quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Diálogo de Todo Dia)


— Alô, quem fala?

— Ninguém. Quem fala é você que está perguntando quem fala.

— Mas eu preciso saber com quem estou falando.

— E eu preciso saber antes a quem estou respondendo.

— Assim não dá. Me faz o obséquio de dizer quem fala?

— Todo mundo fala, meu amigo, desde que não seja mudo.

— Isso eu sei, não precisava me dizer como novidade. Eu queria saber é quem está no aparelho.

— Ah, sim. No aparelho não está ninguém.

— Como não está, se você está me respondendo?

— Eu estou fora do aparelho. Dentro do aparelho não cabe ninguém.

— Engraçadinho. Então, quem está fora do aparelho?

— Agora melhorou. Estou eu, para servi-lo.

— Não parece. Se fosse para me servir, já teria dito quem está falando.

— Bem, nós dois estamos falando. Eu de cá, você de lá. E um não conhece o outro.

— Se eu conhecesse não estava perguntando.

— Você é muito perguntador. Note que eu não lhe perguntei nada.

— Nem tinha que perguntar. Pois se fui eu que telefonei.

— Não perguntei nem vou perguntar. Não estou interessado em conhecer outras pessoas.

— Mas podia estar interessado pelo menos em responder a quem telefonou.

— Estou respondendo.

— Pela última vez, cavalheiro, e em nome de Deus: quem fala?

— Pela última vez, e em nome da segurança, por que eu sou obrigado a dar esta informação a um desconhecido?

— Bolas!

— Bolas digo eu. Bolas e carambolas. Por acaso você não pode dizer com quem deseja falar, para eu lhe responder se essa pessoa está ou não aqui, mora ou não mora neste endereço? Vamos, diga de uma vez por todas: com quem deseja falar?

Silêncio.

— Vamos, diga: com quem deseja falar?

— Desculpe, a confusão é tanta que eu nem sei mais. Esqueci. Chau.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis.

Machado de Assis (Evolução)


Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.

E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor.

Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter ideias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.

Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.

Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.

— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.

— Não, decerto. O senhor tem filhos?

— Nenhum.

— Nem eu. Não será ainda em cinquenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

— Bonita ideia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.

— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.

— Bonita e justa, redarguiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o conhaque, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:

— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela ideia do Brasil engatinhando.

— Ah!

— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.

E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.

— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.

— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.

Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.

Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da ideia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.

— Que é isto? exclamei.

— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.

Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a ideia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.

— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.

Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.

— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro...

— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres.

— Sim?

— Perfeitamente.

Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.

Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.

Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estreia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falavame daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.

— Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.

— E os capitalistas ingleses?

— Que tem?

— Estão contentes, esperançados?

— Muito; não imagina.

Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.

— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as ideias capitais ficam. E começou: No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...

Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 358

 

Carla Rejane Silva (Sonhos Desfeitos)


Você me fez sentir bela,  viçosa, formosa, amorosa,  gostosa, uma rosa em botão. Transformou, de maneira eloquente, em realidade plena, pequenos sonhos  meus, imutando  em amor abundante, quase às raias do torrencial, meu coração completamente despedaçado.

Me deu seus beijos, me ofertou seus carinhos e abraços. Aqueceu  meu corpo inerte e adormecido  pelo tempo... Pelo tempo  esquecido, desfeito em voragem. Você criou, em mim, sentimentos novos, afetos e entusiasmos que fazia muito  igualmente se perderam  num redemoinho inexplicável.

Num outro momento inesquecível, você enxugou minhas lágrimas sentidas, lágrimas amargas, oriundas  de uma dor consternada e suspeitosa.

Eu não me sentia feliz. O meu âmago estava preso e algemado, acorrentado dentro de uma vida vazia, acabrunhada e literalmente ferida.

Você trouxe, como se fosse um toque de magia, um brilho terno de uma estrela  distante, e a sua luminosidade, embora intocável, foi tão imensa. Se fez tão intensa para meus olhos, que o meu viver tristonho e acabrunhado criou uma nova esperança e forma.

E não parou ai. Você foi mais além. Aquém. Me devolveu sorrisos  aos  lábios, ternura à alma, felicidade e calma aos meus sentidos, notadamente aqueles  em que a vida  fez questão de escurecer e mergulhar num negrume quase sem saída.

Por fim, você me enviou para um mundo novo. Um mundo até então inimaginável. Com ele, me fiz completa, repleta, cheia, contente, alegre... Saltitante... Certamente outra mulher...

Uma nova mulher. Sim, uma nova mulher. Cheguei a ficar fora de mim, absolvida em meio a devaneios bucólicos.  Me peguei flutuando em espaços abissais... Até que um dia, de repente, num repente, você  se faz ausente. Fugiu, sumiu, se esvaiu num indiferentemente sem tamanho.  

Então tudo voltou ao ontem esquecido. Eu caí feia, tropecei de corpo e fragilidade na real e o pior de tudo, eu entendi: sim, eu entendi. Pra você... Meu Deus, pra você,  pra você jamais cheguei a ser realmente importante.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

Antonio Cabral Filho (21º Colar de Trovas) Tema: Servidão voluntária


01
Liberta-te das prisões,
de toda força contrária,
que a pior das servidões
é a servidão voluntária.
Elizabeth de Souza Cruz - RJ

02
É a servidão voluntária...
a pior escravidão,
muito mais que milenária,
a perfeita submissão.
Antonio Cabral Filho - RJ

03
A perfeita submissão
é para os alienados.
Os governantes não são,
pelos mesmos, questionados.
Oliveira Caruso - RJ

04
Pelos mesmos questionados,
numa submissão constante,
felizes escravizados,
presos por frágil barbante.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
Presos por frágil barbante,
com força extraordinária,
conforma-se o elefante
em servidão voluntária.
Gilberto Cardoso dos Santos - RN

06
Em servidão voluntária
vou viver sempre contigo:
serás minha luz diária,
eu serei o teu abrigo.
Antonio Francisco Pereira - MG

07
Eu serrei o teu abrigo
e também teu protetor,
terás o meu ombro amigo
e, quem sabe, o meu amor?
Ester Figueiredo - RJ

08
E quem sabe o meu amor,
se esconda n'algum disfarce,
para espalhar seu calor:
liberdade é entregar-se!
Antonio Cabral Filho - RJ

09
Liberdade é entregar-se
à servidão voluntária
e não impor-se o disfarce
de uma norma autoritária.
Talita Batista - RJ

10
De uma norma autoritária
os escravistas se fartam
sobre a alma solitária
e, após sugá-la, descartam.
Antonio Cabral Filho - RJ

11
E, após sugá-la, descartam,
sem a mínima vergonha.
Tomara que não repartam
sem-vergonhice medonha.
Prof. Roque – RS

12
Sem-vergonhice medonha
é viver em servidão,
imitando até quem ponha
a dignidade em leilão.
Antonio Cabral Filho - RJ

13
A dignidade em leilão
é cisa que me apavora.
Mas se for seu coração
eu arremato na hora.
Antonio Francisco Pereira - MG

