segunda-feira, 15 de novembro de 2021

domingo, 14 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 16: Durval Mendonça

 


Aparecido Raimundo de Souza (O Gaiato)


Nesta manhã o patrão chega mais cedo ao escritório e entra porta adentro todo alegre e saltitante. Antes de pisar em seu gabinete para começar o dia, reúne todos os funcionários no refeitório para divulgar a boa nova:

— Gente, eu pediria um minutinho só da sua atenção. Pode ser? Hoje tenho uma ótima notícia para dar...

A galera, em peso e a uma só voz:

— Nós ganhamos alguma concorrência?

— Não.

O chefe da produção arrisca:

— O senhor acertou na loteria?

— Quem dera...!

A secretária, bonita e encantadora, sumariamente acondicionada num vestido que praticamente deixa tudo à mostra, se levanta e manda um palpite:

— O senhor comprou aquele carrão que fomos ver no final de semana?

0 sujeito fuzila a moça com os olhos. Pensa em mandá-la às favas, mas, devido a magia do contentamento que o acompanha e contagia, sorri e acaba respondendo educadamente:

— Não senhorita Silvia. Meu sócio se antecipou...

Priscila, do RH se aventura:

— Vamos, finalmente, mudar para o prédio novo?

— Creio que isso ainda demorará um pouquinho. Pelo menos mais uns trinta a quarenta dias.

O Waldir da informática também se faz presente:

— O senhor saiu vitorioso naquela briga acirrada na justiça com a nossa maior rival no caso dos postes pré-fabricados com sensores anti-cachorros?

— Meu rapaz, você errou o alvo. A notícia da qual sou portador é melhor do que tudo que foi ventilado até agora. E esse tiro que vou anunciar com o coração em festa, não saiu pela culatra. Grosso modo, a bala foi certeira...

Dona Maria do financeiro se adianta confiante:

— O senhor botará em prática aquela promessa antiga de premiar a melhor equipe com uma viagem ao exterior com tudo pago e direito a acompanhante?

— Ainda não, Maria. Talvez no próximo ano...!!!

— Vai nos dar um bom aumento? — grita um engraçadinho anônimo lá do fundo do salão.

— Pessoal, eu estou falando sério. Muito sério!

— Dá uma dica ai, patrão — pede dona Dulce, da copa, com uma alegria intensa no rosto envelhecido.

— Não tem graça, tia Dulcinha. Ficaria fácil demais.

— Uma colher de chá...!

— Ao menos de café, pode ser?

— Melhor que nada.

— Ok! Vou realizar meu maior sonho.

— Sonho? Ah, tá. O senhor comprará um iate?

— Seu palpite está gelado. Super gelado!

— Um jatinho particular?

— Passou longe, amigo.

— Uma mansão numa praia afrodisíaca?

— Já tenho uma.

— Vai ter seu próprio canal de televisão?

— Não!

— Vai se mudar de mala e cuia para um apartamento de cobertura em Las Vegas?

— Nem pensar...

— Trocará os móveis, as cadeiras e os computadores aqui da empresa por outros novos e de última geração?

— Vocês terão tudo isso e muito mais quando mudarmos para o prédio novo.

Nesse momento os funcionários gritam, assoviam, dão vivas e batem, com fortíssimo entusiasmo, uma salva de palmas. O todo poderoso a um gesto com as mãos, volta a pedir silêncio:

— Galera, como já disse, e volto a repetir, estou falando sério. Seríssimo!

— Já que ninguém deu uma dentro, conta aí, doutor. Manda o papo numa boa...

—... Pois bem. A minha mulher, finalmente, ficou grávida. Não é sensacional? Minha mulher está buchuda, prenha, barriguda. Cíntia vai ter um nenê. Vai me dar um filho...!!!

O mesmo engraçadinho anônimo de alguns minutos atrás, sentado, ainda, no fundo da sala torna a se levantar, desta vez berra, chamando a atenção de toda a turma, em sua direção:

— E o senhor, por acaso, sabe quem é o pai?

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Sucesso, 2012. (ebook enviado pelo autor)

Rachel de Queiroz (Pedra encantada)

A pedra é grande, escura, e fica debaixo de uma ingazeira, à beira do riacho. Tem vagamente a forma de uma mulher de joelhos.

É a pedra encantada. Pelo menos é o nome que lhe deram, e muita gente acredita.

A história é que toda véspera de ano-bom, ao bater da meia-noite, a pedra se desencanta. Diz que vai amolecendo, amolecendo; não muda num átimo, pelo contrário. A pedra primeiro abranda, aos poucos perde o grão áspero e se torna macia, depois a corcunda se apruma, levanta-se a cabeça, vão brotando as feições do rosto, o pescoço se alongando, os braços se estiram e se abrem, os seios apontam e se arredondam, o gargalo da cintura se afina e depois se alarga nas ancas — molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro.

E por fim está a moça toda pronta, mas ainda adormecida, ainda na cor limosa da pedra. Sempre lentamente, ela então se desencanta do sono, abre os olhos, corre a vista em redor e examina o próprio corpo. Verifica com horror que conserva a pele suja da pedra, exposta à chuva, ao sol e à poeira nos 12 meses do ano. Se já choveu em dezembro e o riacho empoçou água, a moça se encaminha até lá embaixo, em passos trôpegos, mais rolando que andando, banha-se no poço, e a sua cor se limpa.

Mas se ainda não choveu e o riacho está seco, ela fica muito tempo ajoelhada na areia e diz que é no sereno da noite que se lava — custa mais a desencantar direito, claro, esperando que a marugem do orvalho lhe banhe o corpo todo, e assim mesmo a pele não fica tal qual ela queria, alva e lustrosa. Por isso se conta também que, em certos anos, a mulher da pedra encantada é uma moça branca e em outras é cabocla roxa, como bugra do mato.

Depois de lavada, torna a moça a subir ao seu lugar e procura imitar a posição em que estava quando virada em pedra: de cabeça baixa e ajoelhada, Para uns, essa hora é de penitência — a mulher fica rezando e pedindo perdão dos pecados de outros tempos, que foram muitos. Para outros, fica assim apenas imaginando, se recordando de quem é, do que veio fazer, acabando de despertar daquele sono comprido de 12 meses.

A maioria, entretanto, diz que não é nada disso, que a bruxa fica assim só de maldade, que bem esperta já é ela desde o tempo em que ainda nem era pedra. Se se põe assim encolhida é para enganar os passantes, a fim de que não sintam falta do vulto corcovado que estavam habituados a encontrar ali.

Tem ano em que toda santa noite a mulher espera em vão, e não passa quem ela quer. Com o nascer do dia ela volta a se encantar, mas com uma raiva tão danada que durante o ano inteiro, quando o sol lhe bate de rijo, vê-se uma fumacinha serpeando no ar, saída da pedra: é a raiva da moça, fervendo lá dentro.

Mas nas noites de sorte, aponta no caminho estreito, entre as moitas, o moço bonito que ela já havia escolhido. Sim, porque durante o ano que se passou muitos moços hão de ter andado diariamente por ali, dando ensejo a que a bruxa da pedra escolha o seu preferido — o mais bonito de todos.

E assim vem vindo ele, coitadinho, de repente dá com os olhos naquela moça ajoelhada — nua! — com a cabeça caída sobre o peito — os braços cruzados —, e no alvoroço de vê-la já nem lhe ocorre perguntar por que estará a mulher no mesmo lugar em que sempre costumou haver uma grande pedra. E ela, sentindo a presença do homem, levanta a cabeça, abre os olhos, abre devagar os braços, se desvenda toda — e o moço então se perde, porque nunca o atraiu chamado igual. Se entrega, se abandona como se fosse se matar.

E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira d'água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho.

Mas que sonho esse, meu Deus! É um sonho que ele não esquece jamais. Todo o seu resto de vida ele ficará escravo daquele sonho, e mal anoitece procura o lugar à beira do riacho, e abranda o passo ao chegar — mas a pedra continua preta e morta. Ignora ele que só uma vez por ano poderá reencontrar aqueles braços.

