quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Sammis Reachers (Antônio e os malandros voadores)

Conheci Antônio enquanto ele trabalhava como cobrador na linha 24 (Palmeiras x Gragoatá), em Niterói. Ele já era um coroa, e sempre gente fina. Antônio hoje está encostado pelo INSS, e prestes a se aposentar. Mas, nos idos da década de 80, Antônio era um jovem cobrador iniciando seus trabalhos na empresa Ingá. Tirava o horário do chamado vice-pelanca (penúltimo horário da tarde), 16:45, na linha 49 circular.

Ao entrar na empresa, naquela época, Antônio se deparou com uma realidade singular: as caronas eram 'permitidas', ou melhor, toleradas: se algum fiscal visse a dupla dando carona, deixava passar batido ou no máximo chamava verbalmente a atenção dos responsáveis. Mas, se visse o cobrador ou o motorista pegando dinheiro, aí era rua na certa. O jovem Antônio, muito temeroso, evitava seja dar carona, seja principalmente, quando a carona era 'inevitável', aceitar qualquer dinheiro.

Pois bem. Uma bela tarde, já em início de noite, nosso Antônio vinha em sua terceira viagem, na altura do que hoje é o terminal rodoviário João Goulart (que na época não    existia). Tremendo verão, os reflexos do dia escaldante ainda se faziam sentir. Eis que sinalizam ao veículo e embarcam dois elementos um tanto suspeitos. Antônio estranhou: os camaradas estavam de blusas de manga longa, naquele início de noite muito quente. As roletas, claro, ficavam na parte de trás do veículo.

Um dos rapazes, sacando uma moeda e fazendo menção de dá-la para Antônio, disse:

- Segura aí essa moeda, sangue bom. Nós vamos dar um voo (passar por baixo da roleta).

Antônio recusou a moeda e disse que não poderia deixá-los passar. A fiscalização estava acirrada e, infelizmente, seria preciso que pagassem a passagem.

Um dos malandros, se irritando, sacou um grande bolo de notas de dinheiro, e disse para o cobrador:

- Dinheiro nós temos, otário. O negócio é que nós não queremos pagar passagem. Libera logo pra gente passar aí, vambora, rapál

Enquanto esse diálogo transcorria, um cidadão, sentado próximo ao cobrador, levantou-se e, já empunhando um tremendo três oitão e apontando-o para os caras, disse para Antônio;

- Não está vendo que eles querem te assaltar, rapaz? Num calor desses e esses dois de blusa comprida?

Os passageiros presentes no veículo, ao perceberem toda essa movimentação, ficaram assustados. Uma velhinha começou a gritar.

- Calma, calma todo mundo! Eu sou policial!

Os dois malandros olhavam assustados para o policial. Antônio, atordoado, não sabia o que fazer.

- Vocês vão pular ou vão morrer aqui? - Disse o policial.

E, antes que os elementos pudessem responder, ele gritou:

- Motorista, acelera! Acelera e abre a porta!!!

O motorista, que de santo não tinha nada, entendeu logo o recado. Acelerou à toda a velha carroça, e lá quase na altura do Moinho Atlântico, abriu a porta.

- Bora cambada! Ou pula ou morre! Ou pula ou morre!!!! - gritou o policial.

Sem pensar duas vezes, os dois elementos saltaram do ônibus em grande velocidade, dois malandros voadores...

Olhando para trás, tudo que Antônio pôde ver foram os dois malandros, pássaros sem asas, capotando diversas vezes no asfalto duro. Duro e ainda quente...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes
 do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 10: Nádia Huguenin

 

Hans Christian Andersen (O que nos conta o vento)


O vento é tão alegre como uma criança. Já o viram correr, pelos campos, movendo o trigo, como as ondas do mar? É isto a dança do vento; mas ele não só dança, também canta. Vão ouvir como ele canta.

- Zum!... Zu!... Zê, ss... Ss... Ss!... - está ele dizendo.

Se não houvesse uns senhores muito graves, que usam chapéus que rodam pelas ruas, a vida na cidade seria para mim grande aborrecimento. Todas as distrações fugiram das cidades. Há cem anos não havia nada de que eu mais gostasse do que ir soprando pelas ruas abaixo. Mas, então, as ruas eram uma exposição de quadros divertidos, mais que lugares de comércio.

Todas as casas tinham sua vitrina ou tabuleta. Havia a vitrina do alfaiate, cheia de figurinos de várias cores, querendo mostrar que o alfaiate era capaz de transformar o homem mais esfarrapado num elegante senhor.

O barbeiro tinha por cima da porta um grande pau com uma navalha de madeira pendurada; peixes, chapéus, queijos, bolas, enfim, todas as coisas que se vendiam na cidade, eram representadas nas tabuletas; e quando eu as fazia oscilar e as punha a bater umas contra as outras, produziam um barulho ensurdecedor.

Que momentos tão alegres e divertidos passei eu numa noite em que me meti pelos mostradores! Tinha jurado que me havia de divertir.

O vento calou-se, dando em seguida um grito que estremeceu a casa.

- Oh! Como me lembro bem! - continuou ele a gritar pela varanda. - Era num dia em que os sapateiros se mudavam do antigo estabelecimento para o novo, levando consigo todas as tabuletas. Naqueles tempos, que já vão bem longe, os sapateiros eram ricos e poderosos e valia a pena ver a procissão que eles formavam. Havia um palhaço que abria a marcha, uma figura grotesca com a cara negra e uma roupa feita de retalhos. Todos riam. Hoje já não se divertem desta maneira. Atrás do palhaço ia a música, seguida dos homens que levavam os estandartes, e a grande bandeira de seda do grêmio dos sapateiros, enfeitada com uma grande bota preta. Subiu a um andaime, no qual tinha que fixar uma tabuleta, o sapateiro que presidia a associação e começou a discursar; mas o palhaço, que subiu atrás dele, fazia rir às gargalhadas o público, com os seus trejeitos. Eu quis também tomar parte na brincadeira e comecei a bater com as tabuletas umas nas outras e o orador desceu dizendo:

"Não é possível fazer-me ouvir por causa do vento, mas vamos fixar a tabuleta."

Mas eu havia resolvido - continuou o vento - que a tabuleta não se fixasse. Soprei até que o avental do sapateiro lhe tapasse os olhos, fiz cair a escada e levei-lhe o chapéu e a cabeleira. Por fim cansaram-se de lutar comigo e foram-se todos para a sua nova casa para celebrarem o banquete.

O vento deu um salto e prosseguiu:

- Eu estava naquele dia disposto a fazer mal. Tenho conseguido divertir-me com os sapateiros, andava pelas ruas tentando novas proezas. Comecei a tirar os tetos das casas velhas, mas ainda sentia vontade de fazer pior. Continuei a fazer cirandar tudo com muita habilidade. Quando a gente da cidade despertou, no dia seguinte, encontrou a tabuleta do Instituto Histórico num salão de bilhares e o Instituto tinha lá, em troca, a tabuleta arrancada de um asilo para crianças... Havia criadas e mamadeiras... Um peleiro tinha pintado na tabuleta uma raposa. Mudei a tabuleta para o outro lado da rua, para a casa de um conselheiro avarento, que pretendia passar por excelente pessoa. Toda a população se riu, sobretudo quando viu a tabuleta que eu tinha posto na casa de um juiz: era um pau com uma navalha de madeira. A mulher do juiz tinha o apelido de "A Navalha", por sua má língua.

Mas a partida mais original - continuou o vento com voz baixa - foi a que preguei a uma rica mulher que inventava grandes histórias contra os seus vizinhos. Pus na casa dela um letreiro que havia num solar abandonado e que dizia: "Aqui precisa-me de estrume."

Foram dias alegres - suspirou o vento - mas que já não voltam. Depois do que eu fiz nunca mais usaram aquelas tabuletas. Por minha causa muitos se envergonharam do seu comportamento e muitos homens nem queriam ouvir falar de mim e nas minhas travessuras.

O vento acabou de falar na varanda e, dando um grito muito agudo, foi-se embora.