14
Eu arremato na hora,
porque meu coração diz,
e desbanco quem ignora,
tal qual Machado de Assis.
Antonio Cabral Filho - RJ

15
Tal qual Machado de Assis
eu escrevo a toda hora,
analisando os brasis
e tudo que me apavora.
Midhi Paixão - BA

16
Tudo quanto me apavora
é viver igual escravo
no tacão de quem explora
sem valer sequer centavo.
Antonio Cabral Filho - RJ

17
Sem valer sequer centavo,
me entreguei por nenhum preço.
Hoje canela sem cravo,
da escravidão eu padeço.
Fernando Tanajura - BA

18
Da escravidão eu padeço
na servidão voluntária,
pois ainda não conheço
uma arma libertária.
Antonio Cabral Filho - RJ

19
Uma arma libertária
cura a sede de irmãos.
E quando tudo escurece,
busco a fonte mansidão.
Major Wagner Trindade - MS

20
Busco a fonte mansidão
e lanço o meu forte verso,
contra qualquer servidão
seja qual for o universo.
Luiz Claudio - RN

21
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões.
Talita Batista - RJ

***

Trovas Fechamento

A
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões!
Talita Batista - RJ

B
Seja qual for o universo,
no mundo das ilusões,
quem tem amor faz o inverso
liberta-te das prisões!
Aurineide Alencar - MS

Fonte:
Trovadores do Brasil

Amadeu Amaral (O Super-Homem e o "Trouxa")

Júlio de Sá passou e repassou distraidamente o guardanapo sobre os beiços carnudos, distendidos num vago sorriso tranquilo. O companheiro de mesa, que ouvira calado a abundante narrativa, aconchegou a gola erguida do sobretudo, e, com uma voz cujo timbre e cuja toada diziam, antes e melhor que as palavras, a índole de uma filosofia, de resignação e de comodismo:

— Mas isso cansa, ó Júlio, não cansa? De todas essas aventuras, de todas essas idas e vindas, viagens, festas, pândegas e idílios, o que tens tirado, decerto, é a conclusão de que não há como a gente viver na sua terra, com os seus...

Júlio de Sá cravou os olhos nos do comensal, carregando o cenho.

— Estás doido. Eu quero lá saber de sossego! Eu quero lá saber de calma, de paz, de vida metódica! Não nasci para isso, meu velho.

E o outro, apertando com as mãos a gola do sobretudo, o guarda-chuva entre os joelhos:

— Gostas então de uma vida desordenada e áspera?

— Quanto mais, melhor. A vida de carneiro não me tenta. A agitação é uma necessidade do meu temperamento. E mais: é uma maneira por que eu entendo, cá por umas ideias, que devo viver a minha vida. Se eu não fosse um exuberante por natureza, seria um agitado por convicção. Para mim a vida que merece ser vivida é a vida ultra-movimentada: movimento incessante, em todos os sentidos; expansão física, expansão afetiva, expansão dos instintos, expansão do espírito; viagens e lutas, paixões e negócios, prazeres, jogo, carraspanas, arte, mulheres, esporte, tudo, e tudo de pressa, sem parar em coisa alguma nem em parte alguma.

— Então, é convicção tua...

— Convicção, sim, senhor.

— Convicção, não, senhor. Dize que tu gostas, que o teu temperamento te leva por aí, que o teu feitio dá para essa vida dispersiva e doida. Convicção, é que não. Que diabo de convicção pode ser essa, ó Júlio! Tu confundes os termos...

— Não confundo nada. O que estou é com a boca seca. Este diabo de vinho... "Garçom", mais meia garrafa de cerveja aqui para este senhor, e vê se me arranjas aí um "Bourgogne" gelado, mais decente do que essa coisa que me deste há pouco. Digo-te que não confundo nada. Repito que, se assim não vivesse por temperamento, viveria assim por efeito de uma maneira minha de encarar as coisas. Não sou um simples praticante, sou um teorista da vida superativa. A existência repousada, assente, dentro de um quadro prefixado, com princípios gerais imutáveis e com um programa particular miudamente estabelecido, é apenas um atentado contra a natureza. A vida do homem não pode ser uma construção arquitetônica, com terreno escolhido a dedo, com plantas matematicamente organizadas, com materiais conhecidos, com destinação certa. Toma nota deste teorema negativo: a nossa vida não é uma construção. A nossa vida é apenas isto: vida — uma coisa cuja essência e cujo sentido nos escapam, que nos é superior, que nunca conseguiríamos abarcar nos limites da nossa consciência, porque esta não lhe apreende senão umas pálidas faúlhas, nem subjugar à nossa vontade, que só é forte quando se lhe submete a ela...

Todos os princípios morais com que nós pensamos dominar a matéria e o instinto se repartem em duas classes: ou são inerentes à própria índole das coisas, e nesse caso não valia a pena gastar tanto tempo e tanto esforço em compendiá-los, ou são puro artifício humano, inútil e ridículo como a pretensão de um sujeito que fosse pregar normas de movimento e de orientação ás ondas do mar. De resto, nem podemos saber quais são os princípios que existem na própria natureza e quais os que ela desconhece e rejeita. Não ha normas de vida! Nenhuma norma. Ninguém sabe se o santo que passou pelo mundo empanturrado de virtudes, dizendo palavras de concórdia e de piedade, distribuindo benefícios aos homens, não terá feito maior mal ao homem do que o bandido de alma opaca e de mãos mortíferas... Aquele que espalha esmolas e consolações pode garantir e suavizar a existência a alguns que consideraria menos dignos dela; o que cria exaltações e represálias em torno de si coopera para a formação de corações fortes, de almas altivas, de energias indômitas.

E, de pé, batendo no ombro do amigo estarrecido:

— A vida é para ser vivida. Viva cada qual a sua vida. A maior virtude que um homem pode ambicionar é a de viver — amplamente, desassombradamente, sem restrições, sem liames, sem dobras, sem receios, deixando livre ao próprio ser o máximo de expansão a que ele possa atingir. Aí tens a minha moral, e aí tens o que eu faço: vivo, num esforço contínuo, numa contínua agitação, sempre fremente, inquieto e anelante, sempre envolto na maravilhosa nuvem das sensações que me mandam os sentidos hiperestesiados, tudo vendo, tudo palpando, tudo experimentando. Vivo, numa palavra, durante o meu fugitivo minuto de existência, a própria vida eterna, magnífica e indecifrável do universo. — E sabes que mais? Vamos embora.

