quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Porto Alegre 250 anos (Trovas Premiadas)


ÂMBITO NACIONAL

VETERANOS

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VENCEDORES
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Cidade Sorriso... encanto,
brilha um céu bem mais azul!
Há beleza em cada canto,
no Rio Grande do Sul.
SÍLVIA SVEREDA
Irati/PR

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Ela é tudo o que eu preciso,
formosura em alto grau:
Ela é a Cidade Sorriso!
― Vou pra Porto Alegre, tchau!...
PAULO CEZAR TÓRTORA
Rio de Janeiro/RJ

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Cidade plena de encantos
traz, em si, gentil aviso
- Aqui, terminam seus prantos ,
esta é a "Cidade Sorriso" !!!
ALBA HELENA CORRÊA
Niterói/RJ


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MENÇÕES HONROSAS
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Dos pampas vem um aviso
que traz ao Brasil conforto:
há uma cidade-sorriso
a quem busca alegre porto.
EDWEINE LOUREIRO
Saitama/Japão

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Cidade-Sorriso tem
o que aquece o coração:
povo afável e do bem,
poesia e chimarrão.
GERALDO TROMBIN
Americana/SP

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Não há cidade que exiba
um por de sol mais preciso
que o visto, aos pés do Guaíba
pela Cidade Sorriso!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG


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MENÇÕES ESPECIAIS
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É Porto Alegre um encanto...
"cidade sorriso", e mais,
da UBT, belo recanto,
palco de Jogos Florais.
MÁRIO MOURA MARINHO
Sorriso/MT

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Na visão de um paraíso...
Vê, Porto Alegre risonha,
sendo a cidade sorriso
no coração de quem sonha!
ANA MARIA GUERRIZE GOUVEIA
Santos/SP

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Que com minha alma se integre...
Que... me lembre o Paraíso...
Busco... e encontro: Porto Alegre -
minha Cidade Sorriso!...
JAIME PINA DA SILVEIRA
São Paulo/SP


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TROVA DESTAQUE
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Mais do que nunca é preciso,
retornar à vida plena!
E em ti, Cidade Sorriso,
sei que sonhar vale a pena!
FERNANDO ANTÔNIO BELINO
Sete Lagoas/MG


ÂMBITO NACIONAL

NOVOS TROVADORES

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VENCEDORES
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Porto Alegre, paraíso,
de beleza sem igual,
linda Cidade Sorriso,
esta grande Capital!
NAZARETH FERRARI
Taubaté/SP

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Porto Alegre, Capital,
reconhecer é preciso,
de tão bela e especial,
chamam, Cidade Sorriso!
CLEBER DUARTE
Umarizal/RN


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MENÇÕES HONROSAS
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Por seu nome já se sabe,
explicar nem é preciso,
que a nenhuma outra cabe,
ser a Cidade Sorriso.
LAÉRCIO SANT’ANNA
São Paulo/SP

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Minha cidade sorriso
Porto Alegre hospitaleira,
pedaço do paraíso
nesta terra brasileira.
WILTON DI CALI
Guarulhos/SP


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MENÇÕES ESPECIAIS
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Minha Cidade Sorriso
só me traz felicidade,
nela estou no paraíso
e sou feliz de verdade!
JANETE FRANCISCO SALES YOSHINAGA
São Paulo/SP

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Nesta Cidade Sorriso,
vejo o progresso constante,
a alegria vem no aviso
do sorriso a cada instante!
MAGDA HELENA GOMES TEIXEIRA
Pouso Alegre/MG

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ÂMBITO ESTADUAL (RS)

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VENCEDORES
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Porto Alegre, junto ao cais,
tens sinais de um paraíso!
Ontem, Porto dos Casais
e hoje és Cidade Sorriso...
LUIZ DAMO
Caxias do Sul

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Ante o Guaíba, improviso...
contemplo o sol, num recosto...
Eis que a Cidade Sorriso,
põe sorrisos em meu rosto.
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre

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Cidade Sorriso eu sou,
cantada pelo Quintana.
Sou Arte, Poesia, Show,
tão sublime e soberana!
LÚCIA BARCELOS
Porto Alegre


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MENÇÕES HONROSAS
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Porto Alegre, em ti me inspiro,
compor trovas de improviso.
E saudar-te assim prefiro:
- Salve , Cidade Sorriso!...
CLÁUDIO DERLI
Porto Alegre

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Porto Alegre, em suas águas,
tem cores de paraíso,
onde se afogam as mágoas,
nasce a Cidade Sorriso.
ARY CARDOSO
Porto Alegre

