ninguém mais o encontrava, nem lá na bodega do Trancoso, nem pelos outros lugares por onde ele gostava antigamente de passear a sua longa durindana ferrugenta. Fizera-se caseiro. E, ali nos fundos do convento do Carmo, enlevava-se todo no amor da sua encarcerada, contente da vida, porque a Domitila nada resolvia sobre a infeliz louca, porque davam-lhe bom repasto, e porque estava a seguro de um encontro com o escultor.

Falto dessas informações, desse caminho único para a descoberta da verdade, o Satanás tinha também, por vezes, ímpetos de interpelar o príncipe, de ir diretamente a ele para a luta suprema das vinganças paternas. Aproveitaria o ensejo de uma alta noite, naquela hora em que os dous costumavam estar sozinhos, e em que o vinho e a mulher fazem a palavra expansiva e franca, volutuosamente escorregando pela língua para o diálogo amigável das confissões. E então seria brutal, violento como um pai ultrajado que se arma com a plenitude dos seus direitos e com o instinto das suas obrigações.

Oh! ele bem saberia ritmar a grande vibração sonora das suas reclamações e dos seus discursos, ele bem saberia como falar com a voz repassada de confrangimento, pontuada de gritos e de imprecações. Para isso bastava que deixasse transbordar toda inteira a dor sofrida que lhe ia na alma.

Mas não convinha. D. Pedro não se sujeitaria a ouvi-lo, e nem tinha remédios para curar-lhe o sofrimento, porque não há bálsamo que chegue para suavizar a ferida feita nesse amor de pai, imaculado e puro, divinal e casto.

Por isso, ele, Satanás, queria a vingança.

Os sucessos políticos, cuja confidência lhe era diariamente feita e em que andava completamente envolvido, vinham servir-lhe, a mais não ser, nessa obra sinistra de vinditas que estava longamente planejando. Eles eram a apoteose do príncipe que o povo aclamava; podiam tornar-se a derrota do seu orgulho e a morte para sempre da sua individualidade sepultada nas trevas de um cárcere.

E o Satanás sonhou primeiro com a reação portuguesa. As tropas lusitanas ainda estavam aqui, luzidias e valentes, bem afamadas na disciplina e respeitadas pelo povo.

Bem certo que Jorge de Avilez quietava-se irresoluto, não sabendo que partido eleger, receoso de optar entre as cortes e o príncipe herdeiro de Bragança. Para determiná-lo a uma reação pronta e imediata, o Pallingrini teve então uma dessas idéias diabólicas, que só a ele podiam acorrer. E numa carta incisiva que dirigiu ao general português, narrou a história de uns amores de d. Pedro, que tinha penetrado até a câmara nupcial do tíbio comandante lusitano.

Este, ferido em seus brios e em sua honra, louco de dores, preparou-se então para reagir. Mas abortou logo em princípio o movimento que projetara. A milícia, principalmente a milícia de Niterói, cercou a divisão lusa e obrigou-a a capitular e ir aquartelar-se na Armação, até que se aprestassem vapores para recambiá-la para a Europa.

O Satanás tratou então de aproveitar os elementos nacionais que se congregavam em torno da Sociedade Tenebrosa do Apostolado, e que desde o começo fundamentara o dogma do nativismo.

Aí iniciado, ele tornou-se um dos maiores propugnadores da idéia, tratando de aliciar adeptos e enredando o Rio de Janeiro numa vasta conspiração, a que faltava apenas um chefe, com coragem e audácia para fazer a Independência de uma só vez e completamente.

O seu principal trabalho, porém, trabalho surdo de alcoviteiro que intriga e sabe o segredo amoroso da alma humana, foi a rivalidade que estabeleceu entre a Domitila e a irmã. Dessa luta de mulheres que lutavam dentro do coração do príncipe, devia necessariamente resultar a devastação do campo de batalha.

E era isso o que ele queria, isso o que esperava como primeiro suplício na senda tormentosa de desgraças que estava preparando ao régio boêmio de Bragança.

D. Pedro era o Archonte Rei do Apostolado. Chefe supremo da poderosa sociedade, fora nela que encontrara o mais sólido apoio para as suas ambiciosas pretensões. E mal podia ele imaginar que dali mesmo partiria o primeiro golpe contra o seu poder.

