quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Isabel Furini (Sandoval)


Sandoval levantou a ponta da camisa vermelha, desabotoada, olorosa e limpou o suor da testa. Tocou uma música antiga no violão. As mesas  estavam vazias, menos uma. Os quatro fregueses aplaudiram com entusiasmo. O de chapéu marrom empurrou uma garrafa com o cotovelo enquanto aplaudia. A garrafa caiu no chão fazendo um estrondo. O dono do bar, que empilhava as cadeiras, parou o trabalho e disse: - “Vou fechar, senhores, voltem a noite. Abrimos as 20:00 horas.”

Sandoval guardou o violão e colocou o casaco. Havia bebido com o desespero de um beduíno depois de atravessar o deserto do Saara. Parecia um sedento. Uma verdadeira esponja jogando goela abaixo copos e mais copos de bebida  Primeiro foi a cervejinha, logo uma garrafa de vinho oferecida por amigos, e depois a caipirinha... Eram três da manhã, o bar fechou e o bêbado caminhava - entenda-se, cambaleava - para sua casa. 

Andou e andou. Passos lentos, movimentos desengonçados, ao virar a esquina tropeçou com  latas de lixo e caiu na calçada. Conseguiu levantar-se.  A Praça Rui Barbosa, pensou, estou perto de casa... Sentiu desejos de urinar. Apoiou-se numa árvore e começou a fazer xixi.

- “Ei! Você está me molhando.”

Sandoval abriu grandes os olhos. Não havia  ninguém por perto a não ser um pato. Por pura diversão começou a molhar o pato. Gritando: “Chuva, patinho! Tá chovendo,  chovendo.”

- “Seu safado, você deve estar bêbado para fazer isso!” - reclamou o pato.

– “Estou... sim.. sim...” - afirmou o Sandoval. “- Você fala, pato?”

O pato não respondeu. Começou a choramingar:

- “Ninguém gosta de mim. Assim não dá. Minha vida não vale um tostão. Eu sou um pobre pato sem família. Ninguém me ama.”

- “E eu com isso?” - perguntou o Sandoval.

- “Nada... você não tem nada com isso. Desculpe!”  - disse o pato. E começou a chorar. Era um choro de pato, mas dava para entender que estava triste. Era um choro longo, agudo, um quaaaaaac.... quaaaaaac.... entre lágrimas. 

- “Ei, camarada” - disse o Sandoval para o pato que afastava-se em pranto - “Quer uma cachacinha?” - E tirou uma garrafa pequena do casaco. - “É o que uso para apagar as mágoas.”

- “Obrigado!” disse o pato já tomando um trago, enquanto o homem segurava a garrafa – “Você é generoso...”

- “Que nada, compadre. Amigo é para essas coisas.”

- “Você é meu amigo??!!!” - gritou admirado o pato abrindo as asas e dando um pulo de alegria.

-  “Claro! Nós dois estamos na pior... temos que ser amigos” - o bêbado  parecia cuspir as palavras enquanto caminhava - “Prazer em conhecer-te, pato, eu sou o Sandoval, eu sou o rejei... rejitado. Isso. Sou rejeitado, rejeitado da sociedade. Sou um traste qualquer. Minha vida vale menos que a vida de um cachorro, de um... uau...” -  deu o nariz contra um poste de luz. Gritou. O pato riu. - “Minha vida vale menos que a vida de um... poste.”

- “Prazer. Eu sou o Patinho Feio da história de Andersen.”

- “Você é o Patinho Feio, aquele que no final da história se transforma num bonito Cisne?”

- “O mesmo.”

- “E voltou a ser Pato!” – gritou Sandoval

- “Eu me transformo em pato sempre que uma pessoa se transforma em algo feio e esquece tudo o bom que existe dentro dela.”

- “Dentro onde?” - pergunta o bêbado - “No estômago ou no coração?”

– “Não! Seu estômago só tem cachaça.” - disse o Pato  – “Eu falo de seu coração, cara. Eu falo daquele Sandoval alegre e cheio de entusiasmo. Aquele que sonhava com coisas boas, o amor, a amizade, o triunfo...”

