segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 58


André Kondo (A Pétala)


Akemi e Jiro se conheceram durante o hanami*, o tão aguardado encontro com a primavera, sob as floridas cerejeiras. Dentre milhares de pétalas que choviam naquela tarde, sopradas pelos ventos do destino, Akemi e Jiro acompanharam, com o olhar, apenas uma. E o cair dessa pétala, traçando sentimentos no ar, uniu suas primaveras ao repousar no colo de Akemi. Como se estivesse diante do mais incrível espetáculo, Jiro aplaudiu aquele momento, porque lhe pareceu o mais belo de sua vida.

Jiro, com seus 17 anos, sonhava em conhecer o mundo. Queria ser explorador, mesmo sabendo que o mundo já havia sido explorado à exaustão. Porém, para ele, sempre sobrava a esperança de que ainda haveria alguma coisa nova a descobrir. Akemi, com seus 15 anos, sonhava em ser conhecida pelo mundo. Queria ser artista, mesmo consciente de que o mundo tem mais aspirantes a artistas do que pessoas interessadas em ser plateia. Porém, para ela, sempre restava a esperança de que ainda haveria lugar para mais uma estrela no céu.

Nem Jiro tornou-se explorador, nem Akemi artista. Naquele singelo voo de uma única pétala, que atraiu seus olhares e corações, Jiro descobriu que o mundo poderia se resumir em um sorriso de moça. E Akemi, que apenas um único homem poderia ser o seu mundo.

Vieram as primaveras, mas não os filhos no verão. Anos se passaram e a primavera da vida foi se distanciando. Mas em momento algum Jiro e Akemi deixaram de ansiar pelo hanami, quando voltavam para o mesmo parque, para contemplar as flores que desprendiam alegres lembranças.

Após anos de dedicação, haviam construído um lar. Akemi cantava em seu aparelho de karaokê. Jiro descobria, em cada canção de Akemi, uma nova alegria, e logo aplaudia o talento da esposa. Akemi cumprimentava, agradecida, como uma artista agradece a sua plateia. Eram felizes.

Longos anos se passaram, repletos de alegrias efêmeras, mas que pareciam valer por eternidades. Entretanto, por mais longo que seja o voo de uma pétala de cerejeira, chega o momento em que ela chega ao chão. Akemi caiu.

No hospital, Jiro encontrou a esposa em sono profundo, Quando ela acordou, não se lembrou do marido. Não se lembrava de mais nada. Era como se cada primavera fosse a primeira, como se cada pétala fosse igual a qualquer outra, que tenha caído ontem, hoje ou que ainda caísse amanhã. Nada mais era e nem seria lembrado.

Jiro queria levar a esposa para casa, mas os médicos disseram que seria perigoso, pois ambos já estavam velhos demais. Como se a velhice fosse uma doença.

Todos os dias, Jiro visitava Akemi. Falava com ela sobre coisas novas, porque qualquer coisa seria novidade para ela, que nada retinha em sua memória. Animava-se com a proximidade do hanami, quando as cerejeiras estariam floridas. Porém, os médicos não deixavam Akemi sair. A primavera passava.

Anos foram arrancados pela ventania da vida. "O senhor não precisa vir todos os dias aqui", dizia o médico. "Não posso deixar Akemi sozinha", respondia Jiro. "Mas ela não irá notar. Ela sequer se lembra do senhor”. E Jiro respondia: "Mas eu me lembro dela".

Assim, as lembranças de ambos eram guardadas apenas por um. Todavia, por mais persistente que seja a alma de um homem, o corpo não pode resistir para sempre. Sentindo as pernas fraquejarem, decidiu que era hora de prosseguir com o sonho de explorar o desconhecido, antes que fosse tarde demais. Era preciso viver novamente...

Jiro se preparou. Dirigiu-se ao hospital, com a consciência de que aquela seria a última vez. Akemi estava apática, como em todos os anos em que passou ali. Como sempre, não reconheceu Jiro. Mesmo assim, ele tomou a sua mão, a beijou e disse: "Akemi, chegou a hora de partir. Os sonhos não podem morrer".

Beijou carinhosamente o rosto da esposa e fugiu do hospital.

Jiro se sentiu feliz. Mais uma vez, comemorava o hanami. As flores de cerejeira traziam novos significados, novas vidas. Em cada pétala que partia de cada galho, via uma nova possibilidade. Imaginou como teria sido a sua vida, se não tivesse seguido a mesma pétala de Akemi. Teria se tomado um grande explorador? Teria conhecido o mundo? E Akemi? Teria se tomado uma grande artista? Teria sido reconhecida pelo mundo?

Jiro sorriu. Naquele instante, uma pétala caía no colo de Akemi, sentada em uma cadeira de rodas, ao seu lado. Ele a aplaudiu, sabendo que, a partir daquele momento, cada dia seria uma descoberta a ser explorada. E como uma grande artista, Akemi recebia os aplausos de Jiro, o seu mundo. Um mundo que a conhecia e a admirava. Jiro aplaudia.

Aplausos de uma desconhecida plateia, mas que, mesmo anônima, se sente feliz, amando a artista que voa em seu palco... Como uma pétala ao vento, efêmera, mas com o perfume das coisas eternas.

[Vencedor do XIX Concurso de Contos Washington de Oliveira – Fundart (SP)]
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Nota:
* Hanami (literalmente "contemplar as flores") é costume tradicional japonês de contemplar a beleza das flores, sendo que "flor" neste caso quase sempre significa sakura ou umê. Do fim de março ao começo de maio, o sakura floresce por todo o Japão, e por volta de primeiro de fevereiro na ilha de Okinawa. A previsão de florescimento é anunciada todo ano pela Agência Meteorológica do Japão e é observada cuidadosamente por aqueles que planejam fazer o hanami, visto que ela floresce por apenas uma ou duas semanas. No Japão moderno, o hanami consiste basicamente de realizar festas ao ar livre embaixo do sakura durante o dia ou a noite. O hanami à noite é chamado de yozakura (sakura noturno). Em muitos lugares, como o Parque Ueno, lanternas de papel temporárias são presas para realizar o yozakura. Na ilha de Okinawa, lanternas elétricas decorativas são presas nas árvores para o divertimento noturno, tais como nas árvores do Monte Yae, perto da cidade de Motobu, ou no Castelo Nakajin.
Uma forma mais antiga do hanami também existe no Japão, que é a contemplação do florescimento da ameixeira (ume). Este tipo de hanami é popular entre as pessoas mais velhas, pois elas são mais calmas do que as festas do sakura, que normalmente envolvem pessoas mais jovens e podem às vezes ser lotadas e barulhentas. (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Caldeirão Poético XXX


ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA
São Paulo/SP

Tempo Presente


— Discutir o Presente? É falar de utopia!
Ele é simples bocal de acanhada abertura
que a matéria do Tempo, em veloz travessia,
do Futuro ao Passado, esfaimada perfura!

O lampejo fugaz de uma luz fugidia
é esse vulto que passa e passando fulgura,
ao tomar-se um "já fui" na roldana macia
que impulsiona ao Passado a existência futura.

Ao dizeres "eu sou!", já não és! Terás sido!
O que foste partiu nos embalos da voz,
mero "z" de um corisco entre o antes e o após...

Na ampulheta, é o gargalo, o funil reduzido
que as areias do Instante, ansiando viver,
atravessam fulgindo e... deixando de ser.

 ANALICE FEITOZA DE LIMA
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP

Espiando Estrelas


Somente em sonhos, posso ver estrelas,
por ser minha visão, um véu espesso,
fico feliz, se em sonhos volto a vê-las,
e quando as vejo, logo me enterneço.

Por as querer, tentando merecê-las,
ao infinito, em preces agradeço,
e por não descobrir como entendê-las,
a minha pequenez eu reconheço.

Sei que os meus dedos jamais vão tocá-las,
por isso é que emoção, nos versos deixo,
tentando aos poucos, quase desvendá-las.

E se fazer poema, é ser esteta,
jamais dos contratempos eu me queixo,
porque Deus deu-me o dom de ser poeta...

ANTONIO CARLOS FONTES
Santos/SP

Bastidores


Não sou um vencedor, falando claro.
Não tenho a contundência da conquista.
Isolam-se de mim, num fato raro,
O prático viver e a larga vista.

Nem sei a substância de que é feito
O anseio de se expor à luz intensa?
Pois vale para mim, como perfeito,
O gosto de viver da só presença.

Eu vejo-me de estar em outra cena,
No reverso do palco engalanado,
Onde o silêncio é vivo e a luz amena.

Mas é, então, que eu sei onde me ponho,
Ser, assim, como alguém visto de lado,
Preso do fogo interno do seu sonho.

ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Saudade... Eterna Saudade


Reclamas que a saudade te arrebata,
te traz recordações desagradáveis.
Tu dizes que a saudade em ti desata
velhas lembranças quase insuperáveis.

E faz sangrar as chagas incuráveis
dentro de um peito que se fez sucata
para abrigar lembranças incansáveis
de uma paixão que agora te maltrata.

Mas a saudade, amor, é, na verdade,
um prêmio dado àqueles que se amaram
numa paixão que não sobreviveu.

Querida, tu te esqueces que a saudade
acende luzes que já se apagaram
nas sombras de um amor que já morreu!