Therezinha Dieguez Brisolla (Livro de Trovas) 2


À droga, ao fumo, à bebida,
- é o bom senso quem avisa -
se der a um deles guarida,
torna-se vício... e escraviza!
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Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.
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Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!
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Atua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!
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Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!
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Falo à minha confidente!...
Lá no céu, onde se esconde,
minha estrela, displicente,
pisca... pisca... e não responde!
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Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!
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Há certos dias tristonhos
em que um livro me faz bem...
e enquanto não tenho sonhos,
vivo dos sonhos de alguém.
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Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!
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Não acho coisas no chão
porque não consigo vê-las.
Sou poeta, eis a razão:
- Ando à procura de estrelas!
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O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!
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Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.
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Perguntei ao coração
se este amor o faz culpado.
Respondeu - e tem razão -
"Não amar é que é pecado".
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Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!
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O homem, a cada investida,
em sua ambição funesta,
nos rouba o direito à vida
ao destruir a floresta.
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Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!
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Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!
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Que eu tenha, no dia a dia,
cautela na trajetória...
Meus passos, na travessia
gravam, no chão, minha história.
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Que não haja cerca ou muro...
que entre as flores, no quintal,
a criança, no futuro,
celebre a paz mundial!
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Se a vida me desafia
e eu luto e venço a batalha,
o destino, à revelia,
põe noutro peito... a medalha.
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Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!
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Sua mensagem chegou...
Rasguei a carta e, serena,
lembrei que o tempo passou
e agora é tarde... Que pena!
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Sufoca a dor em meu peito,
meu coração sonhador...
e ajeita o ninho desfeito,
à espera de um novo amor!
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Tantas juras de mãos dadas!...
Mas, a vida em seus desvãos,
ao namoro armou ciladas
e separou nossas mãos!
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Tanto amor na despedida!!!
Voltas... e eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!
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Uma foto... uma missiva...
que eu guardei da mocidade.
Uma flor, a sempre-viva
e a sempre viva... saudade!

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela trovadora.

Hermínio Bello de Carvalho (Lia de Itamaracá)

Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá
(Teca Calazans)


Enquanto Lia não vem, é Dona Creusa que vai desfiando histórias. É a proprietária do "Sargaço" que comprou em 1973, ali no Jaguaribe. Trabalha com frutos do mar em geral: peixada, lagosta, filé de agulha, ostra, marisco, camarão. E tem sururu, pirão de guaiamum, e, é claro, cerveja bem geladinha — indispensável quando o sol castiga fone a ilha de Itamaracá. Não, não ganha muito dinheiro não.

Agora mesmo, veja só, o bar só tem vocês aqui. Vocês, eu, o Dr. Bernardo, diretor do Manicômio, e o Gilberto Marques Paulo — Secretário de Justiça e, nas horas vagas, tocador de violão e seresteiro. E mais o Juca, filho de José Lopes — ex-Prefeito da ilha. Gilberto acaba de me fazer visitar a Casa Grande do Presídio. Estranho aqueles homens todos morando em mil e setecentos hectares de terra, cada um com sua família em casas bem feitinhas, plantando as verduras que comem, andando livres pela Ilha. É um trabalho de humanização que vem aplicando às penitenciárias, tarefa na qual se engajou Célia, sua mulher. Ela cuida dos menores, antes que cheguem à delinquência. Pergunto se eles não fogem, tão fácil é o caminho da fuga. Nos dias de hoje, com moradia e comida garantida para si e a família — para que se evadir? Não me dou ainda por satisfeito, vou aqui e ali conversando com alguns presidiários. Visito a Casa da Farinha, vejo-a em pleno funcionamento. Vasculho as estradas, puxo conversa e me lembro de um tempo em que tinha. um programa de violão e poesia que era transmitido de uma rádio instalada na Frei Caneca. Vivaldi e Fernando Pessoa eram de vez em quando entrecortados por gritos pavorosos, a pancadaria comendo solta no meio da noite. Um dia contarei essa história, passada nos idos de cinquenta.

"Lia já vem". Teca Calazans costumava passar uns tempos na Ilha e ia às cirandas de Dona Duda, no Janga — subúrbio de Olinda. E me parece que foi por lá que conheceu a Lia. Ouviu-lhe as cirandas, anotou algumas, e ainda compôs outra que ficou famosa em todo o Brasil, cantada pelo Quinteto Violado: "Essa ciranda quem me deu foi Lia/ Que mora na Ilha de Itamaracá". E aí a cirandeira virou símbolo da ilha, parte integrante de seu folclore. E vem ela chegando.

Bonita, essa Lia! Enorme mulher de metro e oitenta. Os cabelos desarrumados, blusa florida e calça jeans, pés gigantescos em sandália de couro cru. Não está nada à vontade, devemos ser mais alguns daqueles forasteiros que vêm para lhe tirar fotografias, posar ao lado se possível com um sorriso que por enquanto economiza, como também raciona as palavras. Mais mimetiza do que fala.

Dona Creusa parece um pouco a Neuma da Mangueira, bonita como ela. Cabelos brancos, manda renovar a cerveja e a cachaça, os filés de agulha. Queixa-se do preço do camarão, diz que todo ano tem Festival de Cirandas, mas que a vontade dela é botar ali em freme do bar uma espécie de palco cheio de luz. Para que Lia cante e cirandeie. No espaço que tinha, ergueram um barraco inútil que só atrapalhou a vida do bar. "E vive de que a Lia?" Da profissão de merendeira escolar. empregada do Estado. "Ganho salário". Quer dizer: esse mísero salário mínimo, que é uma vigésima parte do preço de uma diária das suítes presidenciais que nós pagamos para a primeira-dama desfilar seu eterno sorriso, coisa aliás muito rara no rosto de Lia, a de Itamaracá.

As cirandas são famosas: além do canto de Lia, existem os músicos que a acompanham: um surdo, piston, tarol e ganzá. Às vezes, ao invés do piston, um saxofone. Disco já gravou sim, na Rozenblit — isso em 1977. Diz que não viu a cor do dinheiro. Vai lá dentro do bar e traz a capa: Lia bonita. sorridente, florida. Cheirosa. Lamenta que lhe roubem as músicas que faz, mas o que se há de fazer? Direito autoral, direitos conexos — são coisas de que ela não ouviu falar, sabe apenas que a música a empobrece mais ainda. Pergunto se ela não quer participar do disco do Capiba, diz que vai sim e não tenho muito por que acreditar. Promessas deve receber a toda hora, nota-se isso no olhar entristecido que quase nunca se fixa no interlocutor, vagueia para um lado para outro, como se buscasse na linha do horizonte as palavras de seu fraseado curto, quase monocórdio.

E como é que é na hora da ciranda. hein Lia? “É cachorro amarrado, pau comendo!" Ai desamarra a boca, solta-se um pouco mais, parece que vejo os seios bufarem quando fala em ciranda. E começa cantar uma que Capiba lhe fez de presente: "Minha ciranda não é minha só/ é de todos nós!/ a melodia principal quem tira/ é a primeira voz/ pra se dançar cirandada/ juntamos mão com mão/ formando uma roda / cantando uma canção". Combino quase tudo: o dinheirinho que vai ganhar. ela fala dos músicos que precisa arregimentar. Vem mais uma rodada de pinga e mais peixe-agulha. Lia vai buscar seu Bezerra, do saxofone; e Marcelo do ganzá, Genuário do tarol, do surdo: precisa deles para a gravação.

A Ilha de Itamaracá começa a se parecer um pouco com a da Jipóia ou Jibóia, como queiram: lá de Angra dos Reis. Não a de agora, que nem mais a quero conhecer. Mas a dos tempos de meu avô Gregório que não conheci, e que era tido como o melhor violeiro do Estado do Rio.

A velha Florinda, sua mulher, vinha trazendo aviso:"Lá na ilha Grande tem um violeiro que anda prosando que é melhor do que você. Se aprepare”. Ele ia temperar (afinar) a viola, ela fazer o farnel. Desciam os dois, ela pegava o remo e ele só temperando, temperando. E que só voltasse vencedor. Essa herança de violeiro passou para os filhos, pegou de raspão num neto que ainda chegou a dedilhar uns clássicos e largou tudo pela poesia, mas agora ressurgiu num bisneto que está firme em Leo Brouwer, Villa-Lobos, Torroba. Lembro meu sobrinho Saulo, fico orgulhoso de meu avô Gregório e largo meus devaneios porque é hora de voltar ao mundo.

Claro que deveria explicar o que estou fazendo aqui em Recife: um disco para Capiba, história que já comecei a contar há duas semanas passadas e correu firme pelo Recife inteiro: todo o mundo de Pasquim na mão. Cansaço, emoção: e lá vou eu parar na Unicordis, outra crise de hipertensão — eu ali domesticado na sala branca, monitorizado para um eletro que vai apontar a polirritmia dos batimentos cardíacos, o coração já em compasso de frevo dedilhado pela "Valsa verde" de Capiba, pelo choro que Jacaré fez em minha homenagem, mas também pelos aborrecimentos todos que cercam a vida de um fazedor de cultura, de um brasileiro irremediável e que anda chorando à toa pelos cantos da vida — a serenidade escoando aos poucos, a tensão desses dias ameaçadores provocando a hipertensão — e ainda mais agora essa tal de Lia de Itamaracá, ora vejam só.

Lia chega ao estúdio: seu Bezerra se perdeu no caminho, daqui a pouco chegará. Os meninos da "Casa do Guia Mirim" de Olinda estão por aqui, para deitar recitação no disco de Capiba. E uma ciranda come solta no estúdio três por quatro da Somax. Lia cirandeira de Itamaracá ,toda sorridente e festeira, primeira-dama destituída de outros privilégios que não seu próprio talento de mulher do povo, assalariada com um mínimo que não lhe roubou ainda toda a alegria.

