terça-feira, 6 de outubro de 2020

Arquivo Spina 15 (Maura Luza Martins Frazão)

 


Rubens Luiz Sartori (Aposentadoria em Versos)


Excelentíssimo senhor
doutor Gilberto Giacota,
digno geral-procurador,
onde o 'parquet' se apóia:

Venho por meio desta,
à augusta procuradoria;
chapéu tapeado na testa,
pedir a aposentadoria.

Cumpri minha sina gaudéria,
fui promotor trintenário.
Sempre esclareci a matéria.
Sempre cumpri meu horário.

Comecei nos anos setenta,
com a máquina manual,
sem ter telefone, nem fax,
faltava até material.

Iniciei por Marialva;
não conto nada por prosa.
Trabalhei em São Jerônimo,
fui o primeiro de Barbosa.

No começo dos oitenta,
eu fui pra Engenheiro Beltrão,
lá eu fiquei por três anos,
e mais de quinze em Campo Mourão.

Campo Mourão, com amor,
abrigou-me desde piá:
de açougueiro a promotor.
Os meus ossos guardará.

Termino aqui em Maringá,
boa terra onde me formei;
meu filho hoje cá está,
no Direito que lhe ensinei.

Para minha filha caçula,
que dos dezoito já passou,
e vai ser Engenheira Química,
a minha benção a ela dou.

Agradeço à minha Jussara,
esposa de bom coração.
Ao seu lado tudo sara,
até a dor da ingratidão.

Ao meu pai, o seu Gastone.
À minha mãe, a dona Olga.
Como som de gramofone,
Casal simples, mas que empolga.

A minha beca desbotada
foi a estola de meu centro;
quanta vez saiu suada,
dos debates noite adentro.
Sai bem rota, mas honrada.

Continuo no magistério,
lecionando na Fecilcam;
ensinando, sem mistério,
o alunado da Comcam.

Sei que é cedo pra ir embora,
mas eu já estou de tardezinha.
Fiz da minh'alma minha espora,
pra cavalgada que é só minha.

Vou-me apenas pra mais perto,
dos meus dias nesta terra.
E saio firme e mui esperto,
para o só meu tempo de espera.

Sempre fui do interior.
Nunca corri em promoção.
Fiz carreira um penhor:
"Ser promotor com paixão".

Deixo o cargo consciente
de que não fui muito brilhante;
porém, sempre independente;
jamais fui inoperante.

Devo tudo o que eu sou
à nossa Instituição;
"até sempre" e a Ela dou,
minha eterna gratidão.

Ao meu Ministério Público,
não desejo dizer adeus.
Quero, e o coração em júbilo,
rogar-lhe a bênção de Deus.

Obrigado, meus colegas,
do trabalho e da verdade;
sempre tenham deste amigo
o respeito e a amizade.

E assim descrito, Excelência,
singelo, e sem rebuscamento,
dê-me ir-me com decência;
dê-me, enfim, deferimento.

Fonte:
Blog da Roberta Carrilho

Malba Tahan (Aprende a Escrever na Areia...)


Dois amigos, Mussa e Nagib, viajavam pelas longas estradas que recortam as tristes e sombrias montanhas da Pérsia. Eram nobres e ricos e faziam-se acompanhar de servos, ajudantes e caravaneiros.

Chegaram, certa manhã, às margens de um grande rio barrento e impetuoso. Era preciso transpor a corrente ameaçadora. Ao saltar, porém, de uma pedra, Mussa foi infeliz e caiu no torvelinho espumejante das águas em revolta.

Teria ali perecido, arrastado para o abismo, se não fosse Nagib. Este, sem a menor hesitação, atirou-se à correnteza e livrou da morte o seu companheiro de jornada.

Que fez Mussa?

Ordenou que o mais hábil de seus servos gravasse na face lisa de uma grande pedra, que ali
se erguia, esta legenda admirável:

Viandante:
Neste lugar, com risco da própria vida, Nagib salvou, heroicamente, seu amigo Mussa

Feito isto, prosseguiram, com suas caravanas, pelos intérminos caminhos de Allah.

Cinco meses depois, em viagem de regresso, encontraram-se os dois amigos naquele mesmo local perigoso e trágico.

E, como se sentissem fatigados, resolveram repousar à sombra acolhedora do lajedo que ostentava a honrosa inscrição. Sentados, pois na areia clara, puseram-se a conversar.

Eis que, por motivo fútil, surge, de repente, grave desavença entre os dois companheiros. Discordaram. Discutiram. Nagib, exaltado, num ímpeto de cólera, esbofeteou, brutalmente, o amigo.

Que fez Mussa? Que farias tu, em seu lugar?

Mussa não revidou a ofensa. Ergueu-se e, tomando tranquilo o seu bastão, escreveu na areia
clara, ao pé do negro rochedo:

Víandante:
Neste lugar, por motivo fútil, Nagib injuriou, gravemente, seu amigo Mussa

Surpreendido com o estranho proceder, um dos ajudantes de Mussa observou respeitoso:

— Senhor! Da primeira vez, para exaltar a abnegação de Nagib, mandasses gravar, para sempre, na pedra, o feito heroico. E agora, que ele acaba de ofender-vos tão gravemente, vós vos limitais a escrever, na areia incerta, o ato de covardia! A primeira legenda, ó xeique!, ficará para sempre. Todos os que transitarem por este sítio dela terão notícia. Esta outra, porém, riscada no tapete de areia, antes do cair da tarde, terá desaparecido como um traço de espuma entre as ondas buliçosas do mar.

Respondeu Mussa:

— A razão é simples. O benefício que recebi de Nagib permanecerá, para sempre, em meu coração. Mas a injúria... essa negra injúria... escrevo-a na areia, como um voto, para que, se depressa daqui se apagar e desaparecer, mais depressa, ainda, desapareça e se apague de minha lembrança!
* * *

Eis a sublime verdade, meu amigo! Aprende a gravar, na pedra, os favores que receberes, os benefícios que te fizerem, as palavras de carinho, simpatia e estímulo que ouvires.

Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias, as ingratidões, as perfídias e as ironias, que te ferirem pela estrada agreste da vida.

Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever, assim, na areia... e serás feliz.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 398

 


Arquivo Spina 14 (Antonio Queiroz)

 


Fábulas (A Aranha e o Mosquito)


Um mosquito voava despreocupadamente nos ares, quando se sentiu preso na teia da Aranha. Estava a fazer esforços para libertar-se quando a Aranha se aproximou dizendo-lhe com voz ameaçadora:

- Não se mexa tanto assim, cavalheiro, que acabará quebrando as malhas de seda da minha teia.

- Senhora, ajude-me a libertar-me - pediu o mosquito, delicadamente.

- Está aí uma coisa que não posso lhe fazer - declarou a Aranha. O cavalheiro, invade violentamente a minha propriedade e ainda me pede que eu lhe abra a porta para sair!

- Perdão, senhora, não invadi a sua propriedade Eu vinha voando e, quando dei por mim, estava preso a estas malhas. Foi sem querer.

- Não posso acreditar que, sendo o espaço tão vasto ainda mais para um mosquito, o amigo viesse, sem querer, esbarrar na minha casa.

- Palavra de honra de Mosquito. Não tive intenção de ofendê-la. Não me passou pela cabeça o mais vago propósito de invadir a sua propriedade.

E com a voz mais doce desse mundo:

- Agora, que já dei minhas satisfações necessárias, peço à querida amiga que me ajude a voltar à minha liberdade.

A Aranha replicou imediatamente:

- Vontade não me falta, senhor, mas isso é impossível.

- Por quê?

- Cada um de nós preza o seu nome. O mundo está cheio da boa fama das aranhas. Seria um erro eu destruir essa boa fama, depois de a conquistar com tanto sacrifício.

- Não compreendo.

- Eu o farei compreender. No começo do mundo quando construí a primeira casa, os voadores vinham esbarrar nas minhas malhas, quebrando-as, rompendo-as. Para acabar com tal abuso, resolvi que todo aquele que eu apanhasse nos fios de minha rede, na minha rede ficaria para me servir de alimento. A notícia dessa resolução espalhei-a largamente pelos ares. Não houve quem não tivesse conhecimento dela. Apesar disso, de quando em quando, aqui vêm ter mariposas, pirilampos, libélulas e toda a sorte de bichinhos miúdos. Procedo igualmente com todos. Devoro a todos, todos, sem exceção.

E, arrepiando dignamente os pelos veludosos.

- Ora, se eu puser o amigo em liberdade, que se dirá de mim? Dir-se-á que eu não sei fazer justiça. O cavalheiro, decerto, não quererá que eu fique desmoralizada.

Mal acabou de falar, uma abelha, que voava nas proximidades, ficou presa nas malhas da teia. Em seguida, um besouro. Muito depois, um grilo.

- Está vendo? - disse a Aranha ao mosquito. Todos os que estão ficando presos na rede, da rede não mais sairão. A boa justiça é aquela que é igual para todos.

Naquele momento, um gavião vinha voando rumo da teia.

- Se ele não se desviar, é mais uma vítima, murmurou o mosquito penalizado. E o gavião não se desviou. Rompeu os fios, fez um grande rombo nas malhas, passou e foi-se embora.

Quando o mosquito olhou a Aranha, ela estava num cantinho, encolhida, trêmula e assustada.

- Que foi isso, senhora? bradou o prisioneiro. Não viu nada? Não viu o estrago que o gavião fez na sua casa? Que a reduziu a frangalho?

- Não tem importância. Eu a conserto facilmente.

- Mas ele invadiu a sua propriedade. Que justiça é a sua, senhora? Por que não o aprisionou para a sua mesa, como fez comigo, com a abelha, com o grilo, com o besouro? Fale! Fale!

- Quer saber por quê? Porque não gosto de carne de gavião, respondeu a Aranha com ar de pouco caso.

Moral da Estória:
Aos poderosos tudo se desculpa, aos fracos nada se perdoa.


Fonte:
Universo das Fábulas

Lisete Johnson (1950 – 2020)