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Bendito Seja...


As palavras o tempo apaga e arrasta
— pétalas soltas ao sabor do vento...
O livro é escrínio, que resguarda e engasta
as joias perenais do pensamento!

O livro é amigo silencioso. E basta,
em si trazer as luzes do talento,
para, banindo a dúvida nefasta,
mentes clarear e aos sonhos dar alento!

Bendito o livro que mantém o lume
do saber, que impulsiona e orienta o povo
que na cultura o seu lugar assume!

Bendito seja quem imita os astros,
valorizado a cada instante novo,
à luz dos livros, que lhe doura os rastros!

DIVENEI BOSELI
São Paulo/SP

A Ponte


Eu ia pela ponte estreita, longa e erguida
e, olhando o sol se pôr, eu chorava baixinho,
levando uma incerteza há muito conduzida
na concha destas mãos, vazias de carinho.

Tu vinhas pela ponte, a mão enrijecida,
armada de um gatilho, ao modo de um bentinho,
trazendo no semblante a marca umedecida
de quem, no pôr do sol, duvida do caminho.

Cruzando-se no ocaso, as nossas incertezas
pesaram por demais e a ponte, combalida,
me fez estremecer ao rés das correntezas...

Mas, firme, a tua mão alçou-me para a Vida,
enchendo as minhas mãos das supremas belezas
contidas neste amor, do qual nem Deus duvida!

GLORINHA VELLOSO
Santos/SP

Aconteceu!


Nosso amor, uma cálida paixão,
levando-me a viver um doce encanto,
paixão febril, prenúncio de ilusão,
sem que eu pudesse perceber o quanto,

arrebatou-me a alma e o coração,
fazendo-me cantar um acalanto!
Em palavras e gestos, num clarão
tão assustador, cheio de espanto,

não mais que de repente se findou
aquele amor e tudo se acabou;
restou uma lembrança, uma saudade,..

E hoje, lembrando aquele desalinho,
tento outra vez, seguir novo caminho,
procurando encontrar felicidade!

 IDALINA APPARECIDA COTRIN APPES
Ribeirão Preto/SP

Arrebol Gaúcho


O pôr do sol no Guaíba caindo,
mesclando as águas turvas do estuário,
vai este espelho todo colorindo,
no extasiante, belo relicário!

Eis o horizonte, todo engalanado
de cores mil co'a noite se encontrando,
no rubro traço mostrando encantado,
a mão de Deus, na tela pincelando!

Fim da tarde! Lá se foi mais um dia,
que ao calendário vai e já se integre,
marcando tempo, dor, mais alegria,

nesta querida e sempre Porto Alegre!
Mas... se este dia já se torna outrora,
novo amanhã, virá em nova aurora!

Fonte:
Cláudio de Cápua (editor). Itinerário Poético II: coletânea. São Paulo: EditorAção, 1996.

Carlos Drummond de Andrade (Iniciativa)


É sina de minha amiga penar pela sorte do próximo, se bem que seja um penar jubiloso. Explico-me. Todo sofrimento alheio a preocupa, e acende nela o facho da ação, que a torna feliz. Não distingue entre gente e bicho, quando tem de agir, mas como há inúmeras sociedades (com verbas) para o bem dos homens, e uma só, sem recursos, para o bem dos animais, é nesta última que gosta de militar. Os problemas aparecem-lhe em cardume, e parece que a escolhem de preferência a outras criaturas de menor sensibilidade e iniciativa. Os cães postam-se no seu caminho, e:

— Dona, me leva — murmuram-lhe os olhos surrados pela vida mas sempre meigos.

Outro dia o cão vinha pela rua, mancando, amarrado a um barbante e puxado por um bêbado pobre, mas tão bêbado como qualquer outro. Com o aperto do laço, o infeliz punha a alma pela boca. E o bêbado resmungava ameaças confusas. Minha amiga aproximou-se, com jeito.

— Não faça assim com o pobrezinho, que ele sufoca.

— Faço o que eu quero, ele é meu.

— Mas é proibido maltratar os animais.

— Eu não vou maltratar. Vou matar com duas navalhadas.

Minha amiga pulou como Ademar Ferreira da Silva:

— Me dá esse cachorro.

— Dar, não dou, mas vendo.

Dez cruzeiros selaram o negócio, e, livre do barbante, o cachorro embarcou no carro de minha amiga. Felizmente, anoitecia — e ela penetrou no apartamento, sem impugnação do porteiro. Que prodígios não faz para amortecer o latido dos hóspedes, lá dentro! (Uma vez, ante a reclamação do vizinho, explicou que era disco de jazz.) Já havia três cães instalados, não cabia mais. Tratou do bicho, chamou-lhe veterinário, curou-lhe a pata, deu-lhe vitamina e carinho. Só depois começou a providenciar uma casa de confiança para ele. Seu método consiste numa conversa mole com a pessoa: tem cachorro em casa? Por que não tem mais? Fugiu? Morreu de velho? (Se o cão fugiu, o dono não presta.) Conforme a ficha da pessoa, minha amiga lhe oferece o animal, ou não, e passa adiante.

Desta vez o escolhido foi José, contínuo de autarquia (não carece ser rico, mas bom, paciente, bem-humorado). José tem crianças, espaço cercado e vocação para dedicar-se. Minha amiga ofereceu-se para levar o cachorro ao longe subúrbio, José disse que não precisava, ela insistiu, ele idem. Afinal foram juntos, o carro subiu ladeira, desceu ladeira, e no alto do morro desvendou-se a triste casa de José, que não era casa cercada, era um corredor de cabeça de porco, com cinco crianças, mulher e sogra de José empilhadas.

Minha amiga compreendeu. José era mais pobre do que o cachorro e sem um mínimo de dinheiro não se compra ar livre e espaço para brincar. Seria cruel dizer a José: “Volto com o cachorro”. Felizmente o animal salvou a situação, tentando morder um dos garotos que lhe fizera festa. Minha amiga iluminou-se: “Está vendo, José? Ele não se acostuma. Vou te trazer outro, novinho”. José, desolado, aquiesceu. Minha amiga saiu voando para a cidade, entrou numa dessas casas onde se martirizam animais à venda, e resgatou o menor dos cachorrinhos recém-nascidos, que já penava numa jaula sem água e alimento, a um sol de fogo. “Para este, qualquer coisa é negócio, e melhora a vida.” Levou-o rápido, para José, que o recebeu de alma embandeirada.

Agora, minha amiga tem dois problemas: arranjar um dono para o cachorro do bêbado, e dar um jeito nos cinco filhos de José. Mas resolve, não tenham dúvida.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

domingo, 11 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XIV


Olivaldo Júnior (Três microcontos sobre o vento)


Agosto: mês dos ventos

O VARAL DE ROUPAS DA MINHA MÃE
Quando chega o mês de agosto, o varal de roupas da minha mãe, que vive cheio de roupas, já sabe o que lhe cabe: balançar ao pé do vento, que corre solto em suas cordas.

Não é de hoje a novidade. Basta um pequeno sopro, e as camisas se entrelaçam, e as calças se embaraçam, cuidando de misturar as cores, provocando nosso “mini arco-íris”.

Dia desses, porém, o pé do vento foi mais forte, e as roupas do varal da minha mãe renderam-se às forças da natureza e, uma a uma, desprenderam-se e foram para o céu.

O QUE O VENTO UNIU...

Foi na praça, aquela ali, perto de casa. Um menino chamado Joca, do “alto” de seus quinze anos, passeava de bicicleta, quando viu Aninha, de quatorze, na sua bike também.

Conversa vai, conversa vem, o tempo mudou de repente e, para se protegerem de uma rajada de vento capaz de arrancar-lhes a alma, correram, voaram até o coreto da tal praça.

Magrelas para trás, deitadas, inertes, na calçada, ambos, tremendo de medo, se abraçaram instintivamente sob a abóbada do coreto, que timidamente balançava ao vento...

AS FOLHAS SECAS DA MINHA ALMA


Não que eu seja uma árvore, mas também tenho minha época de trocar as folhas. Agosto chega, ou qualquer outro mês em que haja vento, e me ponho a trocar as folhas da alma.

Passo entre outras almas no meio da rua e sei que, secas, minhas folhas vão caindo e se perdendo dentre as folhas que outras almas vão perdendo. Todo mundo tem seu tempo.

Por isso, quando chega o mês de agosto, conhecido “mês dos ventos”, deixo as folhas da minha alma em meio aos sonhos que se foram, que voaram para longe, e me renovo.

Fonte:
Colaboração do Autor

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas)1


AMIZADE

Por mera e singular curiosidade
quis eleger a coisa mais preciosa.
Que ela tivesse a beleza da rosa,
da violeta a real simplicidade;

do ouro tivesse a maleabilidade
e do diamante a força poderosa;
da árvore a acolhida deliciosa,
do sol o alento, da chuva a bondade.

Tudo encontrei. Ao longo dos caminhos,
fui recolhendo, entre pedras e espinhos,
uma porção de cada qualidade.

E de tudo o que enfim juntei, contente,
uma palavra só surgiu-me à frente,
a mais terna entre todas: Amizade!