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Nossa Cidade Sorriso,
toda repleta de encanto,
nela está meu paraíso,
que em prosa, que em verso eu canto.
BERNARDETE SAIDELLES
Porto Alegre


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MENÇÕES ESPECIAIS
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O sol que brilha e seduz
no Guaíba refletindo,
Cidade Sorriso e luz
faz nosso viver mais lindo.
MARIA DA GLÓRIA DE OLIVEIRA
Porto Alegre

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De jovens casais, nasceu
bela Cidade Sorriso!
Que jamais esmoreceu,
fosse inferno ou paraíso.
LUCI BARBIJAN
Caxias do Sul

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Quando vou passando a ponte
rumo à Cidade Sorriso",
alarga meu horizonte,
estou indo ao paraíso.
MARISIA VIEIRA 
Pelotas

Fonte:
Calêndula Literária – n. 530 – setembro de 2022 – UBT Porto Alegre/RS

Sammis Reachers (Os caronistas)

Um dos grandes prazeres de minha infância de diabruras era pegar carona. Mas, como assim? O lance era o seguinte: Qualquer caminhão que passasse pelo bairro, na época todo feito, todo trabalhado em esburacadas ruas de chão e terra socada, era um convite, um chamariz tocado à diesel, um poleiro convidando os frangos que éramos.

A melhor das caronas era a usufruída nos caminhões de pipa d’água: Sua carga balouçante e pesada lhes impedia de andarem muito rápido, e somado a isso o caminhão tinha para-choques e poleiros como que feitos especialmente para que alguém neles se pendurasse. Coisa de design e ergometria, fui aprender anos depois. Ou não. Bem, o importante era a diversão.

E quando um caminhão vinha em nossa direção, enquanto saracoteávamos tranquilamente pela rua, e ao passar por nós víamos que já havia um ou mais moleques pendurados na traseira? Ohh! Aquilo era tomado na conta dos ultrajes, afinal ninguém poderia dar uma festa sem nos convidar. E lá íamos nós também.

Havia mesmo uma apurada técnica para escaparmos das vistas dos motoristas e ajudantes, alguns já tarimbados em lidar com aquilo. Passando pelo caminhão, continuávamos em frente, jamais observando-o diretamente ou demonstrando qualquer agitação. Alguns passos adiante, do canto da rua andávamos para o centro da mesma, até atingir o delicioso “ponto cego”, centralizados bem atrás do caminhão e ficando invisíveis aos espelhos retrovisores. Neste momento dávamos meia volta e literalmente voávamos em disparada, para agarrar nas ferragens.

Outra carona muito praticada era a realizada nas portas dos ônibus. Naqueles tempos, os ônibus possuíam um balaústre (espécie de apoio ou corrimão) para o lado de fora das portas – o que nos modelos posteriores foi sabiamente alterado, ficando agora do lado de dentro das mesmas, e sendo expostos apenas quando as portas se abrem.

Pois bem, aquelas duas “asas” para fora dos ônibus eram um convite para nos agarrarmos ali, equilibrando os pés nos sopés das portas. Íamos para a loja da Popó Piscinas, início da rua principal do bairro, e assim que o ônibus entrava, lá íamos nós agarrados, curtindo o vento nas fuças até a nossa rua. A Anarquia era deusa celebrada naqueles idos e sofridos: alguns dos motoristas já nem ligavam. Mas outros, furiosos, paravam o ônibus ou pior, aceleravam à toda, sacolejando a chulapa de ferro e lata para ver se desistíamos – ou caíamos, catapultados pelo tremelique do navio pirata.

O ônibus que atendia ao bairro fazia a linha 17, da empresa Icaraí (hoje ABC), que cumpria o trajeto entre os bairros de Maria Paula a Jardim Catarina. Ainda hoje a linha existe, mas agora passa por uma outra rua. As más línguas dizem que eu ajudei a remover o ônibus de nosso bairro, de tantos vidros que quebrei. Mas deixemos esses comentários venenosos para os maledicentes.

Quanto às caronagens clandestinas nas portas dos ônibus, eu e Renato éramos ali os talvez mais hábeis praticantes desse esporte radical e suburbano – atletas de ponta, campeões irreconhecidos dum esporte hoje proscrito pelo duro julgamento da lei.

