sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Isabel Furini (Relançamento do Livro de Poemas: “Os Corvos de Van Gogh”)

Terça-feira, 26 de novembro, a partir das 19 horas, será relançado o livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” da escritora e poeta premiada Isabel Furini, no Palacete dos Leões, Av. João Gualberto, 570, Alto da Glória, Curitiba.

Van Gogh foi um artista obstinado, um mestre, um pintor genial.  Ignorado pelos homens de sua época, sua obra foi reconhecida depois da sua morte. Isso o torna ainda mais fascinante. 

O livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” procura perceber os movimentos da alma de Van Gogh e os corvos da tristeza e da frustração presentes na sua vida. 

A obra é apresentada pelo poeta Benilson Toniolo, nas orelhas as artistas plásticas Sandra Hiromoto e Cláudia de Lara também dão a sua visão. 

No final do livro o escritor José Feldman faz uma breve biografia do pintor. 

O livro fala dos “corvos de Van Gogh”, além daqueles eternizados no quadro “Trigal com Corvos”, quadro pintado pelo artista pouco tempo antes de sua morte, os poemas representam o medo, a frustração, a solidão, ou seja, os “corvos” interiores.

Na continuação, um poema do livro:

CAMPO DE TRIGO (Van Gogh, 1890)

Corvos ferinos, mímicos ferinos,
sombras da genialidade.

Murmúrio
de rios subterrâneos,
canal das águas do inconsciente,
campo de trigo com pretos corvos
moendo
as tenebrosas horas.

O vento sussurra
entre os ouvidos e a tela.
– quase um ulular de morte.

Fonte:
A Autora

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Rodolpho Abbud (Caderno de Trovas)

A batida no portão
é o sinal convencionado
para avisar que o patrão
vem chegando do outro lado!
**
Acredite quem quiser,
seja o motivo qual for,
em caprichos de mulher,
quando faz juras de amor!...
**
A culpa é minha e é tua,
de quem vê e não faz nada,
se ainda há meninos de rua,
dormindo numa calçada!...
**
A doença comentada
correu mundo, ganhou fama,
pois na pensão "afamada"
ela só vive de cama!…
**
À noite, ao passar das horas,
esqueço os dias tristonhos,
pois tuas longas demoras
dão-me folga para os sonhos!
* *
Ao hospício conduziu
a mulher para internar…
Feito o exame, ela saiu,
e ele teve que ficar!…
* *
Ao se banhar num riacho,
distraída, minha prima
lembrou da peça de baixo
quando tirava a de cima ….
* *
Aos Teus pés eu me ajoelho,
erguendo graças Senhor!
- Quem me dera ser espelho
para a Luz do Teu Amor!
**
Ao ver o frango fugindo
de um outro, num pega-pega,
diz a galinha: Que lindo!
- E o pato: "Tem mãe que é cega"!...
* *
Após batida no morro,
indaga o Zé, com malícia:
-A quem eu peço socorro,
ao ladrão ou a polícia?
* *
Aproveita, criançada,
o tempo, alegre, ligeiro,
que da a uma simples calçada
dimensões do mundo inteiro!
* *
A saudade é tão travessa
que ninguém pode esquecê-la
e a cortina mais espessa
jamais consegue esquecê-la!
* *
Às vezes, num recomeço,
há tal vontade de amar,
que se paga qualquer preço
que a vida queira cobrar!...
* *
A vida é romance breve,
de mistério, onde, com arte,
sem saber, a gente escreve
somente a primeira parte!...
* *
A violência e outras formas
de opressão, mesmo discretas,
não conseguem ditar normas
aos corações dos poetas!
* *
Brasília, o cinquentenário
daquela visão futura
dos sonhos de um visionário
e um gênio da arquitetura!
* *
Cama nova, ele sem pressa
ante a noivinha assustada,
quer examinar a peça
julgando já ser usada!…
* *
Chegaste a sorrir, brejeira,
depois da tarde sem fim…
E, nunca uma noite inteira
foi tão curta para mim!…
* *
Compensando o meu desgosto
por longos dias tristonhos,
à noite eu vejo teu rosto
no espelho azul dos meus sonhos.
* *
Computador... celular...
tudo a ela é oferecido...
- Só lhe falta programar
um robô para marido!...
* *
Contemplo o céu para vê-las
com um respeito profundo,
pois na raiz das estrelas
eu vejo o dono do mundo.
* *
“Dá-me um tempo, ela me disse,
ante o apelo que lhe fiz...
- Agora chega à velhice,
sem tempo de ser feliz!
* *
Dando um susto na mulher,
chega em casa bem cedinho...
- Nem imagina sequer
o susto de seu vizinho!
* *
Dê carona ao seu vizinho!”
E a Zezé, colaborando,
vai seguindo o meu caminho
e me dá de vez em quando!…
* *
Deixando os homens aflitos,
a mulher, por timidez,
faz mistérios infinitos,
quando responde talvez!...
* *
Dela não quero mais nada...
- Tranquei a porta e o portão...
- E a saudade, mais ousada,
alojou-se em meu porão!...
* *
Depois do sonho desfeito,
louvo o porvir que, risonho,
não me recusa o direito
de escolher um novo sonho!
* *
Depois que tudo termina,
na indiferença ou na dor,
nenhum farol ilumina
o naufrágio de um amor...
* *
Disfarçando teu perfume,
mudaste até de fragrância,
mas, nas cartas, teu ciúme
eu sinto a longa distância!
* *
Diz, em segredo, na venda:
"O meu marido acabou!..."
- E houve uma briga tremenda:
a vizinha concordou!...
* *
D. João VI cria a antiga
Vila do Morro Queimado!...
- E a Nova Friburgo liga
seu presente ao seu passado!..
* *
Do energético sapeca,
tirou a prova e deu fé...
- Com dois pingos na careca,
ficou de cabelo em pé!...
* *
Duzentos anos passados...
mas a História permanece!
- Naqueles morros queimados
Nova Friburgo, hoje, cresce!
* *
É força que vem comigo
e no tempo não se esvai:
– Sempre que eu falo de amigo
eu me lembro de meu pai!
* *
Ei, garçom, veja o meu prato!
Tem dois cabelos na beira...
- Por um P.F. barato,
quer ver toda a cabeleira?
* *
Ela é mulher de vanguarda,
motorista de primeira
que ouvindo o apito do guarda,
já vai mostrando a carteira!
* *
Ele pede economia
e ela encontra seu caminho,
poupando sua energia
com o “gato” do vizinho!
* *
Embora livre, sozinho,
não conheço liberdade...
- Fui presa do teu carinho,
hoje estou preso à saudade!...
* *
Em nosso encontro, em segredo,
a vida nos foi covarde:
- Fui eu que cheguei mais cedo,
ou você que chegou tarde?...
* *
Em problemas envolvida,
por um beco se meteu,
que não tinha nem saída,
e, mesmo assim, se perdeu! …
* *
Em seus comícios, nas praças,
o casal cria alvoroços:
- Vai ele inflamando as massas!
- Vai ela inflamando os moços…
* *
Em tudo o que já vivi,
nessa passagem terrena,
se um pecado eu cometi
com ela, valeu a pena!…
* *
É noite... a porteira range
no rancho, à beira da estrada
e o luar, saudoso, tange
os clarões da madrugada!
* *
Enquanto um velho comenta
sobre a vida: -”Ah! Se eu soubesse…”
um outro vem e acrescenta
já descrente: -”Ah! Se eu pudesse…”
* *
Entre esperas e procuras,
encontros e despedidas,
somadas, nossas loucuras
dão mais vidas as nossas vidas!...
* *
Entre os livros, esquecida,
na estante bem arrumada
e contém toda uma vida
essa carta amarelada!
* *
Eu... você... nossa lembrança
de um grande amor, puro, terno,
que um capricho da esperança
simulou que fosse eterno!..
* *
Eu finjo que estou contente…
Ela finge que está triste…
– No canto do amor, a gente
desafina… mas resiste!…
* *
Eu tenho pressa, é verdade,
pois este amor me arrebata...
E se eu não mato a saudade,
a saudade é que me mata!
* *
Foi um erro, reconheço,
o nosso medo de amar...
- E hoje pagamos o preço
por nosso medo de errar!...
* *
Foi um gesto de nobreza,
nas lides duras e bravas:
mãos livres de uma princesa
libertando mãos escravas!...
* *
Foram tais os meus pesares
quando, em silêncio partiste,
que, afinal, se tu voltares,
talvez me tornes mais triste…
* *
Foste embora... e, amargurado,
sufoquei minha revolta
tentando a volta ao passado,
mas o passado não volta!...
* *
Foste embora... e, por encanto,
vejo, no amor que alucina,
teu sorriso em cada canto
e teu vulto em cada esquina!
* *
Hei de vencer esta sina
que num capricho qualquer,
me fez amar-te menina
depois negou-me a mulher!…
* *
Mantendo os olhos enxutos,
na dor da tua partida,
eu sufoquei, por minutos,
o pranto de toda a vida.
* *
Manténs o mesmo calor,
com tal graça e timidez,
que, em cada noite de amor,
eu sinto a primeira vez!...
* *
Mesmo nos dias tristonhos
que a vida insiste em nos dar,
liberdade é perder sonhos,
sem desistir de sonhar!
* *
Minha dor foi mais intensa,
ao ver, no adeus, na incerteza:
eu, fingindo indiferença...
você, fingindo tristeza!...
* *
Minha magoa e desencanto
foi ver, no adeus, indeciso:
- Eu disfarçando o meu pranto…
- Tu disfarçando um sorriso…
* *
Minha sogra, no antiquário,
não ouvindo meu conselho,
abriu a porta do armário
levando um susto no espelho!
* *
Muitas mulheres vieram,
mas... um capricho infeliz
deu-lhe todas que o quiseram
e jamais a que ele quis!...
* *
Muitas vezes nesta vida,
a origem de muita zanga
é uma mulher bem vestida
deixando os homens "de tanga"...          
* *
Na angústia vejo, indeciso,
no amor que me desespera,
que o prêmio do teu sorriso
vale o castigo da espera!
* *
Na ansiedade das demoras,
quando chegas e me encantas,
mesmo sendo às tantas horas,
as horas já não são tantas…
* *
Na briga, há pratos voando,
quebradas mesa e cadeira,
mas, vendo a sogra chegando,
diz que tudo é brincadeira.
* *
Na casa do faroleiro
esta ironia ferina:
Lá fora o imenso luzeiro...
- e dentro,uma lamparina.
* *
"Não conto mais com você!..."             
- Diz a mulher, lá da sala.
"Se no verão não se vê,
no inverno, então, nem se fala !..."
* *
Não gastando o celular,
o “pão duro”, em seus intentos,
querendo economizar,
só liga o 0800...
* *
Não me importa o beijo às pressas,
em meio às brigas e às pazes,
pois eu vivo das promessas
que mentindo tu me fazes...
* *
Não reclamo do desgosto,
nem faço queixas a esmo...
Esta máscara em meu rosto
também engana a mim mesmo...
* *
Não sei como não soubeste
mas o amor veio, infeliz…
Eu te quis, tu me quiseste,
mas o Destino não quis…
* *
Não sendo um homem moderno,
meu pecado e insensatez
foi jurar amor eterno
e amar somente uma vez!…
* *
Não vens... na casa fechada,
a saudade, em horas mortas,
nunca espera na calçada:
- Se esgueira através das portas.
* *
Na pensão da "dona" Estela,
há curiosos pensionistas:
Tem um dentista "banguela"
e gordos nutricionistas !...
* *
Na pensão junto ao quartel,
visitas, sem distinção,
do recruta ao coronel,
comem do mesmo feijão!...
* *
Naquele hotel de terceira,
que a policia já fechou,
a Maria arrumadeira
muitas vezes se arrumou!
* *
Nas buscas que o homem faz,
sem sucesso, andando a esmo,
se busca encontrar a paz,
tem que encontrar-se a si mesmo...
* *
Nas lojas sempre envolvido,
não tem crédito jamais…
- ou por ser desconhecido,
ou conhecido demais !…
* *
Na vida, a bem da verdade,
quando se trata de amor,
loucura não tem idade,
sexo, raça, credo ou cor!...
* *
Na vida, em toscos degraus,
entre tropeços a sustos,
mais que a revolta dos maus,
temo a revolta dos justos!
* *
Na vida, lutar, correr,
não me cansa tanto assim…
O que me cansa é saber
que estás cansada de mim!
* *
Nessa paixão que me assalta,
misto de encanto e de dor,
quanto mais você me falta
mais aumenta o meu amor!…
* *
No abandono que o consome,
é quase um mito o menino
que, na rua, não tem nome,
não tem lar, não tem destino!...
* *
No amor, um leve queixume
não é mal, se a gente pensa
que onde nos falta o ciúme...
é que sobra a indiferença!...
* *
No hospício, foi grande o susto,
quando o Zé, no "elevador,"
procurava, a todo custo,
o botão do "baixa dor"!...
* *
No palco, o adeus indeciso ...
e o cenário, um desencanto ...
- Se era falso meu sorriso,
era mais falso teu pranto!...
* *
Nosso amor se eleva ao cume,
naquela poesia infinda
da pontinha de ciúme
que você conserva ainda!
* *
Nosso Príncipe comprova,
pois é dele a grande glória,
que o mundo novo da Trova
também faz parte da História!...
* *
Nosso rancho abandonado,
você, a rede, o luar,
são lembranças de um passado
que não deseja passar!
* *
Nossos afagos exalto,
sem ritos ou convenções,
pois sempre falam mais alto
do que mil declarações!
* *
Nosso sonho deu em nada,
mas nosso amor ergue a voz,
em busca de outra alvorada
que vive dentro de nós!
* *
Nosso encontro …O beijo a medo…
A caricia fugidia…
Nosso amor era segredo,
mas todo mundo sabia…
* *
No "terreiro" ela, com pressa,
Já querendo "se arrumar"
diz que o "santo" é mole à beça...
- Sobe muito devagar!...
* *
Numa ronda de rotina,
busco o amor, rompendo espaços,
mas, quando a busca termina,
eu sempre estou nos teus braços...
* *
O amor deve ser lembrado
sem mágoas, sem dissabor.
Pondo algemas no passado,
não se prende um grande amor!
* *
O amor tem tantos arranjos,
nos feitiços que quiser,
que nos parecem dos anjos
os sorrisos da mulher!...
* *
Ouvindo tuas propostas,
com muito amor, de mãos juntas
eu, que fui buscar respostas,
voltei cheio de perguntas!...
* *
Para aquecer sua vida,
ela tem, sempre à noitinha,
além da boa batida,
canja quente da vizinha!
* *
Para quem tudo é bonito
se a própria mesa está cheia,
chega quase a ser um mito
saciar a fome alheia!...
* *
Para um jantar convidada
por nudistas assumidos,
“pagou mico” indo pelada,
pois todos foram vestidos!...
* *
Passa a nudista na praia
e o guarda, apito na mão,
leva a mais sonora vaia,  
ao cobrir sua "infração"!
* *
Passa o tempo... e eu vivo aqui,
sozinho, em noites de tédio...
- E ainda dizem por aí
que o tempo é o melhor remédio!...
* *
Passei muita noite insone,
ante a voz, macia e bela...
- Quase quebro o telefone
quando vejo a cara dela!
* *
Pelo "saudoso", intrigada,
já suspendeu sua prece...
- É no quarto da empregada
que seu fantasma aparece!...
* *
Perdi, de todo, a alegria,
quando percebi, tristonho,
que em teu amor não cabia
a ousadia do meu sonho!
* *
Por você sigo a jornada...
e o caminho é sonho, é mito!...
- Que importa se é longa a estrada?...
- Também meu sonho é infinito!...
* *
Provando em definitivo
que o Brasil é de outros mundos,
há muito “fantasma” vivo
passando cheques sem fundos…
* *
Quando a fé nos ilumina,
mesmo nas horas mais turvas,
as ruas não têm esquina
e as estradas não têm curvas!
* *
Quando nada mais nos resta,
já bem no fim da descida,
a saudade é fim de festa
do que foi festa na vida!
* *
Quase ao fim dos nossos prazos,
nosso céu tem luz ainda...
Juntando os nossos ocasos,
a noite será mais linda!...
* *
Quem se veste de esperança
vive de alma agradecida,
quando, todo dia, alcança
o grande prêmio da vida!
* *
Quem tem fé não sente medo
e enfrenta as ondas do mar,
pois sempre vê, num rochedo,
alguma estrela a brilhar!
* *
Seja doce a minha sina
e, num porvir de esplendor,
nunca transforme em rotina
os nossos beijos de amor…
* *
Sê, meu filho, um destemido,
pois, na vida, cedo ou tarde,
mais vale a dor do vencido
do que o pranto do covarde!
* *
Sem preconceitos escravos,
nesta vida, sem alardes,
tanto há prudência nos bravos
como ousadia em covardes!...
* *
Sempre tendo muita pressa,
ao morrer, a sogra é assim:
- chega onde a fila começa...
e, depressa, volta ao fim!...
* *
Sem você, meu rumo é incerto
aumentando a solidão...
E penso estar num deserto
no meio da multidão!
* *
Sem você, minha rotina
é aguardar o fim do dia,
quando a noite abre a cortina
para a sessão nostalgia!...
* *
Seu feitiço me seduz
e alcança tal dimensão,
que eu consigo ver a luz,
mesmo em plena escuridão!.
* *
Sob um arbusto na praça,
o casal fez seu retiro,
mas, quando a polícia passa,
não se ouve nem um suspiro!
* *
Soube o marido da Aurora,
ela não sabe por quem,
que o vizinho dorme fora,
quando ele dorme também…-”
* *
Sua voz não foi ouvida,
dando-me adeus, só porque,
as vozes da minha vida,
falam-me sempre em você.
* *
Tamanha angústia me invade
ao lembrar que te beijei,
que chego a sentir saudade
dos beijos que não te dei.
* *
Tendo você ao meu lado,
tudo esqueço e sigo em frente...
- Que me importa seu passado,
se você faz meu presente?...
* *
Ter pressa não é pecado,
mas pode ter alto custo...
Um julgamento apressado
muitas vezes não é justo!
* *
Toda a receita anda pasma,
sem achar explicação...
- Tem funcionário fantasma
que recebe até serão!...
* *
Toda noite sai “na marra”,
Dizendo à mulher: -”Não Torra!”
Se na rua vai a farra,
em casa ela vai à forra!…
* *
Um Deputado ao rogar
ao Senhor, em suas preces,
pede que o verbo “caçar”
não se escreva com dois esses!…
* *
Um longo teste ela fez
de cantora, com requinte…
Cantou somente uma vez,
mas foi cantada umas vinte!…
* *
Vendo a viúva a chorar,
muito linda, em seu cantinho,
todos queriam levar
a “coroa” do vizinho…
* *
Vamos brincar de mãos dadas,
crianças pretas e brancas!…
O sol de nossas calçadas
não tem porteiras nem trancas!
* *
Velhote, "cabra da peste"
diz que, quando dá saudade,
toma o remédio, faz teste,
mas fica só na vontade!...
* *
Veja o mico que eu paguei:
na tentação, no desvio,
de uma garota escutei
a ducha fria: “Oi, titio”!...
* *
Vejo a onda pequenina
que, às vezes, rude, se alteia,
mas, afina, feminina,
morre de amores na areia!...
* *
Vejo em minhas fantasias,
em Friburgo, pelas ruas,
mil sois enfeitando os dias
e, à noite, a luz de mil luas.
* *
Vem amor, vem por quem és!
Pois já tens, em sonhos vãos,
minhas noites a teus pés,
meus dias em tuas mãos!…
* *
Vendo a viuva a chorar,
muito linda, em seu cantinho,
todos queriam levar
a “coroa” do vizinho…
* *
Vendo uma bruxa eu me oculto
tentando esconder-me dela...
Pior foi ver outro vulto:
-Minha sogra na janela!
* *
Você jura... e recomeça
nas ilusões que desfez...
- e a cada nova promessa
meu amor nasce outra vez!...