Estranha música, essa de seu povo! As cirandas pernambucanas de Lia estão na boca de toda a gente, na alegria das pessoas se dando as mãos. cirandando em volta dela. E na verdade essa mulher de quarenta anos, meiga às vezes e justamente desconfiada quase sempre, e para muitos apenas uma dessas peças de artesanato urdidas em barro e que vão ornamentar uma estante — até que se espatifem e ganham o caminho da lixeira. Pegaram o disco de Lia e o trataram como se fosse de barro. Nem ela tem um só, até porque nem escutaria: vitrola é coisa que deve existir em sua vida de merendeira escolar. Volta e meia um turista de ar dementado virá tirar-lhe uma foto e nisso eu fico toda hora me lembrando de meu querido Camafeu de Oxossi, toda hora requisitado no extinto Mercado Modelo para exibir o sorriso, o chapéu imenso, a fama de melhor sabedor da Bahia, elogio que lhe pespegou o Jorge Amado.

Deixo Lia à porta do estúdio. Parece até que está feliz. Por pouquinho deixa de cruzar com Mestre Capiba, que vem cheio de guizos no rosto, a felicidade lhe tomando a alma.

Vai com Deus, Lia! toma conta dele direitinho.
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Hermínio Bello de Carvalho nasceu em 1935, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, escritor, compositor e produtor musical, tem toda sua vida dedicada à música, com parceiros como Pixinguinha, Radamés Gnattali, Paulinho da Viola, Ivone Lara, Cartola, Chico Buarque, Baden Powell, e muitos mais. Foi o criador de "Rosa de Ouro", "Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro", "Caymmi em Concerto", entre outros. Tem 13 livros publicados, como "Poemas do amor maldito", "Mudando de conversa", "Cartas cariocas para Mário de Andrade", "Contradigo" e "Sessão Passatempo".

Fonte:
Jornal “Pasquim” nº 796, Rio de Janeiro (RJ): edição de 
27/09/1984 a 03/10/1984.

Minha Estante de Livros (Canta… Sabiá!, de Carolina Ramos)


O livro “Canta... Sabiá!", da escritora de Santos/SP, Carolina Ramos (97), tem como tema o folclore nacional, reunindo poemas, provérbios, parlendas e ditos populares, além de poesias e contos da própria autora.

Carolina obteve mais de 1.300 prêmios literários. Ela diz que por ser um tema que não é abraçado com facilidade, e não é como uma poesia que sai da alma da gente, é diferente. Começou a escrever sobre folclore em uma obra ou outra, e ia separando. O folclore foi uma de suas primeiras inspirações.

No prefácio do livro, Domingos Trigueiro Lins, da Academia Santista de Letras, diz:

"Canta... Sabiá! " não é, somente, manifestação poética da inteligência de Carolina Ramos, sua autora. É, também, canto lírico do seu coração entoado em florilégios, como saudação à Pátria, brindando a alma brasileira com o que há de mais belo na criatividade dos seus sentimentos patrióticos.

O Monsenhor Primo Vieira (Academia Paulista de Letras) tece suas considerações sobre o livro:

No livro de Carolina Ramos - "Canta... Sabiá!" – o pássaro é simplesmente metáfora de poesia, se quiserem, de um lirismo, agora objetivo, posto a serviço da alma cívica e de sua grandeza histórica.

Na Trova, a Autora é mestra consagrada, mas, voltando-se 2 o poema de extensão maior, conseguiu imprimir versos tecnicamente perfeitos, belas mensagens poéticas, sem descambar para o prosaísmo vulgar dado ao gênero dissertativo em que se inscrevem os seus poemas. Os sonetos, por exemplo, não abandonam a forma tradicional das rimas obrigatórias das Chaves de Ouro, algumas destas de rara felicidade, como quando fala de um dos nossos produtos:

"Café, sangue moreno do Brasil!"

A parte dedicada ao folclore nacional- seria completada com poemas, dedicados a Santos, que foram incluídos, anteriormente, em outro livro seu - "Sempre"- onde, em 1968, já anunciava a preparação

-'Canta... Sabiá!"- que é um pequeno relicário de joias líricas, como as lendas do "Rio-Mar", do "Saci-Pererê", etc,

"Canta...Sabiá!" vale, assim, pela sua mensagem de otimismo patriótico, muito particularmente nesta hora de grande angústia, de inegável e vil tristeza, vivida pela Pátria, mas, que, com as bênçãos de Deus, aguarda um futuro melhor que lhe está reservado!

Este é um livro belo e bom, como se vê!


No vídeo, no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=zKP8-N0EAaE), em entrevista, Carolina fala do livro e de si.

O livro está à venda nas livrarias de Santos ou pode ser comprado por whatsapp (13) 99762-2706.

Alguns de seus contos e poemas/trovas foram postados neste blog para apreciação dos leitores.

Fontes:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Livro enviado pela autora.

Turismo Santos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Adega de Versos 50: Raimundo Caetano

 

Fernando Sabino (Comédia Humana)

— ESTOU numa situação meio complicada.

Levantei os olhos: eu acabara de entrar na livraria, e do outro lado de uma pilha de livros um rapazinho de ar modesto conversava com um senhor bem vestido.

— Situação complicada como? Que foi que aconteceu com você?

— O senhor não pode imaginar.

— Nem que eu quisesse não poderia. Conte logo, rapaz.

— Estão me acusando de roubo.

O outro ficou calado, mas como o rapaz também se calasse, repetiu, sacudindo a cabeça:

— Sim. Estão te acusando de roubo. E daí?

— De roubo — tornou o rapaz, mais veemente agora: — Veja o senhor que situação.

— E que foi que você roubou?

— Eu não roubei nada! O senhor acha que eu era capaz?

— Não acho nada. Estou só perguntando. Você mesmo é que disse.

— Eu disse que estão me acusando de ter roubado — o rapaz reagiu com firmeza.

— Muito bem. Estão te acusando de ter roubado o quê?

— Um relógio.

— Um relógio? Conte essa história direito.

— Foi num trem da Central. Eu ia para Madureira, onde moro. Quando saltei na estação um sujeito passou correndo e largou qualquer coisa na minha mão: era o relógio.

— Que relógio?

— O relógio roubado do pulso de um sujeito que estava cochilando. Só falou assim: segura isso, meu chapa — e saiu correndo.

— Meu o quê?

— Meu chapa. Foi o que ele disse. Era um crioulo alto, assim do tamanho do Didi, só que diferente ...

— Que Didi?

— O Didi, jogador de futebol. Se eu encontrar sou capaz de reconhecer ele.

— Está bem, mas conte o resto da história.

— Pois foi assim como estou contando: quando vi, os outros estavam me segurando. Até em linchar eles falavam. Me levaram para o Distrito, fui fichado como punguista, veja o senhor.

— Quando foi isso?

— Na semana passada. Fizeram o diabo comigo lá no Distrito, para que eu confessasse. Até no pau-de-arara me botaram. Confessar o quê? Acabaram me soltando, mas agora andam dizendo que vou ser processado.

— Quem anda dizendo?

— Um investigador lá, que arranjou para me soltarem. Diz ele que ainda tem jeito de abafar o caso.

— E o que você quer de mim? O caso já não está abafado?

— Eu queria só que o senhor me desse um atestado, qualquer coisa assim. Já trabalhei para o senhor, afinal o senhor me conhece, sabe que eu nunca fui de coisa nenhuma.

— Mas filho, como é que eu posso atestar sua conduta, se até ficha na Polícia você já tem?

— Eu não tinha não, agora é que eles fizeram.

— Eu sei, mas a título de que eu vou recomendar você à própria Polícia?

— Me recomendar então para algum emprego... Qualquer coisa serve. Só pra mostrar que eu não sou ladrão.

— Uma recomendação, nessas condições, não teria nenhum valor.

— Então o senhor não pode fazer nada por mim.

— Nada. Lamento muito.

O rapaz ficou calado um instante, mordendo o lábio e sacudindo a cabeça. Depois se despediu e saiu. O outro voltou-se e perguntou ao empregado da livraria quanto custava, em edição Plêiade, a “Comédia Humana”, de Balzac.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 5 –

AUTO-RETRATO


Preciso confessar que não a quero
por simples desabafo ou desagrado;
e procurando ao menos ser sincero
comigo mesmo o coração magoado.

Se nada tive e tudo ainda espero,
mais infeliz fora não ter cantado
o amor inatingível que venero
num misto de virtude e de pecado.

Alguém irá dizer, é bem provável,
que sou um sonhador, que vivo abstrato
no mundo da ilusão desagradável...

porquanto transformei a minha vida
num esboço qualquer, o auto-retrato
de uma pessoa a mim desconhecida.
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DESEJO ALGOZ

Não quisera perder e nem estar perdido
quando me vejo a sós em meio à multidão,
à procura de alguém, o amor desconhecido
que pode ser real ou simples ilusão...