Júlio de Sá tomou o chapéu, e, acendendo um charuto:

— Vais para casa? Pois vamos juntos. Eu não vou a parte nenhuma. Talvez recolha também. E os dois, braço dado, saíram da claridade e da tepidez do bar, mergulhando na cerração da rua, ponteada de pequenos borrões de luz. Júlio de Sá, as mãos enfiadas nos bolsos, a bengala a emergir de um deles, encostada ao ombro, apoiava-se rudemente ao braço do companheiro pachorrento, e falava sempre, numa voz cada vez mais pastosa:

— Tu não vives, meu caro Lucas, tu não conheces a vida...

O outro tentou uma réplica. Não conhecia a vida que ele, Júlio, levava e exaltava, mas conhecia-a por uma outra face, menos fascinante talvez, mas com certeza mais nobre. Era a vida apagada, subterrânea e sofredora do maior número, a vida feita de sacrifícios quotidianos, de desejos contidos, de aspirações imoladas, de sonhos recalcados, de trabalho tenaz, absorvente, esmagador, opiniático, heroico...

E sublinhava com o gesto o ultimo qualificativo. Tinha a sua poesia, pois não tinha? Mas o Júlio, feroz:

— Poesia! A poesia do Dever, hein? Que raio de poesia tu achas numa vida artificial, toda de restrições duras, que te foi imposta sem discussão nem consulta, e que assim aceitas e praticas? A poesia da canga... a poesia da polé...

Gaguejando estas coisas, Júlio sacudia pesadamente o braço do amigo. E, num repelão forte, que o levou de brusco à parede:

— É isso que tu achas belo, meu pedaço de asno? O amigo pachorrento olhou-o na cara, insultado, e fez o gesto de quem queria desvencilhar-se e ir embora. Mas Júlio de Sá reteve-o. Ora essa! Já não se podia brincar! Deixasse de tolices. Amigos sempre....

Agora Júlio de Sá, com o chapéu atirado para a nuca, pendurava-se ao braço do camarada, resmungando desculpas entremeadas de elogios e de indiretas. Estava maçador, carinhoso e irritante. Sucumbido sob a dura prova, Lucas ia e vinha, aos boléus, jungido ao braço pesado do boêmio, ao longo da interminável rua deserta. Passou um carro. Lucas meteu-se nele com o importuno, resignado a sofrê-lo até que o largasse em casa. Abandoná-lo não podia, não seria decente. Tinha de ser naquela hora o seu arrimo; era o seu protetor forçado. O super-homem dependia, naquele momento, do seu sacrifício; sem este, talvez tivesse de dormir na rua, como um beberrão vulgar, ou num posto de polícia.

Aos solavancos do carro, sob o ar frio que zunia na coberta, Júlio espalhou-se molemente nas almofadas, as pálpebras descidas sobre os olhos mortiços. E quando chegaram à casa, saltou sozinho, quase firme, e bateu. Uma luz amarela veio de dentro, por baixo da porta, sobre a soleira. Em seguida silenciosamente, a porta abriu-se, e apareceu o vulto de uma velhinha, vagamente lambido pelo clarão, alongando de sob o xale traçado o braço que sustentava o lampião caseiro. Sorria, curvada e trêmula, na longa resignação de um velho sacrifício. Era a mãe do notívago.

Mas havia no seu semblante e na sua voz um vago e suave ressentimento. Júlio, como quem está acostumado, não lho percebeu. Percebeu-o e compreendeu-o vivamente o Lucas, que com enfado se atirou para o fundo do carro, depois de uma despedida apressada.

— Adeus, ó, super-homem!

— Adeus, ó trouxa! Medita no que eu te disse, mastigou Júlio de Sá, cuspindo grosso.

De dentro do carro, numa volta, Lucas ainda viu o filósofo, com um pé na soleira, a acender pachorrentamente um cigarro sobre a chaminé do lampião, que a velhinha lhe baixara à altura do nariz.

Fonte:  O Poeteiro

Letícia de Castro (Assassinando as Lendas Brasileiras?)

Mitos e lendas são estórias contadas oralmente através dos tempos. Permutando acontecimentos reais e históricos com acontecimentos alegóricos. As lendas e mitos procuram explicar muitas vezes acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Os mitos sempre possuem um forte artefato simbólico.

Os povos antigos não conseguiam explicar os fenômenos da natureza, através de explicações científicas, principalmente pelo fato da ciência que não era tão avançada quanto é hoje, não havia tecnologia para novos descobrimentos e criavam-se mitos com o propósito de dar sentido os acontecimentos do mundo.

Assassinando as lendas Brasileiras?

Os mitos também serviam como uma forma de passar conhecimentos e alertar  as pessoas sobre perigos ou defeitos e qualidades do ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido a vida e ao mundo. Muitas lendas se perderam com o tempo, a magia dos contos e mitos que embalaram antigas gerações e tradições poéticas em nosso país.

Nosso folclore está morrendo, as fábulas e contos que nos levavam para o mundo imaginário através da literatura ou de estórias contadas no intuito de um universo de aprendizado interior.

A magia dos contos foi se consumindo ao longo dos tempos e em casa os pais já não contam lendas como, por exemplo, a do saci Pererê, Iara, Corpo-seco, Boitatá entre outras inúmeras lendas folclóricas. Em muitas cidades ainda persistem tais contos como um fator cultural e importantíssimo na riqueza de nosso país, hoje devastado por culturas tecnológicas, entre tantas que se reduzem à modernidade de um mundo consumista e não mais com o brilho da leitura ou de estórias contadas pelos pais ou avós.

Essa cultura do folclore Brasileiro faz a mente do ouvinte ou leitor despertar, tirando lições para o cotidiano. Estão assassinando coisas tão belas que fazem o ser humano ser auto-analítico, contemplar seu meio e viajar sobre forçar límpidas da imaginação necessária para se emocionar ou sorrir diante das dificuldades cotidianas.

No conjunto de tudo que podemos chamar de folclore de uma terra; a comida, parlendas, danças, vestuário e muito mais, pergunto: Quantas crianças da atual geração conhecem algum cântico do nosso rico e vasto histórico de lendas brasileiras. O tempo resiste aos antigos que ainda lembram dos contos e ainda fazem-se enfeitiçado por eles. Mas nossas crianças, futuras gerações de um país inundado de costumes e culturas diversas.

A verdadeira cultura morre aos poucos perdidas nas amarras do tempo sobre as grandes cidades. O mito resiste ao tempo, caso contrário não seria um mito. Mas como resgatar essa beleza? Passando oralmente essa ampla cultura como era feita outrora, como é feito em alguns lugares distantes do Brasil.

O folclore é a cultura de um povo, de um país, de uma civilização. Essas fábulas são a essência histórica e o engrandecimento cultural, o desenvolvimento do intelecto dos futuros cidadãos do país. Se o país continuar vivendo na marginalidade cultural talvez aconteça o que nunca ninguém jamais imaginou; O assassinato do mito, o assassinato da interior de toda uma civilização e sua tradição, o assassinato da fantasia e dos contos que um dia fizeram questionar o medo ou espalharam estórias de amor.