Foi a própria Domitila quem o preveniu do perigo. D. Bias, que, temendo o Satanás, o considerava inimigo, começou também a freqüentar as sessões da Sociedade Tenebrosa e chegou ao conhecimento da trama que se urdia. A Domitila, possuidora do segredo, não hesitou: mais do que o seu despeito de amante enganada pôde o seu amor e pôde a sua ambição. Contou tudo ao príncipe.

Dai a dous dias, o Apostolado devia reunir-se em sessão magna.
O príncipe dispôs-se a golpear de morte nesse dia a instituição que o queria prender.

Foi numa segunda-feira. As sete horas da noite, ninguém diria, ao passar pelo velho quartel da Guarda Velha, que havia ali uma reunião de mais de quinhentas pessoas das mais altamente colocadas da política, do exército e do povo. A casa estava às escuras, com todas as janelas fechadas.

De quando em quando, um vulto chegava, embuçado, e batia três pancadas à porta. A porta abria-se, e o vulto entrava, perdendo-se no corredor escuro, depois das palavras sacramentais do santo e da senha.

- S. Pedro!

- Amor e Fidelidade!

A sala de sessão ficava ao fundo da casa. Chegava-se lá depois de percorrer três longos corredores, através do quartel.

Era uma enorme sala, toda forrada de tapeçaria negra e iluminada apenas por um enorme lustre negro que pendia do teto, e onde ardiam dezenas de velas. Ao fundo erguia-se um estrado, onde duas largas cadeiras e uma pequena mesa esperavam o Archonte Rei e o acólito. Sobre o estrado, no fundo negro da parede, destacava-se, bordado a vermelho, o símbolo da sociedade: um triângulo, cercado por uma facha, onde se lia - Soc. Ten. do Apos. - e em cujo centro ocultava o desenho de uma espada e de um machado, cruzando-se.

As cadeiras dos camaradas estendiam-se em quatro grandes semicírculos, pela sala negra, abafada, onde a voz ecoava longamente, não achando por onde sair. E reinava em tudo aquilo um pavor, que pesava na alma...

Já quase todas as cadeiras estavam ocupadas. Todos os camaradas vestiam túnica negra, com o símbolo vermelho ao peito.

Quando o Satanás entrou, a primeira pessoa que viu, foi d. Bias.

O fidalgo espanhol era a figura mais sinistra de toda a sala. Estava a um canto, encarapitado na cadeira, com os joelhos pontudos e salientando-se na túnica, e com um eterno movimento de queixos, como se estivesse murmurando uma oração. Quem o via, pensava que d. Bias estava rezando. Engano: d. Bias estava comendo biscoitos.

O Satanás parou e deixou cair pesadamente a mão sobre o ombro do carcereiro de Branca. D. Bias ficou pálido como um cadáver, batendo os dentes e unindo as mãos, num gesto de súplica. Mas, o Satanás fez-lhe um sinal de ameaça e foi sentar-se no seu lugar.

Ah! não tardava muito, não tardava muito! Em breve a porta se abriria, e ele apareceria, confiado e calmo, sem esperar que daquela casa partisse a sentença da sua condenação. E quando d. Pedro - o poderoso - se visse diante daquele oceano de quinhentas cabeças, todas agitadas de ódios, todas regularmente e implacavelmente sacudidas numa negação absoluta de apoio, ele, Satanás, o fraco, o vencido, o cão rafeiro, exultaria na sua fraqueza e na sua pequenez...

Mas a hora aproximava-se. O acólito - Máximo Régulo - fora tomar o seu lugar no estrado. Um sino vibrou três pancadas, agudas e rápidas. Todos se levantaram. Um grande silêncio pesou na sala. A porta abriu-se de par em par. E, só, vestido como os outros, na túnica negra e simples de camarada, d. Pedro entrou serenamente empunhando a sua insígnia de Archonte Rei - um bastão de marfim, marchetado de ouro. A fisionomia do príncipe não revelava a menor agitação interior. Caminhou até à mesa.