- “Se é assim, você continuará sendo sempre um Pato, amigo, porque eu... eu sou um fracasso e dentro de mim só tenho cachaça. Eu tenho coração de cachaça. Não escutou a canção?” -  A saliva escorregava pelos cantos da boca.

- “Não! Que canção?” - perguntou o Patinho Feio.

O bêbado começou a cantar e dançar, uma mão apoiada na árvore.

“Coração de cachaça,/ Me dá um beijo, me abraça,/ Se você quer dançar,/ Só precisa escutar/ Esta música alegre./ Revolar..  revolar... /Coração de cachaça.../ Esta música arrasa/ A negona, o negão,/ A polaca também/ Todos podem dançar/ Ao som de minha canção.

Coração de cachaça...”

O bêbado parou. Cambaleou. Olhou fixamente ao pato e disse -  “Eu sei que você nunca escutou porque a inventei eu mesmo... ontem...  Eu era músico, compositor, poeta, boêmio. Todos me criticavam... todos... até minha mãe.” - deu um forte arroto.

- “Era um direito seu escolher sua vida” - disse o pato.

- “Vivia na boemia e todos me criticavam.” - enfatizou a palavra - Cri-ti-ca-vam. Minha mulher, a prefeita, a santinha, a chatinha... foi-se embora. Me abandonou. Disse que eu era um traste, que não prestava” - bebeu mais um gole de cachaça.  “Eu moro sozinho numa pensão. Quer passar a noite lá, pato?...” O pato aceitou. Não tinha mesmo onde ir.

O bêbado apertou os olhos e mexeu a cabeça, deu alguns passos para a direita e para a esquerda para equilibrar-se.

 - “Já sei! Eu moro do outro lado da praça!” - gritou. E lá foram os dois, o Sandoval e o Pato. Lado a lado. O Sandoval cambaleando, o Pato, mexendo o rabo para os lados. Os dois com esse andar desajeitado que assemelham bêbados e patos.

Sandoval colocou o Pato embaixo do casaco cinza, sujo e  desbotado para entrar na pensão. O dono não permitia animais.

Depois de várias tentativas, Sandoval conseguiu colocar a chave na fechadura e abrir a porta. Entrou no quarto. A cama estava desarrumada. Espalhadas no chão roupas, garrafas vazias. Os jornais velhos empilhados ao lado da mesa amarela, onde havia uma marmita que cheirava a podre e um prato sujo.

– “Esta é minha casa” - murmurou jogando o Pato em cima da cama.

- “Você precisa escrever essa música.”

- “Eu já não escrevo mais.” - disse o bêbado jogando-se sobre a cama.

- “Você vai voltar a escrever... pois eu estou cansado de ser o Pato Feio por sua causa. Não entende, Sandoval? Eu sou o rejeitado o marginal que vive em cada ser humano. Ou você acha que é o único marginal do mundo? Não! Homem, não. Cada vez que uma criança é rejeitada no jogo de futebol ou uma menina é chamada de feia, cada vez que uma pessoa fica desempregada ou um velho é jogado numa casa de repouso, cada vez que alguém é humilhado, cada vez que alguém erra ou se sente rejeitado... eu deixo de ser cisne e me transformo no Patinho Feio.”

- “Nesta época isso se chama falta de auto-estima.” Auto-estima... -  interrompeu o bêbado.

- “Isso mesmo!” - confirmou o Patinho Feio. - “Quando as pessoas têm pouca autoestima. Quando se deixam vencer, decidem não lutar, decidem não tentar por medo do fracasso. Quando um homem ou mulher ou criança ou velho, aceitam a rejeição ou a humilhação  ou se sentem  limitados, eu me transformo de novo em pato.” Fez uma pausa, fitou o Sandoval com olhos brilhantes e continuou: “Por favor, cansei de ser pato. Eu quero ser um cisne. Escreva essa canção..   Escreva Sandoval. Faça-o por seu amigo Pato.”