Talvez há de surgir qual um fruto proibido
numa tarde banal na minha solidão,
e se concretizar ao ser correspondido
ou morrer infeliz, só na imaginação...

Triste desejo algoz que tem me torturado
com tanta intensidade e não posso esquecer,
como se eu fosse assim um pária condenado

cujo destino seja apenas padecer...
Bani-lo de minh' alma em vão tenho tentado,
vive dentro de mim, faz parte do meu ser.
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MINHA POESIA

Minha poesia desprendeu-se inútil
de um amor importuno de quimeras
que mais incompreendido do que fútil
pereceu esperando primaveras.

Oh! Jorge dá-me a Túnica Inconsútil,
quero fugir do mundo e suas feras
que o céu brilhante há de entregar-me dúctil
a pedra que foi rígida deveras.

Quanta esperança caminhou comigo
e não pude afastar este castigo
de prever coisas belas pela frente;

e tarde vejo todos os desejos
se transformarem nestes meus solfejos
que ferem fundo o coração da gente.
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SONETO AO SOL

Nesta tarde sem chuva até parece
que a claridade abraça nossa Terra,
o sol risonho aos poucos se descerra
e alegremente brilha e resplandece...

Oh! Rei dos Astros, quanta luz encerra
tua mensagem pura como a prece,
minh'alma consternada te agradece
a paz que trazes afastando a guerra !

Fugindo ao teu calor, buscando as águas,
a Humanidade olvida suas mágoas
e vai achar sossego à beira-mar...

Fazes crescer a planta com carinho
que produz folha, flor e até o espinho;
e as folhagens enfeitando o Lar.
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SONETO DA VIDA

Esperar novamente que amanheça
e começar a lida novamente,
sentir nos lábios um tremor descrente
e ideias revoltadas na cabeça...

Ter a vida já côncava e avessa,
nos membros um cansaço irreverente
e ter anseios de seguir em frente,
sem medo de que a nave lhe pereça...

Estar ausente de quem muito se ama,
levar no coração acesa chama
que abrase o corpo todo de calor

e lance irradiações ao semelhante,
é uma coragem de valor tocante
que não compreende quem não sente amor...!

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Nilto Maciel (Mancha na Parede)

Nota do blog: Frases em latim, significado no final do texto
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Eles estão se desvairando, aos poucos. Somente eu permaneço lúcido. Vejo tudo nitidamente: paredes e tapumes, portas e janelas, chão e ar, poeira e insetos. Enludrados estão os muros por onde passeiam lagartixas e outros seres. Ouço tudo o que fala, guincha, ruge, chia. No entanto, não sei como anda o mundo lá fora. Anos e anos metido neste mosteiro. Haverá guerras ou as nações vivem em paz? O comunismo ateu terá tomado conta de tudo ou se esfiapou? E a Igreja terá se expandido mais e mais ou perdido rebanhos para novas seitas e o ateísmo? Como viverão meus pais e irmãos? Certamente alguns deles morreram. Não durariam para sempre.

A mancha na parede parece se alargar dia a dia. Quem morreu aqui depois de minha chegada? O corpo de monge Heraldo estendido no caixão, lívido e grave, após um dia de orações sem fim – havia muito tempo. De velhice. Não falava mais, não andava. Talvez ainda rezasse. Depois monge Onguinaldo, tão cheio de viço, corado, loquaz, risonho, brincalhão, que definhou, murchou, da noite para o dia.

Outros e outros se foram, uns para muito longe, outros para o Céu. Introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetificat juventutem meam*. Aquela mosca me encara, como se eu fosse estranho. Mas ontem ela esteve aqui, lambeu e lambuzou minha mão. Ou será filha da outra? Aqui não é lugar para insetos. Aqui vivem meus irmãos, cenobitas como eu. Uns muito velhos, outros nem tanto.

Arnúbio fita os olhos em mim, com piedade, e foge pelas esquinas, a resmungar. Samuel ri à toa, observa o céu, persigna-se. Nos cantos vejo restos de biscoitos. E formiguinhas. Nazário passa horas debaixo da mangueira. Parece cochilar. Não temos nada a fazer, a não ser rezar. Se chovesse uma chuva muito forte, se os ventos prostrassem algumas árvores... Quem sabe desabelhássemos todos.

Não consigo me lembrar mais das feições de minha irmã caçula. Às vezes vejo seus lábios na imagem de Santa Bárbara. À noite fito as estrelas. Pisco para elas, mando-lhes mensagens. Antes de vir para cá, numa tarde, minha irmãzinha tomava banho. Por descuido, entrei no banheiro. Ela se sobressaltou. A menina se retraía, com medo. Eu me aproximei dela, passei  a mão em sua cabecinha. Senti um arrepio e fugi. Fui para a rua, atordoado. Eu nunca tinha visto ninguém sem roupas. Ajoelhei-me numa igreja, confiteor Deo omnipotenti.* Rezei durante horas, querendo tirar da cabeça a imagem da menina nua. Machuquei-me como pude. Fui ao médico, porque não alcançava a cura da ferida. Joguei-me contra paredes. Imaginei-me no inferno, a arder para sempre. O corpo se abrasava, doía. Quando voltei para casa, minha mãe me examinou com olhos de estranha ansiedade. Voltei-me para as paredes.

Havia uma mancha à imagem e semelhança do semblante do demônio, olhos cravados em mim, com deleite. Agora a mancha na parede se esverdeou. Preciso falar com frei Angélico. Há dias não o vejo. Ouvi falarem de uma indisposição estomacal. Frei Domênico morreu de diarreia. O convento virou uma fossa insuportável. Ostende nobis Domine, misericordiam tuam.*

Ali vai Bernardo, a arrastar os chinelos, a sondar o ambiente, com medo de capetas. Sonha – contou-me, trêmulo, nervoso – com seres terríveis. Anda a espantar coisas com os dedos. O passarinho voa para os fundos da chácara. Diziam quinta, há muito tempo. Havia, ao fundo, grandes gaiolas. Os pássaros chanfalhavam o dia todo, num canto interminável. Por que não soltá-los? Aproximei-me da grade, eles se perturbaram, gritaram, desesperados. Para eles eu seria uma ameaça? Corri, tropecei numa pedra, caí. Quantas vezes tenho caído, quantas vezes me erguido. Mas sempre sujo. Minha alma se lavará algum dia? A qualquer momento serei chamado para o Eterno. Irei. Como não ir? E nunca voltarei. Como frei Domênico. Mas então estaremos limpos, longe das fossas.

Ali vai outro demente, pobre frei Sinfrônio. Quer conversar comigo, mas nada temos a dizer. Benze-se e ri. “Deus esteja contigo”. Afasta-se devagar, a olhar de viés, como se temesse que eu o seguisse com os olhos. Mas não quero deitar minha atenção nele. À noite não tenho conseguido dormir logo. Passo horas a rezar. Uns roncam e penso que vão morrer sufocados. Amarro as mãos com a ponta do lençol. “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. Se amanhecer morto, saberão que tentei me agarrar, para não ser levado por estes seres terríveis que comigo se defrontam a todo momento, zombam de mim, tomam conta de meus sonhos. Acordo sobressaltado, como se cães danados uivassem dentro de meus ouvidos. Preciso rezar mais, mais e mais. Sempre, até o último dia, o derradeiro instante nesta vida.

“Cavalgava um querubim, e voou; sim, levado velozmente nas asas do ...”. O vento corta a copa das árvores e sibila. Andorinhas passeiam para cá e para lá, invisíveis, a zinzilular sem freio. Faz muito calor. O suor empapa minhas vestes. Eu quero frio, gelo e barulho. Os corredores são imensos e não levam a lugar nenhum. Há vultos atrás das colunas, das cortinas, espiam pelas janelas, fogem sorrateiramente para o mato, escondem-se de si mesmos. “Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão?” Sou lúcido como um filho de Deus. Nada invento.

Meus irmãos, coitados, riem de nada e se desvairam sem controle. Passam horas sentados, ou a caminhar sem rumo, perdidos. Examinam as paredes, como se fossem seres, e falam com elas. Conversam com os próprios pés, os chinelos, as pedras. Falam de Deus para mim, como se eu fosse um intruso, um desconhecido. Cuidado, frei Jeremias. E se retiram sem despedida. Entram para seus claustros ou se escondem atrás de pilares.