- Deus te guarde, camarada! elevou-se a voz do acólito.

- Leve-te o diabo, traidor ! - soou no grande silêncio da sala apavorada a voz soturna do príncipe.

E, antes que alguém tivesse tempo de voltar a si da surpresa, d. Pedro abriu a pasta que se achava sobre a mesa revolveu os papéis, guardou-os consigo.

E, erguendo o bastão, gritou:

- Saiam!
–––––––––––
continua

sexta-feira, 15 de março de 2013

Wagner Marques Lopes/MG (Fábula: A Águia Viajora e suas Companheiras)

Um bando de águias possuía seus ninhos nas altitudes médias de uma extensa cordilheira.

Certo dia, uma delas, causando estranhamento geral, resolveu voar em direção ao ponto culminante do maciço.

No momento de sua partida, ouviu este comentário:

- Quem já viu alguma caça lá no ponto mais alto?...

Nas grandes alturas, ela pôde apreciar todo o esplendor do sol e as brancas nuvens, que se tornavam diminutas quais farrapos de algodão... Abarcar numa visão abrangente toda a extensão do deserto, onde ela e as amigas diariamente caçavam. Assistir o panorama formado pelos rios e estradas que se perdiam à distância, com seus meandros sulcando a planície.    

Veio o entardecer e a Águia Viajora fez o seu retorno ao ninho.

    Voando com dificuldade, ela conduzia no bico uma enorme lasca    de gelo.

Tão logo ela chegou, suas companheiras passaram a alinhar palavras descaridosas, ante a inesperada novidade:

- Crás!... Demorou tanto, e ainda nos traz um pedaço de gelo!...

- Será que não são bastantes as muitas geleiras que nos cercam?!... 

- Além disso, eu acho que ela deveria ficar lá por cima em definitivo. Seria menos uma a respirar o nosso escasso ar...

As observações irônicas continuaram.

Ouviu-se um forte estrondo. O ocorrido foi numa montanha em frente. Uma grande geleira se partiu e desmoronou, anunciando, com bastante antecedência, a chegada de um rigoroso verão. As geleiras mais próximas estavam destinadas a derreter.

Todas as águias ficaram muito assustadas e foram dormir.  Com exceção da águia Viajora, que ficou ainda um bom tempo acordada; lembrando-se da explicação que ela não conseguiu transmitir às companheiras, antes do desabamento da geleira:

- Minhas amigas, o verão não tarda e as geleiras em torno irão desaparecer...  Esta lasca de gelo, dividida em muitos blocos, ao lado de outras que nós poderemos juntar, ajudarão a tornar mais amenas as temperaturas em nossos ninhos. Após as exaustivas caçadas lá no deserto, encontraremos por aqui um ambiente bem mais agradável...
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Moral em trova

Quando eu me apresso em julgar
sem ouvir o que é preciso,
a crise encontra lugar
e me apanha... Sem aviso!...

Fonte:
O Autor

Franklin Dória (Poemas Avulsos)

Libreria Fogola Pisa
SOL NASCENTE

O hálito de Deus o sol acende;
E o sol o manto de oiro presto estende
Sobre o éter azul e a terra e o mar:
Tudo luz, tudo brilha, tudo encanta,
Se espreguiça, se agita, se alevanta,
Ao seu ardente e penetrante olhar.

As nuvens são corcéis, que dispararam
Da arena afogueada que formaram
As faixas do horizonte em combustão:
Freios partidos, pelo ar galopam;
Sangue vivo escumando, ora se topam,
Ora em procura do infinito vão.

A branca estrela que o crepúsculo adorna,
E torrentes de amor lânguida entorna,
Nos trasflores celestes se sumiu:
Longa saia de malha coruscante
Do mar, que chora e ri no mesmo instante,
As entranhas geladas constringiu.

O orvalho transparente o chão prateia:
Aqui sobre uma flor trêmulo ondeia,
Sobre outra numa lágrima se esvai;
Aqui parece pedra preciosa,
Ali, bem como chuva luminosa,
Lento e suave do arvoredo cai.