E de tanta ansiedade o moço vai se consumindo, envelhecendo, se desgastando, só naquela esperança. Mas afinal chega a nova noite de Ano. Como em todas as outras noites, ele passa fielmente à hora certa — aquela hora de antes, em que a criatura o recebeu nos braços. Maravilhado descobre que ela está ali de novo, bem o seu coração lhe dizia, bem teimava! Mas em pleno abraço de amor a lua clareia e a moça enxerga a face do seu amante, enrugada, escaveirada, que não é mais a cara bonita, radiante de mocidade que ela escolhera. Fica então furiosa e jura que o homem é outro, não o moço que ela ama. Daí, talvez nem seja maldade nem ingratidão. Ela é fiel a um homem, um rosto, um nariz, uma boca, um corpo. Mas se aquilo se gasta e se transforma, como é que ela vai saber que ainda é o mesmo — ela que não conhece idade nem velhice e pelos tempos afora é sempre a mesma, de carne ou de pedra?

Aí ela expulsa o homem, na sua fúria, e, se ele teima, pode até matá-lo com aqueles braços que têm a força da pedra onde se geraram. E o desgraçado, mesmo quando escapa, para ele é pior do que se morresse, porque fica ali rondando, feito um louco, e sempre volta, até que outro lhe toma o lugar,

O povo, durante anos, não sabia por que na noite de ano-bom muitas vezes se encontrava à beira do riacho um homem morto, estrangulado. Certa vez foram mesmo achados dois mortos. Eram o velho e o novo amante da pedra encantada que se tinham pegado à faca. E, quando se descobriu o mistério, resolveram arrancar a pedra dali. Trouxeram um trator, mas o trator nem aluiu o rochedo, era como se ele estivesse enterrado a cem braças do chão. Tentaram em seguida dar um tiro de dinamite, mas também a dinamite falhou; detonou só um pequeno estalo que mal arrancou uma lasca da pedra.

Estavam estudando outro jeito — quando alguém que olhava a pedra deu um grito, e todo mundo, vendo o que era, largou de mão, assustado.

Na lasca da pedra, que a dinamite abrira, saía correndo um filete de sangue, bem vermelho, sangue vivo, lustroso na luz do sol.

Fonte:
Rachel de Queiroz. Pedra encantada e outras histórias. RJ: José Olympio, 2011.

Minha Estante de Livros (Sôbolas manhãs, de Nilto Maciel)


O último livro de Nilto Maciel, Sôbolas Manhãs, foi publicado pouco antes de sua morte de forma enigmática, no dia 29 de abril de 2014, em Fortaleza.

“Tenho certeza de ter escrito um livro de boas ideias ou, pelo menos, com o melhor dos intuitos: o de divulgar os escritores brasileiros avessos ao ‘jornalismo de resultado’, à crítica tendenciosa e aos vendedores de pedras falsas”. (Nilto Maciel)

O objetivo do livro é claro: nominar escritores que veem na literatura um fim em si mesmo. Contrário, portanto, a tudo que venha de encontro a esse projeto (o “jornalismo de resultado”), o que supõe um rol de escritores dos mais variados matizes, mas comungando dos males referidos acima.

Apesar de “programático”, “Sôbolas Manhãs” é um livro múltiplo, abrangendo gêneros imprecisos como os que matizam a crônica, o comentário, artigo e o ensaio curto embora, rigoroso, divididos em quatro seções mais ou menos distintas. Ao final do volume, é possível saber-se, entre outras coisas, que o autor é cearense da Serra de Baturité, que na adolescência quis ser revolucionário como Vladimir Ylitch Ulianov, que cursou direito, que dirigiu revistas literárias (“O saco”) etc.

É possível saber-se o essencial: que Nilto Maciel publicou vasta obra, entre contos, romances, poesia, ensaio e crônica. Neste último gênero, três títulos felizes: “Menos vivi do que fiei palavras”, “Como me tornei imortal” e “Quintal dos dias”. Além disso, alguns dos seus livros receberam prêmios, e que tem contos e poemas traduzidos no estrangeiro.

A morte de Nilto Maciel esteve em circunstâncias cercadas de mistérios e enigmas. Por trás dessa obscuridade – em geral provisória, se a perícia tiver sorte – é possível se discernir um rosto e algumas ideias.

Por exemplo, é possível perceber que há temas recorrentes ao longo de suas páginas, como a tentativa de explicar o impulso escritório. Aliás, um de seus textos tem justamente esse título: “Por que escrevemos?”, no qual diz Nilto Maciel: “Escrevemos para depois de nós; nunca para antes nem para o nosso tempo (o hoje, o agora). Por isso, queremos registrar tudo no papel, em livro. E, assim, chegamos à conclusão de que escrevemos porque queremos nos perpetuar e não porque queremos ganhar dinheiro, fama, homenagens, admiração”.

Em “Literatura de violência e literatura de baixo nível”, ele é mais incisivo: “[...] Não escrevo de acordo com a moda. Também não escrevo como os antigos [...] Quero ser eu mesmo, embora reconheça influências. Não desse ou daquele escritor, mas de um modo, de um estilo [...] Como não sou só, minhas memórias são também as dos outros. Até dos que fazem ‘literatura mediana’ e ‘literatura ruim’. Portanto, todos são necessários, como na natureza do verme ao leão”.

“Sôbolas manhãs”, com seu eco camoniano incontornável, repõe em discussão muitos temas que marcam a literatura nordestina dos nossos dias, sem avançar soluções fáceis, antes propondo uma cultura de si que encontra correspondência na própria divergência que a alimenta. Em suma, um livro de boas ideias, como quis seu autor.
(trechos do artigo de Nelson Patriota)
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Excertos do prefácio do autor:

A ORIGEM DAS ESPÉCIES DE LETRAS

Para este livro arranjei um título esdrúxulo: Insertas garabulhas. Mudei de ideia; como se pode ver. Adotei Sôbolas manhãs. E pergunto: Como terão eles surgido? (…) Ao publicar Gregotins de desaprendiz, recebi algumas reclamações. Não sei se referiam a "gregotins" ou a "desaprendiz". Falavam em desuso e antiguidade. Ante Insertas garabulhas, certos críticos poderiam estranhar o primeiro vocábulo. Outros teriam oportunidade de demonstrar erudição: Garabulha está em fulano, obra tal, capítulo...

A fim de deixar o leitor mais à vontade, dividi o todo em quatro partes. Na primeira faço um passeio pela história da literatura fantástica e descambo para o lado mais repugnante da História do homem. Para terminar, constato que a imprensa se deleita mesmo é com a miséria, a violência, a morte. A segunda parte é de relembranças e homenagens a escritores fantásticos e minha memória deles, de viagens e de mim mesmo. A terceira completa a segunda: outros escritores (uns mortos, outros na "lida insana", "no tropel das paixões").

Encerra-se o volume com algumas considerações, nada científicas ou acadêmicas, a respeito da gênese (no indivíduo) da escrita literária, do processo criativo e da constatação de que a minha agonia — e de cada um de nós escritores — nada tem de fantástica ou sobrenatural. Porque tudo é feito de barro e servirá a outras construções, ou simplesmente será levado ao lixo ou ao cemitério do esquecimento. Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.*

Assim como alguns artigos de Gregotins foram redigidos entre 1976 e 1993, na presente coletânea também há textos desse período: "Literatura fantástica no Brasil"; "Utopias, mentiras e verdades"; "A devassa dos labirintos selvagens"; "O massacre dos Waimiri Átroari"; e "Histórias de um povo Xetá".

(…) O primeiro desses cinco escritos, por ser o mais longo, se manteve inédito em papel até agora. Originou-se de pedido (pode ser chamado também de induzimento ou insistência) de Carlos Emílio Correia Lima, desejoso (imagino) de ser incluído no rol dos mais notáveis cultores da literatura fantástica. Aceita a petição, dediquei boa parte de meus dias (não me lembro mais do ano) a pesquisas e leituras, para alcançar o objetivo: um histórico da literatura fantástica no Brasil, Como o trabalho tomou proporções de ensaio, não tive onde publicá-lo. E permaneceu na gaveta por alguns anos. Até descobrir um sítio na Internet (virtualbooks.terra.com.br), no qual pude expô-lo, na íntegra. Os outros quatro estudos podem ser vistos como resenhas de ensaios e breves comentários reunidos em livro, relativos à questão indígena brasileira.

Artigos diversos desta coletânea são dos anos 1990. Cito dois: "Um doutor em poesia" [Poiésis, setembro de 1995) e "Uilcon Pereira, um escritor do século XXI" (edição de janeiro de 1998 daquele informativo). As demais garabulhas deste conjunto são de lavra mais recente, já da época dos blogs. A maioria deles não apareceu em jornal impresso.