Sandoval pensou. Já  tinha  perdido seu amor próprio e o amor pela vida, o que mais poderia perder?  Começou a cantar e dançar: “Coração de cachaça, me dá um beijo, me abraça...” O Pato também começou a dançar em cima da cama. E tinha ginga. Movimentava  as alas para os lados rapidamente e depois as recolhia, deixava o corpo quieto e só mexia as penas da cauda. Era uma graça! Sandoval, entusiasmado, cantou mais alto.

Alguém que estava no quarto ao lado bateu na parede e gritou: “Silêncio!! Silêncio!!” Fez a maior barulheira. O dono da pensão bateu na porta. O Sandoval e o pato ficaram calados, olhando-se como duas crianças sapecas depois de uma brincadeira.

- “Eu vou dormir” - disse o Pato e deitou sobre o travesseiro.

Sandoval não disse nada. Sentou-se pegou um caderno e escreveu muitos poemas e compôs muitas músicas.  Músicas alegres e tristes. Música de samba e de rock.  Algumas davam esperanças, outras entristeciam, outras ainda alegravam. Toda emoção, todo sentimento, eram transformados em música e em poesia pelo Sandoval.

Dormiu quando a cidade começava a acordar e as pessoas iam para o trabalho. O ruído da rua se intensificou.  Pela janela entreaberta entrava ruído de  motores e  buzinas. Fumaça dos carros. Nada atrapalhava o sono profundo de Sandoval.

Sandoval acordou quatro da tarde. Lembrou do Pato. Procurou-o pelo quarto. Não estava. Só achou os poemas e as músicas que havia escrito na madrugada. E numa das folhas havia uma pegada...  podia-se ver claramente o pé de um pato.

Ninguém acreditou na sua história. Coisas de bêbado, “patos não falam”, disse seu amigo Joaquim. O Sandoval não se importou. Era ele quem necessitava acreditar, não os outros. Nos dias seguintes registrou sua música e levou-a para gravadoras e estações de rádio. No começo poucos se interessaram, mas ele não desistiu. E de repente as coisas começaram acontecer. Alguém gostou. Um conjunto gravou “Coração de Cachaça”. Ficou primeira nas paradas.  Sua vida mudou. Suas canções tornaram-se populares. Foi entrevistado várias vezes na Televisão. Dois meses depois mudou para um apartamento. Comprou alguns móveis, mas levou sua cama, essa cama onde o pato tinha deitado. Fez um desenho do pato, o pato branquelo, com lágrimas nos olhos e o bico para baixo, o que dava um ar de tristeza. Colou a figura parede do quarto.

Essa noite, antes de dormir,  fixou seu olhar no  pato  triste colado na parede. Percebeu uma luz dourada em forma de espiral saltitar sobre a figura. E viu o pato que havia desenhado, o pato marginalizado, o pato desprezado, o patinho feio, transformar-se num belo cisne. Num cisne  triunfante.

Fonte:

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Malba Tahan (Os Pastéis de Alcassim)


O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastéis:

— Aqui tens, nesta cesta, tão bem arrumada, trinta e dois pastéis de leite e canela. Estão saborosos. Seriam dignos da esposa do Sultão. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que tão amável e correto tem sido para mim.

— Escuto e obedeço, meu pai — respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no chão, olhou demoradamente para os pastéis e disse de si para consigo:

— Logo que entregar estes trinta e dois belíssimos pastéis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, fará questão absoluta de me dar a metade. Sim, é isso mesmo, a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois é dezesseis! É certo, portanto, que, destes trinta e dois pastéis, dezesseis serão forçosamente meus. Não há mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastéis, deixando os outros no fundo da cesta.

Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedaço de muro em ruínas e assim refletiu:

— Levo agora dezesseis magníficos pastéis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontáveis benefícios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele próprio, obrigado a aceitar a metade do conteúdo. O cadi, sendo um homem de bem, não deixará de cumprir com essa velha praxe. E qual é a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto não o ignora) é oito! Logo, destes dezesseis belos pastéis, oito serão forçosamente meus. Não vejo inconveniente em comê-los desde já.