Fonte:
Trova Brasil n.10

Rodolpho Abbud (1926)

Rodolpho Abbud nasceu em Nova Friburgo/RJ, em 21 de outubro de 1926; filho de Dona Ana Jankowsky Abbud e de Ralim Abbud.

Radialista, Locutor Esportivo, Poeta e Trovador, foi sempre muito bom em tudo aquilo que fez ou faz. Contam até que, certa vez, transmitindo um jogo do Friburguense, teve a sua visão do campo totalmente coberta pelos torcedores. Sem perder a calma, e com sua habitual presença de espirito, continuou a transmissão assim: – “Se o Friburguense mantém a sua formação habitual, a bola deve estar com o zagueiro central, no bico esquerdo da área grande…”

Tem um livro de Trovas intitulado: “Cantigas que vêm da Montanha”, e, recebeu, com inteira justiça e por voto unânime de todos os Trovadores que ostentam essa honra, o titulo de “Magnífico Trovador”.

São poucos os pioneiros da trova em plena atividade. Entre eles, com especial destaque figura Rodolpho Abbud, o grande e querido apóstolo da trova de Nova Friburgo. Ele entrou na alegre tribo dos trovadores em 1960, com aquele vozeirão inconfundível, como repórter de rádio, entrevistando os participantes dos I Jogos Florais na Rádio Sociedade de Friburgo. Gostou tanto, que virou trovador também.

Quase meio século depois, super-jovem em seus 82 anos, o mestre Rodolpho Abbud continua brilhando não só como criador de primorosos versos, mas também como um dos mais importantes líderes nacionais da União Brasileira de Trovadores (UBT). A importância de Rodolpho Abbud vai muito além das fronteiras da cidade.