Reaparecem e me chamam de frei Domênico. Assusto-me e saio de esconso. Volto para a parede suja, vejo a mancha que cresce dia a dia. Aproximo-me dela e vislumbro o rosto de minha mãe, com o olhar misterioso e de repreensão. “O que você fazia dentro do banheiro, menino?” Corro sem freio, desembestado, medroso, e atiro-me na cama, a chorar baixinho, com vergonha de tudo, de meu corpo, de minha nudez, de meus pecados. Quero me afligir, me torturar, me sangrar, me purificar. Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum...*

Como estará lá fora o mundo? Terá pegado fogo? Ninguém nos manda notícias. Não se sabe de nada, de ninguém, como se nenhum de nós tivesse pais e irmãos. A mancha na parede cresce. Ali vai outro pobre monge, a resmungar. Talvez encontre sua pedra e também caia. Eles não enxergam nada. Eu vejo tudo com nitidez.
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Tradução:
Introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetificat juventutem meam = Subo ao altar de Deus, o Deus que alegra minha juventude!
Confiteor Deo omnipotenti = Eu confesso ao Deus Todo Poderoso.
Ostende nobis Domine, misericordiam tuam = Tua misericórdia, oh Senhor, mostra-nos ela.
Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum = Pai Nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso Nome.


Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 10 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 528

 

A. A. de Assis (A Mãe da Criatividade)

A necessidade é a mãe da criatividade”. Sábia e antiga frase que ouvi pela primeira vez quando era ainda criança, uns oito ou nove anos, e morava na roça. Começo dos anos 1940. O mundo estava atravessando um dos piores períodos da história, a segunda grande guerra. Rigoroso racionamento de tudo, principalmente de combustíveis e alimentos. Então era preciso inventar soluções para sobreviver. A necessidade faz milagres nesses momentos.

O povo, antes do conflito, estava acostumado com variedade e fartura. O que não se produzia no Brasil vinha de fora, de marmelada em lata a bacalhau. Com o racionamento decretado pelo governo, mudou tudo: era preciso economizar o quanto fosse possível e fazer filas até para comprar bolacha na padaria.

Mas na roça era um pouco mais fácil, visto que as famílias contavam com produção própria. Com paciência, criatividade e fé, dava-se sempre um jeito de resolver as coisas. De fome ninguém morria. Na falta de trigo, a gente comia pão de fubá, bolo de aipim, batata doce assada, biju, tapioca, sopa de inhame com taioba. Na falta de açúcar, o café e as sobremesas eram adoçados com garapa ou rapadura. Na falta de querosene, usava-se óleo de mamona preparado em casa para abastecer as lamparinas.

Tinha carne e miúdos de porco, de cabrito, de galinha; em dias especiais carneiro ou peru – tudo criado ali mesmo, no pasto ou no terreiro. Peixe era pescado no riozinho que rolava nos fundos da casa: piau, cachimbau, piaba. Ovo era só apanhar nos ninhos. Tinha leite de vaca e de cabra, com o qual se fazia queijo e requeijão. Verduras e legumes estavam bem ao lado, na horta. Frutas no pomar. No sábado um tutuzinho com torresmo e carne-seca.

Forno e fogão eram aquecidos com lenha. Para cozinhar usava-se banha. Sabão era de sebo e cinza. Remédio era um chazinho de macaé. Gás e energia elétrica, nem pensar. Adubo era titica de galinha. Ração industrializada não havia. Os porcos engordavam comendo abóbora, banana e lavagem, os outros animais comiam milho e capim.

Pergunte aos seus avós, que eles se lembram. Quem tivesse um sítiozinho e disposição para trabalhar estava equipado para enfrentar a grande crise. Moleza não era, mas serviu como um precioso aprendizado para a sobrevivência em situações difíceis e disso resultou uma geração de gente forte e decidida.

E foi justamente essa geração de gente forte e decidida que, nos meados dos anos 1940, logo após o final da guerra, saiu de onde estava e veio com toda a garra inaugurar aqui um mundo novo. Originários de todas as regiões do Brasil, alguns de países distantes, vieram trazendo nas mãos os calos da corajosa labuta que lhes deu forças para peitar e vencer qualquer desafio. Homens e mulheres da melhor qualidade, aos quais devemos tanto.

A eles e a elas nossa gratidão e o maior respeito.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-9-2021)
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Nota do blog: O pintor Gael Mac Tiréban, autor do retrato artístico acima da catedral de Maringá, faleceu em agosto deste ano em Curitiba, aos 87 anos, de complicações pulmonares devido a Covid. Nasceu em Lurgan/Irlanda do Norte, em 1934. Especializou-se em retratar as cidades do Brasil.
 
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXX

“DEIXO AO CEGO E AO SURDO”

 
Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência:
Nada que vejo é meu.  

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.

E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.

Ah. tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.

Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.

Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
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“DEPOIS QUE TODOS FORAM”
 
Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas* do ermo parque
Eu e minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as  sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não  ser.
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“DEPOIS QUE O SOM DA TERRA, QUE É NÃO TÊ-LO”
 
Depois que o som da terra, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,
A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo , e tudo era verdade,
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastes da vontade?
Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfria.
E o pensamento inútil se conduz
Até saber que nada vale ou pesa.
E não sei se isto me ensimesma ou alheia,
Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
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Nota:
* Álea = Renque ou fileira de árvores.

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Aparecido Raimundo de Souza (Rapidinhas) 4


Vovô


Era tão velho, mas tão velho que até a bengala sofria do mal de Parkinson.
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É bom saber que...

- Há uma considerável diferença entre homens e cobras, com relação a pequenos barcos de aluguel.

- Diferença entre homens e cobras? Mas qual?

- Enquanto eles, realmente alugam, elas dão...

- Meu Deus, Eusébio. Elas dão? Dão o quê?

- O bote.
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Alma gêmea

- Estão comentando no bairro inteiro que seu Cani encontrou o grande amor da vida dele!

- Tomara! Ele é uma boa alma. Merece. E quem é a felizarda?

- Uma tal de Vete.
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Repetitivo

- O velho Taborda agia sempre da mesma forma. Acendia o cigarro, jogava o palito para o alto, dava uma tragada bem longa, guardava a caixa de fósforos no bolso e, em seguida, cuspia nos pés. Um belo dia, seu Arcanjo, o cara resolveu dar um basta, já que a coisa havia virado rotina.

- E como foi que ele fez essa mudança?

- Da maneira mais simples possível. Jogou para o alto o cigarro, deu uma tragada no palito, cuspiu na caixa de fósforos e olha só que loucura. Acendeu o alto e guardou o bolso nos pés.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.

sábado, 9 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 3

 

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: O Sr. Vinagre e a Sorte)

Há muito tempo, vivia um pobre homem cujo nome verdadeiro foi esquecido. Era velho e pequenino, e tinha o rosto enrugado; por isso, os amigos o chamavam de Sr. Vinagre.

Sua mulher também era velha e pequenina, e moravam os dois numa cabana, velha e pequenina, nos fundos de um pequeno lote, há muito abandonado.

Um dia, enquanto varria a cabana, a Sra. Vinagre usou tanta força que a porta, velha e pequenina, desabou. Ela ficou assustada. Saiu correndo da casa e gritou:

- John! John! A casa está desabando. Vamos ficar sem um teto para nos proteger.

O Sr. Vinagre aproximou-se da casa e olhou para a porta. Em seguida, disse:

- Não se preocupe, querida. Vista seu abrigo e vamos partir em busca da sorte.

A Sra. Vinagre colocou então um chapéu, e o Sr. Vinagre pôs a porta sobre a cabeça, e eles partiram.

Caminharam sem parar o dia inteiro. À noitinha, chegaram a uma floresta escura, de árvores muito altas.

- Este lugar dá um bom abrigo - disse o Sr. Vinagre.

Pôs-se a subir numa árvore, e lá improvisou uma cama, encaixando a porta sobre os galhos. A Sra. Vinagre subiu em seguida, e deitaram-se os dois.

- É melhor ficarmos sobre a casa do que ela sobre nós - disse ele. Mas a mulher já dormia profundamente, e não o escutou.

Escureceu rapidamente, e o Sr. Vinagre também caiu no sono. À meia-noite, ele foi acordado por um barulho lá embaixo. Ergueu-se, e ficou prestando atenção.

– Aqui, Jack, aqui estão cinco moedas para você – disse um deles – aqui, Bob, três moedas para você.

O Sr. Vinagre olhou para baixo. Viu três homens sentados ao chão. Havia uma lamparina acesa perto deles.

- Ladrões! - gritou assustado, e pulou para um galho mais alto.

Ao pular, desencaixou dos galhos a porta, que caiu no chão com estardalhaço, e a Sra. Vinagre foi junto.

Os ladrões tomaram tamanho susto que saíram correndo atabalhoadamente, e desapareceram na floresta escura.

- Machucou-se, querida? - perguntou o Sr. Vinagre.

A mulher respondeu: - Eu, não! Mas quem haveria de dizer que a porta iria desabar no meio da noite? E temos aqui uma bela lamparina acesa, a iluminar nosso recanto.

O Sr. Vinagre desceu da árvore. Pegou a lamparina e fitou-a. Mas o que seriam aquelas coisinhas brilhantes espalhadas pelo chão?