E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insaciável Elias, mais oito dos pastéis destinados ao cadi.

Logo adiante, graças a um raciocínio aritmeticamente idêntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastéis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastéis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou à casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnífico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

—  Que é isso? — perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedaço de pastel.

—  É um presente de meu pai! — respondeu o pândego com a maior naturalidade. — É um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia, o raciocínio que várias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastéis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da façanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

— Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graças a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou saboreá-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria às minhas mãos.

E já ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

— Perdão, ó honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito à metade. Não é assim?

— Iallah! — concordou, prontamente, o juiz — A tua observação é muito justa. Que distração a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito à metade desta mísera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinhão que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silêncio, aquela minúscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito séria:

—  Esse caso dos trinta e dois pastéis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

— Muito triste? Como assim?

— É fácil explicar — volveu o cadi, num tom vitorioso. — Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que não merecia confiança. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

— O honrado cadi vai castigar meu pai? — perguntou o birbante com ares de abstração palerma.

— Sim — confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. — Vou castigá-lo, como já disse. E castigá-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

— E serás tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, é claro, é evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocínio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastéis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), terás direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, terás, ainda, a metade da metade! Não é assim? Mas como, na Aritmética das Punições, não é possível calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justiça, enviar, por teu intermédio, a teu pai!

E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu serviço) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.

Bem diz o provérbio que os beduínos repetem todos os dias:
“O castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”. Uassalam
_________________
Nota:
Cadi - Juiz. Magistrado.

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do cheique e outras lendas.

Antonio Brás Constante (Aprisionados, ou melhor... casados)


O casamento é a prisão perfeita, pois faz com que o próprio apenado decida se entregar, construindo sua cela em um terreno financiado por ele mesmo, providenciando o seu sustento e de sua carcereira. Tudo feito por atos espontâneos, motivados pela sociedade, que convence o candidato a prisioneiro com promessas de
felicidade eterna.

A pena para quem casa é de prisão perpétua, pois o juiz, ou melhor, o padre sempre finaliza a sentença dizendo: “até que a morte os separe”. A única forma conhecida de se libertar dessa prisão é por mau comportamento. O casamento é um regime onde
o prisioneiro cumpre sua pena em regime semiaberto. Saindo durante o dia para trabalhar como qualquer homem livre e solteiro, e voltando ao seu cárcere ao anoitecer.

Para que o homem não se sinta tentado a “pular o muro” em busca de alguma louca aventura fora de sua cela, existem dispositivos extremamente eficientes para monitorá-lo, intitulados de “vizinhos” e “parentes”, que conseguem rastrear suas atividades, impedindo qualquer desvio de sua conduta.

Uma das curiosidades sobre o casamento é que o homem (por se achar muito esperto) resolve em um dado momento que pode roubar a sua noiva dos pais dela, mas esquece que fazendo isto é ele quem acabará preso. Aliás, o casamento é o único sistema penal onde o prisioneiro pode abertamente ter relações íntimas com sua carcereira, tendo inclusive filhos com ela, que podem ser futuros prisioneiros ou futuras carcereiras. Como o aprisionado dispõe dessa liberdade com a carcereira, fica proibido de ter outras visitas íntimas.

As punições por seus erros de conduta vão desde a falta de um jantar até algumas noites dormindo no “solitário” (também conhecido como sofá), que é uma versão doméstica da solitária. É nesse lugar que o pobre marido tem de se sujeitar a ficar em eventuais brigas conjugais. Ao invés de algemas, o apenado recebe uma aliança, que deve permanecer em seu dedo enquanto viver. A retirada ou perda dessa joia é recebida com sessões de tortura, que começam nos ouvidos e terminam com a ameaça da vinda de sua sogra para morar com eles em sua cela.