As lendas soam de fato um aprendizado fantasioso, mas que além de sua magia faz o leitor navegar por mares questionáveis da imaginação e derrotar toda a deficiência de anticultural ainda eminente em nosso país nos dias atuais, deflagrada pela falta de oportunidade e desinteresse através das asas mórbidas das dificuldades do cotidiano.

Fontes:
Mitos e Lendas
Imagem = Fala! Universidades

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 357

 

Olivaldo Júnior (Felizes para Sempre)


(Conto classificado em 1º Lugar no I Concurso Literário Virtual da ACL – Academia Virtual Contemporânea de Letras – Isolamento Social - Coronavírus)
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Estava tudo pronto para o casamento de Isabel e Cristiano. Ela, moreninha, desposava um moreninho também. O melhor bufê, a melhor música, a melhor igreja. Tudo havia sido exaustivamente pensado, planejado e executado. Nada fugia ao script do chamado conto de fadas moderno, ou seja, o casamento. Sabe o “Fábrica de Casamentos“? Pois a Isabel não perdia nenhum. Era fã desse reality. Havia decorado as falas, o choro, a voz de cada noiva.

O caso é que próximo à data do tão esperado dia, Isabel e Cristiano tiveram uma ingrata surpresa. Um novo tipo de vírus vinha fazendo vítimas desde a China e, com espantosa velocidade, chegando a todas as partes do mundo. Até nisso os vírus de hoje são contemporâneos e se comunicam com uma rapidez impressionante. Enfim, como forma de conter o temido Covid-19, decretou-se como medida protetiva o isolamento social no País.

− E agora?! A gente tem que se casar de qualquer jeito!, falou Isabel apertando os braços de Cristiano ante William Bonner e Renata Vasconcellos, do Jornal Nacional.

− Não sei, meu amor, mas vamos dar um jeito, respondeu Cristiano tentando acalmar os ânimos de sua noiva, a quem por exatos nove anos vinha “enrolando”, isto é, cozinhando em banho-maria, dizendo que, quando as coisas melhorassem, iriam finalmente se casar.

Os pais de Isabel, Seu João e Dona Ana, a um canto da sala, de rabo de olho, assistiam à cena, pensativos. Tinham lá para eles que iria dar zebra.
*****
    
O casório estava marcado para 28 de março, sendo que a quarentena no Estado de São Paulo, onde moravam, havia começado na terça, dia 24. Isabel, coitada, olhava para os presentes já recebidos, para o vestido já engomado e pensava que, fatalmente, não haveria festa e, muito menos, cerimônia. Cristiano, mais consciente, começou a ficar preocupado com a situação, principalmente com os pais de Isabel, já com mais de sessenta anos. Que coisa!

O noticiário mal dava conta de noticiar a quantidade diária de mortos, principalmente na Europa, mais precisamente, na Itália. O bisavô de Isabel era italiano. “Porca miséria!”, diria o danado se ainda estivesse vivo. Esse, o Covid-19 não pegava mais. E a dengue, então? Os casos não diminuíam, só faziam aumentar. Seria o fim dos tempos? Uma vela votiva não parava de queimar no altarzinho recém-armado com muito amor e carinho por Dona Ana.

− Tanto doce, tanta flor, tudo jogado fora!, suspirava sem entender muita coisa a pobre Dona Ana. Seu João, que tanto esperou para entrar com sua filha na igreja, também sentia uma dorzinha no peito quando via que a filha chorava escondida no quarto, sem entender.

− Espere, Ana, eu tenho a solução, falou Seu João para a mulher. Filha! Filha!
*****

− Vai, mãe, a live vai começar!, falou Catarina, uma das primas de Isabel, que, em seu lar, doce lar, esperava mais uma live do Facebook começar, uma das febres da quarentena.

Todos a postos, os familiares de Isabel e Cristiano, cada um em sua casa, com a tela do smartphone ligada, com o 4G meio falho devido a tantos utilizadores confinados em casa, todos que gostavam daquele casal estavam lá, “online”.

− Estamos aqui reunidos para celebrarmos o casamento, o enlace de dois filhos de Deus, Isabel e Cristiano. Estejam vocês, caros amigos e familiares onde estiverem, podem se assentar. Você também, Ana, o casamento vai começar...

Não, não era um padre que estava realizando o sonho de Isabel e Cristiano, não. Era o Seu João, com sua “roupa de ir à missa”, que, de frente para a filha e o futuro genro, tratava de “oficializar” o casório. Tempos de crise, improviso!

No fundo, sabiam que o mundo andava às voltas com uma grande ameaça e se compadeciam por isso. Porém, mesmo aquela união sendo assim, tão simples, nos fundos de casa, com noivo e noiva, um pai e uma mãe zelosos, numa live da net, estavam mesmo felizes. Não tão só por uma live... Felizes para sempre.

(Publicado no Facebook em 01/05/2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Flávio Aquino Chagas (Poemas Diversos)


APOTEOSE

Que céu azul, e belo e esplendoroso,
o céu do meu Brasil forte e querido!
Que sol aquecedor, maravilhoso,
o sol do meu País estremecido!

Que rios, que florestas colossais
enfeitam nossa Terra hospitaleira!
Que pampas, que robustos seringais
a exaltar a gente brasileira!

Que praias fascinantes, tentadoras
existem neste solo varonil!
São praias das morenas e das louras,
das ruivas, das mulatas do Brasil!

Que lindos panoramas suburbanos!
Que belas capitais dos nossos dias!
E os lagos e cascatas, e o oceano,
e as noites de luar, de poesias!...

Que belo é o meu País, de língua forte,
de gente culta, alegre, valorosa!
Hei de querer-te, sempre, até à morte,
Ó Pátria minha, livre e grandiosa!
****************************************

ARACAJÚ

Bom-dia, Aracajú, terra querida
dos sonhos meus, constantes e felizes!
Bom-dia, meu rincão de toda a vida,
pois te venero em todos os matizes!

Ausente, há cinco lustros, não deixei
de te querer, querida, um só momento!
E só a ti, ó Musa, que beijei,
eu sempre amei, com todo o encantamento!

Agora, que te abraço, com saudade,
quero dizer-te, calmo e bem baixinho:
"Não dei meu coração a outra cidade,

nem dei o meu amor a outro alguém;
foi sempre teu, só teu, o meu carinho,
pois tu bem sabes que te quero bem!"
****************************************

BODAS DE PRATA

Cinco lustros completamos,
nesta data, de carinho!
Abençoa, Santo Antônio,
nossa casa, nosso ninho!

Neste dia, festejamos
nosso lindo matrimônio.
Não sabemos viver juntos,
sem o nosso Santo Antônio!...