1
Ah, o amor não dividido,
sonho não compartilhado...
Será este cão marido
ou um homem acorrentado?
2
Ao teu lado, não sei bem...
São as ondas em seu vagar
ou se é a rede num vai vem
que me dão o céu e o mar?
3
As amizades bonitas,
correntes de abraço estreito,
levo, gravadas em fitas,
no porta-joia do peito.
4
Às vezes, da terra bruta
e de um par de pés no chão
que vêm o exemplo de luta
e ânsias de superação!
5
Até parece mentira
que, na Rede, ao navegar
nas doces notas da lira,
vou, no teu corpo, aportar!
6
Benditas fotografias,
que contam fatos passados,
retalhos de alegres dias,
pelo tempo, costurados!
7
Céu marinho como tela,
verdes, grises, tom carbono…
são tintas de uma aquarela,
pintando as tardes de outono.
8
Embora este andar cansado,
denuncie minha idade,
a menina do passado
baila com facilidade!
9
Em todas minhas passagens
por terras, águas ou trilhos,
Deus, sempre, adorna as paisagens
de flores, de sóis, de brilhos!
10
Enquanto houver um luar
e um sol cheio de esplendor,
há de se ouvir o cantar
da lira de um trovador!
11
Este mundo gira, gira!
Gira tanto, tão veloz!
Ele gira ou é mentira?
Pois quem gira, somos nós!
12
Eu fui deixando um a um
meus vícios e compulsões…
E feliz, hoje, em jejum
me alimento de emoções.
13
Foi graças a seu gingado,
que a garota, um “avião”,
ganhou do “seu” deputado
“baita” cargo em comissão!
14
Franciscos são pregadores
de lumes e boas novas…
Alguns, da fé, são pastores,
outros, pastoreiam Trovas.
(trova para o Prof. Garcia)
15
Inconstância é estar contigo,
tudo tem duplo valor:
busco o amor, encontro o amigo;
busco o amigo, encontro o amor.
16
Marujos em alto mar,
habituados às baleias...
Nas areias... nem pensar!!!
Só querem fisgar sereias.
17
Meu barquinho de papel,
antes que o dia desponte,
zarpará do mar ao céu,
onde repousa o horizonte!
18
Meu gato, todo assanhado,
pelo em pé, todo se estufa,
totalmente apaixonado,
e seduz minha pantufa…
19
Meu desejo percorreu
teu corpo, feito compasso,
circulando o que é tão meu
na geometria do abraço!...
20
Muitos sofrem neste mundo,
por falta de pão e teto,
mas o pesar mais profundo,
é ser carente de afeto.
21
Na feira, o “seu” Manuel:
– Não vendo nada... Pois, pois!
Mas se esgoela: - Olha o pastel,
pague três e leve dois!
22
Não culpe, nunca, o destino
pelas quedas e fracassos.
Não se censura um menino
que cai nos primeiros passos!
23
Não é à força e martelo,
que se esculpe um cidadão!
Constrói-se, até, um castelo,
não caráter, retidão...
24
Não fico mais à mercê
do soar de cada hora,
pois o tempo pôs você
no meu tempo sem demora!
25
No brinquedo “Esconde-esconde”,
eu me escondia tão bem,
que, até hoje, não sei onde,
eu me escondi…E de quem?
26
Nosso amor é, com certeza,
permanente transfusão:
na alma, no leito, na mesa,
ao sugo de um macarrão!!
27
Num arco-íris de cores,
fui descendo de mansinho
sem, se quer, pisar nas flores
que plantaste em meu caminho.
28
Num tropel de evoluções,
a lua, no céu, galopa,
entrelaçando bilhões
de áureas estrelas em tropa!
29
O Jerry, rato travesso,
atazanou tanto o gato,
que virou Tom, ao avesso,
e fez do gato, sapato!
30
Ousada, a Lua assistia
pelas frestas da janela,
nossos corpos, na euforia,
rindo sob os raios dela!
31
"Paloma, blanca paloma",
do nada veio, ao tudo foi,
trouxe a paz, levou a soma
de uma sentença: "Acá estoy!!"
32
Perdão… As ondas pediam
afago às areias do mar,
que, em volúpia, se despiam
com o incessante beijar!
33
Por excesso de vaidade,
de soberba, de altivez,
valores, como a igualdade
estão, hoje, em escassez.
34
Pulsa tanto neste peito,
coração preso e febril,
ao mirar o vago leito
co’a sombra do teu perfil!!
35
Quando criança, eu ficava
olhando o céu, a cismar:
- quem, tão alto, a luz ligava
para acender o luar!
36
Quando me sinto impedida
por problemas iminentes,
o meu Deus me dá guarida
e vai rompendo as correntes!
37
Quando o percurso é distante
e os trilhos correm sem fim,
é bem neste exato instante,
que Deus alia-se a mim!
38
Que monótono seria,
se não houvesse matizes
de cor, de raça , de etnia,
frutos de várias raízes!
39
Quero um abraço apertado,
real ou até da ficção,
de um personagem letrado,
que afague meu coração!
40
Resgatei o meu passado
e a noite outonal de abril
ao ver no espelho embaçado,
a sombra do teu perfil!
41
Se a droga traz euforia...
Como seria melhor
drogar-se só de alegria,
sem lançar mão do pior!
42
Se a pressa fez-me escolher
atalhos e não caminhos,
por certo, só vou colher
em vez de rosas, espinhos…
43
Se, em vez de paredes, pontes
eu tivesse construído,
talvez outros horizontes
teria então percorrido!...
44
Singrei mares de agonia,
lutei contra vendavais,
para achar a calmaria
que só encontro em teu cais.
45
Sol poente e meu veleiro
diz adeus aos coquerais...
Voa livre, aventureiro,
à procura de outros cais!
46
Tempos de patriotismo,
inspiram até meu olhar:
na paisagem há lirismo
e a bandeira a tremular!
47
Teu beijo, bombom cremoso
de conhaque com anis,
é o manjar mais saboroso
que minha boca já quis!
48
Teu corpo, lânguida estrada,
percorro com meu desejo,
no asfalto da madrugada,
na trilha de cada beijo!
49
Um larápio, bem “pé-frio”,
ao fugir de um cachorrão,
escolheu, logo, o desvio
que acabava na prisão!…
50
Voltem riso e traquinagem
ao lar informatizado!!
A vida pede passagem
para o marasmo instalado!

Fonte:
Colaboração de Alexandre Magno Andrade de Oliveira Reis (Cruz Alta/RS)

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Um) Fora dos trilhos


ALOÍSIO PEGARIA o trem às sete e trinta da manhã de sexta-feira, impreterivelmente. Nenhum minuto a mais, nem a menos. Preparou as malas. Reviu item por item o que pretendia levar na bagagem. Dormiria cedo. Nada de televisão, esta noite. Antes de se recolher botou o celular para despertar às cinco. Ligou para Ana, sua noiva. Meia dúzia de palavras. Dia seguinte teriam mais de quinze horas para ficarem juntos num passeio que prometia ser inesquecível. Trocaram carinhos. Beijos e juras de amor. O essencial para manter acesa a chama do coração. Desligaram simultaneamente com um meloso “boa noite, durma bem. Te amo”.

***

Às cinco horas em ponto, o celular despertou Aloísio de um sono gostoso. Pulou da cama ligeiro e correu para o banheiro. Fez a barba, tomou banho, vestiu as roupas novas que havia comprado. Discou para a noiva às cinco e trinta. Ela estava pronta, esperando a ligação:

— Falta só engolir o café que a mãe fez, amor, e comer um pãozinho com manteiga.

— O trem sai às sete e meia em ponto.

— Legal. Estarei lá.

— Então, até...

— Até.

— Te amo!

— Eu também.

***

Do bairro onde ficava a casa de Aloísio até a estação, meia hora. Dava para fazer o percurso a pé, caso optasse por não pegar ônibus lotado. Talvez, por isso, Aloísio tenha, realmente, resolvido caminhar. Geralmente, àquela hora, apesar de ser o último dia útil, os passageiros dos coletivos andavam iguais a sardinhas em lata. O quadro não mudava nunca. Somado a isso, o inconveniente da galera, aglutinada (apesar do desodorante e do perfume baratos), conservava os sovacos cheirando a bacalhau apodrecido. Pensando nesses contratempos, saiu e se pôs em marcha, com uma boa margem de antecedência. Quando Ana saltou, do outro lado da pista, ele igualmente descia as escadas de acesso à estação ferroviária, trazendo, à reboque, uma bolsa enorme. Foi a jovem quem o avistou primeiro. Levantou os braços e gritou:

— Beeeeeem... Espere.