Divido, minha vida de leitor, em quatro períodos: infância (da descoberta das letras ao encontro do primeiro livro); adolescência (correspondente à fase de deslumbramento com tudo, sem orientação, na doida, curioso feito rato em cozinha nova): juventude (vontade de imitar os clássicos, sem deixar de lado os novos; ser outro Camões e, ao mesmo tempo, inventar a roda e o alfabeto); e decadência (lembrança constante do primeiro livro lambido, medo de ratos e ratoeiras, respeito ou veneração pelas imagens dos fundadores da santa madre igreja literária, aceitação do conceito de que toda roda é redonda e de que nenhuma letra nos salvará do fim).

Minha vida de crítico tem apenas duas etapas: a dos jornais e revistas impressos e a da rede mundial de computadores. Ou, noutros termos, dois modelos de apreciação crítica: o modelo tradicional (resenha ou artigo) e o modelo novo (misto de crônica e conto).

Todos os pedaços que constituem Gregotins são da primeira etapa e do primeiro modelo. Alguns deste caderno (os noticiados no início desta apresentação) são também da era dos suplementos e jornais literários etc. Os demais já nasceram sob o signo da net e, portanto, não conheceram papel e tinta de jornal. Os com cara de crônica ou conto serão reunidos em dois ou três livros, em breve.

Costumo ler com lápis à mão. Chamam-me a atenção não apenas vocábulos antigos, em desuso ou completamente estranhos a mim. Não sou de andar com dicionário, embora o consulte no exercício do burilamento do texto. Grifo, quase sempre, falhas, cochilos, dissonâncias, desarmonias, cacofonias, repetições, obscuridades. E também frases harmoniosas, versos musicais e claros ou capazes de causar perplexidade, marcados pela originalidade, com força retórica. Poesia pensada e não mero artifício verbal. Entretanto, não me atenho a fazer anotações em peças consagradas, a não ser para me deliciar mais depois e quando me sentir enjoado (eu não disse enojado) da sandice — em forma de poema, conto, romance — inserta em certos livros.

Tenho seguido um rumo: leio tudo – de Esopo ao fabulista pós-moderno – porém só comento obras desconhecidas por Heráclides do Ponto ou Demétrio de Faleros. Ou seja, brasileiros nascidos no século XX. Depois de Machado, minha intenção é torna-los lidos por gregos, galegos, galaicos e galagos. Mais Esopo, mais fábula, mais brincadeira, mais galhofa, pois somos pó e ao pó reverteremos. És o pó e ao pó voltarás… quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
(Fortaleza, 24 / 29 de setembro de 2013)
_________________________
*Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás.

Fontes:
– Excertos do artigo por Nelson Patriota para a Tribuna do Norte. 04/05/2014
– Nilto Maciel. Sôbolas manhãs. Porto Alegre: Bestiário, 2014. Trecho do prefácio do autor. (livro enviado pelo autor)

sábado, 13 de novembro de 2021

Adega de Versos 56: Elisa Alderani

 


Fernando Sabino (Primeiro andar)

— O senhor não devia continuar morando aqui. Convinha ir para Minas, para Campos do Jordão, qualquer lugar assim.

Depois que o médico saiu, ele deixou cair pesadamente o corpo na cama-patente, as molas rangeram. Ficou fumando para o teto sem pensar em nada. Aos poucos o quarto ia-se escurecendo. Pela janela estreita o reflexo vermelho de um anúncio luminoso. Lá embaixo na rua o ruído do tráfego. Findo o cigarro, esmagou-o no cinzeiro de ferro e ergueu-se, espreguiçando. Tossiu duas vezes, foi até a pia a um canto e escarrou. Acendeu a luz para ver: não havia mais sangue. Deixou que a água da torneira corresse um instante, depois ficou a andar pelo quarto — em duas passadas percorria-o em toda a sua extensão. Deteve-se diante da mesinha, encheu meio cálice de conhaque e bebeu. Era o que restava na garrafa. Bateram à porta.

— Entra! — resmungou, aborrecido:

O porteiro entrou, olhando-o alarmado:

— O senhor está melhor?

— Não foi nada! — explicou, displicente. — Um acesso à toa, já estou acostumado. Bom sujeito, esse médico que você me arranjou, não quis cobrar nada.

O outro continuava a olhá-lo como a um fantasma.

— Que cara é essa? Nunca me viu?

— O médico disse...

— Esquece isso.

Voltou a andar de um lado para outro. Acostumara-se àquele quarto, às luzes da Cinelândia que mal podia vislumbrar da janela, ao elevador de grades enferrujadas que subia rangendo até o quinto andar. Era um hotelzinho antigo, apertado entre dois grandes prédios do centro — em breve seria vendido para demolição. Viera para ali apenas de passagem, depois do apartamento de que tivera de se desfazer. E fora ficando. As coisas não andavam nada boas para um homem de rádio como ele, sem emprego fixo, compositor de outros tempos, doente e, o que era pior, de inspiração escassa. Acabara se afeiçoando ao porteiro: um ratinho assustado que deslizava sem ruído pelos corredores, e de quem sabia desenterrar velhos casos do hotel, ainda nos seus bons tempos. Já pensara até em dedicar-lhe um samba.

— Olha aí! — mostrou-lhe a garrafa — Já acabou.

Fora o único que se lembrara dele no último Natal, tivera a suprema delicadeza de lhe trazer aquele conhaque — nacional, mas dos melhores.

— Como é? Vamos jantar?

De vez em quando jantavam juntos num restaurante da Lapa, cada um pagava o seu. Mais de uma vez, porém, o homenzinho lhe emprestara dinheiro.

— O senhor, com essa sua saúde, não devia ficar bebendo não.

— Essa é boa! Foi você mesmo quem me deu!

— Sabe? O senhor, assim doente, morando aqui...

Via-se que ele queria dizer alguma coisa, não sabia como:

— Já sei! Você acha que eu devia me internar.

— Não! Eu acho é que o senhor devia se mudar para o primeiro andar.

— Primeiro andar? Mas se eu preciso é justamente de ar fresco... Devia me mudar é para o andar de cima.

— Não, não! — fez o homenzinho, cada vez mais aflito — O senhor não está me entendendo! Um quarto no primeiro andar seria melhor.

— Os do primeiro andar são tão ruins como este, meu velho.

— É, mas aqui tem esse elevador que não cabe nada dentro.

Olhou-o, intrigado:

— Onde é que você quer chegar com essa conversa? Fale de uma vez, homem.

— O senhor por favor não me leve a mal. É que se acontecer alguma coisa... vai criar um problema para mim. Já imaginou? A dificuldade?

Só então, estupefato, entendeu o que o outro, na sua aflição, não tinha coragem de dizer. Sua primeira reação foi achar graça:

— Você acha que eu estou tão mal assim, é?

— Quem, eu? Não, longe de mim. Ê que o médico disse...

— Eu não seria o primeiro a morrer neste hotel, que é que há? — riu-se ele.

— O senhor está rindo? Deus me livre que aconteça uma coisa dessas, mas imagine minha situação se acontece. O senhor é muito comprido, olha só o tamanho das suas pernas. E o elevador...

— Desce pela escada. — sugeriu.

— Não dá! — o outro atalhou com intensidade — Já estive estudando a situação. Não dá de jeito nenhum. É muito apertadinha, cheia de curvas.

Resolveu interessar-se pelo problema:

— Como é que não dá? Vamos até ali fora para ver.

Saíram os dois do quarto e junto à escada puseram-se de frente um para o outro, curvados, como se transportassem uma coisa pesada.

— Assim. Agora vai virando devagar. Olha aí, eu não dizia? Chegando aqui tem uma quina, não passa de jeito nenhum.

— E são cinco andares...

— Para o senhor ver.

— Pela janela?

— Ah, isso então nem é bom pensar. Calaram-se, ficando olhando um para o outro.

— Está bem! — encerrou ele - Eu me mudo. Agora, por favor esquece isso e vamos jantar.

Foram jantar, e no dia seguinte ele se mudava para o primeiro andar.

Morreu dois meses depois. Na rua.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Barão de Itararé (Versos Diversos) 4

A VER NAVIOS


No porto, à tarde, passo horas ideais,
Vendo a entrada e a saída dos vapores
E ouvindo os altos gritos infernais,
Dos marujos e o ruído dos motores.