Santo Antônio, nosso Amigo,
escuta o que te pedimos:
Faze nossa a Terra inteira,
pelo amor que construímos!

Finalmente, Santo Antônio,
nosso caro Padroeiro
santifica o nosso lar
e os lares do Mundo inteiro!
****************************************

BRASIL

Bendita Pátria, que acolheu Vieira,
de Portugal, estrela esplendorosa;
querida Terra, linda e hospitaleira,
que deu à luz o ilustre Ruy Barbosa:

"Eu te venero, sim, do Norte ao Sul,
Rincão querido, que estudou Camões!
E mais te quero, com teu céu azul
para Euclides da Cunha e o seu "Os Sertões"!

Tu leste, sempre, o perenal Camilo,
que os lusitanos imortalizaram.
Mas tens, à frente, um Castro Alves, filho
do Chão que, outrora, os lusos dominaram!

És, de todas, a Pátria que mais quero,
Brasil amado, céu de santa lida!
E filho teu eu sou e te venero,
eternamente, sim, por toda a vida!"
****************************************

QUADRAS

Quem vive trabalhando alcança Deus,
e não sente vontade de pecar.
For que te não ocupas, filho meu,
se a vida só tem graça no lutar!
- - - - - -
O sol nasce pra todos, nós sabemos,
mas todos os que querem trabalhar.
Os homens preguiçosos, nós só vemos
à toa, mundo afora, a reclamar.
- - - - - -
Seguir as leis de Deus é um dever,
que nasce com o autêntico cristão.
Quebrar seus mandamentos é não ter
direito de alcançar a salvação.
- - - - - -
As cartas são espelhos d'alma pura
e eu sempre te escrevi, sentidamente!
Por que me não escreves, "criatura",
se sempre me amaste, loucamente?
****************************************

RECIFE

Apoteótica cidade, alvissareira,
Recife deslumbrante, bela, encantadora!
Se já te chamam de "Veneza Brasileira",
aceita o título! Tu és merecedora!

Casa Amarela, Caxangá e o Longo Pina
são bairros lindos, que enobrecem teu conceito.
Boa Viagem, reluzente, é a menina
que nos seduz e nos conquista, por direito!...

Jamais olvidarei os coqueirais de Olinda,
que te projetam, ó Recife, mundo afora!
E as pontes que se alongam, a distância infinda,
eu nunca esquecerei, "Morena Sedutora"!

Tens tudo o que se faz mister e necessário:
tens alma, coração, calor, dignidade!
Belezas mil tu tens, em todo o teu rosário
de festas, de canções, de lendas, de saudade...

Se eu fosse filho teu, em versos te diria:
Ufana-te, Recife, robusta e viril!
Não vês que o Mundo é teu e não te contraria?
És linda, és um amor, és noiva do Brasil!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dez


CONVERSA DE BOTAS BATIDAS

O SUJEITO ATRAVESSOU a rua e veio diretamente em direção onde o Miguelino estava à espera de um ônibus que o levaria de volta para casa. Do nada, sem mais nem menos, o desconhecido sem se dar ao luxo de dizer boa tarde, mandou a indagação.  Uma meio besta, sem nexo.

— Amigo, desculpe a ousadia. Posso lhe fazer uma pergunta?

Miguelino antes de responder mediu o estranho de cima até embaixo.

— Já fez. Mas tudo bem. À vontade. Em que posso ajudar?

— Desculpe de novo. Curiosidade. Você se acha um bom motorista?

— Sim.

— Sabe tudo sobre trânsito?

— Dá para o gasto.

— Saberia explicar a diferença de um motorista excelente para um condutor bom de roda, ou discernir um volante ruim de um chofer literalmente péssimo?

Miguelino pasmou. Era só o que faltava, àquela hora da tarde.

— Como assim? Que diferença é essa exatamente a que o prezado se refere?

— Bem. O que quero, na verdade saber, é o que discerne, ou o que faz a diferença entre um ás do volante, de um bom motorista para um condutor mais ou menos e aquele simplório “James” considerado extremamente porcalhão e relapso?  

Miguelino pensou um instante.   

— O tempo da carta dele. Eu acho...

— Carta? Que carta?  

— A carta de dirigir.

— Você quer dizer carteira?           

— Isso.

— Ou seria licença? Talvez você prefira chamar o documento de habilitação, pois não?

Miguelino manteve a alternativa que achava a mais conveniente. Insistiu, pois, com firmeza no que havia falado.   

— Carta.

— Carta nada tem a ver com volante — observou o desconhecido passando da discussão à semântica. — Ou tem?

— É uma das maneiras de expressar quem vive com as mãos na massa.

— Na massa ou no volante?

Miguelino deduziu que o cidadão não batia bem da bola.  Louco de pedra ou algo pior.

— Complicado, isso — disse evasivamente.

— Nem tanto... — insistiu o recém-chegado. Há quanto tempo o amigo dirige?

— O quê?   

— Há quanto tempo dirige?

Miguelino chutou um período qualquer, sem pensar. Que diferença faria?

— Dez anos.            

— Já bateu em alguém?

— Não. Fui batido.

— Atropelou alguém?

— Me atropelaram.

O anônimo riu dessa resposta.

— Atropelado? Por quem?

Miguelino mandou bala na primeira idiotice que lhe veio à mente.

— Por um cara de cavalo.

O estrangeiro se desfez num gesto engraçado. Sorriu matreiro.

— Por um cara de cavalo?  Como é lá isso?

— Um cara lá ia pela pista no mesmo sentido que eu, puxando um vavalo...

— Como? — Vavalo ou cavalo?

— Perdão. Quis dizer cavalo.

— Pensei tivesse ouvido errado. Lembra que tipo de cavalo?

Miguelino começou a perder a paciência. “Que raios de homem chato!”.

— De quatro patas.

O outro não deixou por menos. Insistiu:

— E ele tinha rabo?

— Sim. Um bem comprido. Parecia nervoso.

— Quem parecia nervoso? O homem ou o cavalo?

Miguelino pirou na batatinha. De vez. Decididamente aquele não seria seu final de tarde de voltar para o aconchego do lar em paz e sossegado.

— O rabo!

O heteróclito coçou a orelha esquerda.

— Não entendi a colocação...

— Eu explico. O rabo do bicho não parava de se abanar.

— Amigo, um detalhe. Bicho ou animal?

— Os dois.

— E o elemento que conduzia o cavalo, lhe prestou assistência?

Miguelino nessa altura do campeonato concluiu que efetivamente o sujeito gozava da sua pessoa. Antes de mandar o infeliz para os quintos, resolveu se fazer de desentendido. Aquiesceu pressuroso:

— Ele não me deu nenhuma assistência.  O cavalo sim. Foi gentil, amável, cortês. Nunca vi igual. Com todo cuidado me acomodou nas costas dele e marchou a todo galope para o pronto socorro. Seu dono ficou sentado no meio fio, a cabeça enterrada nas mãos. Parecia chorar a criatura.