Aloísio ouviu a voz da consorte na segunda chamada. Deteve os passos. Ana cruzou a avenida movimentada, usando a passarela enorme que se estendia de um lado a outro, indo afluir, de frente, ao átrio de embarque. A sombra da beldade passava por cima dos ônibus e carros com tanta velocidade, que sequer dava para ver ou medir o tamanho da sua euforia delineada no asfalto abarrotado de rodas e pneus. Depois de um amontoado de beijos e abraços à volta ao mundo real:

— Vamos nessa?

— Demorô.

— Que horas?

— Sete em ponto.

— Temos ainda trinta minutos.

— O trem nem encostou...

— E não chegou muita gente, pelo visto.

— Mas observe que está tudo aberto.

— Percebi.

— Dá tempo pra comprarmos alguma coisa pra comermos pelo caminho, se você quiser. Embora eu ache que não seja preciso. Mamãe fez cachorros quentes e sanduíches de mortadela e queijo.

—Tem razão, amor. Vamos economizar. Sua sogra mandou frutas, biscoitos e dois litros de refrigerantes, além daquele bolo de chocolate que faz você lamber os beiços.

***

O chefe da estação, de andar lento e cansado (lembrava o velho e obeso sargento Garcia da série Zorro) barrou os dois à roleta de acesso à plataforma:

— Bom dia, meus amados. Vocês dois pretendem ir para onde?

— Pegar o trem.

Risos.

— O trem? Meus filhos, a esta hora ele está bem longe daqui. Outro, agora, só amanhã...

— O trem partiu? Como? O horário de saída não é às sete e trinta?

— Perfeitamente. Só tem um probleminha: que horas no seu relógio?

— Sete e vinte.

— E no seu, moça?

— Sete e dezenove.

— Desculpe. São oito horas e vinte e cinco minutos. Só para lembrar aos pombinhos: o horário de verão começou ontem, à meia noite. Pelo visto, vocês dois empacaram no horário velho. Posso dar uma sugestão? Troquem os tiquetes para amanhã, ou se preferirem, para o próximo final de semana. Os valores pagos não se perdem. Valem por um ano.

— Oh my God!...

— Não acredito! Amor, que mico. Racha a cara!...

Aloísio, na verdade, se esquecera de adiantar os ponteiros. Ana também, levada pela euforia de saber que passaria um final de semana inteiro com seu príncipe encantado. Vencido o impacto do primeiro choque, e depois de trocados os bilhetes, ambos se retiraram cabisbaixos e chorosos, procurando refúgio na onda gigante da tristeza frustrante que de repente os envolveu.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor

domingo, 4 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 397

 


Zaé Júnior (Caderno de Trovas)


Ao cumprir o meu dever
de filho, de pai, de irmão,
aprendi que compreender
vale mais que ter razão!
- - - - - -
A ternura que deixaste,
pai, qual herança tão nobre,
deixou-me na alma o contraste
de ser rico... sendo pobre!
- - - - - -
Brilhando ao sol, em cascata,
as águas, fazendo festa,
jorram confetes de prata
no carnaval da floresta!
- - - - - -
Cansado, mas com coragem
de continuar a jornada,
a vida é a minha bagagem,
que vou deixando na estrada!
- - - - - -
Com pena das minhas penas,
tais penas o assum levou,
e apenas penas pequenas
das próprias penas deixou!
- - - - - -
Copiando os astros distantes,
o sereno, em seus desvelos,
pousa estrelas de diamantes
na noite de teus cabelos!
- - - - - -
Depois da chuva inclemente,
levando um pássaro morto,
o ninho, na água corrente,
é nau fantasma e sem porto!
- - - - - -
Depois do amor sem censura,
nossos agrados sutis,
dizem coisas de ternura
que a nossa boca não diz!
- - - - - -
Dividindo, sem paixão,
tudo o que nos pertenceu,
levaste o teu coração,
mas não me deixaste o meu!
- - - - - -
Do teu perfil, na verdade,
só podes ver um pedaço,
pois para a tua vaidade,
o espelho tem pouco espaço!
- - - - - -
Em frente à perfumaria,
enquanto o ônibus espera,
pergunta o cego ao seu guia:
- Já chegou a primavera?
- - - - - -
Em silêncio vejo pura,
disfarçada em teu olhar,
a lágrima de ternura
que não querias chorar!
- - - - - -
E quando o inverno chegar,
saudosos, em seus desvelos,
meus dedos irão esquiar
na neve dos teus cabelos!
- - - - - -
Fiz da vida um labirinto,
do qual, se eu tento escapar,
quanto mais fujo, mais sinto
que estou no mesmo lugar!
- - - - - -
Há quem renove a esperança
e com promessas se iluda...
mas o Ano Novo é mudança,
que em verdade nada muda!
- - - - - -
Herói, que vence o cansaço
da vida em rude batalha,
tem no peito um marca-passo,
sua invisível medalha!
- - - - - -
Lembra? Eu brincava de Rei,
você... de escrava brincava;
do meu sonho hoje acordei,
escravo de minha escrava!
- - - - - -
Manhã... a geada caindo...
Mas se do inverno estou farto,
beijo os teus olhos se abrindo
e é primavera em meu quarto!
- - - - - -
Meu barraco, sem queixume,
fiz com redes de cipós...
mas a vida, com ciúme,
um a um desfez os nós!
- - - - - -
Meu cirquinho no quintal
era um circo de verdade;
na infância, não tinha igual
nem tem igual na saudade!
- - - - - -
Meu pai, a tua bondade,
que nos deu pão na pobreza,
é agora a farta saudade
que se serve em nossa mesa!
- - - - - -
Meu reino é um casebre antigo
onde um sol, sem majestade,
vem, de cócoras comigo,
aquecer minha saudade!
- - - - - -
Na Academia onde moram,
em sussurrante coral,
os imortais também choram
a morte de um imortal!
- - - - - -
Na existência dividida
pela incompreensão da idade,
se não te encontrei em vida,
te encontro, pai, na saudade!
- - - - - -
Na infância a gente brincava,
eu de sol, você de lua...
e o universo começava
e acabava em nossa rua!
- - - - - -
Não me agrada a falsa glória
que o jogo da vida tem,
pois sei que toda vitória
sempre é derrota de alguém!
- - - - - -
Não queiras cobrar com sangue
o mal que te machucou,
pois o mal é um bumerangue
que volta à mão que atirou!
- - - - - -
Na penumbra, sobre a toalha,
vultos que a vela produz
mostram que a sombra não falha,
por menor que seja a luz!
- - - - - -
No meu palco de ilusão,
quando se fecha a cortina,
ao terminar a sessão,
a ilusão nunca termina!
- - - - - -
No princípio, a solidão,
mas tu voltaste... e depois,
não coube em meu coração,
o que restou de nós dois!
- - - - - -
O atalho me leva à ermida,
a ermida me leva a Deus;
e Deus me leva à outra vida,
que a levou dos olhos meus!
- - - - - -
O bonde rangeu nos trilhos,
meu pai desceu, não sei onde...
Seguimos, a mãe e os filhos,
sozinhos no mesmo bonde!
- - - - - -
O chão não é de ninguém
nem do seu "dono", um instante;
do chão os homens só têm
sete palmos... e é o bastante!
- - - - - -
O meu sonho é um passarinho,
que de voar ficou farto
e acabou fazendo o ninho
na janela do meu quarto!
- - - - - -
O poeta mais que o soldado,
se quiser ser vencedor,
terá que amar, ser amado,
e só perder por amor!
- - - - - -
O tempo é como a caverna,
que não tem volta nem fundo,
onde a vida, que é eterna,
dura apenas um segundo!
- - - - - -
Ouço a melodia amena,
que vem do cosmos disperso
e minha alma, tão pequena,
ganha amplidão de universo!
- - - - - -
Plantando a vida se cansa...
e o caboclo, sem espaço,
colhe tão pouca esperança,
que não vale o seu cansaço!
- - - - - -
Quando a saudade é saudade,
saudade que faz penar,
saudade é felicidade
que se foi e quer voltar!
- - - - - -
Quando a seresta termina
sob o lampião do jardim,
a solidão, em surdina,
toca apenas para mim!
- - - - - -
Quem perde o tempo não sabe
que perde a vida também,
pois jamais a vida cabe
no tempo que a gente tem!
- - - - - -
Queres ferir-me gritando,
mas em soluços aflitos,
os teus murmúrios chorando
me ferem mais que teus gritos!
- - - - - -
Sagrado seja esse chão
no qual rezando, o roceiro
planta o próprio coração,
para a fome do ano inteiro!
- - - - - -
Se descobrir é preciso,
mais preciso é navegar;
"Terra à vista"... e um paraíso
floresceu além do mar!
- - - - - -
Sem abrigo, ao vento forte,
sem jardim e sem escolha,
sou frágil trevo sem sorte
à espera da quarta folha!
- - - - - -
Sem família, na orfandade,
aprendi triste lição;
quanto mais dói a saudade,
menos dói a solidão!
- - - - - -
Sem fronteiras, num só laço,
os homens são mais felizes,
pois a Terra, lá do espaço,
não se divide em países!
- - - - - -
Seu regresso foi surpresa,
pois já ninguém o esperava;
nem sentou... tinha outro à mesa,
na cadeira em que sentava!
- - - - - -
Teu olhar azul celeste
só sabia dizer não;
tantos não azuis disseste,
que azul virou poluição!
- - - - - -
Vovó, desfiando o rosário
das peraltices que fez,
foi zerando o calendário,
virou criança outra vez!