Premiado em centenas de concursos, Rodolpho é autor de milhares de trovas memoráveis. Entre outros títulos, ostenta o de Magnífico Trovador Honoris Causa, que lhe foi atribuído por ocasião dos 40ºs Jogos Florais de Nova Friburgo. Ele faz parte da geração de trovadores surgidos com o lançamento dos I Jogos Florais. Trata-se do trovador mais antigo da cidade e a prova está em sua carteira de trovador, que ostenta o número 1.

Rodolpho explica aos que não são versados nesta arte que trovas são pequenos poemas de quatro versos, de sete sílabas poéticas, isto é, com o som de sete sílabas – o primeiro rimando com o terceiro e o segundo com o quarto. Ele aprendeu rapidamente os segredos do estilo poético característico da trova recriado por J. G. de Araújo Jorge e Luiz Otávio.

Quando teve início o movimento trovadoresco em Nova Friburgo, Rodolpho trabalhava como comentarista de futebol na Rádio Sociedade de Friburgo e ainda não tinha descoberto que sabia fazer trovas. Mas desde pequeno gostava de fazer quadrinhas. Na infância as crianças aprendiam na cartilha algumas rimas básicas, que davam origem a quadras como uma que Rodolpho jamais esqueceu:

Joãozinho é cabeçudo
mas tem belo coração
é dedicado ao estudo
e sabe sempre a lição”.


Por alguma razão Rodolpho sempre se identificou com o estilo e, mesmo sem saber, já fazia trovas, que costumava chamar de quadrinha, assim no diminutivo mesmo. Naquela época, porém, bastava rimar o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o quarto. Rodolpho acha até graça, porque já naquela época faturou cem mil réis num concurso da Rádio Nacional, com uma de suas primeiras trovas, em 1950.

“Foi numa festa junina
que eu vi a Rita sapeca
A cabocla era bonita
Parecia uma boneca”.


Levou um bom tempo para os trovadores, inclusive o próprio Rodolpho Abbud, incorporar a expressão trova – que vem do francês trouver, isto é, procurar, achar. Chamavam aqueles pequenos poemas de quatro sílabas de quadra, quadrinha ou trovinha, menos de trova. Um dia Luiz Otávio até chamou a atenção do J. G. de Araújo Jorge, quando este lhe contou que tinha feito uma trovinha: “Que trovinha o quê, José Guilherme, isso aí se chama trova, não é trovinha nem trovão, é trova”.  “Acho que eu sei fazer este negócio aí”
 
Rodolpho Abbud já criou mais de cinco mil trovas. Infelizmente, boa parte delas se perdeu e seu acervo conta apenas com as trovas premiadas nos concursos de que participa em todo o Brasil. A sorte é que o mais respeitado trovador da cidade e um dos maiores do país é um colecionador de prêmios, já perdeu a conta do número de troféus e diplomas que já conquistou.

Sua facilidade para criar trovas impressiona até seus colegas trovadores. Todas, diga-se de passagem, dignas de figurar em qualquer antologia. “Com qualquer assunto se faz uma trova”, explica, modesto, tentando explicar os segredos desta arte. Ele acredita em inspiração, tanto que carrega sempre papel e caneta no bolso para anotar as ideias que vão surgindo em sua cabeça.

Hoje em dia uma das atividades que mais gratificam o velho trovador é ensinar a fazer trovas. Ele e seus colegas trovadores já visitaram muitas escolas, transmitindo às crianças e jovens os conceitos básicos que permitem criar trovas capazes de fazer bonito em qualquer concurso. Já estiveram no Ienf, na Escola Canadá, no Ciep Glauber Rocha, na Universidade Candido Mendes. Até na Clínica Santa Lúcia eles já estiveram.

Junto com seus companheiros da UBT, Rodolpho mantém há 50 anos um programa radiofônico pela Rádio Friburgo AM focalizando o movimento trovadoresco de Nova Friburgo e de todo o Brasil. O programa, transmitido todo sábado, às 20h, é o mais antigo do Brasil e seu slogan diz assim:

“É poesia sempre nova
cultivada com amor.
Se você gosta de trova
pode ser um trovador”.


Solidão? Rodolpho diz que não sabe o que é. Junto com seus amigos trovadores, viaja o Brasil inteiro, sendo sempre recebido com festa e toda a hospitalidade pelos companheiros das outras cidades. As viagens são uma verdadeira festa, com todo mundo brincando e fazendo trovas dentro do ônibus.

Depois de trabalhar 42 anos na Fábrica de Filó, todo mundo pensava que ele fosse ficar deprimido quando se aposentasse. Que nada! Voltou a narrar partidas de futebol, depois mergulhou na trova.

Rodolpho é pai de Luiz Carlos, Suely e Rosane, de seu primeiro casamento. Casado pela segunda vez há 50 anos com a doce Cyrléa Neves, eles são pais do conhecido percussionista Rocyr e da não menos conhecida Rivana, do Bar América.

Friburguense da gema, passou a infância na Rua Oliveira Botelho, até o 5º ano primário estudou com dona Helena Coutinho, que tinha uma escola na Rua São João. Fez o ginasial no Colégio Modelo e depois foi aluno do professor Luiz Gonzaga Malheiros.

Do que sente mais saudades da Nova Friburgo de antigamente? Rodolpho Abbud não pensa um segundo antes de responder. “Da Fonte do Suspiro”, responde de imediato e, subitamente, se emociona, chegando a ficar com lágrimas nos olhos. Mas, como os homens de sua geração não choram, trata logo de mudar de assunto. “Ah, sinto muita saudade também do footing da praça, com os rapazes parados como se estivessem num corredor e as moças passeando de um lado para o outro”, conta.

Maluco por futebol, Rodolpho pertence ao quadro de beneméritos do Friburgo Futebol Clube e, no Rio, é tricolor de coração. Fez até uma trova para seu time:

“É paixão que longe vai
na força do coração:
– Tricolor era meu pai
filhos, netos também são”.


Rodolpho e Cyrléa: 50 anos de amor e dedicação à trova

Fonte:
UBT São Paulo (http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3061472)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Raquel Ordones (Quero Guardar-te)

Clique sobre a imagem para ampliar
Fonte: http://raquelordones.blogspot.com.br

Nilto Maciel (Paisagem Celeste)

Pé ante pé, mão a roçar a parede, Luís deixou o quarto, passou pelo corredor e alcançou a ante-sala. Em cada mão um sapato. Parou, conteve a respiração, desceu o primeiro degrau e o segundo. Olhou para trás. Tudo calmo. Levou a mão à porta. Nada de barulho ao retirar a trave. Se Maria ou os filhos acordassem, inventaria alguma desculpa: esquecera de trancar a porta. E voltaria à rede. Sondou de novo a retaguarda: a parca luz da lamparina se infiltrava pela brecha da porta e alumiava uma nesga de chão do corredor. Ninguém tossia nem roncava. Dormiam sonos profundos, talvez. Retirou, com cautela, a trave e a pôs no chão, em posição vertical. Se tombasse, todos acordariam. Deu uma volta à chave, mais uma, retirou-a da fechadura e a colocou num bolso. Abaixou-se para levantar o ferrolho, voltou à posição normal, puxou com leveza a tábua da porta, olhou para os dois lados da rua, fez o movimento contrário na madeira e desceu o degrau para a calçada. Meteu no bolso a mão, à cata de cigarros. Não, a fumaça inundaria a casa, pelas brechas da porta. Caminhou a passos largos no rumo da igreja matriz. Necessitava caminhar muito, cansar, sentir vontade de dormir. Não suportava mais tantas noites sem sono, a se revirar na rede. Quando a claridade da aurora se anunciava no telhado, mal aguentava espiar os punhos da rede, a cabeça a lhe doer, o corpo quente, febril. Embora assim, carecia se banhar, tomar café, caminhar até a mercearia e passar mais um dia sem ânimo, nem para as conversas sem fim com os amigos de sempre. Ao chegar à pracinha, sentou-se num banco. As luzes dos postes lhe faziam mal. Tossiram numa das casas. Tratou de deixar o banco e se pôs a caminhar entre as árvores, pelas calçadas internas do logradouro. Viu-se diante do coreto. Havia quanto tempo não o via! Talvez nunca tivesse passado ao seu interior. Um cachorro dormia debaixo de um banco e se assustou ao ver aquele guarda-noturno estranho. Fez menção de se erguer e correr. Luís o tranquilizou. Ficasse ali mesmo, não lhe ia fazer mal. O cão mirou os olhos do homem, que deu meia-volta e se retirou. Nada de confusões, fosse com bichos, fosse com gente. Precisava de solidão, paz e silêncio. Para onde iria? Talvez para a mercearia. Não, aquilo não. Os vizinhos acordariam e suspeitariam de arrombamento. Além do mais, já passava os dias enfurnado entre sacos de arroz e fardos de algodão. Tomou o rumo da rua paralela àquela pela qual ia e vinha duas vezes por dia. Na calçada outro cachorro deitado junto à parede. Passou para o meio da rua. Avistou, ao longe, as torres da matriz. O relógio indicava 12 horas e 45 minutos. Se encontrasse a porta entreaberta, ajoelharia diante do altar e rezaria. Talvez não. Havia anos não assistia à missa. Até já o chamavam de ateu. E por que não subir a serra? Apressou o passo. Sim, rumar pela estradinha escura e depois se meter no mato, procurar algum riacho, alguma cachoeira. A Lua apareceu atrás do Pico Alto. Pôde ver com clareza o chão coberto de folhas secas e gravetos. Ia necessitar de muito fôlego para subir a ladeira. Daquele jeito, fumando muito, bebendo genebra todo dia, não chegaria longe. Mas precisava daquilo, os negócios iam mal, os filhos mais velhos só lhe davam desgostos, Maria não lhe apetecia mais. Havia quanto tempo não se encostavam um no outro? Ela num quarto, ele noutro. Conversavam apenas o necessário, quando muito. Discutiam por qualquer ninharia. Não se miravam nunca. Dormir como qualquer outro – impossível. Estacou diante de uma vereda. Examinou a ribanceira. Chiado de água a escorrer. Apalpou o chão com os pés e se pôs a descer. Rastejariam serpentes por ali? Armou-se de um pedaço de pau. Serviria de cajado. Maria teria despertado? E os filhos pequenos? Quando acordassem e o não vissem... Não, nunca o viam ao amanhecer. Ainda dormiam quando saía para trabalhar. Mesmo assim, prometia voltar antes de o sol raiar. Sentou-se ao pé de uma rocha. Açoitou o chão com o galho seco. Nada de bichos por perto. Olhou para o alto. A Lua vagava entre nuvens. Acendeu um cigarro. Bater de asas ao seu derredor. Pios de protesto. Jogou fora a ponta acesa e a esmagou com o pé. Deitou-se e se pôs a admirar a Lua, como havia muito não fazia. São Jorge num cavalo enfrentava um dragão. Nuvem enorme encobriu soldado e animais. Luís fechou os olhos. Aquela peleja não acabava nunca. Ou não passava de pintura, paisagem celeste? Rodavam no espaço desde o início. E rodariam até o fim.