ESPAÇONAUTA E A TERRA

Às vezes me surpreendo imaginando
o que deve sentir um astronauta
a olhar, da altura, a Terra divagando,
seguindo a órbita, no espaço, incauta...

Quem sabe há de cismar: “Como é pequena!
Que interesse terão os homens nela?
Guerras, paixões a fervilhar na arena,
longe assim, não são mais que bagatela.

A ambição a exigir supremacia,
autos, litígios e burocracia...
que imporiam as urgências do planeta?

O tempo aqui é inócuo e sem remissa...
Não se discute a pressa ou a preguiça
com que a areia se esvai pela ampulheta.”

FANAL

Vagando pelas ondas da poesia,
procurando entre escolhos, a passagem,
eu nem sequer supunha que haveria
de encontrar um amigo na viagem.

Em volta, o oceano... e só monotonia,
e eu tinha tanto verso na bagagem...
Soava em mim tão doce melodia,
mas era apenas minha cada imagem.

Até que a asa do vento transportou-me
à ilha onde um fanal resplandecia,
pondo fachos de luz sobre a paisagem.

Cheguei. Um novo alento arrebatou-me,
e ali deixando quanto verso havia,
eu encontrei meu porto de ancoragem.

MEU PEDACINHO DE CAMPO

Tive ao alcance da vista paisagens,
cada qual em seu gênero tão bela,
mas que o progresso extinguiu em voragens
onde até uma lembrança se esfacela.

Hoje, em novo painel, verdes ramagens
e árvores densas vejo da janela;
cavalo branco solto nas pastagens,
montanhas do outro lado da cancela.

E pensativa, a olhar essa beleza,
eu procuro iludir-me na certeza
tão vaga quanto a luz de um pirilampo,

de que o progresso pare de repente,
e poupe, compreensivo e conivente,
o pedacinho alegre do meu campo.

RETALHO DE PAINEL

O bairro sujo e pobre, a rua esburacada,
a água livre a correr no esgoto a céu aberto,
urubus em disputa à sobra já estragada
de um animal qualquer caído ali por perto…

Um garoto esgravata, em lixo descoberto,
uns restos de alimento e uma bola rasgada,
enquanto um menorzinho, andando a passo incerto,
rói o miolo doentio de uma fruta mofada.

Retalho de painel, comum país afora,
milhares que a cruel desigualdade explora
e que a Morte esqueceu, ao passar, distraída.

Ficamos lastimando o país do hinduísmo,
sem lembrarmos que aqui, bem ao nosso egoísmo,
nossos párias também tem seu direito à vida!

SENTINELAS

O carro deslizando velozmente
e eu, ligado. às mudanças na paisagem,
deparo novo quadro, de repente,
que me insinua singular imagem.

Lá no topo de um morro, lentamente,
três palmeiras agitam a ramagem,
embaralhando as palmas levemente,
somo leques abertos pela aragem..

Três atalaias na torre, em seu posto,
impassíveis nos gestos e no rosto,
desfraldando as bandeiras tremulantes,

tão firmes, tão altivas e tão belas,
parecem-me três vivas sentinelas
velando a segurança dos viajantes.

“ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO”

Nossa língua tão bela, tão sonora,
tem sofrido agressão tão aviltante
que nem se sabe como, rude, embora,
ela resiste à investida constante.

Agride-a barbarismo malsonante...
gíria e baixo calão... é o que vigora;
e quem repele a insensatez reinante,
magoado assiste à invasão que deplora.

Onde a joia de arrulhos e de brados
que inspirou poemas e canções e fados,
e o vale renitente ainda cultua?

"Última flor do Lácio”, eu te lamento,
mas sofrendo a teu lado esse tormento,
te espero ainda encontrar... talvez na lua…

Fonte:
Livro enviado pela poetisa.
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.

Leandro Bertoldo (Mapinguari)


Conta a lenda que existia na floresta um bicho esquisito que, dizem, comia gente... Chamava-se Mapinguari! Esse bicho eu sei que ninguém conhece, mas ele é conhecido de outro bicho que esse... Também ninguém conhece! Sabe que bicho era? Nada mais, nada menos do que o Rei Zilá, o Rei da escuridão... Bem, se isso é verdade eu não sei... O que eu sei é que essa história é mesmo de assustar, e começa assim...

Quero levantar da sombra
e o mundo dominar.
Quero fazer do escuro
um lugar pra se morar.
Quero um mundo diferente,
quero todo mundo respeitando a gente.
Quero um planeta sem cor,
quero que o perfume abandone a flor.
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Faço do escuro um medo engasgado
e acato o lamento do choro vingado!
A sombra me aquece,
o terror engrandece,
a feiura estremece...
Eu sou o mestre!
Eu sou Zilá, há, há, há, há!
Eu sou a sombra, há, há, há, há!
Eu sou Zilá!

Só que nessa história não tem Zilá nenhum... Ele é só conhecido do Mapinguari, o tal bicho de nome esquisito que vivia na floresta! Ele era grande... Quase quatro metros! Tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas. Vivia no meio das árvores e imitava o pio dos pássaros... Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!

Em noite de lua cheia ele se transformava em menino, saia e entrava no terreiro das casas à procura de comida. Todos tinham medo dele, tinham medo da noite e tinham medo da lua...

— Besteira! Isso não existe... — diziam os mais jovens.

— Cuidado, meninos, com o bicho... — diziam os mais velhos.

Um dia, apareceu no terreiro da casa de um caçador um menino estranho. O caçador, ouvindo um barulho, foi até a janela, mas não viu ninguém. Até que ouviu um batido na porta...

TOC, TOC, TOC!

O caçador foi andando até a porta...

— É... Quem está aí?

— É o bich... Quer dizer, é um menino...

— Menino?!

O caçador, então, lembrou que aquela noite era noite de lua cheia! E já meio amedrontado, perguntou:

— E o que você quer, me-me-menino?

— Ah, apenas um pouco de comida!

Comida? Menino?! Lua??!! E o caçador já bastante amedrontado, perguntou:

— E o que, vo-você co-co-come, me-menino?

— Ah, qualquer coisa... Até mesmo um pedaço de pão!

Ah, que alívio! Não era o bicho, pois esse comia gente! O caçador, então, cheio de coragem abriu a porta...

NHÉÉÉÉÉÉ....

Quando ele abriu a porta... Sabe o que ele viu? Viu que, de fato, era um menino, e que ele tinha os cabelos vermelhos e as orelhas pontudas...

— Ai, meu Deus do céu!! É o bicho! É o bicho! Socorro, meu Deus do céu! Ai, ai, ai, ai, ai... Socorro! É o bicho, meu Deus!

— Sim, sou o bicho! Transformei-me em menino e vim me encontrar com o senhor!

— E vai me comer, bicho do mato?

— Do mato eu sou, do mato em vim, mas não vou comer ninguém... Vim para dizer que existo, mas não sou mal como dizem que sou!...

— Veio para dizer isso?! — perguntou o caçador admirado.

— Vim para pedir uma coisa! Não tenham medo de mim, como a todos os meus amigos animais. Vocês é que nos caçam, vocês é que nos comem e, muitas vezes, não por fome...

O caçador ouvindo isso abaixou a cabeça e, envergonhado, pediu desculpas pelas atitudes malvadas dele. Quando levantou a cabeça não mais viu o menino-bicho, que já havia voltado para a floresta. Ouviu apenas um som longo e fino sumindo pela noite.

Fiu, fiu... prrrrit, prrrrit!
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Para ouvir o conto narrado:
https://www.youtube.com/watch?v=vibok8YknYk&w=676&h=381

Fonte:
Colaboração do Autor

sábado, 10 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 57


Francisca Júlia (A Inveja)


Havia um homem, extremamente invejoso, que não tinha conseguido ainda arranjar fortuna, apesar dos esforços que fazia, do trabalho diário e das economias.

Este homem, desde que ficou só no mundo, sem o amparo de seus pais, que tinham morrido, entregou-se ao trabalho; mas como nunca foi honesto e empreendia tudo com má fé e malícia, não pode prosperar, de modo que todos, que deviam auxiliá-lo, evitavam-no e negavam-lhe apoio.

Seu principal defeito era a inveja.

Invejava a felicidade de todos, e a todos desejava mal. Se o seu amigo prosperava, cercava-o de pequenas intrigas, maculava-lhe a reputação até vê-lo empobrecer.

Um dia, cansado dos sofrimentos e humilhações por que tinha passado até então, revoltado contra a sorte que lhe era tão adversa, mudou de terra para recomeçar a vida. Empregou-se na casa de um rico moleiro.

Sua ocupação era pastorear as ovelhas, tomar conta do celeiro à noite, evitando a voracidade dos ratos que tudo destruíam. Trabalho suave esse, que lhe rendia algum dinheiro e um tratamento relativamente bom, porque o seu patrão era generoso. Assim viveu ele por muitos dias, feliz, alimentando-se bem e fazendo as economias a que estava habituado.

A inveja, porém, começou a dominai-o de novo, a envenenar-lhe a alma, obrigando-o a revoltar-se contra a crescente prosperidade do seu amo. À noite, fechado em seu quarto, retorcia-se no leito, espumava de raiva, fantasiava altercações com o moleiro, dirigia-lhe impropérios e a inveja ia-o tornando mau cada vez mais.