- Moedas de ouro! Moedas de ouro! - gritou. Pegou uma delas e olhou-as contra a luz.

- Encontramos nossa sorte! Encontramos nossa sorte! - gritou a Sra. Vinagre. E começou a pular de alegria.

Puseram-se a juntar o ouro. Haviam cinquenta moedas; eram todas brilhantes, amarelas e bem redondinhas.

- Que sorte a nossa! - disse o Sr. Vinagre.

- Que sorte a nossa! - disse a Sra. Vinagre.

Os dois sentaram-se ao chão e ficaram olhando para o ouro até o amanhecer.

A Sra. Vinagre disse, então: - Bem, vamos fazer o seguinte: vá até a cidade e compre uma vaca. Vou tirar o leite para fazer manteiga, e nada mais nos faltará.

- É uma boa ideia - disse o Sr. Vinagre.

E logo partiu, ficando a mulher a esperá-lo à beira da estrada.

O Sr. Vinagre passeou pela rua da cidade, à procura do que comprar. Depois de algum tempo, chegou um fazendeiro com uma vaca gorda e bonita.

- Ah, se essa vaca fosse minha - disse o Sr. Vinagre -, eu seria o homem mais feliz do mundo.

- É uma vaca muito boa - disse o fazendeiro.

- Bem - disse o Sr. Vinagre -, dou-lhe estas cinquenta moedas de ouro por ela.

O fazendeiro sorriu e estendeu a mão para receber o dinheiro.

- Pode ficar com ela - disse ele. - Gosto de agradar aos amigos.

O Sr. Vinagre tomou do cabresto e saiu com ela, passeando para cima e para baixo na rua.

- Sou o homem mais sortudo do mundo, pois veja só como todos olham para mim e minha vaca.

Porém, no fim da rua havia um homem tocando gaita de foles. Ele parou para ouvi-lo. Doce melodia!

- Ora, é a música mais bela que já ouvi - disse o Sr. Vinagre. - E veja só como as crianças aproximam-se dele, e jogam-lhe moedinhas! Se essa gaita fosse minha, eu seria o homem mais feliz do mundo.

- Pois vendo-a, então - disse o gaiteiro.

- Vende, mesmo? Mas não tenho dinheiro; dou-lhe, portanto, esta vaca em troca.

- Pode ficar com a gaita - disse o gaiteiro. - Gosto de agradar aos amigos.

O Sr. Vinagre pegou a gaita de foles, e o gaiteiro foi-se embora levando a vaca consigo.

- Vamos ouvir um pouco de música - disse o Sr. Vinagre. Todavia, por mais que tentasse, não conseguia tocar. Todo som que produzia não passava de ruídos dissonantes.

As crianças, em vez de atirar-lhe moedinhas, riam-se dele. Fazia frio e, enquanto tentava tocar o instrumento, seus dedos enregelavam-se. Ficou pensando que seria melhor ter ficado com a vaca.

Mal partira de volta para casa, passou por ele um homem com luvas nas mãos.

- Ah, se essas lindas luvas fossem minhas - disse ele -, eu seria o homem mais feliz do mundo.

- Quanto pretende pagar por elas? - perguntou-lhe o homem.

- Não tenho dinheiro, mas dou-lhe esta gaita de foles - respondeu o Sr. Vinagre.

- Bem - disse o homem -, pode ficar com elas, pois gosto de agradar aos amigos.

O Sr. Vinagre entregou o instrumento e colocou as luvas nas mãos enregeladas.

- Que sorte a minha! - ia dizendo a caminho de casa.

Logo suas mãos estavam aquecidas, mas a estrada era ruim e a caminhada, difícil. Estava muito cansado, quando chegou ao sopé de uma colina íngreme.

- Como conseguirei chegar lá em cima? - disse ele.

Naquele momento, surgiu um homem descendo a colina em sua direção. Trazia na mão um cajado, que o ajudava a descer.

- Meu amigo - disse o Sr. Vinagre -, se eu tivesse esse cajado para me ajudar a subir a colina, seria o homem mais feliz do mundo.

- Quanto pretende pagar por ele? - perguntou o homem.

- Não tenho dinheiro, mas dou-lhe este par de luvas bem quentes - disse o Sr. Vinagre.

- Bem - disse o homem -, pode ficar com ele, pois gosto de agradar aos amigos.

As mãos do Sr. Vinagre estavam bastante aquecidas. Entregou, então, as luvas para o homem, e pegou o cajado para ajudar na caminhada.

- Que sorte a minha! - dizia ele, enquanto esforçava-se para concluir a subida.

No topo da colina, parou para descansar. Mas enquanto pensava na sorte que tivera durante o dia inteiro, ouviu alguém gritar seu nome. Levantou o olhar e avistou apenas um papagaio verde, pousado num galho de árvore.

- Sr. Vinagre! Sr. Vinagre! - dizia o pássaro.

- Pois não? - indagou o Sr. Vinagre.

- Que estupidez! Que estupidez! - respondeu o pássaro. - O senhor partiu em busca da sorte, e a encontrou. Depois trocou-a por uma vaca, e esta por uma gaita de foles, e a gaita por um par de luvas, e as luvas por um cajado que poderia ter apanhado em qualquer canto da estrada. Ha! ha! ha! ha! ha! Que estupidez! Que estupidez!

O Sr. Vinagre ficou muito zangado com isso. Atirou o cajado contra o papagaio com toda a força. Mas o pássaro repetia apenas "Que estupidez! Que estupidez!", e o cajado foi parar no alto da árvore, onde o homem não o alcançaria.

O Sr. Vinagre prosseguiu lentamente, pois tinha muito no que pensar. A mulher o esperava à beira da estrada e, ao avistá-lo, foi logo gritando:

- Onde está a vaca? Onde está a vaca?

- Bem, não sei direito onde ela está - disse o Sr. Vinagre; e contou-lhe toda a história.

Conta-se que ela lhe disse coisas que o agradaram bem menos do as que lhe dissera o papagaio, mas isso fica entre o Sr. e a Sra. Vinagre, e não interessa a mais ninguém.

- Não estamos em situação pior do que estávamos ontem - disse o Sr. Vinagre. - Vamos voltar para casa e cuidar da nossa velha cabaninha.

Colocou outra vez a porta sobre a cabeça, e partiu. E a Sra. Vinagre o acompanhou.

Fonte:
Adaptação do conto por James Baldwin, em William J. Bennett. 
O livro das virtudes : uma antologia. RJ: Nova Fronteira, 1995.

Colar de Trovas (Primavera)


Tema: PRIMAVERA


01
A primavera chegou
e trouxe com ela as cores.
No meu coração ficou
toda a beleza das flores.
Alba Valeria (GO)

02

Toda a beleza das flores
 e também o seu perfume
chegaram de muitas cores
como peixes em cardume!
Ara de Minas

03

Como peixes em cardumes
saudando a primavera,
também  chegam os vagalumes
em sonhos  de quimera!
Ara de Minas

04

Em  sonhos de vā quimera
me deixei inebriar.
Num clima de primavera
impossível não amar.
Alba Valéria (GO)

05

Impossível não te amar
sendo a estação das flores.
Com ternura enfeitar…
fetiche livre das cores.
Lina Ramos (PI)

06

Fetiches livres das cores
me alegram  o coração.
E co'a beleza das flores
eu sou pura sedução.
Alba Valéria (GO)

7

Eu sou pura sedução...
que vai ao sabor do vento...
cativando o coração.
Amar! Esse meu intento!
Rosinéa Siqueira (RJ)

09

Amar! Esse é meu intento
quando se fala de amigo.
Não existe contratempo
se você está comigo.
Alba Valéria (GO)

10

Se você  está comigo,
e a dúvida me abandona,
sou primavera em visgo…
a flor que doou aroma.
Lina Ramos (PI)

11

A flor que doou aroma,
pura como uma donzela,
quando saiu da redoma
ficou ainda mais bela.
Antonio Francisco Pereira (MG)

12

Tu ficaste ainda mais bela!...
Nosso sonho, em desalinho...
Esse encanto é a nossa tela...
Acordo, e já estou sozinho!...
Elias Pescador (SP)

13

Acordo, e já estou sozinho...
porque não soube encantar,
o coração do amorzinho...
a quem sempre quis amar.
Rosinéa Siqueira (RJ)

14

A quem sempre quis amar
e muitas flores plantou,
vive sempre a encontrar
a primavera que herdou.
Eurídice Hespanhol (RJ)

15

A primavera que herdou
os áureos da minha vida,
muita saudade deixou
da minha infância querida.
Ubiraci Conceição (PA)

16

Da minha infância querida
da infância ,me lembrarei.
Ela me foi tão curtida,
que jamais a esquecerei!
Ara de Minas