            Quando abriu os olhos, uma nesga de sol se filtrava entre as telhas do quarto. Estremeceu na rede e viu Maria a fugir feito fantasma, de volta ao outro quarto. Já voltei da serra?

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Adolfo Caminha (Velho Testamento)

... Insensivelmente o charuto caiu-me dos dedos e eu fiquei na primitiva abstração, numa espécie de sonambulismo artificial e deleitoso, – pernas ao comprido, torso derreado na velha poltrona de couro-da-rússia, olhos além, no grande busto a crayon de Virgínia, trabalho de um desenhista francês.

            A noite estava úmida e sem luz, misteriosa como uma criação de Poe; o contrário da minha querida sala, do meu atelier de escritor, onde se podia gozar um ambiente morno, leve, outonal.

            O cérebro, num de seus dias de ócio brejeiro, recusava o trabalho sutil das idealizações artísticas, parado quase, no meio torpor de uma alma que se volve toda para o passado num dilúculo de nostalgias.

            O olhar, preso ao busto, via nele, esteticamente corporificadas, as minhas loucuras de outro tempo, loucuras inconscientes da mocidade, entusiasmos de rapazola que antes de tudo é homem e, depois de homem, artista.

            Virgínia... Era ela, sim, – o primeiro fruto proibido que meus olhos tocaram –; ela, a primeira mulher que eu amei como deve amar um coração de vinte anos – rindo e folgando; ela, magrinha, inteligente, delicada, de uma simpleza que ia até ao pudor ingênuo das raparigas do campo; a “francesinha”, como eu a chamava quando ainda nenhum fio branco dava sinal de velhice à minha cabeça de longos cabelos fulvos, secretamente adorada nos misteriosos boudoirs do grand monde.

            Fui-me, então, pelo passado numa romaria espiritual de velho peregrino do Amor, os olhos presos ao busto, a imaginação longe, bem longe daquela atmosfera de silêncio e repouso, trancada aos rumores do inverno, discretamente abafada em penumbra macia de estufa...

            Virgínia...

E sempre a mesma ideia, sempre a mesma obstinação, como se diante de mim houvesse uma esplêndida galeria de quadros originais, representando cada um episódios em que Ela e eu figurássemos numa deliciosa permuta de afetos.

            Um, sobretudo, um desses quadros imaginários, vagamente esboçados pela fantasia do espírito, dominava os outros, pondo sobre eles o luto de um crepe intangível...

            O desenhista pintara Virgínia moça, Virgínia bela, Virgínia em toda a sua perfeição de mulher modelo, – grandes olhos de hebreia, negros e luminosos, fulgurantes, numa irradiação perene de vida; boca pequena e sensual, calando revoltas de temperamento, instintos da natureza animal; face alongada...

            Mas, eu via-a como só a vira uma vez:

            Floriam rosas numa opulência triunfal de cores. Tínhamos vindo, eu e Ela, de um pic-nic na montanha, onde fôramos esquecer um pouco a monotonia da existência, por um soberbo outono, cheirando a resedás.

            Partíramos cedo, a cavalo, num trote suave, beirando a floresta escura e profunda, de um verde carregado que se alastrava indefinidamente.

            Ao vê-la nos seus trajes de amazona, rebenque e espora, ostentando o garbo marcial de uma inglesinha do Hyde-Park, o véu desprendendo-se em asas de borboleta ombro fora, lembrei-me da encantadora criação de Gautier na Mademoiselle de Maupin. E, com efeito, havia no porte esbelto, quase vaporoso, de Virgínia essa desenvoltura enérgica e viril da célebre duelista, essa arzinho petulante, um pouco artificial e muitíssimo graciosa que a fazia tão bela.

            Fomos...

            Que linda a manhã! Na mancha sombria do arvoredo abriam-se florações de um exotismo tropical. Para além a poeira branca da estrada quebrando-se em flexuosidades de serpente, e para trás as linhas indecisas do viveiro humano destoucando-se às primeiras nuanças da luz, como esses burgos risonhos que se erguem no meio da floresta americana.

            Ela, então, sempre alegre, numa garrulice infantil, disse-me cousas do passado, episódios da sua vida de menina quando a levavam ao campo; e ria sonoramente, achando muita graça no que ela própria ia narrando.

            Súbito pungia o animal, vibrava o rebenquezinho, e, passando adiante num galope, numa vertigem, dizia-me – adeus, como se voasse para um país longínquo.

            E eu, para que ela não me fugisse deveras, ia-lhe no encalço, rápido também, mordendo o lábio na ânsia de alcançar a minha Diana.

            Clareava. O bosque todo enchia-se de rumores, e, à proporção que nos aproximávamos, à proporção que a indiscreta luz do alvorecer tirava-nos da fusca penumbra matinal, espatulando as suas tintas vivas de ouro e azul por cima da floresta, mais aumentava o nosso bom humor.

            Chegamos, enfim, ao pitoresco recanto de paisagem que devíamos transformar em domicílio provisório.

            De um lado o aspecto igual do mar, o vasto oceano em repouso, numa grande estagnação luminosa, poeirado de ouro, e, em baixo, a planície, o formigueiro humano, a cidade e os longes da floresta...

            – Belo assunto para um poema! Gracejou Virgínia.

            – ... que eu talvez ainda faça, completei rindo.

            E, depois de um longo quarto de hora de êxtase, fomos a percorrer a natureza.

            – Sabes o que me parece isso? perguntei.

            – Isto é quê?

            – Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do Velho Testamento...

            Então Virgínia, com um sorriso de encantadora malícia, criticou a civilização, as exigências da moda, o viver contemporâneo, o luxo, o belo artificial; e, atirando para longe aquele arzinho de educanda, que lhe ia primorosamente, concluiu:

            – Pois olhe, meu amigo, eu vim à floresta recordar a Bíblia, mas a Bíblia dos hebreus, o grande poema da Criação... Isto aqui é deserto como o Paraíso. – Dispensa folhas de vinha...

            Não percebi logo. Iria ela tentar alguma loucura?

            Perto de nós, à sombra de uma árvore gigante, o cristal de um veio d’água ia despejar em cascata na frescura de um reservatório.

            Vejo-a como naquela manhã, vejo-a desabotoar o casaco, despir-se toda, e, formosa baigneuse, correr para o tanque. – Oh! exclamei numa surpresa de artista, cravando os olhos na pequenina estátua de Virgínia, que outra cousa não era aquele corpo ideal, quase transparente de mulher nova.

            Já agora o esplendor da luz coroava esta cena bíblica em que mais uma vez o homem e a mulher pecavam no seio da natureza, reproduzindo o eterno idílio de seus pais...

            Não era mais bela a amante do primeiro homem que esse tipo miniatural de judia do século dezenove cantando o ditirambo do amor livre em plena luz, num recanto de floresta.

            Virgínia emergiu cansada e trêmula, um quer que era de doentia morbidez na face e no olhar.

            – É extraordinário, disse ela, sinto um vulcão dentro de mim!

            Delicadamente ofereci-lhe cognac: – uma bebida inocente, um magnífico preservativo...

            Reconheci que não era aquele o seu estado normal e logo, cheio de temores, ocultando a minha inquietação, afetando a maior naturalidade, consolando-a, acordando-lhe o interesse pelos efeitos maravilhosos do sol que explodia num vasto incêndio, propus voltarmos.

            Ela não fez objeção: concordou friamente.

            E voltamos abandonando o pequeno farnel   que leváramos: a galinhola tostada, os sanduíches de presunto, os rabanetes... e o delicioso Reno cor de cidra...

            Tudo ficou marcando a nossa loucura incompleta ali no misterioso adito, sobre a relva umbrosa, onde também ficara o nosso bom humor expansivo, a alegria dos nossos corações.

            – Não estou boa, repetia Virgínia com um ar triste que me preocupava. Melhor fora não termos vindo...

            Mal podia se equilibrar e um suor copioso inundava-lhe a face.

            Evidentemente sofria.

            Longe ainda de qualquer auxílio, procurei entreter-lhe o espírito, guiando-a para as belezas da Arte moderna. – Oh, a Arte, ela não imaginava o que era a Arte! – E entrei a falar dos meus artistas prediletos, narrando episódios de sua vida íntima, caracterizando-os em síntese, nunca perdendo o tom familiar das nossas conversas.

            Ela também gostava da Arte, lia muito, admirava os grandes artistas como Flaubert, como Zola, mas preferia Gautier, “o incomparável Gautier, o mestre dos mestres!”.

            Eram breves as nossas pausas; ela, porém, repetia de vez em quando “que não estava boa, que sentia febre”...

            – Nervoso... Qual doente! Olha, já leste o último livro dos Goncourt?...

            E assim chegamos. Tomei-a nos braços; Virgínia caiu numa longa prostração.

            Na verdade a pobre criatura ardia numa febre intensa e não tardou que essa febre aumentasse com uma violência de explosão, irrompendo logo num delírio agitado e convulso. Em menos de uma hora perdera as tintas vivas do rosto num desmaio brusco.

            Houve um momento em que julguei enlouquecer. Virgínia ergueu-se no leito ajoelhando-se, a pedir socorro; que estava morrendo, que não a deixassem morrer tão criança, na flor dos seus vinte anos, brutalmente, sem ter gozado...

            E era uma pena, uma tortura, vê-la em ânsias, reagindo contra a soberania da morte, abrindo os braços: – que não queria morrer! que não queria morrer! – um brilho estranho nos olhos, fria, gelada...

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            Sei de mim que beijava-a, enlaçando-a, prendendo-a nos braços como se alguém m’a quisesse roubar...

            Justamente nesse ponto doloroso acordei. O busto de Virgínia sorria defronte de mim, talvez de meus cabelos brancos, talvez de uma lágrima triste que descia lenta no meu rosto...

(Adolfo Caminha, Rio-Revista nº 2, março de 1895)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://www.iped.com.br

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Adolfo Caminha

Adolfo Ferreira Caminha (Aracati, 1867 - Rio de Janeiro, 1897) aos 13 anos de idade é levado para o Rio de Janeiro, matriculando-se, três anos depois, na Escola de Marinha. Em 1887 publicou na Gazeta de Notícias “A Chibata”. Deste ano são os seus primeiros livros: Voos Incertos, de versos, e Judite e Lágrimas de um Crente, de prosa de ficção. Regressou a Fortaleza no ano seguinte e em 1889 ajudou a fundar o Centro Republicano. Dois anos depois criou a Revista Moderna e no ano seguinte participou da fundação da Padaria Espiritual. Regressou ao Rio de Janeiro no final de 1892 e um ano depois fez editar seu primeiro romance, A Normalista. Outro livro, No País dos Ianques, é de 1894. No ano posterior saíram do prelo Cartas Literárias, de crítica, e Bom-Crioulo, romance. Em 1896 escreveu Tentação, seu último romance. Deixou algumas obras inéditas, entre elas Pequenos Contos. Sua mais completa biografia é de autoria de Sânzio de Azevedo: Adolfo Caminha (Vida e Obra). Sempre lembrado como o criador de romances exponenciais do naturalismo, como A Normalista e Bom-Crioulo, escreveu peças ficcionais de alta qualidade.