Daí em diante, já se não importava com o trato das ovelhas, deixando que se desgarrassem do rebanho ou que morressem de peste por falta de cuidados. Agitava a água da azenha, tornando-a suja. Abria a porta do celeiro para dar estrada aos ratos.

Tudo isso ele fazia no intuito de empobrecer o moleiro, fazendo-lhe esses males, causando-lhe prejuízos diários. Mas o proprietário, que já tinha percebido os maus sentimentos do seu empregado, e observado a sua inveja, chamou-o à sua presença e falou-lhe duramente:

— Tu és um mau homem; a princípio conseguiste iludir-me com tua falsa solicitude, com teu fingido amor ao trabalho; agora te conheço melhor, porque de uns tempos a esta parte tenho observado a baixeza de tua alma e a inveja de que está penetrada. De hoje em diante ficas dispensado do serviço da minha casa. Vai com Deus.

E despediu-o, depois de lhe haver pago o que lhe devia, dado alguma roupa e conselhos úteis de moral.

O nosso homem saiu, de cabeça baixa, coberto de vergonha e humilhação.

E jurou vingar-se.

A noite tinha caído de todo. Não havia uma estrela no céu. Tudo era propicio para a realização dos seus desígnios criminosos.

Armou-se de um punhal e encaminhou-se para a casa do moleiro.

Tudo, porém, estava fechado, e ele receava acordar os cães, que eram bravos.

Então, mudando de estratégia, resolveu vingar-se de outro modo: quebrar a roda do moinho.

E partiu, pé ante pé, de cócoras, para confundir-se com o mato e aproximou-se do moinho para quebrar-lhe a roda. Como era dotado de muita força, agarrou num dos raios, suspendeu-se, e, com o auxilio dos pés, pensou quebrar um por um todos os raios; estava nesta posição quando um grosso jato d'água se desprende de cima, apanha a roda, fá-la virar impetuosamente, e mata o desgraçado sem lhe dar tempo de gritar por socorro.

No outro dia, quando o moleiro soube do ocorrido, ergueu as mãos ao céu e rogou a Deus repouso para a alma daquele infeliz.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Luiz Damo (Trovas do Sul) I


A amizade pode ser
uma brilhante virtude,
pois ela nos faz crescer
num mar de solicitude.

As pedras da caminhada
fazem lutar todo o dia,
se soltas, nos valem nada,
juntas, têm grande valia.

Às vezes, nós perdoamos.
E a natureza? Jamais!
Deus perdoa quando erramos
até nos passos finais.

A vida chama a atenção
com perguntas e respostas,
sempre tem a solução,
basta não darmos as costas.

Cada momento vivido
se traduz numa vitória,
que sempre será relido
dentre as páginas da história.

Desde o primeiro momento
até os instantes finais,
seja a vida um testamento
só de amor, morte jamais.

É de um gesto pequenino
que a mudança resultou,
maior, somente o divino,
quando este mundo criou.

Enquanto puder andar
pelas estradas sem fim,
possa Deus se apoderar
do vazio dentro de mim.

Fazer tudo não consigo
para o mundo melhorar,
ó Senhor, conte comigo,
pois contigo vou contar.

Nem sempre a dor tem ferida,
às vezes, vem da saudade,
quem nunca a sentiu na vida
jamais amou de verdade.

Nenhuma planta pereça
sem perfumar os caminhos,
nem antes que amadureça
o menor dos seus frutinhos!

Nenhum tempo poderá
ser melhor do que o presente,
o que foi, não voltará,
e o vindouro está pendente.

Ninguém se sinta traído
por qualquer adversidade,
nem veja diminuído
o leque da dignidade.

O pranto rola no rosto
deixando transparecer,
duras marcas do desgosto
qual sequioso entardecer.

O sol fica entusiasmado
vendo a terra transbordar,
de luz, embora nublado
o dia se apresentar.

Perde-se tempo chorando
na esperança de ganhar,
no entanto, se cresce quando
no pranto se aprende a amar.

Se as escarpas ou espinhos
todos forem superados,
iremos pelos caminhos
com passos acelerados.

Sem temer dicotomias
que repelem nosso ser,
lutamos todos os dias
para a batalha vencer.

Tantas flores perfumadas
servem para embelezar,
ornamentam as estradas
por onde vamos passar.

Todo aquele que trabalha
pode ser um vencedor,
vencendo qualquer batalha
é mais que trabalhador.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 56


Carolina Ramos (A História de Amélinha)


Não! Esta não é, absolutamente, um história autobiográfica. Convenhamos, logo de início, que o simples fato de ter sido escrita por uma mulher, não dá direito, a qualquer, de encostá-la na vida da autora. Uns esbarrõezinhos, vá lá, até que são permitidos. Que no âmago de toda mulher, há sempre uma Amélia em potencial, pronta a assumir o seu lugar. E se não a estrangulam, se não abafam os seus impulsos, a própria vida acaba por facilitar-lhe a ascensão. E depois que ela assume o posto, ninguém mais a tira de lá!

Mas, vamos à história de Amélinha, sem mais preâmbulos, nem delongas. Começa com um desejo:

Maria Amélia, Amélinha, para os íntimos, queria ficar doente! Isso mesmo. Queria ficar doente! Só! Desde pequenina, quando contrariada, acudia-lhe sempre esse mesmo desejo. Queria adoecer, ficar bem doente! Morrer, até! Para que o pai, a mãe, a professora ou quem fosse, tivessem pena dela e se roessem de remorsos, por não lhe terem dado atenção ou satisfeito seus insignificantes caprichos de menina.

Agora, mulher madura, o desejo continuava o mesmo. As razões, claro, eram bem outras. Assoberbada de trabalho, em suas lutas domésticas, sem férias nem feriados, ainda queria ficar doente, mas, para poder descansar. Para ter o direito, sagrado, de relaxar o corpo, sempre tenso, um pouquinho que fosse!

Trezentos e sessenta e cinco dias, ano após ano, de faina ininterrupta, criando filhos, cuidando do esposo, da casa, etc. etc, faziam-na, para todos, mãe e esposa exemplar! Mulher nota 10!

Ajudantes, nem pensar! No meteórico passar por sua vida, só lhe haviam trazido dores de cabeça. A última até lhe roubara as joias modestas, de pouco valor, mas, de um preço estimativo sem tamanho! As correntinhas partidas, as medalhinhas mastigadas pelos dentes afiados da primeira dentição, até os reloginhos que haviam tiquetaqueado no seu pulso, em diferentes etapas, marcando a pulsação das horas mais emotivas, tudo fora levado, sem volta! Desgosto dos maiores!

Amélinha era pródiga em dar. Mas, não admitia que lhe tirassem um só alfinete! Indignada, decidira-se: — Ninguém mais entraria pela sua porta, sob pretexto algum, com
intenção de enganá-la!

Reunira forças, enchera os pulmões, lançara-se à batalha, de vida ou morte, para sustentar como mulher, a nota dez! Difícil! Cada vez mais difícil, mas, seguia no posto.

Findava dezembro e dizia com satisfação: — Sobrevivi!

Entrava janeiro, e puxava novamente o fôlego, arregaçando as mangas, quando as tinha, dispondo-se a enfrentar a sobrecarga de mais doze novos meses. Sentia o fôlego cada vez mais curto e o peso do trabalho crescer, alarmantemente, para braços que se enfraqueciam.

Valiam-lhe as máquinas. Bendita tecnologia que fazia de cada uma delas autêntico Cyrineu, a aliviar ombros frágeis, domesticados! Na verdade, elas mesmas, as máquinas, eram facas de dois gumes. Dispensavam ajuda de outras mãos, somando tarefas a serem desempenhadas, até a estafa total, por legiões de donas de casa sobrecarregadas, que ainda se orgulhavam de as possuir! Certo, que sem elas, seria bem pior!

Amélinha olhava o tanque cheio de roupa, com desânimo infinito! A máquina de lavar, comprada com tanto sacrifício e já com boa folha de serviços prestados, resolvera não cooperar. O velho e escravizante lesco-lesco a esperava, desgastante e execrado por tantas e tantas Amélias, em todo os tempos! Mais essa!

Maria Amélia, Amélinha, para os mais chegados, demorou-se na auto-análise: — Por que trabalhava tanto?! Talvez, influência do nome, estigmatizado pelo cancioneiro popular. Arrancou do peito um suspiro profundo, O nome era bonito, mas, por via das dúvidas, não o passara a nenhuma das filhas.

Queria ficar doente! Isto, sim, é o que queria!

Nada de grave, não. Uma doençazinha de nada, passageira, que levasse o caçula a receber o pai à hora do almoço, dizendo;

— A mãe tá dodói... tá deitada, tadinha!

Doce ilusão! Em troca, esperava pelo beijo convencional do marido e a frase de todos os dias:

— A boia tá pronta? Tô com uma pressa danada!

Era o mesmo que pisar no acelerador, Amélinha esquecia tudo o mais, para abastecer a mesa, cercada de estômagos vazios e olhos ávidos.

Uma gripezinha à-toa seria o bastante. Logo ao primeiro espirro, contudo, contaminava toda a família. Todo o mundo ía para a cama e a sina de Amélinha, implacável, a induzia a continuar de pé, tratando de todo o mundo!