Mas, além disso, mora em frente ao cais,
Uma menina, linda como as flores,
Dona duns lindos olhos tentadores,
Olhos tão belos que não têm iguais.

Se chove ou venta, a angélica donzela,
Talvez seguindo um paternal conselho,
Não deita o rosto fora da janela.

E é por isso que nestes dias frios,
Batendo o queixo e de nariz vermelho,
passo a tarde inteira a ver navios.
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DERRETIDO

Que calor, santo Deus! A gente sua,
Por quantos poros tem para suar?
O sol malvado, que no céu flutua,
Parece e creio que nos quer torrar.

Mas não quero saber se há sol na rua...
Eu prometi... eu prometi passar
E hei de vê-la, custe o que custar,
Que um homem de palavra não recua.

40 graus ! Em ponto algum há sombra.
Esse calor, contudo, não me assombra,
Que tenho o peito em fogo convertido.

Mas, se ela surge ou vem me ver passar
E sobre mim dardeja o seu olhar,
Então, sim! Fico todo derretido...
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DESESPERO

Minha amada — uma pérola sem jaça —
Já declarou, perante o mundo inteiro,
Que só se casará (ai! que desgraça!)
Com um homem de juízo e de dinheiro.

O que será de mim? Por mais que faça
O fado ingrato que me ver solteiro.
Sinto fugir-me o sonho alviçareiro
De me casar e perpetuar a raça.

Juízo? — Bem sei não tenho, que estou louco,
Pela ingrata, que me enche de feitiço,
Com o estranho fulgor dos olhos místicos.

Dinheiro? — Trinta contos... É bem pouco
Não chegam para nada... e além disso
Os meus contos são contos… humorísticos…
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JUVENTUDE ESTUDIOSA

O tufão das paixões na juventude
Em nosso ser um fogo estranho ateia.
Qualquer olhar suspeito nos enleia,
Qualquer sorriso arisco nos ilude.

A nossa alma, robusta na virtude,
Vive de sonhos e quimeras cheia.
O sangue nos borbulha em cada veia,
Em borbotões de força e de saúde.

Mas agora, nesta época de estudo,
Devemos abafar, antes de tudo,
Este fogo nas folhas d'um compêndio.

Pois não convém passar pelo vexame,
De vermos os bombeiros, num exame,
extinguir com suas bombas este incêndio.
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PRESENTE DE ANO BOM

Neste ruidoso dia, em que começa
Um novo ano, eu venho, reverente,
Pedir de tua bondade um bom presente,
Que um prêmio mau não é coisa que se peça.

Quero um presente bom (desculpa-me essa
Exigência atrevida e impertinente)
Um presente dos outros diferente,
Que eu não possa esquece-lo tão depressa.

Nada te custa o mimo desejado,
Mas deve ser assim sincero e puro,
Como este grande amor puro e sincero.

Renovando as promessas do passado,
Prometendo cumpri-las no futuro,
Podes dar-me um presente como quero...

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.

Cláudio de Cápua (O Mundo Literário em Preto & Branco) José Mauro de Vasconcellos


Indicado por Valter Avancini, participei, no final de 1970, da adaptação da novela de José Mauro de Vasconcellos, "Meu Pé de Laranja Lima". Avancini era velho conhecido, filho do seu Pedro, pedreiro que já trabalhara na casa dos meus avós maternos em Moema.

Numa 5a. feira, dei uma passada pela sede da União Brasileira de Escritores. Na secretaria da entidade, Caio Porfírio, grande contista e secretário administrativo da U.B.E., conversava com um membro de uns 50 anos e de boa aparência. Acomodei-me na sala de estar, quando, de repente, o tal senhor que falava com o Caio chegou-se a mim bastante alterado afirmando que eu tinha ajudado a transformar seu livro (obra consagrada pelo público leitor) em caca. Fiquei sem ação pois não sabia quem era o tal senhor e muito menos a qual livro se referia.

O tal cidadão, após discurso exaltado, saiu, muito bravo, sem se despedir de ninguém. Olhei para o Caio surpreso, indagando quem era aquele sujeito. Caio sorrindo adiantou-me tratar-se do escritor José Mauro de Vasconcellos, autor do "Meu Pé de Laranja Lima", e que estava "fulo" com a TV Tupi, pois achava que a emissora fizera uma péssima adaptação de seu livro.

Bastante irritado com o tal de Zé Mauro, prometi a mim mesmo que, no próximo encontro, caso viesse ele com novas grosserias, iria levar um soco no queixo.

Duas semanas após o episódio com o Zé Mauro, estava eu na U.B.E. quando chega Zé Mauro, passa pela secretaria, atravessa o salão e vem em direção ao bar, onde eu me encontrava. Desabotoei calmamente o meu colete para ter mais mobilidade para o que desse e viesse. Zé Mauro chega e surpreendentemente me abraça emocionado dizendo: - Estou chegando do Rio de Janeiro, da casa da minha mãe, eu sou filho de um comerciante português e uma índia analfabeta da Paraíba.

Emocionado, confessou o que sua mãe lhe dissera: graças à novela conseguira entender do que se tratava o seu livro. Ela me disse com voz embargada: – O livro tem muito de você. – E o Zé Mauro completou: - Se não fosse essa adaptação para novela, minha mãe desconheceria o enredo do meu livro.

Eu não sabia o que falar. Foi a minha vez de ficar emocionado. Caio Porfírio interferiu convidando-nos a uma rodada de cerveja no bar do outro lado da rua.

Depois desse episódio, ficamos grandes amigos, Zé Mauro e eu. Lancei sua candidatura, em 1974, a Intelectual do Ano - "Prêmio Juca Pato", Zé disputou o título com Sérgio Buarque de Holianda e perdeu a disputa. No desenrolar da campanha, a ex-crítica literária do Diário de São Paulo, poetisa Maria Rosa Moreira Lima, co-sogra do Edmundo Monteiro, presidente do Grupo dos Diários Associados, em conversa telefônica, fica sabendo por meu intermédio que o Zé era candidato ao "Prêmio Juca Pato"e a meu pedido votaria nele por ser fã dele e de sua obra.

Eu lhe disse que naquele momento o Zé se encontrava na sede da U.B.E.. Ela me afirmou que gostaria de falar-lhe ao telefone. Quando solicitei ao Zé Mauro que correspondesse ao chamado explicando a causa, veio dele uma das suas respostas impensadas: - Se ela quiser votar em mim que vote mas eu não falo com ninguém sobre esse assunto.

Dei uma desculpa razoável a Maria Rosa. E muito revoltado falei ao Zé: - Você destratou uma senhora de 86 anos e que é sua grande fã, além de ser uma renomada intelectual que merece todo o respeito.

Daí em diante, não lutei mais com o mesmo afinco pela sua candidatura. Entretanto, José Mauro de Vasconcellos, apesar de rude algumas vezes, era bastante emotivo e sempre pronto a ajudar financeiramente a alguém em apuros. Pagava os estudos dos sobrinhos e também dos onze filhos de seu motorista. Nunca se ligou definitivamente a uma mulher. Seus romances eram passageiros e três deles bastante conhecidos: um deles foi Cacilda Becker, quando ela contracenou com ele em Lírios do Campo. Outro, a grande comunicadora de TV, Hebe Camargo, que sempre punha o escritório de sua casa à disposição de Zé Mauro para escrever seus romances. E, posteriormente, a poetisa paulista Mariazinha Congiglio. Nenhum desses romances durou mais do que alguns meses, mas Zé Mauro manteve sempre boa amizade com elas.

Eu já morava em Santos quando, através da rádio, tomei conhecimento da morte do José Mauro. Fiquei sabendo que, após ter feito uma cirurgia, três pontes de safena e uma mamária, o impetuoso Zé Mauro antes de completar 60 dias da delicada cirurgia, resolveu dar um mergulho de 16 metros de profundidade, o que teria ocasionado uma embolia pulmonar fatal.

O velório lotado com cerca de 300 pessoas. Entre estas, Hebe Camargo muito triste e Mariazinha Congiglio, entre lágrimas. Quis o destino que uma das alças do caixão ficasse ao alcance da minha mão e, com tristeza, reportei-me ao enterro de Plínio Salgado, em 1975, quando o mesmo acontecera.