Segundo Sânzio, no ensaio “Uns Poucos Contos”, do livro Adolfo Caminha (Vida e Obra), o autor de Tentação teria deixado 15 contos, informação colhida em Gastão Penalva: “Velho Testamento”, “A mão de mármore”, “Pesadelo”, “Minotauro”, “O exilado”, “Flor do vício”, “A última lição”, “Estados d’alma”, “No convento”, “O beijo”, “Elas”, “O grumete”, “Joaninha”, “Amor de fidalgo” e “Vencido”. Destes, somente 11 foram reunidos em livro, em 2002, por Sânzio de Azevedo, sob o título Contos, pela Editora da UFC, precedido de um ensaio do mesmo estudioso: “Onze Contos de Adolfo Caminha”.

Na primeira narrativa o protagonista divide o espaço e o tempo com Virgínia. O espaço do presente (momento da narração) é uma sala, um atelier de escritor, e nele um quadro pintado, representando um busto de mulher. O protagonista fuma charuto, vê a pintura e relembra momentos de sua juventude. Num segundo momento as duas personagens passeiam, a cavalo, pelo campo. Virgínia se sente mal, tem febre, está prestes a morrer. No entanto, o narrador surpreende o leitor, ao revelar – no desfecho – tratar-se de um sonho.

Dos onze contos, apenas três são narrados na primeira pessoa; os outros, na terceira: “Minotauro”, “O Exilado”, “A Última Lição”, “Estados d’alma”, “No Convento”, “Elas...”, “Joaninha” e “Amor de Fidalgo”. A primeira pessoa é sempre homem, como o sonhador apaixonado de “Velho Testamento”, o narrador-testemunha de “A Mão de Mármore” e o também sonhador de “Pesadelo”. As mulheres de Caminha são sempre sofridas. Também os homens são sofridos, atolados no passado, nas dores do amor. Como o Plínio Varela, de “Amor de Fidalgo”, abandonado pela amante e no dia seguinte encontrado “no meio da rua, sem pinta de sangue no rosto, sujo de lama, imundo, como mais vil dos bêbados”. Elas morrem cedo, doentes, enfraquecidas, como a Virgínia do primeiro conto, que, num passeio à floresta, diz sentir “um vulcão dentro de mim” e, logo depois, o narrador a vê com “um brilho estranho nos olhos, fria, gelada...”

Amor e morte caminham juntos, fazem parte do mesmo enredo, às vezes macabro, como em “A Mão de Mármore”. Talvez se possa dizer também macabro o conto “No Convento”, com a morte misteriosa do noviço Oscar de Miranda, que enlouquece e morre a jorrar sangue pela boca.

Quando não é a morte propriamente dita, é a sua antecessora: a desilusão amorosa a ferir a mulher de tristeza, solidão, num casamento feito de amarras, como em “Elas...”

O enredo no contista Adolfo Caminha às vezes é frouxo, esgarçado, como no “Minotauro”. Um triângulo amoroso como muitos outros, especialmente no romantismo. Já em “A Última Lição” o leitor se depara com um enredo mais rico, mais entrançado e, ao mesmo tempo, mais sutil, a lembrar o Machado de Assis de “Uns Braços”. Outras vezes nem se percebe enredo, como em “Pesadelo”. Um homem sonha (a história é o sonho ou o pesadelo do narrador) e é acordado pela mulher. O sonho, no entanto, é uma parábola: “a dura realidade dos filósofos é preferível ao sonho, ao sonho azul dos poetas...”

Algumas narrativas curtas de Caminha se situam claramente no Rio de Janeiro. No “Minotauro” o par Cipriano Gouveia e Nicota vivia numa casa no Engenho Novo, sob “o inconstante céu fluminense”, ele afastado do burburinho do centro da cidade, da Rua do Ouvidor, “por onde nem sequer passava ao voltar da repartição”. Em “A Última Lição” o casal seguiu, em carruagem, para a Tijuca, onde foi morar. Em “Estados d’alma” Almeida contempla os morros de Santa Teresa, “coqueiros de longas palmas”, “todo esse admirável trecho da natureza fluminense”. E, na descrição da paisagem, vai revelando ao leitor a cidade maravilhosa: “Para lá dos Inválidos, n’outro plano mais elevado, por trás do cemitério de Catumbi, a vista atingia a ponta culminante de uma montanha angulosa e obtusa, varando a transparência do ar lavado: era o nariz do gigante que se vê do mar, o Corcovado, uma espécie de focinho de animal monstruoso farejando as nuvens...” E, já para o final da narrativa, volta o personagem a “contemplar a paisagem, o Corcovado, o Pão d’Açúcar, a igrejinha da Glória agachada por trás dos morros” (...). Em “Amor de Fidalgo” Plínio Varela instala Carolina Mendes num “esplêndido palacete em Botafogo”. Em outros contos o leitor poderá também perceber o ambiente da velha corte. Há, porém, um conto, “Joaninha”, ambientado no Nordeste, exatamente em Oeiras, Piauí. Leia-se a descrição: “S. José de Arouca, outrora Riachão da Magdalena, ficava a seis léguas de Oeiras, numa eminência, dominando, com o seu belo aspecto de arraial sertanejo, uma vastíssima extensão glauca de floresta virgem, e ao longe, diluindo-se gradativamente num crepúsculo de bruma, trêmulo e desmaiado, o perfil indistinto, o vago contorno da Serra Grande, quase perdida na distância, simbólica e misteriosa como uma esfinge do deserto.” Nos demais contos, Adolfo Caminha preferiu não deixar claro a localização das tramas.

Nessas narrativas há o predomínio da narração sobre a descrição e o diálogo. A narração inicia e conclui todas elas. Umas vezes são narrações de pequenos atos ou gestos. Outras, breves descrições psicológicas. Há também narrações entremeadas de descrições de ambientes. Em alguns casos o início da narração se dá no pretérito perfeito; em outros, no imperfeito.

Adolfo Caminha é narrador contido e fino, como também se observa em “A Última Lição”. Neste, do ponto de vista de narrador onisciente, a narração se faz em blocos superpostos de ações, sempre intercalada de breves e essenciais diálogos. A descrição de ambientes mais uma vez se dá com precisão, sem excesso de detalhes, suficiente para neles, ambientes, enquadrar as personagens.

Naquele conto que é quase um poema – “Pesadelo” – a narração se confunde com a descrição, ou não é uma coisa nem outra. Veja-se o primeiro parágrafo: “Crepúsculo de maio. Nevoento e triste, o feio aspecto da paisagem que meus olhos contemplam numa espécie de abstração enferma, lembra-me, – branca de neve – alvo sudário amortalhando gigantes”. Quase no final o narrador, já acordado, transcreve a única fala, que não é dele, mas da mulher (ausente no sonho): “– Acorda, preguiçoso, olha que é dia! Vamos, levanta!”

Os diálogos são breves e sempre em linguagem escrita, muitas vezes erudita, de leitor dos clássicos. Como no primeiro conto, em que o narrador transcreve uma fala de Virgínia e dele: “– Sabes o que me parece isto? perguntei. – Isto o quê? – Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do Velho Testamento...” Mais adiante essa lembrança do paraíso levará o narrador a se referir às cenas do Jardim do Éden, quando Adão e Eva “pecavam no seio da natureza”. Mas tudo em Caminha é tenuidade, como em todos os realistas ainda eivados de romantismo.

Mesmo no conto nordestino, em que Joaninha, a filha do fogueteiro, se pronuncia uma vez, mesmo aí a fala não é a de linguagem oral. A moça, talvez analfabeta, fala assim: “– E o Sr. Vigário por que não vem a Arouca todos os dias?” E completa: “É um passeio... Este povo ama-o tanto...” É certo que somente mais tarde, quando do Modernismo e do Regionalismo, os narradores passaram a incorporar a linguagem oral, especialmente a do campo, nas falas dos personagens.

As descrições de Caminha também não são exageradas, nem extensas. São necessárias ou dão às narrativas um quê de poético, como se viu nas transcrições de linhas atrás. Assim se vê em “Minotauro”, na descrição do jardim da casa. A natureza em contraste com a cidade, talvez por influência do Eça de A Cidade e as Serras.

Há dois contos singulares no conjunto em estudo. Um, “O Exilado”, pode ser visto como uma narrativa de marinhista e estranha, de ambiente bem diverso daqueles dos outros contos. E não somente o ambiente (uma ilha), como o enredo (um homem solitário e um cachorro). Além disso, subdivida em sete flashes ou episódios. A descrição física do protagonista, se é que se pode falar de protagonista, é feita com detalhes. Juan Herrera, o exilado espanhol, é um personagem lendário ou imaginário (em oposição a realista) na ficção de Adolfo Caminha. Também estranha é “No Convento”. E mais uma vez um ambiente diverso dos lugares da maioria dos contos: um convento de frades. O enredo é igualmente singular, embora ainda afeito ao tema predominante no contista – amor e morte. Porém, um amor enlouquecido ou envolto em loucura. No entanto, a morte misteriosa.

O desenlace nos contos do criador de A Normalista, quando o conflito se dá no terreno do sonho, é o que se verifica na maioria das histórias desse tipo, isto é, o sonhador acorda, como se pode verificar em “Velho Testamento” e “Pesadelo”, dando fim ao drama. Em “A Mão de Mármore”, com seu quê de tétrico, o epílogo, na voz do narrador-testemunha, é a constatação de lágrimas nas faces do protagonista diante da mão de mármore da amante morta. “Minotauro” chega ao fim em breve e irônica narração: “começou a chuviscar”, Gouveia, o marido, se retira do jardim, seguido de Nicota, a esposa, e do amigo Bandeira, braço dado a ela. Nada romântico, um tanto realista. O desenlace em “O Exilado”, já sem a presença do personagem, que, após ver agonizar o cachorro de estimação, saiu a caminhar, “como uma sombra que se esvai, entre as penedias da ilha”, leva o leitor a imaginar uma paisagem marinha que aos poucos se vai desfazendo. O apego à paisagem levou o contista a dar a “Estados d’alma” desfecho inaudito: o protagonista, ao saber da morte do pai, tem reação incomum (“sem uma lágrima no olhar e sem um gesto de dor”, voltou a contemplar a paisagem), e o narrador conclui o conto pintando o “vasto céu sem nuvens”. O final de “A Última Lição” é realista, embora com uns contornos românticos, assim como o de “Elas...” e “Amor de Fidalgo”. O desenlace de “No Convento” e “Joaninha” tem ares naturalistas.