Fonte:
Zaé Junior. Pássaro Aprendiz: 1001 trovas.

Zaé Junior (1929 – 2020)


Zaé Mariano Carvalho de Nascimento Junior é o nome inteiro de Zaé Junior.

Nascido em Botucatu, interior de São Paulo, em 8 de junho de 1929, mas na década de 1930 mudou-se para a capital paulista. Desde os 10 anos fazia sonetos a 4 mãos com seu pai. A música também entrou em seu coração e Zaé aprendeu sozinho a tocar violão e piano.

Gostava também de desenhar e com isso ganhava uns “trocados”, para ir ao cinema ou algum passeio. Fazia “caricaturas”. Adorava desenhar, mas trabalho prá valer foi na Serviços Holerit, desenhando letras muito miúdas, para pagamento de funcionários públicos. Zaé estava com 14 anos. Passou depois a fazer “histórias em quadrinhos”, pequenos trabalhos em revistas. Em seguida foi para a Rádio Cosmos, e depois para a Rádio Gazeta. Ao mesmo tempo cursava Filosofia na USP. Casou-se cedo, com uma colega de faculdade e tiveram duas filhas: Cibele e Cilena. Prestou concurso público para a rede estadual de ensino e tornou-se professor.

Aí já estava na televisão. Esteve na Tupi, onde produziu nos anos 1950, o “Capitão Estrela”, na Excelsior, na Record, indo em seguida para uma agência de publicidade.

E foi aí que o rapaz eclético encontrou seu grande campo: no departamento de criação de várias agências. Sua vida sempre foi inteiramente louca: dava aulas à noite, trabalhava em mais de um jornal ao mesmo tempo, escrevia para revistas, trabalhava em rádio, em televisão e em agências de publicidade. Cinema de propaganda criou e dirigiu mais de 2000 trabalhos. Dentre eles alguns ficaram famosos e permaneceram anos no ar.

Fez também muitos roteiros para televisão, inclusive para a TV Globo. Criou e dirigiu sua própria agência: a Promark Propaganda e Marketing, desde 1973. Zaé Junior também compôs músicas, sendo que uma delas, gravada pela Odeon, foi o disco mais vendido em 1965.

Sempre esteve na cúpula intelectual das emissoras de televisão e das agências de publicidade em que trabalhou. Em 1961, entrou para a agência McCann Erickson. Lá, veio a oportunidade de supervisionar um horário de telenovelas da TV Excelsior, que apresentou sucessos como “A Deusa Vencida”, escrita por Ivani Ribeiro e dirigida por Walter Avancini. Na época, foi pioneiro em compor trilhas de novelas. Escolheu grandes astros e estrelas, entre eles Regina Duarte que lançou na novela “A Deusa Vencida”.

Ao longo da trajetória, também lecionou na Escola Superior de Propaganda e Marketing, na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e na primeira turma da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Ana, a neta dele o descreve como teimoso. “A teimosia dele era uma forma de resistir. Não aceitava a idade que tinha e lutava para continuar sendo independente.”