Mais uma vez uma honra cercada de grande tristeza. Assim, despedi-me de outro grande amigo, que em outra dimensão deve ter sido recebido por Cacilda Becker, sua fã que partira antes dele.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retrovisor: crônicas.
1.ed. Santos/SP: Publicação Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pelo escritor.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 533


Marques de Carvalho (Conto do Natal)

O velho padre Jacinto estava já abroquelado (protegido) na dupla couraça da virtude e da idade. Não havia cara bonita de mulher nova que lhe atraísse um olhar mais demorado, assim como não existia pecado, venial ou mortal, cuja denúncia pudesse conturbá-lo. Tinha o sacerdote ouvidos castos para quantos delitos lhe segredavam as beatas, através da lâmina de folha esburacada do confessionário.

E era sempre com a mais tranquila meiguice, toda paternal, que monotonamente prescrevia um Padre-Nosso e uma Ave-Maria como penitência às mais reincidentes pecadoras.

Trinta anos de pastoreio de ovelhas espirituais haviam-lhe dado, com a calma imperturbável, o anestésico da sensualidade. Dentre as suas mais assíduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa devoção, uma jovem mulatinha, filha de um fazendeiro da comarca de Chaves. Era um primor, a Maricota, requestada por muitas léguas em torno, na cálida terra marajoara, onde o amor bebe roborantes (confirmados) filtros aperitivos, na doce emanação das gordas pastagens restolhadas.

Ninguém mais atenta do que ela aos deveres do culto católico e ao cumprimento de suas obrigações domésticas: "rapariga da ponta", consagrava-a a opinião da comarca, pelo órgão competentíssimo do conspícuo juiz de direito.

Quando chegou dezembro, Maricota combinara com o vaqueiro Antônio, seu namorado de infância, que a fosse pedir em casamento no dia de Natal. Tinha fé na data, que havia de angariar-lhe maior messe de venturas; e ainda em obediência à inclinação religiosa, abalou campos a fora, até à residência do clérigo, a quem confiou a tarefa de formular perante seus progenitores o pedido sacramental em nome do rapaz.

Ao trêmulo pastor d'almas agradou aquela incumbência intencional, como lisonjeira homenagem à sua dupla autoridade de confessor e velho amigo da família.

Que fosse com Deus e ficasse certa de que, no dia de Natal, pela tarde, lá estaria a representar o maganão.
                                               ***
À porta da casa principal da fazenda, à beira-rio, em Marajó. Tarde assoalhada pomposamente, na magnificência vencedora do grande astro a descambar pelo espaço translúcido. Chovera uma hora antes e o céu, azul e brunido, estava ermo de nuvens. Dos campos infinitos, muito verdes ao perto, gradativamente azulados à medida que a vista buscava o horizonte, subiam olores adocicados, o bom cheiro dos fortes pastos ensopados d'água. E do lado dos estábulos, era um retinir jovial de cavaquinhos e violas, o ardente sapateio das danças campesinas.

Toda a família da Maricota, sentada no alpendre em derredor da secular mangueira frondosa da esquerda, palestrava contente, ouvindo as boas chalaças inofensivas do sacerdote.

Os dois noivos - noivos desde meia hora antes - conversavam a alguns passos de distância do grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida. Pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupilas, que refletiam a imagem, sempre meiga e adorada de sua querida Maricota.

Parecia-lhe que a voz da rapariga, nesse primeiro colóquio já realizado com o assenso da família, e por isso dotado de um sabor novo, possuía inflexões desconhecidas, entonações estranhas, um aveludado espesso como o refresco do açaí.

À moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preocupava. Duas vezes já, deixara sem resposta, ou respondera demoradamente, a uma apaixonada interrogação do noivo, ternamente segredada em trêmulo balbucio de emoção.

Notou-o o velho padre, ao observá-los de longe. Erguendo a voz, perguntou-lhe num sorriso:

- Que tens, filha? Em que pensas?

E a Maricota, levantando-se de ao pé do noivo, acercou-se da família e:

- Penso, explicou, que por ser hoje dia de Natal, o sr. padre bem poderia obter para mim a graça de ficar sempre "virgem antes do parto, no parto e depois do parto"...

E voltando-se para o vaqueiro, a sorrir - inocente ou maliciosa? Ninguém poderia reconhecê-lo, no meio da estupefação geral, - acrescentou:

- Não deves zangar-te com isso: Jesus foi filho de Deus, e São José não “deu o cavaco”*!
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* Dar o cavaco = irritar-se, zangar-se.

Fonte:
Marques de Carvalho. Contos do Norte. Publicado originalmente em 1907.

Chico Anysio (A Moça da Vila)

"Vila Santa Cecília" eram as palavras que ocupavam, com letras góticas, o alto do arco que servia de entrada para a vila de 12 casas de porta e janela — seis de cada lado — onde moravam famílias pobres, porém honradas. Não ficava num subúrbio, mas numa travessa da Rua do Catete, perto do Palácio. Não era incomum um garoto chegar correndo com a notícia.

— Paiê. Vi o Presidente.

— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?

— Na janela do Palácio. Tava de pijama.

Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.

Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sempre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do armazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!

Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.

— Viu mesmo?

— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.

— Mentira.

— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.

— Eu também vi. — incluiu-se Olegário.

— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho. — vangloriava-se — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava — Vem contar como foi que tu viu o Dr. Getúlio?

E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.

— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?

Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhecimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.

Esta, a moça da vila, que dá nome à estória. Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de Laranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motocicleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.

Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.

Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.

— Me dá um quilo de contra-filé, Seu Nequinho — comandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.

— Prontinho. Pesado com carinho.

— Quanto é?

— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você. — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.

— Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa. — pedia sem vontade a moça da vila.

— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...

De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Nequinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase: — De uma boa conversa ninguém escapa.

Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contra-filé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.

Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.

Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revolução paulista como um fato acontecido ontem.

Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.

— Minha filha, o que você foi fazer?

— Agora está feito. — resumiu Maria da Glória.

— Tá feito, tá feito, — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.

— Mas meu pai não vai saber.

— Quem disse?

— Eu que tou dizendo.

— O jeito é você casar.

— Casar, eu não caso.

— E por que não?

— Só caso com um homem que eu goste.

Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?

— Essas coisas acontecem, mãe. — falou Maria da Glória, com uma tranquilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.

— Acontecem, sim, mas não com filha minha.

Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.

— Quem é que já sabe? — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.

— Nós três, mãe.

— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?

— Nequinho, né?

Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.

— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?

— Sei. Que é que tem?

— Foi comigo domingo a Paquetá e...

— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.

— E aí eu... entendeu?

— Você o quê, Nequinho? — redarguiu o pai, pondo em néon sua burrice.

— Executei.

O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.

O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Metade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.

— Você vai pra Minas.

— Pra quê?

— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?

— Ninguém tá falando em casar.

— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?

— É, acho que é.

— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.

— Pois pode tirar Minas da ideia, que eu não vou! — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.

— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.

Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.

— Mamãe, vou para os Estados Unidos.

— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?

— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.

— Eu posso saber com que roupa?

— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.

Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passaporte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.

Seu Pacheco aceitou a ideia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.

Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o consentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.

E foi de avião.

A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".

 Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.

— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.

— Deve ser dia.

— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.

— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.

— Ora, Pacheco, — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a menina invente que é artista de cinema? Você tem cada ideia, Pacheco! Maria da Glória ser artista.

Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...

Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.

— Capaz dela estar por aí — cutucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.

— Acho que não. — respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.

 Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.

No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".

O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.

Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.

— Por que não trouxe meus netos?

— Porque não.

Ela entendeu a curta resposta.

O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), conduziu a família ao cais do porto.

Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.

— Ali, perto do padre! — gritou uma voz.

— Não é ela. A não ser que tenha engordado. — contestou outra voz.

— Lá! — aponta a D. Guiomar. — Lá, junto do comandante.

— Já vi. Está de vestido branco e chapéu — afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?

— Onde? — perguntava sem parar Seu Pacheco. — Onde, que só eu não vejo?

— Perto da escada, papai — indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.

— Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.

E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço — o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desabotoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.

Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.

— Está a mesma coisa.

— Como vai, minha filha?

— Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?

— Trouxe o meu gravador?

— E o rádio?

— O que foi que você trouxe?

— Quantas malas?