Uma apendicitezinha, sem maiores consequências, também não viria mal. Nem isso conseguia! Até as amígdalas estavam firmes no posto, sem alarmes maiores que simples rouquidões passageiras.

A memória guardava apenas os surtos infantis de catapora, sarampo, coqueluche, etc. Depois disso, nada mais lembrava que pudesse contrabalançar com a pedreira do marido, sempre ativa, e que, periodicamente lhe rendia alguns dias de repouso, espécie de gestação, até que o rim, aos berros, decidisse dar à luz a mais um precioso cálculo; guardado em vidrinho, numa gaveta, e de lá só saído para ser exibido aos amigos, com a satisfação de pai, que apresenta o filho à sociedade.

Vez ou outra, uma enxaqueca brava ameaçava derrubar Amélinha. O tempo breve que a prendia ao leito, no entanto, era tão cruciante, que nem dava gosto! A enxaqueca maltratava demais! Não valia a pena! Depois... as obrigações acumuladas exigiam o dobro do trabalho!

Não havia jeito. Amélinha morreria de pé! Seu único mal era, na verdade este: — estava doente de vontade de ficar doente!

Tinha pronta até a maleta, arrumada com carinho, com duas camisolas sem uso, com rendas nas mangas e no decote. Neste, a agulha pudica acrescentara alguns pontos, para quebrar a ousadia. Que, ao marido, apenas, cabiam maiores abrangências. Um "pegnoir" rosa, os chinelinhos da mesma cor, acetinados, escova de dentes, pasta sabonete e talco, trocados, de tempo em tempo, por perderem o perfume, compunham a pequena bagagem.

Queria ir bem bonita para o hospital, para ser atendida por um médico de roupa toda branca, de boas maneiras e voz mansa. Em suma, causar boa impressão! Não esqueceu, por isso, a bolsinha plástica, fechada a zíper, portadora de "rouge", batom e outros acessórios indispensáveis à maquiagem. Não admitia ser uma doente feia e amarela!

Por ocasião do nascimento do primeiro filho, pensara chegada a hora da glória! Dera um "chega pra lá" ao conteúdo da maleta, para acomodar o enxovalzinho do neném. E, deliciada, aguardara com ansiedade a corrida para o hospital, o que, ainda daquela vez, acabou por não acontecer!

Dona Marta, "aparadeira" da vizinhança, e cujos zelos Amélinha desdenhava, no firme propósito de que jamais os solicitaria, teve de ser chamada às pressas, madrugada adentro, que o menino tinha pressa, ainda maior, em chegar!

Assim, a pausa repousante e tão desejada, foi adiada indefinidamente!... Na tarde daquele mesmo dia, a moça lavava fraldas do pequenino chorão que, em clarinadas sonoras, valentemente conquistava espaço nas vinte quatro horas, laboriosas, da mãe!

Os outros filhos, invariavelmente, seguiram os mesmos cômodos moldes. Dona Marta, instalada no bairro, era sempre a solução mais fácil e, por que não dizer?, mais econômica. Seus favores não podiam ser preteridos a troco de nada.

E foi assim que Amélinha acumulou cansaços numa faixa etária que se estendia dos dezoito aos sessenta e dois anos.

A dorzinha boba, que de quando em vez lhe cutucava o peito, nem chegava a impressionar.

Amélinha morreria de pé! Não sabia como, nem onde e nem quando. Apenas, sabia que seria assim!

Quando a encontraram, naquela tarde fatídica, estava na cozinha, já fria, cor de cera, tendo à frente a costumeira pilha de panelas e pratos, devidamente ensaboados.

O corpo rijo, tombado para a frente; a cabeça mergulhada na pia, lembrando um triste L invertido.

Tombara em pleno campo de batalha! Em combate! Soldado anônimo, sem qualquer condecoração!

Morrera de pé!

... E, Amélinha, que trabalhara tanto para tanta gente, acabou por dar enorme trabalho para todos, porque... nem morta, conseguiram deitá-la!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Trovadores Potiguares que Deixaram Saudades (L – W)


Apesar do arranha-céu,
Natal mostra a mesma lira
dos versos de Otoniel
e dos poemas de Palmyra.
Luiz de França Morais
Belém/PA 1916 – ????, Natal/RN


Rugas são marcas da vida
que a mão do tempo traçou,
lembrando à face esquecida
que a mocidade passou.
Luiz Dutra Borges
????


Trova – rosário de contas,
de sete contas de luz...
– Estrela de quatro pontas
a iluminar minha cruz.
Luiz Rabelo
Natal, 1921 – 1996


Não fico mais esperando
aquilo que sonho ter,
pois sinto que estou plantando
onde nunca vai chover.
Luiz Francisco Xavier
Santana do Matos, 1935-????, Natal


Ó! Que manhã sacrossanta!
Ó! Que vivenda querida!
Como é doce a voz que canta
na manhã rósea da vida.
Manoel Rodrigues de Melo
Macau, 1907-????, Natal


O vento como em gemidos,
que só a dor sabe tê-los,
gelado, como a saudade,
vem me beijar os cabelos.
Manuel Lins Caldas
????


E se os meus rumos mudaram,
deles me restam lembranças
que, em meu coração, ficaram
como fontes de esperanças!
Maria Antonieta B. D. de Sousa
Baixa Verde, 1931 – ???? Natal


A vida, esse mar de abrolhos,
ensinou-me a navegar
no lago azul dos teus olhos
quando se põem a chorar.
Maria Eugênia M Montenegro
Lavras/MG 1915 – ???? Natal


Da senzala ao pelourinho
era bem pequeno o espaço...
– Mas tão largo o seu caminho,
quão sinistro o seu abraço!
Maria Silva Carriço
????


Comparo os meus pensamentos
às aves de arribação
que, em bando, ao sabor dos ventos,
navegam pela amplidão.
Mariano Coelho
Assú, 1899 – 1985, Natal

A corrente de esplendores
que trazes sempre no olhar
é tecida dos amores
da lua beijando o mar.
Minervino Wanderley
????

Qual andorinha tristonha
do seu bando desligada,
a minha alma sempre sonha,
mesmo que esteja acordada.
Nati Cortez
????


Minha mãe quando rezava
aos pés da Virgem Maria,
ao meu olhar que a fitava,
outra santa parecia.
Olegário Júnior
????


Felicidade, onde moras?
O teu rumo desconheço.
Parece que me mandaram
errado o teu endereço.
Palmira Wanderley
1894-1978


Do viver enfrento as provas,
e de alma alegre ou sofrida,
vou compondo minhas trovas
pelos caminhos da vida.
Reinaldo Aguiar
Natal, 1921 – 2010


É feliz o desgraçado
tombado no chão da vida,
que pode ser levantado
pelas mãos da mãe querida.
Renato Caldas
Assu. 1902 – 1991


Certo vaqueiro, tristonho,
já vencido pela idade,
afaga, como num sonho,
seu alazão – a saudade...
Revoredo Netto
Natal, 1930 – 1995

O Amor – bom senso ou loucura –
é como a fatalidade:
foge de quem o procura
e chega em qualquer idade.
Rômulo Wanderley
Assu, 1910 – 1971


Eis o futuro ou destino
desta pobre humanidade:
o lengalenga de um sino,
uma cova... uma saudade...
Sebastião Soares
Pau dos Ferros, 1918 – 2008, Natal


Possui um divino encanto,
é mais um gênio, talvez,
quem de preces faz um manto
para cobrir a nudez.
Segundo Wanderley
????


Contemplo o céu estrelado
no silêncio da amplidão,
e penso que ele é bordado
de rendas feitas à mão.
Ulisses Freitas Júnior
????

Esta flor da mocidade
passando com tanta graça,
me faz pensar, com saudade,
ser o antigo amor que passa.
Wilson Correia Dantas
Ceará-Mirim, 1920 – 1998, Natal


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva

Christa Wolf (Associações em azul)


Quem gritou de alegria quando a cor azul nasceu?
Pablo Neruda


Pablo, o senhor faz perguntas estranhas. O azul? Nasceu? Mas ele não estava aqui desde sempre? Como o azul do céu sobre a paisagem da infância? Como o azul mais imortal que existe? Lá fora, se estende o mais belo céu azul e você aqui dentro debruçada sobre seu livro. Ainda vai tornar-se uma sabichona reprimida e etérea e não conseguirá depois homem nenhum.

O azul escreve histórias.

O amigo de Annemarie quer ir buscar para ela o azul do céu, ele disse. Vou trazer para você o azul do céu. Ah, deuzinho querido. Isto alguém diz apenas assim, à toa. Mas lhe é fiel, ela diz. Quem acredita. Ela é loura, por isso usamos azul, diz seu namorado. Azul, azul, azul, azuis são todas as minhas roupas. Azul é a cor da fidelidade. Mas sapatos vermelhos, até deu-lhe de presente, recentemente. Vermelho e azul anil decoram o pernil da leitoa. E Kasper, sua patroa. Bem que ele gosta de gazetear, seu namorado, papo pro ar azul. Hoje azul e amanhã e depois de amanhã outra vez. Segunda-feira azul. Ora, você vê. Segunda azul, terça fome, isto a gente conhece. E agora, mentavelmente, ele cambaleia lá fora na praça e a isso canta: azul da centáurea é o céu sobre o Reno deslumbrante. Totalmente azul, o ser humano. Também nenhum adepto da Cruz Azul o socorre mais. Azul da centáurea são os olhos das mulheres quando bebem vinho. Isto você pode dizer bem alto. Outro dia ele a espancou até que ficasse verde e azul. Bem, você vê. Daí seu irmão disse, agora porém ele pode levar a sua e experimentar suas próprias estrelinhas azuis, e, com uma bela surra, azulou-o devidamente. Ele mais uma vez escapou de uma pior com um olho azul. Bonito e bom. Mas agora, tomara. Annemarie não vai mais se deixar enganar por ele e cair nessa do perfume azul. Tão ingênua, só vendo imaculado azul, decerto ela não pode ser.