Zaé também deixou marcas na imprensa brasileira. Escreveu para a extinta revista O Cruzeiro e para alguns jornais. Foi um dos fundadores do Museu da Televisão e autor de quatro livros: o infantil “A Gruta Misteriosa”, o de trovas “O Pássaro Aprendiz”, e dois de poesias: “O Homem e seu Quintal” e “Fugaz Eternidade”. “O homem e seu quintal” recebeu muitos elogios de Vinicius de Moraes, que sobre ele disse: “Zaé é poeta inteiro, dos grandes”.

Zaé Júnior sofria de mal de Alzheimer, mas nunca se entregou à doença. Ele morreu dia 20 de agosto de 2020, de broncopneumonia.

Fontes:
Museu da TV
Folha de São Paulo

sábado, 3 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 396

 


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXXII

 


Carolina Ramos (Estático)


Assinou o contrato com mão trêmula, desenhando mal e mal as letras. Em momentos iguais àquele é que mais lhe pesava a falta de estudo.

Tivesse esquentado por mais tempo os bancos escolares, com certeza, não estaria ali, assinando um contrato que o deixava praticamente condenado a renunciar à vida durante oito dias! Como?! Simples:

Fora contratado para, durante a semana anterior ao Natal, encarnar Papai Noel, ou melhor, transformar-se numa espécie de robô rígido, impedido de qualquer movimento! Imóvel e inexpressivo, com cara e corpo do Bom Velhinho!

Para tanto, durante o expediente, comprometia-se a privar-se de falar, de sorrir, de mexer os olhos, ou um músculo sequer! Precisava lembrar-se de que era" um simples boneco, embora de carne e osso, com pausas mínimas para o absolutamente indispensável. Exigências exorbitantes, mas... por ser de carne e osso, precisava do trabalho, justamente para poder comer, mais osso do que propriamente carne, se fosse o caso!

Chegava a ser cruel negarem-lhe até o direito sagrado de respirar mais fundo, porque, respirar pressupunha movimento e movimento, no caso, seria a mais punível das heresias!

Trabalhar para viver é o certo... mas, poderia isto ser considerado um meio de vida?!

Oito dias de imobilidade total, tinha pela frente! Oito dias roubados ao calendário de um ser vivente, para serem computados ao de um morto-vivo! Ou vivo-morto, como preferissem.

Todas as ponderações foram esquecidas.

No dia imediato à cruel assinatura, lá estava ele travestido de Papai Noel estático, plantado à porta do Shopping, suando em bicas, no cumprimento fiel do compromisso assumido!

A intervalos regulares, era-lhe permitido mudar de posição, com trejeitos mecânicos, robóticos, como qualquer boneco que se prezasse. Pausas abençoadas pelos membros dormentes, apossados por legiões de formiguinhas hipotéticas, que, apesar das periódicas mudanças, não paravam de formigar. Suportava, a duras penas, cócegas e coceirinhas importunas e dava graças a Deus por livrá-lo de um acesso de tosse, ou de um espirro impossível de ser abortado.

Aguentava com galhardia a curiosidade das crianças e dos adultos postados à sua frente, a duvidar se era boneco que parecia gente, ou, gente que parecia boneco. E havia ainda os gaiatos que não poupavam esforços para fazê-lo capitular, empenhados em conseguir um sorriso ou, pelo menos, um ligeiro piscar de olhos, como troféu de vitória.

Estática e estóica, a "estátua" de Papai Noel resistia, noite após noite... dia após dia... envolta num manto de silêncio!

Véspera de Natal! Lá estava ele, fiel ao posto, tendo aos pés a caixa de correspondência transbordante de cartas infantis. Cartas cheias de pedidos inocentes e sonhos mais inocentes ainda.

O relógio da matriz, em carinhoso consolo, anunciava para breve o fim da penosa função. Faltava pouco!

Contava intimamente os segundos. Os últimos, sempre os mais difíceis de passar... mais duros de serem suportados!

O garoto aproximou-se ressabiado. Estacou ante a estátua humana — não de gesso, não de mármore, não de bronze ou outro qualquer metal, mas, de carne e osso. Material mais nobre que outro qualquer material!

Sujo, descalço, roto, protótipo do abandono, o menino examinou de alto a baixo, a figura do Pai Noel estático. Olhou em volta a constatar que ninguém o observava. Achegou-se mais e arriscou, num sussurro:— "Papai Noel, eu me chamo Landinho. Não escrevi carta nenhuma porque... porque não sei escrever direito." Olhou novamente ao redor, mais ressabiado ainda, sem querer ser ouvido. Sem ver ninguém por perto, encorajou-se: — "Sabe, Pai Noel, eu nunca tive brinquedo nenhum... nunca! E nunca pedi nada pra mim... nunca mesmo! Mas... sabe, eu não queria que o meu irmão pequeno, passasse o Natal triste... Me arranja um brinquedo. Pai Noel, por favor... qualquer coisinha serve! E eu sei que ele vai ficar contente! O senhor nunca chegou até minha casa, lá no morro, porque era muito difícil chegar lá! Eu sei! Num tô me queixando, não! Mas, agora é mais fácil. Nós moramos ali... ali debaixo daquela ponte grande. Vai, lá Pai Noel... vai lá... por favor!!!"

Duas lágrimas brincavam de turvar as pupilas daquele Pai Noel que, estático, apenas ouvia... Saltando barreiras, elas desceram, mansamente, a iluminar as bochechas do Bom Velhinho, até se aninharem nas barbas brancas e macias.

E... aquele homem impedido de mover-se... Aquele homem que não podia sorrir e sequer piscar os olhos,deixou que o pranto rolasse livre, afinal, sem mover um músculo sequer!...

— É que nenhum contrato, por mais cruel que fosse... lhe proibira de chorar!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) V


BODAS DE OURO

Nenhuma crise em nosso amor casado,
Nem a tendência de paixão lasciva.
Amo-a bastante e sei que sou amado
Na plenitude da intenção passiva.

Na convivência não se tem enfado
E nem a frase de sabor nociva;
Temos de cor o lema e todo o agitado
Do sacramento que no céu se arquiva.

Vivemos juntos, atingiu cinquenta,
E a registrar a minha mente tenta
Na concepção de interminável vida.