— Você viu o Marlon Brando?

— Como é a televisão colorida?

Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.

— Até menininho de dois anos fala inglês, não é?

— Tu sabe falar inglês, mesmo?

— Fala aí, pra gente ver.

— E a moda?

— Por que você veio de chapéu?

— Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?

Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.

— Lá faz frio?

— Você pisou na neve?

— Cinema lá também tem letreiro?

— Veio pra voltar ou veio de vez?

Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar — de lenço nos olhos — e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho — sentado de costas — descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.

— Glorinha, você, nas suas cartas — tá tudo guardado na gaveta da sua mãe — nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?

Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha, depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna. Espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.

— Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.

— Como é? — perguntou o irmão com cabelo de recruta.

— Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.

— Mas você não me respondeu. — insistiu Seu Pacheco. — Você lá era o quê, Glorinha?

Foi D. Guiomar quem respondeu.

— Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.

— Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!

E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

Minha Estante de Livros (Rachel de Queiroz e Cora Coralina)

Pedra Encantada e outras histórias, de Rachel de Queiroz


Reúne contos de Rachel de Queiroz sobre eventos do cotidiano, episódios insólitos, memórias e impressões de viagem. Selecionados por Maria Luiza de Queiroz, irmã da escritora, os textos primam pelo bom humor e estilo cativante, marcas registradas de Raquel. Reeditada como parte do projeto de comemoração do centenário de nascimento da autora, comemorado em 2010.

Este volume oferece ao público juvenil uma criteriosa seleção de crônicas escritas por uma das maiores autoras brasileiras, Rachel de Queiroz. Através da leitura dessas histórias, o jovem leitor poderá entrar em contato com uma escritora fundamental, assim como aquele mais maduro redescobrirá o sabor de um clássico da nossa literatura. Esta coletânea reúne narrativas entre as melhores já publicadas, nas quais se encontra uma diversificação de temas, como: memórias, episódios vividos no Rio de Janeiro, registros do cotidiano, histórias insólitas, a morte, impressões de viagem, o sertão e o sertanejo, questões humanas. Tudo isto contado com humor em uma linguagem coloquial. Mas aqui também está presente o estilo despojado e destemido da autora de O Quinze e Memorial de Maria Moura.

Pedra encantada e outras histórias apresenta ao público uma seleta de narrativas fantásticas, crônicas egressas das páginas dos jornais, mas que são, no entanto, merecedoras da permanência entre o que há de melhor no patrimônio literário brasileiro.

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Estórias da Velha Casa da Ponte, de Cora Coralina

Escrito com a insuperável simplicidade e leveza de estilo de Cora Coralina, Estórias da Casa Velha da Ponte traça um retrato fiel e pitoresco da cidade de Goiás, no final do século XIX e início do XX, com as suas histórias domésticas, o registro de velhas tradições, as prostitutas segregadas, casos de assombração e assombramento.

Em 1985, seu primeiro livro de contos, Estórias da casa velha da ponte, é publicado, postumamente. Compõe-se de dezoito peças em escrita leve e bem humorada. São casos folclóricos alguns, mas em todos se sobressaem o cotidiano, o absurdo da vida e ensinamentos.

Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedã e calda grossa – doce de figo ou caju. Dispõe de uma linguagem despojada, bem aprumada e traz uma ressalva, cujo título é “Nada Novo...”, alertando o leitor sobre a possibilidade de encontrar mesmices já lidas, pois se trata de histórias diversas de cunho popular, recriadas por outros autores goianos, mas acrescenta que cada escritor tem seu estilo e recursos próprios, mostrando-se consciente da natureza do gênero e senso crítico em relação a possíveis comentários.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros

Os contos são escritos com linguagem simples e, ao mesmo tempo, complicada, já que Cora usa diversas expressões e palavras regionais o que faz com que o leitor tenha que recorrer ao dicionário para saber o significado de muitas delas.

Um tema recorrente nos contos deste livro é a gravidez indesejada que causava tanta vergonha às famílias mais puritanas, muito comum à época., porém a autora trata deste assunto de forma bastante humorada.
 
Fontes:
Amazon
Editora José Olympio

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Versejando 86

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 36 –

Manhãzinha ainda e não mais do que de repente ele chegou agitando as terras, os campos, as herdades. Com a sua cantoria inconfundível animou o ambiente dos beija-flores, do joão-de-barro, dos sabiazinhos e outros da linhagem. Assobiou, zuniu tarde a fora vaticinando mudanças na atmosfera. E assim anoiteceu.

Aos poucos a noite silenciou. O viandeiro do tempo seguiu rumos. Precursores de uma chuvinha, os velhos ventos viageiros seguiram a senda dos insondáveis caminhos. Os ponteiros do relógio grande já se preparavam para dar as doze badaladas da meia noite... quando ela chegou!

Veio mansinha, sem alarde, quase na surdina, como acontece com tantas coisas boas. E o bulício das aguinhas nos telhados avançou madrugada a dentro, embalando os sonhos dos mais dormidores, sem incomodar os sonâmbulos.

Chuvinhas noturnas são sonatas que acalentam as almas na nebulosa do sono e dos sonhos. Quisera ser bom dormidor para alcançar alvoreceres no colo das notas musicais do chuvisqueiro que se vai quando surgem os primeiros raios do sol.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Rachel de Queiroz (Amigos)

SIM, amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem emprego, sem dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o amigo é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar na doença. Só não pode se envolver em assunto de amor, porque aí deixa de ser amigo; e a maior tolice a que se arrisca a incorrer alguém é misturar amigo com amor.

Amizade e amor são quantidades paralelas na vida de cada um: se conhecem, até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás não estou dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que namoro, noivado, casamento, amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer pela sua impermanência, ou, quando são permanentes, pela sua natureza tumultuária, absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter categoria à parte. Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e você perde o amigo e terá um péssimo amante, que sabe de todos os seus defeitos, lhe conhece do tempo em que você não se enfeitava para ele, não lhe escondia as suas falhas do corpo e da alma, e que, portanto, sabe de todos os seus pontos fracos. Fica impossível.

A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos camaradas, colegas, conhecidos cordiais, mas amigos poucos. E, tendo poucos, poder e saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre os amigos: cada um há de ter a sua área específica, a sua zona própria de influência.

Não misturar os amigos uns com os outros. Não vê que cada amigo, por ser o único no seu território, não precisa sequer conhecer os donos dos outros territórios.

É que, sendo a nossa alma tão variada nas suas exigências, precisamos de amigos de acordo com os diferentes ângulos do nosso coração. O amigo da comunicação intelectual não pode ser o mesmo amigo da confidência íntima, o velho companheiro de infância não tem nada a ver com o precioso camarada adquirido nos anos da maturidade.

E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se coligar contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta própria, nos excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros, porque os compartimentos espirituais deles nem sempre correspondem aos nossos. Se você adora fulano porque toca em suas cordas nostálgicas contando-lhe lembranças de mocidade passadas na barranca de um rio em Mato Grosso, o seu amigo intelectual talvez não tolere regionalismo e por isso desdenhe intensamente as barrancas de Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates sobre religião, as intrigas políticas, os negócios, o gosto de recordar  os sambas de Noel Rosa. Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu compartimento.

Axioma absoluto em assunto de amizade: amigo é insubstituível. O que um lhe deu, jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para preencher a área vazia deixada pelo amigo que se foi por morte ou briga. Mas só ocupará mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem isso é possível: e o melhor será fechar aquele nicho do coração, dada a dificuldade de encontrar outro ser vivo que satisfaça ante nós as especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei. Minha amiga de infância que morreu, deixou no meu peito esse santuário vazio.

Respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos. E nisso está outra superioridade da amizade sobre o amor: a amizade conhece as nossas falhas e as tolera, e até mesmo as encara com condescendência e afeto. Já o amor é só de extremos e, ou se entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total. Amigo entende, aguenta, perdoa, “Amigo é pra essas coisas”, como diz aquela cantiga tão bonita.

Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é como o unicórnio, o animal de que se fala mas que não existe. Porque até os bichos têm amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo, naquela quintessência de excelências que só o céu pode dar.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 13

já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
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o mestre gira o globo
balança a cabeça e diz

o mundo é isso e assim

livros alunos aparelhos
somem pelas janelas

nuvem de pó de giz
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

carta ao acaso

a carta do baralho
grande gilete
corta sem barulho
o olho do valete
o rei a fio de espada
a água e a farinha
uma só passada
a espada na rainha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido

ninguém nasce sabendo
até que eu sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
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nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos. Publicado em 1983.