Viemos da montanha azul, tesouro, ah, tesouro, estás tão distante daqui. Nosso professor é tão burro quanto nós, cantávamos. O dia está lindo, o céu é azul, senhor professor, queremos sair para passear. Querem mesmo ganhar uma carta azul? Ou o quê!? Melhor que observem bem as cores do arco-íris: vermelho laranja amarelo verde azul índigo violeta. VLAVAIV. Ou preferem novamente escutar apenas alguma coisa sobre a guerra, quando as balas azuis voaram à volta das orelhas dos nossos? Em marcha de passos uniformes. Uma canção. Os dragões azuis. Cavalgando num brinquedo tilintante, eles atravessam o portão.

Não podem ao menos uma vez cantar algo bonito? Danúbio azul, tão azul, tão azul. Esta foi a primeira valsa que dancei com Hans. Sim, sim. Sempre o mesmo. Terminou mal com seu marinheiro azul. Grete não se conforma. Um marinheiro azul, que navega ao redor do mundo. Ele amava uma garota e não tinha nenhum dinheiro ou fundos. A garota enrubesceu e quem era o culpado? O marinheiro azul na loucura do amor desvairado. É o tipo de coisa que pode acabar em fiasco. Precisamente, a mulher X teve de ser removida na ambulância com luz azul. Ácido cianídrico azul, digo apenas. Já tinha os lábios completamente azuis. Neste caso qualquer socorro chega tarde demais.

O tipo elegante que ela abandonou ali sentado deve ter tido sangue azul, em todo caso ele disse isso a ela. Rei Barba Azul, a gente conhece bem. "O cavaleiro estrangeiro tinha uma barba inteiramente azul e, diante dele, ela sentia um pavor que, tantas vezes quantas o mirasse, era-lhe sobremodo aterrorizante." Tivesse atentado para seu sentimento. Mas ele a presenteou com uma raposa azul, ela pensou, alguém assim não pode mentir, e com os joelhos trêmulos, assombrada, intimidou-se.

Isto aqui custa ao senhor no entanto um par de lóbulos azuis que, antes de tudo, querem ser merecidos. Se tanto. Para a escrita clara, usamos sempre tinta azul. Mas primeiro fabriquem-me por favor uma pausa azul. Num tal projeto, não se deseja qualquer tiro lançado em vão para o ar azul. Não obstante, alguns atiram no azul e acertam o preto.

Antigamente, tínhamos as canecas de leite cheias de cerejas azuis em duas horas. E, à tarde, o bolo já estava pronto. Carpa azul para o Ano-Novo? Jamais. Carpa ao molho de cerveja, assim é que se faz. E truta azul é algo para gente fina. Azul não é simplesmente uma cor para produtos alimentícios. Mais para flores. Violetas, por exemplo. No prado, curvada sobre si mesma e anônima, havia uma violeta, era uma graciosa violeta. Repolho azul, no sul, como quiser, E licor azul, este sim bem que existe! Curaçao, ou como ele se chame. E queijo que se denomina Blue Master, com mofo dentro, nada para mim. Mas como cultivam batatas e depois podem chamá-las "camundongo azul", isto restará para mim eternamente incompreensível. Algo assim antinatural...

Azul, Pablo, é a cor da saudade. Isto o que o senhor quis dizer. A primavera deixa sua fita azul outra vez tremular através dos ares. As colinas azuis na distância azul. Sobre tão azuis horizontes. Bandeiras azuis a caminho de Berlim. Azul-da-prússia, azul-berlim, importante pigmento azul, extraído do sulfato de ferro e do ferrocianeto de potássio amarelo. Como fino traço sobre porcelana. O azul cobalto profundo dos vasos de vidro, tigelas e cinzeiros, cor predileta. Toalhas de mesa com estampa impressa em azul, antiga padronagem. Técnica que se extingue.

Uma vez na vida estar no Adriático azul. Ó céu, radiante azul. A borboleta azul, que esvoaça à nossa frente. O pássaro azul da artista Liessner-BIomberg sobre a cortina de boca, para o cabaré dos emigrados russos, na Berlim dos anos 20. O cavaleiro azul de Kandinsky. A torre dos cavalos azuis de Franz Marcs. A fase azul de Picasso.

A hora azul entre dia e sonho. Azul noite. Azul dos pombos. A luz azul da fonte do conto de fadas dos irmãos Grimm, a qual não apenas proporciona satisfação ao bravo soldado tratado com injustiça, quando ele acende seu cachimbo, mas traz para ele o reino completo com a filha do rei. De outra forma não pode ser.

A divisão azul do general Franco na Guerra Civil Espanhola. A bandeira da Europa em azul. E os pacotinhos de produtos alimentícios que os americanos lançam no Afeganistão, ultimamente em azul, não mais em amarelo, para que eles os distingam das bombas de aspersão amarelas, que eles também atiram.

A flor azul, ao contrário, Pablo, um símbolo do romantismo alemão, uma invenção de Friedrich, conde de Hardenberg, chamado Novalis. Cujo herói de romance, Heinrich von Ofterdingen, a encontra em sonho, "uma grande flor de azul luminoso, que logo de início achava-se ali na fonte e o tocou com suas folhas largas e brilhantes... Ele observou-a longamente com indizível ternura e nada mais via além da flor azul". E ele segue sua imagem encantadora e ideal e vê nela "uma proteção contra a mesmice e a vulgaridade da vida", um feitiço contra a monotonia do mundo terreno.

Mas quem gritou de alegria quando o azul nasceu? Em quem o senhor pensava, Pablo? Agora eu sei; foram os extraterrestres que gritaram de alegria ao ver como a Terra, o planeta azul, nascia,

(Traduzido do alemão por Laura Barreto)

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias. SP: Companhia das Letras, 2007.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Luiz Otávio (Jardim de Trovas) I


Aquele amor passageiro,
aquela afeição tão pura,
e esta saudade tamanha
de tão pequena ventura!…

Até o próprio mendigo
pode ser rico também:
se possui um grande amigo,
tem algo que poucos têm!

Beijos de mãe… filha… esposa…
Tantos beijos ganha a gente!
– Como pode a mesma coisa
ter sabor tão diferente?!

Ciúmes talvez não ferissem
e eu teria paz infinda,
se os homens jamais te vissem,
ou tu não fosses tão linda!…

Com tristeza a gente conta:
No mundo, que tanto ilude,
há virtude – quase afronta,
pecado, quase virtude!…

Dois anos… e a angústia, o medo
do mundo desconhecido…
– Minha mãe partiu tão cedo!
Primeiro sonho perdido!

Esta ~mágoa, sem remédio…
Esta esquisita ansiedade…
Esta doçura que é tédio…
– É o que chamamos Saudade…

Esta saudade pungente
de um bem que não volta mais,
se amargura a alma da gente,
quanto alívio ela nos traz!

Eu, amor, te procurava,
estando perto de ti…
ao meu lado, não te achava…
Agora, longe, eu te vi…

“Feliz Natal!” – você diz…
– Numa carta, já se vê.
Mas como o terei feliz,
se estou longe de você?!…

Não há maior desencanto
do que ouvir, com suavidade,
ao dizer: “Amo-te tanto!”
– “Tenho-te muita amizade…”

Não me pagaste a promessa
de me fazeres feliz
e como eu paguei tão caro
promessas que não te fiz!

Nossa casa pequenina
é um céu em miniatura!
Possui a bênção divina,
a paz… o amor… a ventura!

Por mais que na vida amemos
com loucura e intenso ardor,
jamais nos esqueceremos
do nosso primeiro amor…

Saudade – um sonho desfeito…
uma angústia… um “não sei quê…”
– Este vazio em meu peito
todo cheio de você…

Semeia sempre com calma!
Ajuda a planta a crescer!
E eleva mais a tua alma,
deixando os outros colher!…

Sentimento singular
que virtude deve ser:
sentir mais prazer em dar,
do que mesmo em receber…

Sorrias… e eu te beijei
nesse momento preciso…
Desde então ficou gravado
nos meus lábios teu sorriso…

Tua saudade, querida,
tão viva no peito meu,
é a morte dentro da vida…
é a vida do que morreu…

Tu me pedes que te esqueça…
Eu só queria, porém,
que olvidasses a quem queres,
como eu te quero, meu bem…


Fonte:
Luiz Otávio. Cantigas dos sonhos perdidos, Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964.