Ave enorme, do chão voa a neblina!
Frouxo clarão de lâmpada ilumina
Do vale o solitário penetral,
- Página em flores que a sorrir se deixam,
E sobre a qual dois altos cerros fecham
Parênteses de pedra colossal.

Ali o monte de coroa erguida,
Que ao céu implora co’uma voz sumida,
Ao menos, uma gota de licor
Para a ferida, que lhe o raio abrira,
- Gládio que a nuvem da bainha tira
No campo da procela, todo horror...

Matas, que enche, à só noite, a fantasia
De abusões, de gemidos de agonia,
De pálidos lêmures infernais,
Do sol nascente aos raios purpurinos,
Entre a harmonia de singelos hinos,
Como tão majestosas acordais!

Vós sois um mundo nebuloso e vasto,
Em que apenas se imprime o leve rasto
Da avezinha, da fera, ou do réptil:
Em lugar de palácio altivo e nobre,
Que o oiro e a lama ao mesmo tempo cobre,
Simples ninho abrigais, rude covil.

Oh! eu irei um dia, eu o primeiro,
Vaguear, namorado e aventureiro,
Por vossos labirintos de cipó;
Ver a azul borboleta que esvoaça,
A suçuarana que raivada passa,
E a cobra de coral rojar no pó!

E voltarei co’a mente incendiada!
E sentirei a vida mais ousada,
Mais rubro o céu das minhas ilusões!
Colombo, cheio de riqueza imensa;
Homem, cheio de esp’ranças e de crença;
Poeta, cheio de mil inspirações!

É toda um paraíso agora a terra.
Abraçam-se colina, outeiro e serra,
Com a sua coroa cada qual:
Aquela tem penacho de esmeralda,
Esta de malmequer áurea grinalda,
O outeiro a choça, que atalaia o val.

Tudo agora começa seu caminho:
O verme sai do pó, a ave do ninho,
Da casinha de palha o pescador;
A abelha infatigável da colméia,
Da luz o brilho, da palavra a idéia,
O perfume do cálice da flor.

Que orquestra sobe ao céu! O mar vozeia.
Murmura a fonte, o pássaro gorjeia,
E a brisa da manhã voa a gemer;
Canta à viola a jovem camponesa,
O desditoso chora, o crente reza...
Destarte faz a dor eco ao prazer!

Quão belo é o sol nascente! Olhos abertos,
Penetra os pólos de cristal cobertos,
Devassa nunca vistos areais;
Farol do tempo, leão de áureas crinas,
Diz, topando nos crânios das ruínas:
- Aqui foram impérios colossais! -

Pêndula que se agita no infinito,
Que ouve talvez da eternidade o grito,
Atalaia de todas as ações,
Anelado, redoira na memória
Era feliz, que eternizou a glória,
Sempre amada dos grandes corações.

Quão belo é o sol nascente! Ele afugenta
Do ar a cerração grossa e cinzenta,
D’alma a tristeza e os pensamentos vis:
Aos homens todos ao lavor convida;
E dá força, e vigor, a alento, e vida
Ao que é desgraçado, ao que é feliz.

Ao mendigo, que fina-se, consola
Com a promessa de abundante esmola,
Ou de algum protetor bom, liberal;
Ao pobre manda um raio de ventura;
Ao órfão, desvalida criatura,
Faz sonhar doce afago maternal.

Ele diz ao que é forte: - Hoje clemência!
Ao fraco: - Mais um dia paciência!
Àquele que lamenta-se: - Esperai!
Aos tristes ele diz: - Sede contentes!
Ao meu influxo borbulhai, sementes!
Preciosas idéias, borbulhai!

Ele diz ao poeta: - Alevantai-vos!
Dos grandes pensamentos inspirai-vos!
Ide, correi, correi às multidões!
A fé levai-lhes no queimar dos hinos,
Como outrora os Apóstolos divinos
Levaram graça e luz a mil nações.

Aos lábios todos ele diz: - Sorri-vos!
A toda flor e coração: - Abri-vos!
Lançai perfumes, transbordai de amor!
Para tudo o que nasce e vive e sente
É belo, sempre belo o sol nascente,
Reverberando aos pés do Criador!