17

Que jamais a esquecerei,
meu sonho de primavera...
Qualquer dia eu a verei
no encanto de uma quimera!...
Elias Pescador (SP)

18

No encanto de uma quimera
eu me vi aprisionado,
até vir-me a primavera
com seu florir delicado.
Oliveira Caruso (RJ)

19

Com seu florir delicado
desabrocham novidades.
Um futuro renovado
por lugares e lugares.
Pablo Sant'Anna (PE)

20

Por lugares e lugares
viajei e não te vi
fui por mares, vi luares,
cansei, enfim desisti!
Dilercy Adler (MA)

21

Cansei, enfim desisti...
meu amor já se esgotou!
No entanto, sobrevivi...
a primavera chegou!
Rosinéa Siqueira (RJ)

FECHAMENTO

Cansei, enfim desisti,
mas teu olhar me fisgou...
Plantei flores para  ti,
a Primavera chegou!
Eurídice Hespanhol (RJ)

Humberto de Campos (Mme. London Bank)

Contam as crônicas do Império Romano que Mitridates, o famoso rei do Ponto, que enfrentou as hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia, de surpresa, um general inimigo e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe derramar pela garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas informações, os historiadores antigos não dizem, de modo claro, como ficou a boca da vítima; a impressão que eu tenho, em seguida a essas leituras é, porém, que o general se tornou, com isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros do nosso tempo, e que eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a boca em Caixa de Conversão, depositando alí, em obturações dispendiosíssimas, grande parte da sua fortuna.

Felizmente, há entre as senhoras, espíritos esclarecidos que movem contra esse abuso uma campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D. Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto, me informava, preocupadíssima:

- Esta moda das dentaduras de ouro está se desenvolvendo, Sr. conselheiro, como o senhor não imagina.

E após uma dúzia de nomes próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por esse mal gosto, assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis, cuja boca é considerada ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma verdadeira sucursal dos cofres do London Bank.

- E não é só a falta de gosto, senhor conselheiro. - acentuava a minha curiosa conhecida da véspera - O pior de tudo, é o perigo a que está exposta uma criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso de D. Laurentina, mulher do Dr. Filomeno Miranda?

A minha resposta foi, como era natural, negativa, e ela contou:

- D. Laurentina tem, como o senhor sabe, uma grande fortuna, herdada do pai. Aos vinte e cinco anos os seus dentes começaram a estragar-se, e ela, que possuía dinheiro, mandou obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje possui a boca inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram, é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de que se abriu de repente a porta grande da igreja da Candelária!

Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona Clara continuou:

- O pior, porém, era o que lhe ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma destas noites, ao regressar de uma visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão na casa. Corajoso, hábil, experiente, empunhou ele o revólver, chamou os criados, e começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro abaixou-se, e olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de alarma. O ladrão estava lá, debaixo do leito, escondido!

Por essa altura, D. Clara tomou fôlego, e reatou:

- Arrancado, à força, do esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não negou o crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!

- E estava armado? - indaguei, aflito.

- Estava, Sr. conselheiro, estava! - acudiu a minha informante.

E, olhando para um lado e outro, soprou-me, perversa, ao ouvido:

- Levava... um boticão!...

E soltou uma gargalhada sonora, demorada, reboante, dessas que somente sabem dar na terra, as mulheres de dentes bonitos.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Minha Estante de Livros (Livros de Júlia Lopes de Almeida)


A FALÊNCIA


Autora de traços realistas que gozava de grande popularidade em sua época, Júlia Lopes foi praticamente esquecida pela crítica e pelo público após a revolução desencadeada pelos modernistas em 1922. Verdadeira injustiça contra uma autora tão competente e tão próxima dos grandes nomes do seu tempo, entre eles o próprio Machado de Assis, de quem era amiga. Infelizmente, o machismo do tempo a privou de ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, instituição que Júlia ajudou a criar.  

No romance A Falência (1901), Julia apresenta um retrato sensível e profundo de uma parte da sociedade brasileira de seu tempo, os comerciantes de café que faziam fortuna intermediando os negócios entre os fazendeiros (produtores) e o mercado externo (consumidores), na República recém-proclamada, marcada fortemente pela cultura escravista e pelas práticas clientelistas sempre presentes no Brasil.  

Fruto de um processo de quinze anos de elaboração, A Falência retrata a vida de Francisco Teodoro, português que chega ainda criança ao Rio de Janeiro e aos poucos faz fortuna. Quando os negócios vão bem, decide se casar com a bela Camila atendendo às convenções sociais do tempo. Do casamento sem amor, nascem quatro filhos, Mário (playboy), Ruth (sonhadora) e as pequenas gêmeas, Rachel e Lia. A vida social de Camila é rica, marcada por festas e pela presença constante do amante, Dr. Gervásio. Também participa da vida da família a sobrinha Nina, tratada como serviçal da casa.  

A aparente estabilidade é rompida quando Teodoro, o financiador dos luxos, perde tudo em um negócio mal desenhado no mercado de café. A falência o leva ao desespero absoluto e ao suicídio. Desamparada, Camila deve abandonar a casa e os luxos, sendo salva pela sobrinha, Nina, que a acolhe em sua casa modesta. Enquanto todos trabalham para se sustentar, Camila ainda sonha com a grandeza, que espera recuperar pelas mãos do filho, que se casara com a rica Paquita, mas que não cumpre as expectativas da mãe. Abandonada também pelo amante, Camila se vê diante de outra falência, de ordem moral, pois se encontra também sem dignidade e respeito social.  

Traçando de forma muito competente os perfis psicológicos das personagens, Julia Lopes de Almeida apresenta ao leitor uma ampla série de conflitos humanos, mostrando as ambivalências das escolhas e das condutas conforme os valores que regiam os comportamentos dos comerciantes abastados do século XIX. Importante e sensível documento do caráter humano, dedicado a criticar as ilusões e as hipocrisias que os seres humanos criam para si mesmos.
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A VIÚVA SIMÕES

A Viúva Simões, livro publicado em 1897, ainda pode surpreender o leitor, uma vez que a personagem principal Ernestina Simões, apesar de ser um retrato das mulheres burguesas da época, possui um caráter complexo e toma atitudes que demonstram suas angústias entrelaçadas a momentos de insegurança, desejo e manipulação. Ela possui o perfil de uma mulher que viveu uma vida toda dedicada ao casamento e às aparências e, a partir do retorno de um amor da juventude, sua vida se transforma. É como se ela estivesse presa em um casulo e desejasse, por fim, voar.

Ao observarmos o romance como um exemplo do machismo estrutural, esse bater de asas da viúva Simões, a faz cair em outro casulo, pois o seu namorado de infância, Luciano, ao retornar da Europa, a enche de esperança por uma vida amorosa que não se concretiza.

Ao decorrer da obra, o leitor irá conhecer Sara, filha de Ernestina com o seu falecido marido. Fica evidente outro ponto comum aos casamentos tradicionais, pois segundo a própria viúva Simões, está em Sara a sua verdadeira alegria. E Sara, em suas atitudes, representa um choque de gerações, apesar de também cair de forma trágica, como nos romances góticos, nas amarras do patriarcado.

Já o personagem Luciano, encantando em um primeiro momento por Ernestina, se mostra superficial e machista, pois preocupa-se com o fato de seu amor de infância não ser mais jovem, como se ele também não tivesse sofrido a passagem do tempo.

Aos poucos, Luciano começa a ver Ernestina como uma ameaça, por sua beleza e poder de sedução. Entretanto, neste mesmo momento, a viúva Simões se vê cada vez mais entregue à sua paixão de infância. No decorrer da história, de narrativa simples e fácil de ler, as intrigas vão crescendo até chegar ao interesse de Sara também por Luciano.

É muito interessante observar a trama construída pela autora, pois uma história que tinha tudo para ser mais uma sobre amores românticos, desconstrói essa ideia e nos entrega uma tragédia social, muito comum até hoje em dia, sobre as mulheres e seus casulos patriarcais.

Um grande destaque no livro são os diálogos, pois são construídos de uma forma sincera e honesta, sem a necessidade de colocar os homens, principalmente, como príncipes virtuosos e perfeitos.

Sara e Ernestina estão sozinhas nessa jornada por uma vida ao lado de alguém, porém, quando os casulos se tornam visíveis para o leitor, é tarde mais para elas insistirem na própria liberdade.
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A INTRUSA

Júlia Lopes de Almeida publicou o romance “A intrusa” em 1908 e, como uma características de suas obras, vamos encontrar a sociedade carioca em seus problemas pessoais e sociais.

No livro, narrado em terceira pessoa, o leitor conhecerá Argemiro, um homem viúvo que jurou no leito de morte de sua esposa que não casaria novamente. Sua filha Glória, uma criança descobrindo as belezas do mundo, é criada pela avó materna, uma baronesa que vive no campo. Glória vê o pai poucas vezes, quando vai até a sua casa na capital do Rio de Janeiro.