Amor tão grande assim não tem idade,
Para a alegria não existe grade
E para o amor nunca existiu saída.

(16 de fevereiro de 2006)
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MINHA BASSET "AYUNl”*

(*querida, em árabe)

Adoro a minha cadelinha esperta
Que me desperta quando estou na cama.
Embora dócil, uma queixa é certa
Se algum estranho, sem prever, me chama.

Por isso a porta fica sempre aberta...
Assim agindo evito um certo drama.
Na inteligente forma em dar alerta
Tem-se a impressão que seu latir proclama.

Herdou do pai a primorosa cor,
De sua mãe o singular dulçor
E um raro afeto de desvelo ardente.

Ao animal eu dei o amor mais puro
E a proteção que igual não há, eu juro,
Pelo carinho que dispensa à gente.
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PELA IGUALDADE

Alguém desperte a mente crua e rica,
Que desconhece o sofrimento pobre.
Toda porção, que da fartura fica,
Dai ao irmão antes que a sede dobre.

Gesto tão simples que a bondade indica
E dá diploma de cristão ao nobre.
Vale a grandeza desta ação pudica
Que ao dar de si o coração descobre.

Busca plantar e da melhor semente;
Seja bondoso e nunca mais se ausente
Deste labor que da virtude emana.

Pois quero ouvir da multidão na rua;
A flor carente não está mais nua
Graça à humildade e à conversão humana,
****************************************

SUA MÃE

Toda discórdia que no lar assola
Traz no seu bojo uma global falência.
Na convivência, onde a humildade rola,
Só nasce amor, na excepcional essência.

Habita o lar a redentora mola,
A que ameniza a dor da atroz carência.
Ensina o bem e a todo mal consola
E tranca espaço à perniciosa amência.

Rega carinho no embalar do berço;
Dedica tempo na emoção do terço
E faz amor ao coração do filho,

Que necessita do essencial carinho
Para encontrar o seu real caminho:
- a estrela mãe o venturoso trilho.
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TRIBUTO AO GUIA

Venha comigo conhecer a tenda
Onde penduro meu tesouro antigo.
E num colchão de palha guardo a renda
De um sonho de ouro que no livro abrigo.

Esta relíquia nunca esteve à venda
E o conteúdo tem a ver contigo.
Destes meus versos será feita a lenda
Do amor ternura sem nenhum castigo.

O meu convite não terá desfeita,
Tenho certeza que você o aceita
E não se inibe em descobrir meu sonho.

O sol se esconde... venha para ver
Na minha tenda a luz de um novo ser
Sobre os sonetos que a rezar componho.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 395

 


Daniel Maurício (Poética) 4

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Bênção, Maestro Matti


A Cantina do Zitão, como vocês sabem, era um animado lugar onde os solteiros da recém-nascida Maringá se encontravam para saborear a comidinha gostosa de Dona Maria José. Desde janeiro de 1955, quando aqui cheguei, e por mais alguns anos, fui um dos clientes da casa. Ali, por afinidades várias, meus mais frequentes companheiros de mesa eram dois dos nossos mais ilustres pioneiros do ensino: José Hiran Sallé e Aniceto Matti. Do bom Hiran já lhes falei; hoje vou falar do bom Aniceto, o querido maestro Matti, do qual sentimos todos uma saudade enorme.

Italiano de Piacenza, nasceu no dia 9 de janeiro de 1920. Artista de alma e coração, frequentou desde criança um renomado conservatório, de onde saiu com os diplomas de Música e Literatura Poética e Dramática. Um dia alguém lhe disse: “Você tem talento, bambino. Vai longe na vida”.

Aniceto ficou com aquela ideia na cabeça. Mas se era para “ir longe na vida”, então teria de vir longe mesmo. Trabalhou durante alguns anos em escolas de música na Itália, juntou umas economias, atravessou os mares, desembarcou em Buenos Aires. Nos primeiros tempos, para sobreviver enquanto aguardava melhores oportunidades, tocava piano em restaurantes e casas de tango. Até que numa certa manhã de janeiro de 1953 recebeu carta de um amigo e conterrâneo convidando-o para vir ao Brasil conhecer uma cidade novinha chamada Maringá.

Veio, gostou, acreditou, ficou. Começou fazendo um acordo com a Rádio Cultura, onde havia um piano utilizado para animar programas de auditório. Ele tocaria nos programas; em troca a rádio lhe emprestaria o instrumento para ele dar aulas. Centenas de crianças e jovens aprenderam a tocar piano ali.

Com o seu valioso currículo, mais um grande talento e aquela sua simpatia contagiante, em pouco tempo Aniceto passou a trabalhar como professor de educação artística em vários colégios, ao mesmo tempo em que formava e regia diversos grupos corais e ainda conseguia tempo para tocar piano e acordeón nas orquestras do Marchini e do Penha em bailes, cerimônias de casamentos e em outras solenidades. Um homem de coração puro e belo, que jamais teve inimigos. Um gênio a serviço da comunidade. Ponto de partida da história da arte dentro da história desta cidade. Sua obra-prima: a música do Hino a Maringá, com letra de Ary de Lima.

Será eternamente lembrado pelo muitíssimo que fez – como professor, instrumentista, compositor, maestro; como rotariano responsável pela coordenação da Olimpíada de Matemática Giampero Monacci; como uma das pessoas mais gentis e simpáticas que esta cidade já conheceu. Mas sobretudo como um homem bom e do bem.

Aniceto Matti formou família aqui. Fez de cada maringaense um amigo e irmão. Foi para o céu aos 80 de idade, no dia 14 de dezembro do ano 2000. A bênção, Maestro!
===================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-8-2020

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -2 -


ANTÔNIO FERREIRA
Lisboa, 1528 – 1569

Se erra minh'alma...


Se erra minh’alma, em contemplar-vos tanto,
e estes meus olhos tristes, em vos ver,
se erra meu amor grande, em não querer
crer que outra coisa há aí de mor espanto;

se erra meu espírito, em levantar seu canto
em vós, e em vosso nome só escrever,
se erra minha vida, em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;

se erra minha esperança, em se enganar
já tantas vezes, e assi enganada
tornar-se a seus enganos conhecidos;

se erra meu bom desejo, em confiar
que algu’hora serão meus males cridos,
vós em meus erros só sereis culpada.
****************************************

ESTÊVÃO RODRIGUES DE CASTRO
Lisboa, 1559 – 1638, Florença/Itália

Ausente, pensativo, solitário


Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente,
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamentos vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n’alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém, meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.
****************************************

FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Goa, 1540 – 1600?, ?????