— Sei, sei... E no pronto socorro, como se deu a chegada?

— Um corre-corre danado.

— Como assim?

Miguelino não deixou a prosa esfriar. Levou na gozação. A mesma que parecia vir de seu interlocutor.   

— O cavalo, suado em bicas, entrou direto na área da recepção.  Correu até o balcão e lascou uma boa tarde à moça. Nessa hora, as pessoas que estavam ali, aguardando, na fila de espera, ao darem de cara com aquele animal, ficaram apavoradas, espantadas e boquiabertas. A debandada, por conta disso, foi geral. Um corre-corre dos diabos.

— Imagino! Continue...

— O tumulto se agigantou mais ainda quando o pobre quadrúpede, furioso com a tal da atendente —, acredite meu amigo, ela permaneceu alguns minutos totalmente congelada —, acho que a ficha custou a cair e ela de fato entender que um cavalo falava com ela, literalmente. Estatelada, como se tivesse visto o tinhoso, gritou. O cavalo, agoniado e aflito, deu uma relinchada básica, empinou estabanadamente para trás e quase não conseguiu me suster em seu colo. Não fui ao chão, por pouco.

— Colo? Você disse colo?!

— Lombo. Lombo. A debandada, nesse ponto, se generalizou mais ainda. Em questão de um abrir e piscar de olhos, não ficou viva alma na mesa da admissão para contar história. O segurança de plantão pulou por uma janela e levou junto uma funcionária que passava pano no chão. Ah, havia um senhor de cadeira de rodas...

— E ai? Vá em frente, complete...

— Esse senhor caiu sentado no cimento.

— Como? Não estava na cadeira de rodas?

— Por certo. Levada pelo medo, ou sei lá o que, a cadeira saiu em corrida desenfreada, arrastando, junto um balão de oxigênio.

— Inacreditável! Simplesmente inacreditável!

— E não parou ai.

— Teve mais?

Miguelino procurou causar impacto no que diria a seguir. Fez pose. Extremamente sério e compenetrado, lembrava uma lagartixa solitária numa parede esverdeada, mais solitária que uma mulher recém-enviuvada.

— Estou perguntando. Ficou mudo? Perdeu a língua? Desembucha. Teve mais?

— Claro. Alguém lá fora chamou a polícia.

— Sim?

— O guarda chegou, e como não tinha ninguém pra fazer perguntas, um dos militares, ato contínuo, prendeu o cavalo e eu tive que ir junto na viatura para prestar esclarecimentos na delegacia.

— Credo, que loucura! — E ai, continue. — Ao chegar à frente da autoridade...?

— Não me lembro de mais nada.

— Como assim, não se lembra de mais nada?!

Miguelino trouxe à baila a carta que escondia na manga.

— O despertador na cabeceira da minha cama começou a tocar... e eu, sobressaltado, acordei.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, de:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

domingo, 23 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 356

 

Stanislaw Ponte Preta (A Garota-Propaganda, Coitadinha!)


Já passava das oito horas da manhã e a garota-propaganda dormia gostosamente sobre o seu colchão de Vulcaspuma, macio e confortável, que não enruga nem encolhe, facilmente removível e lavável. Foi quando o relógio despertador começou a tilintar irritantemente (Você nunca dará corda num Mido).

A pobrezinha, que tivera de aguentar a cantada de um patrocinador de programa (Agência Galo de Ouro — quem não anuncia se esconde) que prometera um cachê melhor, caso ela ficasse efetiva na programação, levantou-se meio tonta. Fora dormir inda agorinha. Estremunhada, entrou no banheiro, colocou pasta de dentes na escova e pôs-se a escovar com força. Ah... que agradável sensação de bem-estar!

Depois do banho, abriu a cortina do box, que parece linho mas é linholene, e foi até a cozinha tomar um copo de leite. Tinha que estar pronta em seguida para decorar páginas e páginas de texto que apanhara na véspera, no departamento comercial da televisão. Abriu a geladeira de sete pés, toda impermeável, com muito mais espaço interior e que você pode adquirir dando a sua velha de entrada (a sua velha geladeira, naturalmente). Dentro não havia leite: — Não faz mal — pensou (Tudo que se faz com leite, com Pulvolaque se faz).

O diabo é que também não tinha Pulvolaque. Procurou no armário uma lata daquele outro que se dissolve sem bater, mas também não achou. Tomou então um cafezinho mesmo e correu ao quarto para se vestir e arrumar o cômodo o mais depressa possível. Iria à cidade apanhar os textos de uma outra agência que precisavam ser decorados até as três, além disso tinha que almoçar com um diretor de TV, a quem fingia aceitar a corte para poder ser escalada nos programas.

Arrumou as coisas assim na base do mais ou menos. Fechou o sofá-cama, um lindo móvel que ocupa muito menos espaço em sua residência, e procurou o vestido verde que comprara no Credifácil, onde você adquire agora e só começará a pagar muito depois. O vestido não estava no armário. Lembrou-se então que o deixara na véspera dentro da pia, embebido na água com Rinso, e o diabo é que o vestido, como ficou dito, era verde. Se fosse branco, depois ficaria explicado por que a roupa dela é muito mais branca do que a
minha.

Eram onze e meia quando chegou à cidade, graças à carona que pegara. Saltou da camioneta com tração dianteira e muito mais resistente, fez todas as coisas que precisava fazer numa velocidade espantosa e entregou-se ao suplício de almoçar com o diretor de TV.

Ali estão os dois, escolhendo o menu. Ele pediu massa e perguntou se ela também queria (Aimoré você conhece — pensou ela), mas preferiu outra coisa. Garota-propaganda não pode engordar. Comeu rapidamente e aceitou o copo de leite que o garçom sugeriu. Afinal, não o tomara pela manhã. Foi botar na boca e ver logo que era leite em pó, em pó, em pó...

Às três horas o programa das donas-de-casa. Às quatro, o teleteste que distribui brindes para você. De cinco às oito, decorar outros textos, de oito e meia às dez, tome de sorriso na frente da câmera, a jurar que a liquidação anunciada era uma ma-ra-vi-lha. Aceite o meu conselho e vá verificar pessoalmente. Mas note bem. É só até o dia 30.

Quase meia-noite e ela tendo de dançar com "seu" Pereira, do Espetáculo Biscoiteste. Um velho chato, mas muito bonzinho. O diabo era aquele perfume que saía do cangote de seu par. Um perfume inebriante, que deixa saudade.

Já eram quase três da matina quando ela voltou para o seu apartamento com sala, quarto, banheiro, box, copa, quitinete e área interna, tudo conjugado, que comprara dando apenas trinta por cento na entrada e começando a pagar as prestações na entrega das chaves. Finalmente, vai poder dormir um pouquinho.