A manipulação da linguagem nesses contos traz a marca do Adolfo Caminha de A Normalista, embora se saiba que no final do século 19 o conto ainda fosse precariamente cultivado pelos escritores brasileiros, à exceção de Machado de Assis. Se Caminha não alcançou o grau de mestre na ourivesaria da narrativa curta, pelo menos nos legou estas poucas, mas belas joias.
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continua
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Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Sérgio Sant'Anna (A Senhorita Simpson)

A narrativa A Senhorita Simpson, de Sérgio Sant'Anna, foi publicada em 1989. A obra serviu de inspiração para o cineasta Bruno Barreto produzir "Bossa Nova", filme lançado em 2000.

 O assunto deste conto envolve o choque de valores que se dá entre a puritana protagonista, que parece ter saído das páginas do romancista americano Henry James, e a burguesia carioca com quem convive nas aulas de inglês que ministra em Copacabana.

 Em A Senhorita Simpson o ponto de partida é um cursinho de inglês, o Piccadilly, que serve como motivo principal para a narrativa. As inter-relações vitais para o enredo vão surgindo como decorrência dos encontros noturnos para as aulas, tendo como narrador-protagonista Pedro Paulo Silva, um dos alunos da turma, 29 anos, funcionário-público no Tribunal de Justiça, separado da mulher, um casal de filhos, habitando sozinho um pequeno apartamento na Prado Júnior e profundamente envolvido com uma dependência por Valium, como soporífero, e por mulheres, como carência de afeto. De certa forma sugerindo em tom de paródia o tipo romântico: a crise existêncial, uma espécie de obsessão pelo encontro intermeada por um ligeiro temor, a fuga das responsabilidades 'morais' e a fragilidade das relações não duradoura.

 A narrativa sugere um pequeno espaço brasileiro, essencialmente urbano: a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, Copacabana, a classe-média, o inglês como língua de mercado e da moda, a mulher no trabalho, a separação conjugal, o misticismo oriental e a utopia da trilha pela Bolívia e Peru rumo a Cuzco e Machu-Pichu (roteiro seguido por tantos jovens da época). Tudo isto trabalhado com muita ironia e consciência crítica sobre o ato de narrar, por parte de um autor que certamente esteve no contexto, olhando desconfiado para alguns modelos, apreciando o sabor e a possibilidade do encontro e parecendo ter nunca se submetido ao vício.

 Assim, mantendo-se fora do interior da narrativa, Sérgio Sant'Anna distancia-se do mundo de seu protagonista, não se identifica enquanto narrador e através da alteridade transfere para a personagem a vivência da história (em seu duplo sentido: ficção e experiências do passado). A intertextualidade metaficcional enquanto reflexividade consciente do papel da ficção na contemporaneidade, é feita através do 'pastiche' em relação às histórias do gênero "meu tipo inesquecível", que aparecem na "Seleções do Reader's Digest", conforme apresentação feita na epígrafe da obra. E esse roteiro problematizador confunde-se com a própria narração enquanto técnica e modo de compor a narrativa. Como característica pós-modernista, no entanto, em tomo de uma superposição crítica e paródica, ficcional e historiográfica, Sérgio Sant'Anna procura reconstituir o estilo (gênero) ao invés da sensibilidade compositiva mais do que sob uma conceituação estética que privilegie o contexto puramente ideológico do discurso.

 O gênero "meu tipo inesquecível" instala-se na figura de Miss Simpson, faixa etária dos 40, sobrevivente de Woodstock, professorinha de inglês no Picadilly e que por um instante se converte na mãe desejada no auxílio geral e no sexo. E aqui também, como em toda história do gênero, aparece um final de "agradeço por tê-lo(a) conhecido", em deferência à importância da personagem narrada para a vida de quem com ele(a), de algum modo, um dia conviveu. Para o protagonista Pedro Paulo Silva, trata-se de Miss Simpson, que "lhe restará sempre na memória" enquanto forma de encontro necessário e vital.

 Assim, como técnica de narração, o tema e o enredo parecem juntar-se enquanto arranjo de linguagem e artificio cênico da mera banalidade do ato de viver: a linguagem é simples, objetivando uma aceitabilidade fácil e sugerindo o efeito comum de representação da vida enquanto dissolução do cânone maior. Ao mesmo tempo, no entanto, realçando o caráter da importância do fato para o narrador que tem na vivência do texto elaborado um motivo a mais para viver. Como pretexto de ter o que contar e lembrar. Não importa que quem narre seja deveras um escritor (no sentido de autor em alto grau), mas um narrador cônscio da sua própria fragilidade, um que se identifica (ou pelo menos pode fazê-lo) com tantos outros que pretendem também participar da ação de terem um dia narrado. Desta forma, vivência e ficção se confundem já que o gênero "meu tipo inesquecível" reproduz a verossimilhança com o vivido. E diante da extinção na contemporaneidade da experiência de narrar", quando o ser humano está diluído no meio da multidão e se torna presa fácil da tecnologia, as vivências históricas (não mais experiências propriamente)" tornam-se ocasionais, dissolvidas nos fragmentos colhidos pelos meios de comunicação de massa. Este é o lugar da narrativas do gênero "meu tipo inesquecível": um último refúgio que possibilite às gerações terem ainda o que e onde contar.

 O ponto de vista do narrador não é onisciente. Ele não mergulha na vida das demais personagens, que só se formam enquanto incursão cotidiana de relacionamento. Personagens opacas, portanto, sem aprofundamento psicológico. Apresentadas não em si mesmas, mas em relação às demais. Delas só se conhecem as superficialidades que estão presentes no contexto da ação. O próprio Pedro Paulo Silva é construído a partir de migalhas: pequenos detalhes aqui e ali. Assim, através de uma sugestão cênica fragmentada em episódios, o leitor vai se apropriando aos poucos de todo o enredo, o qual também é desprovido de profundeza. E as inter-relações pessoais no contexto da obra se esgotam rápido e fácil. O Piccadilly é quase que o único local de encontro. Nele os alunos da turma de Miss Simpson (sete no total) se conhecem e se entretêm como se fossem jovens adolescentes, possivelmente como um pretexto para o rompimento com o estado diurno do trabalho. As aulas noturnas de inglês funcionam, assim, como um espaço lúdico: próprio para o relaxamento e a desrepressão. Brincadeiras acontecem, num constante passar de bilhetinhos em classe, além das gozações mútuas.

 Evidente que a trama maior se dá em tomo do narrador e protagonista Pedro Paulo Silva: seu relacionamento remoto com a ex-esposa Antonieta; sua visita ocasional aos filhos quando lhes conta estórias inventadas; seu ligeiro contato com o pai e amigo advogado, alcoólatra e depois suicida, que vive com a quarta mulher, Maria de Fátima (nome artístico: Mara Regina), num apartamento em Laranjeiras; seu distanciamento da mãe agora casada "com um joalheiro careca e chatísismo"; seu encontro com o misterioso e suspeito Wan-Kim-Lau chinês, amigo de Antonieta, impregnado com a sabedoria oriental e professor de tai-chi-chuan numa academia; sua dependência por Valium antes de dormir e seu infatigável apetite sexual por mulheres movido por uma espécie de descontrole emocional baseado no desejo de livrar-se do tédio.

 Em forma de flashes momentâneos, a ação e o cenário vão se compondo, quando a narrativa se propõe a realçar a similitude com as histórias do gênero "meu tipo inesquecível". Assim, o estilo é claro, sem maior ostentação retórica e técnica, a não ser pelo recurso utilizado na passagem em que Pedro Paulo Silva conta para o Gordo sua transa com Ana e o autor sobrepõe simultaneamente e de modo engenhoso três focos narrativos diversos. Também algumas frases de efeito aparecem: "A gente sempre morre antes da última dose" (deixada pelo pai suicida dentro de uma "garrafa quase vazia", antes de se matar); "meu reflexo de passageiro da vida no espelho" (em conotação com a contemporaneidade); "a fragrância de um perfume na memória" (parecendo Marcel Proust); "o alvorecer das utopias" (em analogia ao sonho hippie); "A história se repetia como comédia; esperava-se que não se repetisse como tragédia" (parodiando Karl Marx).

 No interior da narrativa uma proposta intertextual aparece enquanto uso constante de um inglês básico, que aqui e ali postula do leitor um mínimo de domínio. E esse cruzamento interlinguístico deriva do Picadilly, onde, através de Miss Simpson, Pedro Paulo Silva e o resto da turma preenchem o vazio de suas próprias histórias com as aventuras vividas pelos Dickinsons, Harrisons e Jones, personagens de uma outra história; o livro didático utilizado.

 Por outro lado, as questões sociais e políticas são abandonadas ou, no mais, deixadas à imaginação do leitor enquanto apelo irônico; como exemplo, o episódio da greve no Piccadilly, ironizando maio de 68 e o movimento político brasileiro pós-64. O Matoso, um dos alunos da turma, é pego fumando marijuana no banheiro da escola e um ruidoso Mr. Higgins, o diretor, pretende expulsá-lo pois, embora fosse uma droga leve e que "se disseminara por todas as escolas", conforme argumentara Miss Simpson assumindo a defesa dos alunos, em "- Escolas só de inglês, não -", receoso de que "se aquilo se tomasse um hábito", "o nome do Piccadilly (...) iria por água abaixo". Como se fosse um 'É proibido proibir' a greve então é proposta. No entanto não acontece; Miss Simpson convence o diretor.

 Mas, tem-se a alusão a "um marco histórico no movimento estudantil", ao "dinheiro da CIA no negócio"; o eco das "palavras liberty and democracy" e a ovação para que o protagonista Pedro Paulo Silva seja elevado à categoria de "líder revolucionário". A ironia se faz presente, então, de forma completa: em seu caráter ideológico contraditório, já que estabelece um vínculo com a história ao mesmo tempo em que sugere o tema como um passado perdido. Assim, o que ocorrera em termos reais até em desprendimento (enquanto abnegação = sacrifício dos próprios interesses em beneficio de uma causa maior) torna-se agora fragmentos do passado, memória apenas de uma vivência de se 'ter ouvido falar'.

 A partir dessa analogia intertextual entre o passado e o presente, entre a novela e as histórias do gênero "meu tipo inesquecível", percebe-se na composição cênica de A Senhorita Simpson a vida aparecendo como o grande intertexto. Já não mais em torno de um 'eu' utópico, indivisível e potente enquanto projeto "liberal humanista", mas de um 'eu' fragmentado e, de repente, se vê no vazio. Vale, então, a lembrança de 'roteiros', não mais como um enredo coeso em tomo de um princípio, um meio e um fim. Mas, enquanto possibilidade de apego a um presente de imagens meio-ambientais (natureza - indivíduo(s) - objetos) que se arranja ou se compõe como ajuntamento de estilhaços visuais: como "um tremendo pôr-do-sol sobre o mar de Copacabana", a "porta pantográfica" do elevador, ou os "reflexos luminosos que estampavam tonalidades fantasmagóricas na pele de Miss Simpson".