A princípio, sabemos da preocupação do pai em relação à educação de sua filha, que para ele não está adequada, pois ele teme que sua filha não cresça de acordo com os padrões sociais da época. Em um segundo momento, também é mostrado que ele sente saudades da criança, o que torna o motivo principal da contratação de uma governanta para a sua casa, que também exercerá o papel de educar sua filha.

Ao longo da narrativa, será possível perceber que Argemiro não está feliz vivendo sozinho. Essa solidão é perceptível em sua relação com a própria casa, pois a considera desorganiza, bagunçada, suja, sem vida – assim como ele próprio se encontra.

A sogra de Argemiro, mãe de sua esposa morta, lembra-o constantemente do juramento que ele fez e, ao descobrir a entrada de uma governanta na casa, teme que Argemiro deixe de cumprir o juramento e, assim, desrespeite a lembrança de sua filha. Entretanto, Argemiro faz um contrato inusitado com a governanta, chamada por sua sogra de “a intrusa”: ela viverá na casa, mas não será vista por Argemiro. E, como Alice, a governanta contratada precisa muito do trabalho, aceita a condição de ser invisível dentro da mansão.

O melhor amigo de Argemiro é um padre. Os dois passaram a infância juntos e mantêm uma relação de amizade muito próxima. Para o padre Assunção, o amor entre ele e Alice já fica evidente por seu amigo fazer grandes elogios sobre a mudança dos ares de sua casa com a chegada da governanta: tudo está bonito, organizado, limpo, mais iluminado e, principalmente, sua filha Glória está com um comportamento mais tranquilo ao mesmo tempo que demonstra mais interesse pelos estudos.

E se não bastasse o juramento de Argemiro, para sua sogra, tudo é motivo de ciúmes, pois, para ela, a governanta é uma intrusa, manipuladora, vulgar e não adequada para cuidar de sua neta. Porém, fica nas entrelinhas dos diálogos da baronesa que ela é apenas uma mulher que não consegue se distanciar de sua filha que morreu e, a mudança na rotina de Argemiro e sua casa, para ela, é como se fosse mais uma forma de matar a sua filha.

A Intrusa é um romance clássico, com ótimos diálogos e pequenas surpresas

Diferente da tragédia em “A viúva Simões”, o livro A Intrusa caminha para um fim romântico sem grandes surpresas. No entanto, os diálogos, que traçam perfis sociais muito condizentes com a época, introduzem o leitor de maneira ímpar ao universo político-social do Brasil oitocentista.

É possível observar as preocupações dos personagens em relação aos seus papeis e imagens sociais. Bem como, o contraponto entre o casamento por conveniência social e dinheiro versus o casamento por encantamento, admiração e amor.

Por fim, a pequena surpresa está na motivação dos personagens, pois Júlia Lopes de Almeida carrega a sua obra com muita perspicácia, o que deixa o leitor satisfeito com o final ao entender que, muito além de uma história de amor, a autora traduziu muito bem as relações familiares e sociais de um Brasil patriarcal, católico e pós-abolicionista.

Fontes:
Curso Etapa
– Livro & Café
A Viúva Simões
A Intrusa

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Versejando 80

 

Barão de Itararé (Versos Diversos) 3

BRIGUEI COM ELA


Essa que vedes, de vestido azul,
De olhos castanhos e cabelos pretos,
Foi a virgem ideal de meus afetos
A mais linda deidade aqui do sul.

Eu era bem feliz! Nenhum lamento
Também da minha amada não se ouvia.
Minha ex-futura sogra protegia
O namoro que ia dando em casamento.

Numa risonha e esplêndida manhã,
Fui visita-la. D’ante mão já ia
Gozando a sensação d’um beijo morno.

Encontrei-a, reclinada num divã,
Toda poética, mas perdi a poesia:
Ela estava tirando pão do forno…
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DÍVIDA

Paga-se amor com amor,
Diz o prolóquio plebeu.
Pergunto-te, agora, ó flor,
Quando é que pagas o meu?

Não podes amortizar
Esta dívida sagrada?
Dá-me um sorriso, um olhar,
Depois não quero mais nada...

Ouço dizer por aí
Que tens alma cristalina,
E que possuis muitos dotes.

Não fica bem para ti,
Que és linda e "rica" menina
Andar passando calotes.
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O INVERNO

Eu gosto do inverno. O frio faz bem.
E eu sinto-me feliz: o inverno aí vem,
Com noites frias... rígidas noitadas....

As belas folhas verdes caem do galho
E as rosinhas, por falta de agasalho,
Tombam da haste, com as pétalas geladas.

E, se eu gosto do inverno, é só por isso:
A natureza despe o que é postiço,
Para mostrar-se aos homens tal qual é.

Os elegantes, não! Gostam da estica:
Enfiam polainas, luvas de pelica,
E andam na rua de cabeça em pé!

E ei–los com cilíndricos chapéus,
De pelo de castor, bradando aos céus,
Distribuindo entre moças barretadas.

E, por baixo do belo sobretudo,
De botões grandes e gola de veludo:
Casacos velhos, calças avariadas...
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RÉU D'AMOR

Sou réu d’amor. Confesso o meu pecado,
Porém não me arrependo d'esse crime,
Que amar alguém e ser também amado
É o crime mais gostoso, mais sublime.

A confissão, por certo, não redime
A quem quer continuar a ser culpado.
E se for, por acaso, condenado,
Não é razão pela qual eu desanime.

Pelo contrário. Altivo, embora fique
Meu coração partido em mil pedaços,
Eu quero que a justiça se pratique.

Sou réu de amor e julgo-me indefeso!
Peço justiça! Entrego-me a teus braços
E ternamente quero ficar preso!
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UM MATCH DE FOOTBALL

O dia estava lindo. Havia gente em penca.
O juiz apitou e começou a encrenca.

Nossa Senhora! Mas que charivari!
Tanta correria assim eu nunca vi.

Um jogador feroz, deu com o pé na bola
Que foi bater, bem certeira, na cartola

D’um cidadão que não contava com essa
Ao ver ameaçada a tampa da... cabeça…

E a louca multidão, bruta e malcriada,
Vaiou a um bom chefe de família honrada.

Outro caiu por terra. Deu-lhe vaia o povo.
Levantou-se fulo, mas caiu de novo.

Parecia aquilo, em meu pensar profundo,
Vinte e duas fúrias, perseguindo o mundo.

E, depois da hora e meia de combate,
O juiz apitou. 0 jogo estava empate.

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.

Raul Pompéia (A Pomba e a Estrumeira)

Eu quero um noivo rico... Que não seja formoso!... Formosa já sou eu... Quero um noivo de ouro, de ouro como o bezerro. Adoro tudo que é de ouro: as jóias, as moedas e o bezerro mosaico. Quando durmo, sobre o meu corpo os sonhos entornam douradas cascatas... As auroras são belas para mim, porque têm diademas de ouro. Ama-se geralmente a montanha pela verdura basta e frondosa, que a reveste; eu amo a montanha, porque sinto lá dentro da crosta granítica, o espesso filão dourado. Há quem adore o ciciar do córrego, cachoeirando-se pelas pedrinhas afora; eu acho apenas adorável o ribeiro, quando rola palhetas de ouro nas areias do leito... Com o ouro faz-se o domínio e funde-se o trono. Os imperadores romanos faziam esculpir em ouro as próprias figuras...

Os raios do sol são de ouro.

Enfim, eu serei conquistada pelo ouro... A formosura tem a glória de valer o grande metal e de poder trocar-se por ele.

A mulher que se deixa conquistar pelo ouro passa a ser conquistadora; a fraqueza da formosura transfunde-se na onipotência do metal... De que serviria a nós outras, mulheres, a beleza, se a beleza não fosse ouro no mercado da vida e se o ouro não exigisse o formoso róseo da nossa carne para mais fino realce?!... Os homens dominam pela matéria, que é o ouro, nós dominamos pelo ideal, que é a sedução. A aliança dos dois domínios faz o domínio supremo... Esta é a verdade. Por isso, eu quero um noivo rico. Um noivo de ouro; de ouro maciço como o bezerro do velho testamento... Pertenço a quem mais der!... O calão vulgar da canalha chama isso vender-se...

Eu vendo-me!

Eu estava horrorizado. E ela dizia a brilhante catadupa de blasfêmias com aqueles mimosos lábios, que eu supusera feitos para o murmúrio doce das santas confidências da virtude e do amor...

Como era horrível a lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas daquela boca!
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Diante de nós, lá embaixo, no jardim, haviam acumulado a um canto uma grande porção de estrume.

Sobre o estrume, uma pomba branca, de lindos pés sanguíneos e sanguíneo bico, revolvia com as unhas o monte infecto, procurando alimento...

Fez-me estremecer o epigrama da casualidade.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.