A FELICIDADE
Ser feliz não é ocioso
Passar dias festivais,
Nem ter cofre precioso
Pejado de cabedais;
Não, isto não é ventura;
Ao mesmo Creso tortura
A agonia do sofrer;
Vive o rico na opulência,
Mas desgostoso a existência
Não cessa de maldizer.

Ser feliz não é pujante
Conquistar cem regiões
Mostrar-se um vulto que espante
Pelo brilho das ações;
Acender em cada passo,
Seguro, de glória um traço
Indelével, imortal;
E por fim, co’a fronte erguida,
Tranqüilo perder a vida,
Tendo ganho um pedestal.

Não é, não. Da glória a estrada
De espinhos coberta jaz;
É árdua, longa a jornada,
Que, por seu trilho se faz.
A fama nos colhe o fruto;
O egoísmo corrupto
Faminto, impudente o rói:
O homem deificado
Foi antes martirizado,
Chame-se gênio ou herói.

Ser feliz é nesta vida
Ter um seio a estremecer,
Onde a alma beba insofrida
O frenesi do prazer;
Onde a fronte macilenta
Sinta o calor, que aviventa
Com suave languidez;
Onde perfumes aéreos
Embalsamem os mistérios
Da amorosa embriaguez.

Ser feliz é, deslembrado
Dos mundanos vaivéns,
Junto do ente adorado
Gozar inúmeros bens;
Levar tempo indefinido
Em seus olhos embebido,
Como quem atento lê;
Co’o peito que forte pulsa,
A mais pequena repulsa,
Dizer-lhe terno: Por quê?

Ser feliz é no retiro
Ter companheira fiel,
Que pague longo suspiro
Co’um beijo, que sabe a mel;
Com ela amar os luares,
As aragens salutares,
A sombra que envolve a chã,
As flores da sicupira,
E o hino de cada lira,
Que soa pela manhã.

Ser feliz é, nessas horas
De tédio e vaga aflição,
De lembranças opressoras,
De opressora inquietação,
Co’aquela que nos entrega,
Ébria de amor, de amor cega,
O fio do dias seus,
Procurar o santuário,
E bem ao pé do Calvário,
Orando, falar a Deus.

Não! tudo não é vaidade:
Não! tudo não é sofrer:
Existe a felicidade,
Logo que existe a mulher.
Amai-a, amai-a deveras;
O amor é das quimeras,
Se ele é quimera, a melhor:
Nutri um amor profundo,
Que há de encantar-vos o mundo.
A felicidade é o amor!

FADÁRIO

O poeta, primeiro, preludia
Sons fugitivos de um viver sem dor:
Colhe sonhos gentis na fantasia;
É o doce cantor.

Ama o céu, e o mar, e a natureza,
Essa eterna epopéia do Senhor;
Ama, sem escolher, qualquer beleza;
É o doce cantor.

Ao depois, o poeta se desprende
Do formoso jardim, no qual viveu:
Sua alma agora vivo lume acende;
É o cantor do céu.

Para o amor da mulher achou estreita
A terra, em que inocente adormeceu;
Para mundos etéreos se indireita;
É o cantor do céu.

Voltou depressa, que encontrou espinhos,
Julgando achar esplêndidos troféus:
Sentou-se sobre o marco dos caminhos;
É o cantor de Deus.

E, solitário, co’olhar aflito
Fitado lá na abóbada dos céus;
E nas faces o pranto do proscrito...
É o cantor de Deus.

(Enlevos, 1859.)

O POVO (excertos)

O povo é como o oceano
Se erguendo livre do chão
Majestoso e soberano
Como a cruz da Redenção (...)

O rei sem povo é paládio
Sem santuário e sem grei:
O povo é o primeiro dono:
O povo é quem molda o trono:
O povo é que faz o rei! (...)
O povo é como uma barca,

Que em alto mar se perdeu,
E sem farol, astro ou marca,
Luta co'o vento, o escarcéu:
Senhor Deus! olhai pra ela,
Não a deixeis, rota a vela,
Sobre as rochas se partir (...)
A idéia que agita o mundo
Afinal sazonará:
Como as colunas pesadas,
Por Sansão desmoronadas,
O patíb'lo cairá.

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Franklin_Doria.htm