E, aos pés do sofá-cama, faz a oração da noite: "Padre Nosso, que estais no Céu, muito obrigada pela atenção dispensada e até amanhã, quando voltaremos com novas atrações. Boa noite".

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Trovas de amor 02

Organização: A. A. de Assis (Maringá/PR)

O meu amor é bonito,
é grande, imenso, sem fim!
É bem maior que o infinito,
mas cabe dentro de mim!
Gislaine Canales
- - - - - -
Amor se dá, não se vende,
não se compra, não se empresta...
Quem o compra se arrepende,
e quem o vende não presta!
Iraci do Nascimento e Silva
- - - - - -
Nosso amor é uma certeza
dentro do meu coração;
e a luz da paixão, acesa,
apaga a luz da razão!
Istela Marina Gotelipe Lima
- - - - - -
Há dois mil anos o brilho
de um grande amor sobressai:
– o sacrifício de Um Filho
pelos filhos de Seu Pai!!!
Izo Goldman
- - - - - -
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam!
J. G. de Araújo Jorge
- - - - - -
Distante do olhar das ruas,
num sonho que me enternece,
em nosso céu brilham luas
que só o nosso amor conhece!...
João Freire Filho
- - - - - -
Sendo o amor uma batalha,
sentimos que, em sua trama,
não há vitória que valha
a rendição de quem ama!
João Rangel Coelho
- - - - - -
Se amor se paga com amor,
como diz ditado antigo,
meu benzinho, por favor,
acerte as contas comigo.
Jorge Murad
- - - - - -
Sempre que o amor se retira,
leva consigo a verdade.
E, pouco a pouco, a mentira
faz companhia à saudade.
José Fabiano
- - - - - -
Fizemos na vida ingrata
do nosso amor um tesouro:
os filhos nos deram prata!
Os netos nos deram ouro!
José Maria Machado de Araújo
- - - - - -
Se a vida pede uma pausa,
faça isso, por favor,
ou por amor a uma causa,
ou por causa de um amor!
José Verney
- - - - - -
Tenho um ciúme daninho
do meu amor, belo moço...
E até do seu colarinho,
porque lhe abraça o pescoço!
Lourdes Póvoa Bley
- - - - - -
Chovia naquele dia
como nunca aconteceu.
Eu liguei?... Me divertia:
teu amor me protegeu!
Lourivaldo Perez Baçan
- - - - - -
Menino mau, caprichoso,
vingativo, enganador,
insolente, mentiroso,
cego e volúvel – Amor!
Lúcia Lobo Fadigas
- - - - - -
Este amor que não buscamos,
amor – castigo e troféu,
se tem espinhos nos ramos,
tem flores que vêm do céu!
Luiz Otávio
- - - - - -
Só te peço amor sincero,
e o céu será todo nosso.
Se sou tua – que mais quero?
Se sou mulher – que mais posso?
Magdalena Léa
- - - - - -
O meu amor desmedido,
sem ter cais para ancorar,
parece um barco perdido...
longe da praia... a vagar...
Maria Lua
- - - - - -
Não deixe as cartas que eu mando
sem respostas, por favor,
porque é bom, de vez em quando,
reler mentiras de amor!
Maria Nascimento
- - - - - -
No grande páreo da vida,
o amor luta contra o ódio.
Não permita que a corrida
finde sem o amor no pódio.
Miguel Russowsky
- - - - - -
É tanto o amor que me invade
quando em seus braços estou,
que cada instante é saudade
do instante que já passou!
Newton Meyer
- - - - - -
Soprei. Apagou-se a chama.
Disse-te adeus em seguida.
– Quem diz adeus a quem ama
diz adeus à própria vida!
Olegário Mariano
- - - - - -
Era uma estrada deserta,
com muito barro... atolamos.
Não me lembro a data certa;
lembro o quanto nos amamos!
Olga Agulhon
- - - - - -
Mãos que imploram, na pobreza,
mãos que assistem seus irmãos,
quanto amor, quanta beleza
há no encontro dessas mãos!
Orlando Brito
- - - - - -
Ao que pede, à tua porta,
dá também tua afeição!
Um pouco de amor conforta
mais que um pedaço de pão!
Rodolpho Abbud
- - - - - -
Não me chames de senhor,
que não sou tão velho assim,
e ao teu lado, meu amor,
não sou senhor nem de mim!
Rodrigues Crespo
- - - - - -
No amor minha aprendizagem
com tantos erros se fez,
que não tenho mais coragem
de aprender tudo outra vez.
Sebas Sundfeld
- - - - - -
Levo no amor coisas boas,
sem jamais amar a esmo,
e amo todas as pessoas,
a começar por mim mesmo.
Sérgio Bernardo
- - - - - -
Tua alma desperta em mim
tanta calma e tanto ardor,
que, se o amor não for assim,
eu mudo o nome do amor!
Sérgio Ferreira da Silva
- - - - - -
São testemunhas caladas
de nosso amor e carinho
as duas letras bordadas
no velho lençol de linho.
Thereza Costa Val
- - - - - -

Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
o amor será sempre amor!
Vanda Fagundes Queiroz
- - - - - -
Se falta luz ou calor,
para isso tem saída...
A falta do teu amor
me apaga e congela a vida!
Vânia Souza Ennes
- - - - - -
Vive o mundo, hoje, perplexo,
um tempo demolidor,
em que a volúpia do sexo
destrói o encanto do amor!
Waldir Neves

Fonte:
A. A. de Assis (organizador). 60 Trovas de amor. Portal Cá Estamos Nós. http://carlosleiteribeiro.portalcen.org Agosto de 2005.

Lima Barreto (Congresso Pamplanetário)


Urubu pelado não se mete no meio dos coroados
Ditado popular

De tal forma se haviam multiplicado os congressos, que foi preciso ser original. Dentro de cada um dos oito planetas, desde o mais bronco, que me parece ser Vênus, até o mais inteligente, que naturalmente deve ser Netuno, não era possível reunir um que não fosse a milésima repartição dos outros anteriores.

Congressos nunca foram coisas de primeira necessidade; mas a necessidade do espetáculo tem em todos nós tão fortes exigências como desvios convenientes. Demais, Júpiter estava em tal estado de adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por ano 200.000$000 de toneladas de aperfeiçoadas farpas de bambus (específico contra as dores de dentes); e os seus filósofos e escritores, graças às modernas máquinas elétricas de escrever, abarrotavam os armazéns das estradas de ferro com bilhões de toneladas de papel impresso. Houve um que, narrando todas as suas conversas e atos do ano, dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo por segundo, escreveu uma obra de 68.922 volumes, com 20.677.711 páginas, das quais 3.000.000 alvas e limpas — as melhores! — significavam as horas de seu sono sem sonhos.