 O arranjo cênico então sugere 'os olhos a se alimentarem de luz', fixos na possibilidade que o meio-ambiente oferece, uma vez que o passado virou migalhas e já não há mais experiências reais para se narrar: somente vivências ou lembranças momentâneas. Neste ponto, a intertextualidade entre ficção e historiografia propõe a reflexão de que todo o jogo político do passado foi apenas um modo de constructo ideológico enquanto jogo de poder. E a identidade histórica torna-se qualidade apenas narrativa, na arte da composição. Para Pedro Paulo Silva, esse recurso significa procurar a lembrança de seu 'tipo inesquecível' e, conforme sugere Walter Benjamin, "começar tudo de novo", "contentar-se com pouco", operando "a partir de uma tábula rase'. E ele assim faz: fura uma das orelhas para "colocar nela um brinco dourado" e ao completar 30 anos estará deixando para trás não a sua juventude, mas a sua velhice, rumo à Bolívia, Peru, Cuzco e Machu-Pichu.

A senhorita Simpson é o exemplo da terceira fase do autor, onde continua fazendo exercícios metalinguísticos, mas os subordina ironicamente à história que conta. A obra transgride as próprias "convenções" do autor: o diálogo é ágil, mais "realista", sem as massas verbais típicas da sua representação do mundo; há uma nitidez, uma luminosidade que atravessa a narrativa inteira; e, o mais significativo, no final da novela encontramos um dos raros momentos em que o narrador, com simplicidade, endossa o ponto de vista de seu personagem, entregando-se ao texto sem atravessá-lo de ironia: "Aos trinta anos, eu estaria deixando para trás não a minha juventude, mas a minha velhice".

Créditos:
Carlos Eduardo Vieira de Figueiredo, Mestre em Literatura Brasileira, UFSC. Disponível em Passeiweb

Ponti Pontedura (Livro de Poesias: A Palavra Sabe)

Muitas pessoas ainda se espantam diante de um livro de poesias, como se houvesse nesse estilo um grande mistério a ser desvendado. De fato há. O poder e o mistério da palavra ao ser tornar poesia é a possibilidade de ser lida e relida de formas diferentes, com outros olhares, outros sentidos. Essa é a maior charada da poesia, e também seu maior trunfo e é com esse jogo de imagens que nos deparamos em A Palavra Sabe.

Pontedura apresenta sua criação com palavras, e nos convida para participar com ele dessa descoberta da força da palavra versátil, da palavra-poesia.

Pleno de versos livres, de rimas brancas que surpreendem pela expressividade, A Palavra Sabe não deixa nada a desejar, afirmando-se como uma coletânea de poemas bem dosados e cadenciados.

Prontos para nos surpreender, os poemas são variados, se dividem em temas que permitem que diferentes públicos se sintam atraídos pelo livro, tantos os leitores assíduos de poesia, quanto aqueles que estão para descobrir o que a palavra poética realmente sabe e faz.
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Ponti Pontedura nasceu em Londrina, Paraná, em 1953, pseudônimo de Lourivaldo Pontedura, é jornalista, diretor e roteirista de cinema. Vive em São Paulo.

A Palavra Sabe (ou) Clareiras na Escrita

Invento céu chão caminho lugares
a casa onde eu moro.

Ninguém vem bater, que porta não há.
É casa de palavras minha moradia.

Imagino dia, e o sol me envia claridades.
Imagino escurecer, e minha sombra enorme
— maior que a noite — enche o espaço escuro.

Procuro no espaço escuro
o claro sentido da luz:
abrir em mim clareiras na escrita.

O meu punhal — sedento de sangue —
penetrasse a carne da poesia plácida

e a ferida abrisse seu corpo carnudo.

Um corte na veia da palavra sanguinea
lançasse sangue na minha face

e extirpasse o tempo flácido.

Poema abatido, animal prostrado,
vertesse seu sangue para a minha língua.

Mormaço de poesia ao meio dia
escalda o chão por onde passo, descalço.

Passo pela palavra gasta,
gasto o chão por onde passo,
e gasta a palavra me corrompe.

Passo pela palavra devastada,
devasto a terra por onde passo,
e devastada a palavra só faz ruínas.

Passo pela palavra sussurro,
sussurro um poema por onde passo,
e sussurrada a palavra é um segredo.

Ele segreda ao meu ouvido,
soletra palavras silenciosas,
onde se esconde o poema infinito.

Tranque-se em seu segredo,
guarde-se num poema oculto,
esconde esta palavra esconde.

Não se revela nada.
À palavra dada
não se abre a boca.

A palavra guarda todo sentido,
encerra em si o que há em mim,
entra muda e sai significada.

Palavra calosa tem a mão pesada.
Era a mão do meu pai
que se estendia e pousava
para o beijo da benção.

Fontes:
O Autor
Poesia obtida em http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/parana/ponti_pontedura.html

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Olivaldo Junior (O Homem Triste)

          
   Era uma terra em que todos sorriam bastante. Menos um homem, o homem triste. Aquele homem, apesar de o sol nascer e morrer no horizonte, de a lua surgir e esmaecer ao sol posto, aquele que havia sido menino era triste. A tristeza tem jeito de traça e corrói a alegria do peito que a deixa roer. Quando menos se espera, a danada já roeu um orifício e fez morada em seu peito. A partir daí, difícil, bem difícil despejá-la. Foi assim com o homem triste, que deixou a tal tristeza roer o peito em que somente a alegria morava, roendo-o também. Triste.

            Um dia, no entanto, já triste de tanta tristeza, o homem viu passar um grande circo na estrada da terra em que morava. Era um daqueles circos enormes, com muitos palhaços, bailarinas, trapezistas e nenhum animal, enfim, um circo que apostava na arte. A arte é por si mesma itinerante e, assim como a inspiração, planeja voos para os lugares mais loucos, no dentro dos dentros do mundo. “A alegria passava!”, pensou o homem triste, quase sem crer na alegria. Um palhaço com carinha de estrela o convidou a segui-lo. Reticente, não sabia se queria.

            O homem triste, beirando a estrada de terra em que passava o circo, ficou em dúvida se seria alegre caso fosse embora. O circo era uma festa. Por último, animando o povo, vinham músicos com violões, violinos e meias-luas, num lirismo só. Alegre, o homem triste cedeu à música que o convidava a ser alegre como um sabiá que conseguiu voltar para o seu lugar. Um dos palhaços o tomou finalmente pelas mãos e ele se foi com o circo para outras terras, numa estrada para o horizonte. As caras alegres de ali nunca mais veriam o homem triste.

Fontes:
O Autor
Imagem = vigiaipoiselevem.blogspot.com

Alberto Bresciani (Livro de Poemas)

SEDIMENTOS

Aos poucos se apaga
o consentimento da morte

adio a noite, avanço
ao avesso do dentro

e encontro os encontros
do tempo, um gosto

de pele, um nexo
Faço oferendas

à água
ao fogo.

HARMONIZAÇÃO

Demorasse a tua mão
um pouco mais
sobre o meu ombro

e me nasceriam asas

Em silêncio
logo o pressentimento
o pacto e o voo:

grades e escarpas
ruindo sob as pernas
cúmplices, entrelaçadas

as nossas.

REINVENÇÃO

Vertendo do branco:
eu, o anti-herói
preso a ganchos de ar
por sobre as fragas da razão

duras lâminas
que evisceram
a argamassa do corpo
a desbordar de mim

banal, rude, rala argila
não reluz. Só o que destila
por trás do que me é oculto
se esconde à vista

É grampo no avesso
— até a secreção
vir à voz, exposta
aos anjos e algozes

Então o instante que espero
quando me reinventam os dias
e as aves planam
sob o vulto explícito e sem sede

Gritem medos e mentiras
para o estômago do nunca
(o julgamento está surdo
e a tentação de não ser

para hoje
está morta
afogada).

POSSE

O ar é só pele:
teu corpo expira
das dobras do mapa

aquece os dedos
saliva doce na boca
as esferas do sal

A falta é tensão
teu vulto invasivo
conturbando o pulso

em pedras candentes
nas farpas da noite

O ventre esfria
e explode em tentáculos
da fluida água marinha

vertigem que plana e pesa
por sobre as vozes
os cortes do dia

— teu sempre
no fundo de mim.

METAMORFOSE

Era seu rosto
um campo de trigo
e manso se entregava
ao passeio da boca

Braços me protegiam
e enlaçavam
e devolviam ventos
que ninguém sentiu

Desdobrava-se
o seu consentimento
e sem proposições
uma supernova em mim

Talvez reencontrasse o destino
respirasse sem deformidades
talvez fosse apenas como voltar

E já não chovia
E era tão bom.

INVERSÃO

O esgotamento vem
do vazio
esse fundo
enredo de vozes
que uma só valem —

atrás dos nódulos do espanto
das folhas da súplica
e da sequência de sombras
sem volta,

a ilusão habita
a insônia
vergonha e ridículo
do homem parado
diante da pedra.

MIRAGEM

Somos ficção
Simulamos o invisível
e a imagem

no reflexo
do espelho — ali nada há
como nada somos

Onde encontrar
a verdade
ou a real essência

desses fantoches
de nós mesmos
se os mistérios

não estão em lugar
mas no que mais fundo
escondemos?

NUNCA
Um dia encontrei o nunca
preso ao teto
para onde nunca olhei

Tinha a aparência terrível
de uma gárgula
úmida de sangue

Mas sob os flagelos
era apenas
                 um pardal

tão sem pressa
desses que banais habitam
as árvores, a cegueira

Com voz serena e doce
disse que sendo nunca
era eterno, letra em todo nome

Soube quem era o nunca
e meu peito, arfando
pelo que não se esquece

aprendeu a respirar assim
um pouco menos
seca a parte que nunca mais.

SÉPALA

O seu rosto surge
em meio às folhas da pele
onde a mística seiva
invade a memória do sangue

Percebo como essa branda sépala
sobe em mim o feminino
cálice que lhe orna o ser
diáfano ser em branco

Fale-me de ventos, de terras
que os caminhos venceram
Só ao líquido das suas palavras
renasce o tempo, um rio para sentir.

  ACUSAÇÃO
Você me acusa
pelas sombras
que nos cobrem

Não tenho a quem culpar
Guardamos a chave
quando passou a vigésima quinta hora

e os deuses de que fala
nunca souberam de nós
Estamos abandonados

na última vez
na impossível desdobradura
E eu afirmo:

amanhã ainda seremos
somente os dois
o verbo coagulando no escuro.

 FIGO

E então a chance:
o desconhecido destino
tinha seu rosto
e se estendia ao alcance

da mão que abraçou
e adormeceu no amplo figo
cujos olhos eram luz
e também gemido

A posse da pele
veio como tudo enfim
como se os fluxos fizessem sentido
e nós vivêssemos a última cena

Mas há dias que não nascem
e se acaso irrompem
logo secam
definham nos espelhos

Deixei de existir
antes de saber. Ela não era
para além de mim
a imagem que testemunho

e minto apagar
embora toda a saliva
seja só a ilusão
que do seu corpo espero.