Hans Christian Andersen (O pé do cardo)


Diante de um rico castelo senhorial estendia-se um belo jardim, bem tratado, cheio de árvores e de flores raras. As pessoas que iam visitar o proprietário exprimiam a sua admiração diante daqueles espécimes trazidos de países longínquos, e daqueles canteiros dispostos com tanta arte; e via-se facilmente que esses cumprimentos não eram simples fórmulas de polidez. As pessoas dos arredores, habitantes dos burgos e das aldeias vizinhas, iam aos domingos pedir permissão para passear naquelas magníficas alamedas. Quando as crianças das escolas se portavam bem, levavam-nas lá para lhes recompensar a aplicação.

Junto ao jardim, mas do lado de fora, ao pé da sebe que o cercava, havia um grande e vigoroso pé de cardo; sua raiz vivaz estendia rebentos para todos os lados, e ele sozinho formava uma moita. Ninguém, entretanto, lhe dava a menor atenção, a não ser o velho burrinho que arrastava o carrinho da leiteira. Ela costumava amarrá-lo às vezes perto da moita, e o animal esticava o pescoço para o cardo o mais que podia, dizendo-lhe:

- Que lindo estás! Mesmo a ponto de ser trincado!

Mas o cabresto era muito curto, e o burrico não podia chegar até lá.

Um dia reuniu-se no castelo numerosa sociedade. Eram pessoas finas, a maior parte provinda da capital; e entre elas havia muitas moças lindas.

Uma, mais linda de todas veio de longe. Nasceu na Escócia, descende de alta nobreza e possuía vastos domínios. Um rico partido. E os moços dizem, e as mães dos moços dizem também:

- Feliz do que for seu noivo!

Toda aquela mocidade se lança aos jogos sobre os gramados. Depois os grupos dos países no Norte, cada moça colhe uma flor e coloca-a na botoeira de um dos moços. A estrangeira leva muito tempo para escolher a sua flor: parece que não encontra nenhuma do seu gosto. Mas eis que seu olhar cai sobre a sebe, além da qual está a moita de cardo, com suas flores vermelhas e azuis.

Sorri e pede ao filho da casa que vá colher uma daquelas flores para ela.

- É a flor do meu país - explica a moça. - Figura nas armas da Escócia. Quer ir buscá-la para mim?

Apressa-se o moço em ir colher a mais bela - e não se viu quite sem se picar nos espinhos. A jovem escocesa põe-lhe na botoeira a flor vulgar, e ele se sente particularmente lisonjeado. Todos os outros moços teriam de boa vontade trocado suas flores raras por aquela, oferecida pela mão da bela estrangeira.

Se isso enchia de orgulho o filho da casa, que dizer então do cardo? Já não era só alegria o que sentia; era uma satisfação, um bem, como quando os raios do sol, depois de uma boa orvalhada, vinham reaquecê-lo.

- Sou pois alguma coisa bem mais importante do que pareço! - dizia consigo. - Sempre o desconfiei mesmo. A bem dizer, eu devia estar lá dentro da sebe e não cá fora. Mas é que neste mundo a gente nem sempre se acha no seu verdadeiro lugar. Pois sim: mas ao menos lá dentro está uma das muitas filhas, que transpôs a cerca, e até se pavoneia na botoeira de um belo cavalheiro.

E ele contava esse caso a todos os brotos que se desenvolveram sobre seu trono fértil, a todos os gominhos que lhe surgiram nos galhos.

Poucos dias depois soube, não pelas palavras dos que passavam, não pelos gorjeios dos passarinhos, mas por esses mil ecos que espalham por toda a parte o que se diz no interior dos apartamentos, quando deixamos abertas as janelas  ele soube, dizíamos, que o moço que fora adornado com a flor do cardo pela bela escocesa, obtivera também seu coração.

- E eu é que os uni! Eu é que fiz esse casamento!- gritava o cardo.

E agora, mais do que nunca, contava o memorável acontecimento a todas as flores novas que lhe cobriam os ramos.

- Agora certamente me transplantarão para o jardim - dizia ele ainda. - Bem que o mereci! Quem sabe até se não me vão meter em um vaso precioso, onde minhas raízes terão uma terra bem adubada...Parece que é essa a maior honra a que pode aspirar uma planta.

No dia seguinte estava já tão convencido de que as provas de distinção lhe choveriam em cima, que garantiu à menor de suas florzinhas que não tardariam em recolhê-las a todas e dispô-las em um vaso de faiança, e que ela própria havia de ornar a botoeira de um príncipe - a mais rara fortuna com que poderia sonhar uma flor de cardo.

Mas... essas altas esperanças não se realizaram; vaso de faiança... pois sim! Nem sequer de terracota. Também não saiu mais nenhuma flor daquela moita para florir botoeira alguma. Continuaram as flores a respirar o ar e a luz, a beber os raios do sol e as gotas de orvalho. E não receberam outra visita senão a das abelhas e dos besouros que lhes sugavam o mel.

- Ladrões! Salteadores! - gritava o cardo, indignado - Ah! Se eu pudesse espetá-los a todos com meus espinhos! Como ousam vocês roubar assim o perfume destas flores, destinadas a ornar o botoeira dos namorados?

Mas por mais que falasse, não se modificava a situação. As flores acabaram por curvar a cabecinha. Empalideceram, fanaram-se; mas iam sempre brotando outras novas. E a cada flor nova que nascia dizia o pai, com uma confiança inalterável:

- Chegas mesmo como o bacalhau na quaresma. Não podias vir mais a propósito! Espero a todo o instante passar para o outro lado da sebe.

Algumas margaridas inocentes e uma humilde bonina que ficavam ali perto ouviram essas palavras e acreditavam  nelas, com a maior candura. E daí em diante passaram a testemunhar grande admiração ao cardo que, em troca, as desprezava profundamente.

O velho asno, mais ou menos cético por natureza, não confiava tão cegamente no que o cardo proclamava com tanta segurança. todavia, para se precaver contra qualquer eventualidade, fez novos esforços para apanhar a apreciada planta, antes que ela fosse transplantada para  lugar inacessível. Mas puxava em vão o cabresto: era curto demais, e ele não conseguia parti-lo.

De tanto pensar o cardo glorioso que figura nas armas da Escócia, persuadiu-se afinal o outro de que era da sua descendência; que tinha seus antepassados naquela família ilustre, e que provinha de algum rebento vindo da Escócia em tempos remotos. Eram pensamentos esses bastante exagerados, mas as grandes ideias iam bem em um cardo tão grande que formava por si só uma moita.

A vizinha urtiga aprovava-o inteiramente:

- Muitas pessoas são de alto nascimento sem o saber; é coisa que se vê todo o dia. Pois eu, por exemplo, estou convencida de que não sou uma planta vulgar. Não forneço a mais fina musselina, a que serve para vestir as rainhas?

Passou o verão, passou depois o outono. As árvores despiram-se de sua folhagem. As flores vão tomando tons mais carregados, e já tem menos perfume. Enquanto isso o jardineiro, que recolhe as hastes, canta com toda a força dos pulmões:

Rio acima, rio abaixo,
Desce e sobe na corrente;
Assim subindo e descendo
Vai indo a vida da gente!


Os pinheirinhos novos do mato voltam a pensar no Natal, naquele belo dia em que se veem enfeitados de laços de fita, de bombos e velinhas de cor. Aspiram a esse destino brilhante sabendo, embora que o pagarão com a vida. E o cardo dizia:

- Como! Ainda estou aqui, e há oito dias que se celebrou o casamento! Contudo, fui eu que o fiz, esse casamento! E parece que ninguém lá se lembra de mim... é como se eu nem existisse! Deixam-me aqui para brotar de novo. Mas eu sou muito orgulho; não dou um só passo para aqueles ingratos! É verdade que não posso nem mexer-me... Só o que me resta é ter paciência, paciência ainda.

Passaram-se algumas semanas. Lá estava o cardo, com a sua única e derradeira flor; era uma flor grande e viçosa: parecia até uma flor de alcachofra. Brotara junto da raiz, e era uma flor robusta. Mas começou o vento frio a castigá-la; desapareceram as cores tão vivas. E elas ficou feito um sol prateado.