José do Patrocínio Filho (O homem que fora rei)


O filho do homem em guerra parte
Por um diadema de ouro fino;
Longe transmuta seu estandarte:
Quem é que o segue em seu destino?
(Canção Marcial)

Assim cantarolava Saggar-Shand, por graça de Knef-Marajá de Bikanír, no coração da Índia, e cuja estirpe já ocupava um trono, bem antes de Jesus Cristo vir ao mundo, redimir os pecados dos homens...

Assim cantarolava Saggar-Shand, na sombra da prisão de Reading, limpando com uma vassourinha de piaçaba o W,C, do segundo andar!

Com o instintivo e crudelíssimo humorismo britânico, os guardas sempre escolhiam aquele príncipe para os serviços vis e nauseabundos. De sorte que o antigo e opulento monarca passava os dias desentupindo canos gordurosos, desencardindo fossas sanitárias, ou carregando estrume para adubar a horta, em que fora transformado um grande pátio da cadeia.

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa. Estivera em Wandswordt, em Brixton e viera enfim - como dizíamos - criar mofo em Reading. Era um homem de trinta e tantos anos, meão de altura, seco de carnes, os ombros largos, de uma elegância natural que denotava um longo apuro de raça. A cor baça da pele acentuava a energia dos traços fisionômicos, e a altura da sua fronte, oculta em parte nas dobras do turbante de seda enxovalhada, parecia, de fato, predestinada ao aro de uma coroa.

Bikanir - não obstante a absorção britânica no império hindu - era uma cidade maravilhosa, que, defendida pelos áridos areais de um deserto, conseguira conservar uma efetiva autonomia. Embora relativamente próxima dos territórios avassalados pela rainha dos mares, seus soberanos gozavam de uma independência quase idêntica a do emir de Cabul, que a mantém em guerras incessantes, nas fronteiras longínquas e selvagens do Afeganistão. Nenhum residente inglês fazia sombra á autoridade real do marajá de Bikanir, porque sempre fora impossível aos canhões de Armstrong transpor a alva região misteriosa, onde o caminho, às vezes, se transvia entre as areias movediças, que tragam homens e animais como os pântanos e os mares. De sorte que Saggar-Shand reinava mesmo, sob a divina proteção de Brahma, no seu palácio, incrustado de nácar, de faianças, de ouro e de marfim.

Lá se asilavam os patriotas ou os mercadores hindus enriquecidos, que as autoridades britânicas perseguiam, no afã contínuo de anular aquelas multidões milenares, para melhor escravizá-las, E assim, ai se concentravam a fortuna e a força intelectual da velha Índia, genuína e insondável.

Em vão, pela violência ou a corrupção, tinha o dominador tentado submeter Bikanir à vassalagem dos outros principados. A velha dinastia resistira e resistia, entrincheirada no areal quase intransponível. Tudo quanto o império britânico obtivera, fora um tratado de aliança em que o seu orgulho se exasperava com o tratamento de igual para igual. Mas foi nesse tratado justamente, que a pérfida Albion encontrou meio de se apossar, por fim, de Bikanir...

Saggar-Shand era um príncipe amoroso. Seu excelente coração lembrava, no recuo dos séculos, o de outro príncipe sobrenatural, filho de Maya e Souddohana, que as turbas hoje chamam Buddha. Como nos tempos do divino antepassado, via os homens transviados nos desvarios mais frenéticos, debatendo-se sem uma finalidade redentora, nem um ideal que os aperfeiçoasse, E apesar de nascido entre guerreiros, no esplendor de uma corte oriental, em que fora habituado desde a infância a se sentir acima da humanidade, seu espírito se voltara para as pesquisas metafísicas das relações do ser com o Criador.

Foi estudiosa e austera a sua vida. Debruçado sobre o texto dos vedas, sobre os livros dos persas e dos chins, sobre as páginas do Antigo Testamento, dos Evangelhos e do Alcorão, buscava sem cessar a centelha divina da Verdade. Mas sentia-se só, desamparado, coagido mesmo pela elevada esfera em que nascera, e os preconceitos que o aprisionavam no isolamento hierárquico da sua função de príncipe.

Não lhe bastava mais o convívio restrito dos mestres estrangeiros, que onerosamente fazia vir à sua corte, Queria sentir o choque vivo das ideias, ouvir a enunciação das controvérsias, no ambiente em que desabrocha a cultura moderna. E quando, enfim, subiu ao trono, senhor da sua vontade, chefe absoluto do seu reino, resolveu firmemente ver a Europa, privar com os sábios e com os pensadores, que tanto tempo admirara de longe. Reuniu a durbar (Assembleia deliberativa dos principados hindus) tomando as providências relativas ao governo do Estado em sua ausência, fez negociar a sua permanência incógnita na Inglaterra - e partiu, tão somente acompanhado por Gunga Dass, seu ajudante de ordens, e por seu velho criado Hazar Mir Kan.

No dia em que partiu, todo o seu reino veio trazê-lo à fronteira do areal. Foi uma despedida soleníssima. Defronte ao templo de Hanuman, em cujos pórticos os macacos sagrados cabriolavam e os litúrgicos pavões abriam o leque multicor das caudas - enquanto a velha Maharanéa estava em prece - desfilaram os cavaleiros da sua guarda, homens de velha raça aristocrática, envoltos na alvura imaculada dos mantos de puríssima lã. Vinham os dromedários carregados das bagagens do príncipe, em seguida. Pernaltos, a passes náuticos, passavam como sombras fantasmagóricas. Rolavam os canhões de grande gala, de ouro e prata maciça, tirados por avestruzes. Brancos touros religiosos com os cornos engrinaldados e elefantes cujas presas douradas reluziam ao sol do dia claro e memorável. Um pelotão de címbalos e fifes precedia-o, enfim. E entre estandartes, lábaros e flâmulas, rodeado dos dignatários da corte, vestidos de tela de ouro e cobertos de joias, sobre um enorme elefante da tribo dos Kumeria de Doon, ajaezado de uma rede de fios de ouro, semeada de rubis, safiras e esmeraldas, e com a cabeça ornada de um volumoso ramo de plumas, Saggar-Shand, assentado num vasto coxim de púrpura, passou como um deus, aos olhos maravilhados e pávidos dos sudras e dos párias, prosternados na poeira do caminho.

De longe, o cortejo faiscava ao sol, como uma apoteose - afastando-se num roldão de pompa majestosa. E até o pôr do sol, os regimentos, os batalhões, as baterias do exército aborígene, seguiram-no em continência pela estrada.

Só no dia seguinte regressaram, fatigados, poeirentos, cabisbaixos, como se tivessem acompanhado um funeral...

E Saggar-Shand - já agora fora do seu reino - prosseguia através do areal, onde nem um arbusto se elevava e surgiam ao luar imponderáveis, vagas e brancas formas da miragem...

Viajou. Viu as cidades-entreposto, agora sem um vestígio da índia de outras eras. atulhadas de fardos e barricas, bloqueadas de transatlânticos fumarentos. Viu a infinita vastidão do oceano encontrar-se com o céu, lá no horizonte. E viu o mundo aos poucos transformar-se, em cada porto em que o vapor parava.

A sua alma de apóstolo exultava. Parecia-lhe que nessas terras do ocidente, surgia uma outra humanidade redimida, em que todos os homens nivelados avançavam consciente e livremente para a unitária perfeição do destino!

Desembarcou com júbilo na Inglaterra. Deslumbravam-no as aparências do regime democrático. Sentia-se fraternal e feliz.

De certo, o luxo ocidental de Windsor, nem do castelo em que o hospedavam, podiam impressioná-lo pelo fausto. Mas ele admirou neles a discreta, cômoda sobriedade, tão diversa da pompa dos palácios orientais.

Tudo assim o encantava. Sobretudo as leis que garantiam a liberdade, que a todos os homens asseguravam iguais direitos, sem a intransponível barreira das castas do seu país...

Findava o mês de julho de 1914...

Em agosto, a guerra, súbito, estalou. Uma rajada trágica fustigava as nações delirantes. Ribombava, nas fronteiras da Bélgica, o canhão. A Grã-Bretanha erguia-se indignada contra a felonia cínica da Alemanha: Bethman Holweg dissera que um tratado era um farrapo de papel!

Saggar-Shand foi chamado ao ministério. Lembraram-lhe o tratado de aliança de Bikanir com a Inglaterra, Albion ia entrar em guerra e apelava para todos os seus súditos e para todos os seus aliados E, se podia contar com Bikanir, era mister que o marajá mandasse ordens para que recebessem no seu território instrutores militares ingleses e contingentes do exército britânico, que enquadrariam as tropas indianas para que elas se fossem afazendo e fraternizando com os soldados europeus.

Saggar-Shand assinou a ordem solicitada. Quis voltar - mas convenceram-no de que era inútil, posto que assumiria o supremo comando das suas forças, quando chegassem aos campos de batalha da Europa.

Alguns dias depois, porém, vieram busca-lo, a ele, a Gunga Dass e a Hazar Mir Kan. Meteram-os num automóvel fechado que rolou longa e celeremente. Por fim, parou.

- Que é?

- Estamos à porta do castelo onde esperam Vossa Alteza.

Passada a porta, o automóvel parou de novo.

- Vossa Alteza quer dar-se ao incômodo de saltar?

Saggar-Shand reconheceu então, que estava no pórtico abobadado de uma prisão - a prisão de Wandswordt.