Nos finais de semana, os prisioneiros têm direito a banhos de sol, desde que façam os mesmos segurando uma enxada, que será utilizada para capinar o pátio. O prédio da prisão onde o apenado reside serve para duas situações: garantir o conforto de sua carcereira e prole, bem como facilitar a localização do mesmo para o recebimento dos impostos vindos pelo correio, onde é cobrado pelo governo por estar preso.

O homem, quando se deixa enfeitiçar pelos encantos de uma mulher, fica cego de amor e logo vai entregando a chave de seu coração, esquecendo-se de que o resto do corpo também faz parte do pacote. Em algumas dessas prisões chamadas de lares, as carcereiras efetuam revistas nos prisioneiros quando estes retornam do trabalho, procurando em seus corpos e bolsos marcas ou bilhetes que sirvam de prova contra os réus.

Algumas normas devem ser obedecidas na prisão: Não “roubar” doces da geladeira. Não ficar atirado no sofá da sala “matando” tempo. E principalmente não “desviar” olhares para outras mulheres.

Enfim, o casamento é uma prisão dentro de outra prisão chamada vida, e, apesar de todas as reclamações que possam surgir, ainda é um lugar maravilhoso, seguro e aconchegante, pelo qual vale a pena cumprir integralmente a sua pena. Case-se, e saberá se estou dizendo a verdade ou apenas lhe pregando uma peça.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 7


AS DUAS MÃES

MOTE:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria,
era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
(Barreto Coutinho)

GLOSA:

Eu vi minha mãe rezando
numa prece doce e pura;
por todos estava orando,
com grande amor e ternura!

A minha mãe, ajoelhada,
aos pés da Virgem Maria,
parecia a madrugada
ao romper de um novo dia!

Como um sol que vem raiando
vislumbrei com emoção:
era uma santa escutando
da outra santa, a oração!

Unidas, no mesmo amor,
a mãe de Jesus, ouvia,
com carinho e com fervor
o que outra santa dizia.
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CANIÇO DE TROVAS

MOTE:

No imenso "mar da ternura",
eu fiz pescarias novas:
Cheguei a pescar ventura,
com meu caniço de trovas!
(Delcy Canalles)

GLOSA:

No imenso "mar da ternura",
eu navego com carinho
e a paz, na minha procura,
eu encontro em meu caminho!

E nesse mar de poesias,
eu fiz pescarias novas:
pesquei muitas alegrias...
Os meus versos são as provas.

Eu afoguei a amargura!
Dei vida ao contentamento!
Cheguei a pescar ventura,
naquele exato momento!

Multipliquei, eu bem sei,
na piracema, em desovas,
os peixes que, então, pesquei,
com meu caniço de trovas!
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SILÊNCIO E LÁGRIMA

MOTE:

A lágrima silenciosa
ninguém lhe presta atenção,
por isso é mais dolorosa
quando inunda o coração!
(Fernando dos Santos)

GLOSA:

A lágrima silenciosa
abre sulcos em nossa alma,
ela é sutil, misteriosa
e nos tira toda a calma.

Por ser assim. sorrateira,
ninguém lhe presta atenção,
rola e se esconde, ligeira
num grande mar de emoção.

É uma lágrima teimosa
que machuca de verdade,
por isso é mais dolorosa
e causa infelicidade.

Sofremos intensamente
na maré da solidão,
com essa lágrima dolente
quando inunda o coração!
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NOVO ACALENTO

MOTE:

Ao sentir falta dos laços
de um amor, mesmo bisonho,
eu me acalento em teus braços
no horizonte do meu sonho!
(Florestan Japiassú Maia)

GLOSA:

Ao sentir falta dos laços
do amor que a nós dois unia,
eu preencho meus espaços
com lembranças: noite e dia!

Sinto saudade do amor,
de um amor, mesmo bisonho,
mas sonhando com fervor
a minha angústia transponho!

Diminuindo meus cansaços,
na minha imaginação,
eu me acalento em teus braços
e vivo nova emoção!

E nesse novo acalento
eu me faço bem risonho,
um sonho novo, eu invento,
no horizonte do meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.