Um dia, o casal novo - pois eram agora marido e mulher - foi passear no jardim. Aproximaram-se os dois da sebe, e a bela escocesa olhou por cima, para o campo, e disse:

- Olha! Lá está ainda aquele cardo. Que pena! Não tem mais flores!

- Sim, sim: lá está ainda uma . ou pelo menos o espectro dela - disse o moço, mostrando o cálice já ressequido e esbranquiçado.

- Pois olha, é muito bonita assim – replicou. - Vamos apanhá-la, para mandar reproduzi-la no quadro do nosso retrato?

E o moço teve de ir colher a flor fanada. Esta não deixou de picá-lo fortemente; não a chamara de espectro? Mas ele não se incomodou por isso: sua jovem esposa estava contente!

Ela levou a flor para o salão. Lá estava uma tela com o retrato dos dois esposos: o marido tinha uma flor de cardo na botoeira. Falaram muito naquela flor e também na outra, a última , que brilhava como prata e que ia ser esculpida na moldura.

O ar levou longe tudo quanto disseram.

- Eis o que é a vida! - disse o cardo. - Minha filha mais velha achou lugar em um botoeira, e meu último rebento foi posto em um quadro dourado. E eu - onde me meterão?

O burro estava amarrado ali perto, e deitou-lhe um olhar de esguelha, dizendo:

- Se queres ficar bem acomodado, muito bem acomodado mesmo, ao abrigo do frio, vem para dentro do meu estômago, minha joia! Aproxima-te, que eu não te alcanço: esta maldita soga (corda de esparto) é muito curta.

Nada respondeu o cardo a essas grosseiras, propostas. Foi ficando cada vez mais sonhador, e, de tanto virar e revirar seus pensamentos na cabeça, lá por volta do Natal chegou a esta nobre conclusão - muito acima, certamente, da sua baixa origem:

- Ora, contanto que meus filhos se achem bem colocados, eu, seu pai, posso resignar-me a ficar fora da sebe, neste lugar mesmo onde nasci!

– É um pensamento que te honra muito, sem dúvida. - disse o último raio de sol. - E não ficarás esquecido, acredita!

- Alguém vai por-me em um vaso? Ou irei para algum quadro?

- Nem uma coisa nem outra - segredou o raio de sol, antes de se eclipsar. - Vais ser posto em um conto!

Fonte:
Contos da Tita

terça-feira, 9 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 15: Colbert Rangel Coelho


 

Artur da Távola (Entes e Duendes dos meus Cinemas)

Dentre tantas alegrias a vida reservou-me uma dor: ver a demolição de muitos cinemas: Rian, Ipanema, Pirajá, Astória, Azteca, aqueles dois da Praia do Flamengo, Alvorada, Ritz, Metro Copacabana, Metro Tijuca. Tantos... Demo-lição. Será o ato de demolir uma lição do demo, o (im) popular demônio? Uma demolição? Talvez. O demônio agita-se oculto no que tomba para ser trocado por algo de menor sentido. E cinema que acaba é alegria que roubada.

Em cada cinema que morreu eu vi, no último dia da demo-lição os olhos enormes de Maureen O’Hara a chorar saudades da beleza; a sedução de Greta Garbo; os ideais de Glauber, Cacá Diégues e Davi Neves; a cultura cinematográfica de Walter Lima Júnior; o mau humor do Arnaldo Jabor: Sinto a perda da pele e dos olhos das faces e das costas de Ingrid Bergman e ouço o grito da garotada quando o mocinho, enfim, superou a maldade do bandido. Sim, os fantasmas das atrizes e as luzes dos ideais dos cineastas perduram na atmosfera sofrida de um cinema que tomba comido pela voragem da especulação imobiliária ou substituído por salas pequeninas, telas apertadas, cheiro de desinfetante e o irritante barulho dos sacos de pipoca que a má educação contemporânea timbra em mastigar durante a projeção...

Pode ser que antes de cair a última pedra de um cinema que tomba, a alma dos celulóides dele escape de madrugada e possa haver um grande e generoso baile com quem habitou suas telas ou poltronas com emoção. Eu posso dançar a valsa com Ingrid Bergman e roçar, deslumbrado, os dedos em suas costas largas e sedutoras. Você poderá namorar à vontade Gary Grant, ó jovem cinqUentona de meus tempos, ou consolar o Marlon Brando pela perda machucante da filha. Quanta gente que ama cinema poderá se ver, rever, trocar ideias, o Paulo Perdigão com a Paulette Goddard. O Fernando Ferreira com o Frank Capra a conversar. Humberto Mauro a discorrer, generoso, sobre o que foi sentar as bases do cinema no Brasil. Glauber Rocha a proclamar sua última tese sobre as afinidades entre o céu e o inferno como síntese verdadeira de uma dualidade falsa que sempre atormentou a humanidade. Orizon Muniz poderá enfim namorar em paz a Ruth Roman. Arlindo Coutinho rever películas com a Alberta Hunter, João Luiz Albuquerque mudar o fim de "Casablanca", vale dizer, tudo o que sentimos de bom e melhor pelo cinema e seus personagens de sonho e realidade poderemos encontrar no grande baile noturno das últimas horas de cada um, onde todos juntos dançaremos ao som do La Valse de Ravel.

Só esta doce alegria imaginária compensa a dor de ver a cidade grande engolir os cinemas de meu amor e da nossa nostalgia.

Fonte:
Artur da Távola (site desativado).

Augusto Frederico Schmidt (Poemas Escolhidos) 2

A CHUVA NOS CABELOS

A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!

Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores.
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ELEGIA

Entrou na sala e ficou em pé tocando piano,
Sua mão pequena batia no teclado
duramente.
Lembro que estava de vermelho
Lembro que tinha nas tranças finas uma fita preta
Lembro que era de tarde
E entrava pelas janelas abertas o vento do
mar.
Não lembro se tinha flores perto dela
Mas nascia um perfume do seu corpo.

Que amor o meu!
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LEMBRANÇA

Todos os que estão neste cinema agora,
Neste cinema alegre,
Um dia hão de morrer também:
Nos cabides as roupas dos mortos
penderão tristemente.

Os olhos de todos os que assistem
as fitas agora,
Se fecharão um dia trágica e dolorosamente.
E todos os homens medíocres
se elevarão no mistério doloroso da morte.
Todos um dia partirão —
mesmo os que têm mais apego às coisas do mundo:
Os abastados e risonhos
Os estáveis na vida
Os namorados felizes
As crianças que procuram compreender —
Todos hão de derramar a última lágrima.

No entanto parece que os frequentadores deste cinema
Estão perfeitamente deslembrados de que terão de morrer
— Porque em toda a sala escura
há um grande ritmo de esquecimento e equilíbrio.
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PEQUENA IGREJA

Eu queria louvar-te, pequena e humilde igreja
Desta cidadezinha que está morrendo.
Eu queria agradecer-te a compreensão que me deste
Das coisas humildes e eternas.

Eu queria saber cantar a tua tranquilidade
E a tua pura beleza,
Ó igreja da roça, adormecida diante do jardim cheio de rosas!
Ó pequena casa de Jesus Cristo,
irmã das outras casas solenes e graves.
Escondida e modesta, com as tuas torres e os teus sinos
Que sabem encher o ar matinal com um tão doce apelo,
E no instante vesperal lembram que é hora de dormir para a
[grande família dos passarinhos inquietos,
Dos passarinhos que tumultuam o pobre jardim cheio de flores!
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SONETO A CAMÕES

As tuas mágoas de amor, teus sentimentos
Diante das leis que regem nossas vidas,
Desses fados que dão e logo tiram,
E a que estamos escravos e sujeitos.

As tuas dores de amar sem ser amado,
De procurar um bem que não se alcança,
E no canto clamar desesperado
Pelo que nunca vem quando se busca.

Poeta de enamoradas impossíveis
E que num negro amor desalteraste
Essa sede de amar dura e terrível,

As tuas mágoas de amor, tuas fundas queixas,
Como uma fonte ficarão chorando
Dentro da língua que tornaste eterna.
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VAZIO

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Fontes:
A poesia fluminense no século XX. RJ/DF: FBN/Imago/UMC, 1998, RJ/DF .
Nova Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1964
http://www.revista.agulha.nom.br/