MILAGRES

Há milagres que se prendem
ao ar como anjos de pedra
no sempre da catedral

crescendo sobre nós
cortando a casa
o ventre

Toda fuga é inútil
a cegueira superior à visão
e a respiração quase sobrevive

à proximidade ou distância
de seu fogo
que pode ser pena, pode ser fome

e nos põe
frente a frente
com a epifania

                              Nas minhas mãos
                             o ramo que arde
-
Fontes:
 Poemas enviados por Carlos Machado, de poesia.net. www.algumapoesia.com.br
Alberto Bresciani. Incompleto Movimento. RJ: José Olympio, 2011.
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/alberto_bresciani.html

Alberto Bresciani (1961)

Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira (Rio de Janeiro, 4.7.1961) é ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Ministro é o cargo. O trabalho é ser juiz, aliás, um trabalhão que o põe diante de milhares de processos e que, somado a uma severa autocrítica, não lhe deixa brechas para pensar em algum dia poder publicar poesias. E poesia para ele é uma das vias de salvação. 

No entanto, Bresciani viveu mais de vinte anos anos sem a revelar, até ir para o TST e lá encontrar um grupo de juízas e juízes que a cultuavam. Juntos, passaram a pesquisar os poetas clássicos e os contemporâneos, chegaram à poesia portuguesa e fizeram amizade com nomes de expressão e talento, de lá e de cá – ele conta. Pois, quem vê cargo nem sempre vislumbra o ser humano, ou o poeta, sensível que se que se esconde sob a toga, afogado na responsabilidade que o trabalho austero lhe exige.

Embora escreva e se sinta envolvido com a poesia há bastante tempo, Bresciani publicou seu livro de estreia, Incompleto Movimento, somente em 2011, quando completou 50 anos. Autor de poemas curtos e frases parcimoniosas, o poeta parece perseguir a essência do que pretende exprimir.

O que se encontra em Incompleto Movimento é uma poesia de perquirição do avesso das coisas. “Só o que destila / por trás do que me é oculto / se esconde à vista // É grampo no avesso / ― até a secreção” (Reinvenção). Para essa tarefa de levantar véus e tentar expor à luz o lado obscuro de nossos passos e vivências, o poeta se arma com a curiosidade e a obstinação de um microbiologista.

Essa observação minuciosa está em cada um dos poemas. Até mesmo num poema levemente erótico, percebe-se o silêncio e, num crescendo, “o pressentimento / o pacto e o voo” (Harmonização). É sempre a sutileza, o cisco, o grão de pó, a nota breve e leve, quase inaudível para ouvidos menos atentos e afinados.

Essa característica domina a maioria dos poemas enfeixados no livro de Bresciani. As indagações existenciais percorrem a mesma pauta, sempre em tom menor: “Somos ficção / Simulamos o invisível / e a imagem / no reflexo / do espelho”.

A poesia de Alberto Bresciani não é de leitura fácil nem de comunicação imediata. Exige certa disposição do leitor para debruçar-se sobre o texto. Os apressados, os que procuram extrair efeitos explosivos e imediatos, talvez se cansem antes de alcançar o nível das sutilezas.

Fontes:
Carlos Machado in poesia.net. www.algumapoesia.com.br
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/alberto_bresciani.html

Jair Ferreira dos Santos (Justiça eleitoral)

A crônica de Monte Castelo registra pelo menos um original, ou figuraça, se preferirem, gente aliás que parece viver conforme a divisa da coroa inglesa: jamais reclamar, jamais explicar. Boanerges, o Boina não reclamava da sua magreza espigada e soturna, que o obrigava a andar quase lento, meio encurvado nem das suas inesperadas crises de asma, assim como nunca explicou porque usava direto, o tempo todo e em toda parte, aquela boina azul ou grená ou bege ou preta, num lugar onde o vento era, para dizer o mínimo, calamitoso.

Seus amigos no bocha implicavam calados, porque embora no verão o suor lhe descesse da testa para o rosto, o pescoço, queriam jogar em paz. Na Varig, onde emitia passagens ou empatava as horas, em silêncio, desenhando pássaros no verso dos conhecimentos, os colegas desistiram de questionar, se acostumaram à bizarrice. Até mesmo padre Schneider, um alemão grosso como um toco de açougue, se curvou à sua vontade, pois o autorizou a comungar emboinado. A qualquer pergunta sobre, respondia apenas: "foro íntimo".

Tão íntimo quanto impecável. As boinas, que a rigor ninguém sabia de onde vinham, se materializavam na sua cabeça sempre perfeitas e mesmo, se diria até, espiritadas. Fosse a mais comum, a azul, com uns pespontos brancos na bainha, ou a preta, militar, com ilhoses por dentro mas sem as fitinhas de luto, ou ainda a grená, quadrangular como o barrete dos cardeais, de pingente cortado elas nunca estavam amassadas nem frouxas no lugar, e punham-lhe às vezes uma incerta inspiração, algo entre o poeta e o biruta.

Além da boina havia Marieva, a polaquinha que visitava na zona uma vez por mês. Soube-se - ela deu o serviço - que trepar de boina e a posição cata-cavaco no escuro não estavam incluídas no preço, saíam por fora Mas Boanerges tinha ainda outra mania: eleições. Não política, eleições. Ele gostava a valer do foguetório, das intrigas das faixas e bandeirolas das churrascadas, dos últimos comícios.

Porque, afinal, tudo isso culminava na 7ª seção instalada no clube Kai-kan, dos japoneses, que ele com seu terno cinza, sua borboleta verde, presidia ereto na cadeira, os braços estendidos sobre a mesa como um patriarca. Ali seu rosto alongado perdia a dispersão do palerma para se estreitar numa crispação fanática. Ali ele era a lei e a ordem, ou melhor, a única lei e ordem. Ali não havia cabala nem repeteco nem morto-de-repente-vivo votando. Ali a vigilância não matava a paciência – o Boina era sempre solícito ao orientar os eleitores. Mas sobretudo, se ali estava ele, era também para saborear as caras insatisfeitas, vingativas, traidoras, vitoriosas, endomorfas (aquelas como que tragadas por um segredo) ao saírem da cabine, para mais tarde, reservadamente, acertar com porcentual altíssimo em quem sicrano ou beltrano haviam votado. Para rematar, depois, no escrutínio, a cada eleição engrossava a sua já famosa coleção de cédulas anuladas com dizeres tipo "Judas" "Pelé", "Você me paga", "corno", "safado" e o infalível "Peço-lhe em casamento”.

Deu-se então que a segunda e a terceira manias de Boanerges se cruzaram numa votação no início dos anos 1960. Dona Rosita, a louraça parruda mulher do atacadista Leonel Farinha, o vice-prefeito, achou pouco decente que Marieva fumasse cigarrilhas Talvis justo na sua frente, na fila para votar, pesteando o ar. O “te-deum” não prosperou. O presidente da mesa, o código eleitoral todinho no coco, veio e decidiu a favor de Marieva, informando não haver parágrafo nem inciso que proibisse ao eleitor acender cigarros ou cigarrilhas na fila.

Quanto à primeira mania, a boina, dois anos depois ela repicou em cima do seu destino. Reunidos os mesários no fórum para que o juiz os orientasse quanto a uma nova eleição, Boanerges soube que estava fora do pleito. Exatamente nisso, alguém escancarou as portas do salão e um pé-de-vento moleque lhe tirou a boina, que rodopiou no ar nuns volteios loucos e felizes até rolar pelo chão.

Em Boanerges o que se viu, na calva, foi um afundamento escabroso na crista, de onde emergia aquela calosidade igual a um dedo que se alteava, na frente, num talo de boa polegada salpicado de verruguetas. Foi Salvador, um espírito coxo, quem quebrou o pasmo gritando: "curuquerê, curuquerê"; a calosidade lembrava a lagarta que comia as folhas do algodão. Não se sabe que horrores relampejaram na mente do Boina, mas o fato é que o homem foi salvo do vexame pela asma. Uma crise de sufocação acabou com os risos, mandando-o na maca para a Santa Casa.

Bem, ele nunca mais usou boina. Nem votou. Passeava sua deformidade pelas ruas como um escárnio que maltratava a compaixão. Havia raiva e desgosto na pena que provocava. Ele desaforava os munícipes, disse um. A Varig o demitiu. Beatas se persignavam ao cruzar com ele. O padre Schneider e vários médicos tentaram convencê-lo a se operar. Ele perguntou: qual é o pó? Políticos vieram prometer-lhe a 7a seção de volta; se recusou a recebê-los. A teimosia em não tirar a boina, e agora o entesamento em não usá-la foram postos na conta da toleima; com o tempo seu defeito se tornou uma desaparição, um fantasma negativo nas pessoas, esse jeito de esquecer com os olhos.

Passaram-se duas décadas. Boanerges, o Curuquerê, aposentou-se nas lojas Hermes Macedo, onde um maçom havia lhe arranjado colocação na conferência de estoque. Comprou uma lambreta. Lia Allan Kardec mas continuava comungando. E matriculou-se de repente no curso de pintura acrílica no Sesc, o único homem entre doze mulheres. O velho fórum foi então reformado para se transformar em centro cultural. E o que fez o Boina na inauguração? Mandou Salvador, agora o briago dos briagos na cidade, entregar seu quadro "Justiça Eleitoral" durante a solenidade de abertura, quando se aceitariam doações, viajando para o sul em visita a parentes que nunca o visitavam. A pintura, em estilo ingênuo, tons fortes, apresentava uma vista aérea de Monte Castelo dividida em duas partes: numa havia gente normal nas ruas e casas, na outra, à direita, rastejavam curuquerês, pulgões, lacraias, ácaros, larvas, aranhas, gafanhotos, brocas todos com rostos de antigos ou atuais moradores desafetos seus, Leonel Farinha semitransfigurado em carrapato; sobre eles um teco-teco despejava nuvens de pesticida. Enquanto isso, no canto superior à esquerda, Boanerges, emboinado, borboletado, tronava numa mesa com seu terno cinza

Na briga entre a arte e o acinte venceu a conveniência. O quadro está numa sala remota do centro cultural. Ainda hoje existem cidadãos pró e contra. De todo modo, comentou-se na época, esta era a terceira derrota que o Boina infligia a Monte Castelo. Nunca tirou a boina, nunca mais usou a boina, emplacou o seu quadro-sarcasmo. Surgiram boatos desencontrados sobre suas depois repetidas viagens ao sul. Um deles dizia que Boanerges fora visto na Confeitaria das Famílias, em Curitiba, todo emperucado, a conversar animadamente com uma senhora a cara e as nádegas de dona Rosita - troço absurdo. Quando no bar do Sinésio alguém lhe perguntou na bucha se isso era verdade, se o boato tinha fundamento, seus olhos cresceram como se despertasse de um longo sonho acordado. E em vez do "foro íntimo", ouviu-se o homem dizer, braços abertos, a palma das mãos para cima, desbritanizando-se num sorriso maroto: "claro, oras, mais justiça eleitoral".

 Fontes:
http://www.quemtemsedevenha.com.br
Imagem = http://orodaviva.blogspot.com