O autor não omitiu nelas nem as ordens aos criados, nem tampouco as frases vulgares que trocamos ao cumprimentar. Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava o peso da obra, e, portanto, o seu valor. Era unicamente Júpiter que estava assim: o resto dos satélites do Sol vivia sofrivelmente... Como, porém, houvessem descoberto que todos eles estavam ligados por uma força oculta que, embora influindo mutuamente sobre todos eles, pesava mediocremente sobre os destinos particulares de cada um; e, como também fosse preciso ser original nos congressos — Júpiter propôs, e todos os planetas restantes aceitaram, a reunião de um Congresso Pamplanetário.

Era preciso, diziam os embaixadores de Júpiter, formar um espírito planetário, em contraposição ao espírito estelar. Com isso, eles escondiam o secreto desejo de vender aos outros planetas farpas aperfeiçoadas, remédios para calos, toneladas de um literário papel de embrulhos e outros produtos similares de sua atividade sem limites, não esquecendo o fito de conquistar alguns destes últimos ou parte deles.

Todos os outros não viram bem esse propósito de Júpiter; mas este lhes venceu a resistência convencendo-os de que deviam ser originais e chamar a atenção do Universo... O mundo estelar não nos debocha? Altair não está sempre a rir-se sarcasticamente de nós?

Aldebarã não nos ameaça com seu rubor? Sirius não nos desdenha? Havemos de lho mostrar.

A reunião — ficou decidido — teria lugar na Terra. Não porque a Terra fosse muito poderosa, mas porque, nos últimos anos, ela instalara nos seus polos uma imensa buzina que gritava para as estrelas — "Sou o primeiro planeta do orbe, tenho estradas de milhões de metros: sou o paraíso do Universo", etc., etc.

A buzina era indispensável, visto que os caminhos, palácios, jardins e teatros, etc. se destinavam aos extraterrestres e tinham por fim atraí-los, no pensamento de que os estranhos viessem trazer a segura prosperidade dela — a Terra.

O seu povo, todos conhecem-no: é uma gente cheia de uma nevoenta poesia, tema, loquaz, um tanto indolente, mas liberal, por ser relaxada, e generosa, por ser liberal. São defeitos e são qualidades, mesmo porque, para os povos, não há defeitos nem qualidades; há características, e mais nada.

Os de Júpiter não são assim; são rígidos, duros e frios; e têm dois sentimentos dominadores: o do enorme, que é o seu critério de beleza, e o do dourado.

Um habitante do grande planeta, uma vez na Terra, ao ver pelo crepúsculo o céu banhado de ouro liquefeito, esperneou de tal modo e de tal modo subiu às montanhas para colhê-lo que nos antípodas houve um terremoto. Em vendo a cor do ouro, eles saem bufando, com o olhar injetado, em estado de fúria; e saem matando, estripando a indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais; e — curioso — só querem ouro para construir caixões de seis léguas de alturas e seis polegadas quadradas de base. Eis como sentem a beleza... A isso juntam um horror pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os "gatos" são bons; se velhos, têm a candura de criança; se crianças, uma grácil espontaneidade de encantar. Mesmo se não são melhores do que os seus companheiros de planeta, são perfeitamente iguais a eles.

Contudo, são doridos e auditivos, o que lhes dá a faculdade de criar uma poesia e uma música próprias, das quais os de Júpiter se aproveitam, à míngua de poder eles mesmos criar essas manifestações artísticas, pois a sua insensibilidade não o permite. Mas os jupiterianos não os toleram, porque podem os "gatos" votar, embora fossem os próprios algozes destes que lhes tivessem dado esse direito.

Por qualquer de cá aquela palha, os estúpidos jupiterianos se reúnem na praça pública e matam a pauladas, a fogo, à foice, sem forma de processo alguma, sob o pretexto de que o "gato" queria casar ou namorava uma filha deles. Lá se chama banditismo e é coisa parecida com o linchamento yankee.

Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses “gatos" excepcionalmente tímidos e doces, admirando-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos sofrimentos e humilhações que eles sofrem. Perseguem-nos de um modo bárbaro e covarde. Chamam-nos de poltrões, mas, quando querem guerrear, socorrem-se deles e os "gatos" se portam bem. Vem a paz, oprimem-nos, encurralam-nos mas, assim mesmo, eles crescem e multiplicam-se... Fraca raça!

Júpiter, como ia dizendo, acudiu ao grito da buzina e reuniu o congresso na Terra.

Na primeira sessão, logo os Jupiterianos falaram na fraternidade de todos os animais do Universo: homens e gatos, burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal de Júpiter até, a esse respeito, fez um discurso muito bonito. É muito cediça a manobra de Júpiter falar sempre em liberdade, fraternidade, etc. Certa vez, ele declarou guerra a Saturno, para libertar-lhe os povos. Logo, porém, que o venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida. Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província do México, em 1837.

Como todos esperavam, os trabalhos do congresso prosseguiram com grande atividade.

Além de tratar do estabelecimento de pontes pênseis que ligassem todos os planetas entre si, o congresso votou as seguintes conclusões sobre a perfeita fraternidade animal, estabelecido nos seguintes pontos:

a) Não se deveria mais comer qualquer animal (boi, carneiro, porco);

b) As gaiolas dos pássaros deveriam ser aumentadas do dobro, no mínimo;

c) Na caça, uma espingarda não poderia ser carregada com mais de seis grãos de chumbo;

d) Generalizar 05 jogos de bola na sociedade dos cabritos.

O programa era vasto e piedoso; e até um principal de Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena não haver ali muitas beatas que pudessem chorar com tal homem, tão digno de vir a substituir são Vicente de Paulo, porque não é próprio citar Sáquia-Múni.

O povo da Terra — boa gente! — exultou e encheu-se de orgulho por poder mandar às estrelas este grito: "Não comemos mais bois!! Nada temos com as estrelas!"

Houve festas: banquetes e bailes para alguns; luminárias para quem quisesse ver as fantasmagorias surpreendentes nos órgãos de publicidade.

No Céu, porém, Sírius sorriu e Altair mais amarela se fez. Da Plêiade, duas estrelas empalideceram de espanto, e a Aldebarâ quis avisar aos néscios, mas não pôde.

Júpiter vendeu a todos os seus irmãos toneladas de farpas, de remédios para calos, de papel literário; e isto com alguma violência, que me eximo de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio...

Se tais produtos não estavam completamente envenenados, foram, no entanto, deletérios. A Terra banalizou-se; Marte perdeu a inteligência; Vênus, o amor desinteressado; Netuno, a bravura generosa; os "gatos" de todos os planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão dos patrícios.

Sob os bons auspícios de Júpiter, foi assim que se fez a fraternidade animal em todo o sistema planetário. Sírius nunca mais cessou de sorrir.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 1920.