Levaram-no sem explicações ao seu cubículo, ladeado pelos de Gunga Dass e Hazar Mir Kan...

Olhou; diante de si, os varões de ferro da janela alinhavam-se sobre o fundo azul do céu. Sentia que na penumbra da masmorra, outras criaturas choravam e gemiam, a olhar grades idênticas à sua_ E via muito longe, no fundo da Índia, o leopardo do escudo de Britannia, estrangulando a independência do seu reino,..

Os tratados?

Farrapos de papel…

A sua liberdade?

Mas que pesa a liberdade de um homem, se no outro prato da balança está a ambição e a força de um Império?

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa, Tudo quanto salvara do naufrágio, fora um colar de pérolas, que sempre conseguira ocultar com a cumplicidade dos guardas. Mas, uma a uma, as pérolas passavam do fio de platina que as prendia para o bolso dos carcereiros... Porque Saggar-Shand lia até tarde e com as pérolas adquiria as velas com que alumiava, clandestinamente, o seu cubículo, depois da hora de apagar a luz.

Nunca desfalecera, nunca teve uma palavra de desânimo ou de raiva. Aceitava com uma altiva resignação os serviços cruéis e humilhantes que lhe ordenavam que fizesse.

Assim me foi contada a sua história.

Era de fato um rei?

São Luiz também esteve prisioneiro, carregado de ferros, no tempo das cruzadas. Foi, porém, entre bárbaros, há mil anos...

Contudo, pela manhã, ao abrir das portas, logo que ele avultava do cubículo, Gunga Dass e Hazar Mir Kan se prosternavam, a maneira oriental, para saudá-lo. Comovidos, no idioma pátrio, lhe chamavam coisas sublimes e monumentais:

- Estrela do Oriente! Guarda excelso da liberdade do teu povo! Filho de Brahma! Forte, entre os reis que são fortes! Salve!

Nisto, um guarda se aproximava, displicente, e batendo com o pé de leve neles, comandava de modo peremptório:

- Pronto! Vão trabalhar... Basta de asneiras!

E Saggar-Shand tomava o balde e a escova, indiferente, e ia lavar de joelhos o ladrilho - pensando em Deus...

Fonte:
José do Patrocínio Filho. A sinistra aventura: reminiscências das prisões inglesas. São Paulo: Labortexto, 2003.

Lima Barreto (Milagre do Natal)


O Bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.

Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia dó quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as coisas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas “vilas” de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.

Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: “Vila Sebastiana”. O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio. Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê-los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda. Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos “Minas Gerais” da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de ” ouro”. Usava chapéu de coco e cavanhaque.

Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.

A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma coisa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.

Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia-se de tudo, até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.

Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai, entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como – as outras.

Eram estes os habitantes da “Vila Sebastiana” , além de um molecote que nunca era o mesmo. De dois em dois meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.

Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda.

Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua seção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dois os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que…

Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria seção.

Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face curta, rosto largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.

Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.

Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:

– Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.

– Minha senhora, não tenho tempo…

– Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria – não é Felicianinho?

Campossolo fazia solenemente :

– Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.

Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade “reconhecida”, negaceava:

– Os colegas podiam reclamar.

Dona Sebastiana acudia com vivacidade :

– Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?

Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:

– O que, Dona Sebastiana ?

– O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?

– Não.

E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:

– Eu, se fosse o senhor ia advogar.

– Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendante com a ceia do Senhor – Simplício, dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:

– Sobre o que trata?

– Direito administrativo brasileiro.

Campossolo observou:

– Deve ser uma obra de peso.

– Espero.

Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o mato-grossense apressou-se:

– Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?

Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:

– Quero.

O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:

– Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português. Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das ideias da Revolução.

Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: “Quem teria ensinado isto a ele?”

Guaicuru, porém, continuava:

– Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma coisa inédita. Será coisa viva.

Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:

– V ai ser uma obra de peso.

– Já tenho editor!

– Quem é? perguntou o Simplício.

– É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.

– Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.

– Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.

– Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas…

– Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho ?

O marido respondeu:

– Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.

– Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.

– Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.

O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.

Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:

– Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou… O “Seu” Simplício, e eu estaria prevenida para a uma “festinha”.

Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.

Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também Guaicuru.

No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no “Direito” de Guaicuru. Quando pensava nesta .’ perguntava de si para si: “Quem lhe ensinou aquilo tudo? Guaicuru é absolutamente ignorante” Quando pensava naquilo, implorava: “Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse…”

Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás.

Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.

Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:

– Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o “Seu” Simplício.

Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.

Ele diz:

– Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.

Ela obtempera:

– Foi a promoção.

Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu…

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 55


Odenir Follador (Centro Urbano)


          Por vezes arguto, procuro trocar o meio de locomoção habitual, fazendo uso do transporte viário de nossa cidade. E são incontáveis as situações que encontro no dia a dia dos bairros e, até mesmo no centro urbano.

          Certo dia, após desembaraçar-me da condução e da multidão que contumaz toma conta do terminal, e segui pela rua principal, quando me deparei com uma cena pitoresca, daquelas que nos deixam chocados e ao mesmo tempo embevecidos. Eis que estava à minha frente, encostada junto à parede de uma casa comercial, uma “gaiota” – dessas que são usadas pelos catadores de papéis, papelão e afins. Um artefato construído sobre rodas de motocicletas ou similares, cujas grades laterais de arame se elevam, formando um grande caixote, com grandes cabeçalhos para ser conduzida; na qual são acomodados seus pertences e os produtos do trabalho.

          O que me chamou mais a atenção, não foi o artefato em si, e sim, a família que dela se ocupavam: um casal e seus dois filhos; o pai; a mãe e a filha de uns dez anos talvez, portavam vestes rudimentares, e calçavam simples sandálias, apesar do frio cortante daquela manhã de outono.  

          Dentro da gaiota acomodado num espaço improvisado, estava o filho pequenino. Formariam um quadro comum, dentre tantas outras famílias humildes e desvalidas, sequer outro meio de sustentação, não fosse uma questão que passei a arguir: Vi estampado em seus rostos, os traços de cansaço por noites mal dormidas ou muitos outros problemas a serem resolvidos... Doenças, talvez... Mas o que eu via não era tristeza em seus rostos, e sim, uma família que apesar de nada terem de importante, tinham um sorriso especial estampado em seus semblantes! Estavam alegres, brincavam e sorriam o tempo todo.

          Continuando em meu trajeto, não consegui esquecer aquela cena pitoresca, e fiquei a imaginar: quantas famílias tem tudo ao seu alcance: boa educação; escolas particulares; bons empregos; etc. Mas a felicidade irradiante que ali eu vi estampada naquela cena descontraída e maravilhosa, eu tenho certeza, que faz falta em muitas famílias por mais abastadas que sejam.

Fonte:
Crônica enviada pelo autor

Arthur de Azevedo (Cavação)


Naquela manhã o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil réis, e já não lhe restava um níquel desse dinheiro!

É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!

O semi-conto de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostões em qualquer coisa útil. A conta da venda – uma conta de cabelos brancos – ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!

O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil réis. recebeu quinhentos.

Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! – Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.

E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de juízo.

Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam aptidões.

Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus Gemidos sonoros, coleção de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressão, pois não mercadejava a sua musa.

Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha, frequentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos.

O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, “pela pinta”, esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.

Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página dos Gemidos sonoros.

Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d’alma da linda Ignês: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados (“fatigados”, como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar saída.

Por isso, a mais séria, a mais firme preocupação do industrioso Saldanha era que uma nova edição dos Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e vivia de expedientes.

Como já ficou dito, naquela manhã o Saldanha estava desesperado. Durante os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil réis. O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.

O autor dos Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: – Vou cavar! – e baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados de Estácio de Sá.

Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.

Não teve coragem de pedir cinco mil réis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço – e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.

Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.

Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem “vindo diretamente”, o Saldanha atirou-se de novo ao terrível trabalho de “cavação”. Passaram-se duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!

Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a ideia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.

Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no dedo.

– É para os filhos, pensava; são homens que trabalham, que têm como eu poderia ter, o ordenado certo no fim do mês… Não são ociosos nem boêmios, como eu…

Ideias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor – o choro dos filhos.

Quando saiu desse torpor, caia a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.

As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baia, atirar-se ao mar.

– É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai…

Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou, porém, um sujeito que levava á mesma direção, e dizendo consigo: ‘vou cavar pela última vez”, dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:

– O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.

O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte:

“A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber.”

O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à ideia de que o tal pedacinho de papel era o seu passaporte para a eternidade.

O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir também quando viu no chão outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu – oh, fortuna – uma nota de banco.

Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil réis.

Trêmulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado de uma alucinação dos sentidos, examinou-a à luz de um lampião aceso naquele instante.

Depois, meteu-a no bolso, e “tocou á toda” para a rua do Ouvidor, lépido,
contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro
de sua alma.

Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.

Tomou um tílburi no 1argo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso:

– Terezinha! Cota! Chiquinha! Nhô-nhô! Eduardinho! aqui estou eu, aqui está papai com um banquete opíparo! Toca a música!

Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar.

O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comilança sobre a mesa.

– Mas dize-me: como foi que tu… – ia perguntar a esposa.

– Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali o saca-rolhas!

E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:

– Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!

E durante três dias o Saldanha não “cavou”.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.