Armada de aspereza minha estrela


Armada de aspereza minha estrela
a nova dor me leva e me encaminha;
mas se uma glória vi perder-se asinha,
foi por quem a perdi, glória perdê-la.

Sucede nova dor, nova querela
à liberdade que gozado tinha:
não sei remédio dar à mágoa minha;
e quem lho pode dar não sabe dela.

Que alívio logo em meu tormento espero,
se a que mo censura na alma, não o sente?
Senão se o vê nos olhos com que o vejo.

Porém, ah, doce amor, eu antes quero
passar convosco a vida descontente,
que contente viver sem meu desejo.
****************************************

LUÍS DE CAMÕES
Lisboa, 1524 – 1580

Alma minha gentil que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
****************************************

SÁ DE MIRANDA
Coimbra, 1481 – 1558, Amaraes

Quando eu, senhora...


Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma em si
e vou tresvariando, como em sonho.

Isto passado, quando me disponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
quando me era mister tant’outr’ajuda
de que me valerei se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 394

 


Arquivo Spina 13 (Ana Luzia Moura)

 


Stanislaw Ponte Preta (A beira-mar)

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a dourar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler Maravilhas da Biologia, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança que brincava com a areia.

Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.

O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.

Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.

— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra fungada.

O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.

— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos à saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.

O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:

— Deixa eu jogar neles.

O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:

— Não, senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.

O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: — Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.

— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?

— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é a sua.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Baú de Trovas XVII (para descontrair)


Perante a linda criatura,
cujo fascínio me inquieta,
a minha temperatura
sobe de forma indiscreta...
ALMEIDA CORRÊA
- - - - - -
Se as mulheres falam tanto,
o motivo é elementar:
quer no riso, quer no pranto,
têm preguiça de pensar!
ANTÔNIO TORTATO
- - - - - -
Esse leiteiro, coitado,
sendo gago — que ironia! —
diz seu nome gaguejado:
Anto-tônio Ma-Maria...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -

Tão grande amor se notou
entre o Sinfrônio e a Raquel,
que a cegonha os visitou
em plena lua-de-mel...
BENEDITO MACHADO HOMEM
- - - - - –
Disseste, altivo e casmurro:
— "Não sou burro!" Não duvido.
Como tu podes ser burro,
se há tanto burro sabido?
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - –
Tornou-se enfim deputado
o bom maestro de outrora,
E faz, com muito cuidado,
outros arranjos agora...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Se o decote tanto desce
e se a saia ganha altura,
qualquer dia, me parece,
vão se encontrar na cintura!
JORGE ROCHA
- - - - - -
Menina, toma cuidado
nesse namoro escondido,
pois talvez teu namorado
não pretenda ser marido!...
JADIR VILELA JÚNIOR
- - - - - -
A saia    curta,    menina,
não lhe fica muito bem,..
Assim como eu vejo tudo,
todos enxergam também!
JAIME RIBEIRO DA SILVA
- - - - - -
Cabeludos! Sinto, ao vê-los,
na patusca saliência,
que mostram muitos cabelos,
porém pouca inteligência...
JANE PIRES PALUMA
- - - - - -
Nas tuas tranças mimadas
de moça namoradeira,
como estavam humilhadas
as flores de laranjeira!
JOÃO RODRIGUES
- - - - - -
O cão que ladra — por isso
não morde, diz o rifão...
Todo mundo sabe disso,
disso, acaso, sabe o cão?
JOAQUIM CARVALHO
- - - - - -
Negas a mim tuas culpas,
mas uma coisa te aviso:
— não vais chegar com desculpas
à porta do Paraíso.
JOSÉ AMARAL
- - - - - -
Muita gente sempre houve
com sina de couve-flor:
pouco vale por ser couve,
vale menos por ser flor...
JOSÉ AUGUSTO RITTES
- - - - - -
No ciúme só se enleia
quem gostar de mulher bela;
quem casar com mulher feia
não terá ciúmes dela!
JOSÉ COELHO DE BABO
- - - - - -
Menina, é bom você note
como o sol está vermelho
por causa do seu decote
que desce até no joelho.
JOSÉ COUTINHO DE OLIVEIRA
- - - - - -
O Chico, simplório, asnático,
vai lendo as trovas de alguém.
E ao final exclama, estático:
— Como ele troveja bem!
LAURO SILVA
- - - - - -
Quando o amor é só desejo
e doida alucinação,
nesse caso, nem um beijo
resolve a situação!...
LÉA PINTO CORDEIRO
- - - - - -
Homem casado não logra
harmonia conjugal,
se tiver em casa a sogra
dando lições de moral...
MANOEL ABRANTES
- - - - - -
A janela de teu quarto
fica bem defronte à minha.
Tua sombra na vidraça
nunca vi passar sozinha...
MANOEL ROSA BARENCO
- - - - - -
Há coisas que não aguento,
difíceis de se entender:
tanta cabeça de vento,
com letreiro de saber!
MARIA DA COSTA LAGE
- - - - - -
Quem se gaba de valente,
neste verso bem repare:
— Nunca vi homem sem capa
que da chuva não dispare.
NEMAR GIL LIMEIRA
- - - - - -
Para esquecer-te, menina,
junto a ti eu me condeno.
É como na medicina:
— veneno mata veneno.
NEMÉCIO CALAZANS
- - - - - -
Isto acontece amiúde
na vida de muita gente:
bebendo muito "à saúde",
ficar em breve doente.,.
NENÊ CARVALHO
- - - - - -
Minha vizinha — que coisa! -
anda sempre prevenida:
tem língua, olhos, ouvidos
cuidando da minha vida.
OSMAR SILVA
- - - - - -
Perdão, senhora, se falo
das mulheres com ironia.
— Quem já caiu de cavalo,
cavalo algum elogia...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - -
Estando o pobre em jejum,
ante o despacho, sem mofa,
após dizer: "Salve Ogum!"
leva a galinha e a farofa...
WILSON MONTEMÓR

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.