Bem, certa feita as coisas não saíram como o corriqueiro. A atividade caronística tinha seus riscos, que eram algo calculados: O ônibus, ainda que o motorista acelerasse, geralmente parava de uma a quatro vezes bairro adentro, para descarregar passageiros, isso apenas até chegar em nossa rua, situada no quarto “ponto”. Dali em diante, por sinal, não havia iluminação pública, e ainda por cima as casas escasseavam, num “vácuo” humano que ia por quilômetros até o distante bairro de Maria Paula, já na fronteira com o município de Niterói, onde tal linha de ônibus tinha seu ponto final. Assim, de maneira alguma poderíamos passar de nossa rua, sob risco de nos vermos, em plena noite, “perdidos” e sozinhos bem longe de casa.

A boa etiqueta recomendava que descêssemos ao menos na segunda parada, por via das dúvidas. Pois vai que ninguém descesse nas seguintes? Mas nessa noite fatídica, após apanharmos nossa democrática condução, notamos que o motorista já iniciara a acelerar desde o primeiro ponto. Passou um ponto e ninguém descera, outro e nada... Chegamos no terceiro e igualmente ninguém puxou a “cigarra”, a campainha para descer do veículo. Eu e Renato ficamos preocupados. Enquanto aproximava-se de nosso limite, o ponto que dava para nossa “rua”, notamos que o miserável acelerava ainda mais – talvez já nos conhecesse! Vendo que ninguém iria descer, que o carroção tremia em solavancos cada vez maiores, e que acabaríamos lá em Maria Paula ou coisa pior, Renato, meu sinistro mestre, nãos se fez de rogado: Pulou dentro de uma fossa de esgotos que margeava certo trecho da rua! Enquanto avançava agarrado com força àquela porta, ainda pude ver o bitelão se levantando da lama, todo “borrado”. Mesmo em desgraça, encontrei tempo de gargalhar e gritar, caçoando do “espertalhão medroso”, que confirmava a fama de “Cascão”!

Entretanto, poucos metros adiante era o limite, a linha vermelha entre a civilização e o breu total. Tentei pensar o mais rápido que pude, ao ver que naquele último ponto ninguém desceria mesmo, e o satanáquia do motorista só fazia acelerar. Foi só então que me ocorreu que não havia mais fossas de esgoto. Ou moitas e matagais. Era apenas chão. Chão duro, compactado, coberto de esfoliante cascalho. Agora em mortal desespero, qual Ícaro de desfeitas asas, foi naquele chão que me joguei.

Não me lembro bem como foi o impacto. Bem, nem bem, nem mal. Testemunhas dizem que capotei pelo chão como um dublê de filmes de ação. Como de nada recordo, devo ter desmaiado na primeira pancada. O resto foi por conta e divertimento da lei da gravidade...

Acordei com algumas pessoas sobre mim, me abanando. Uma, a irmã de Renato, Rosana, correu imediatamente para avisar meus pais – o que me fez tentar levantar-me para detê-la, possuído de ódio e medo, pois eu tomaria mais uma coça, uma surra homérica! Ela não se comoveu, que não era disso, nem eu tive forças: e lá vieram meus pais. Jogado nos bancos de um Fusca ou Brasília, fui levado às pressas até um hospital para o raio-x rotineiro. Nada quebrara, por sorte.

Nos dias seguintes, aquele de quem ri, o que se jogara na maciez pútrida de uma vala, me zoou como a um asno, dizendo que eu preferira me jogar no chão duro e “apagara” como um pavão ou heroína de novela das sete.

E eu aprendera mais uma lição de meu mestre de presepadas…

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Adega de Versos 90: Carolina Ramos (O Grito)

 

Irmãos Grimm (Pele de Urso)


Há muito, muito tempo atrás, havia um jovem que se alistou como soldado, e era sempre o primeiro a avançar quando se tratava de chuvas de balas. Enquanto durou a guerra, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas assim que se a paz foi assinada, ele foi demitido, e o comandante disse para que ele fosse onde desejasse. Seus pais haviam morrido, e portanto, ele não tinha mais casa, então, ele voltou para a casa de seus irmãos, e pediu para que eles o aceitassem, e ficasse com eles até a próxima guerra.

Os irmãos dele todavia, eram duros de coração e disseram: — “O que você poderia fazer aqui? você não tem utilidade para nós, vá e viva a sua própria vida.” 
 
O soldado não possuía nada além de uma carabina, ele a colocou no ombro, e partiu para o mundo. E chegou a um grande matagal, onde não conseguia enxergar nada além de um pequeno círculo de árvores, e debaixo destas árvores ele se sentou triste, e começou a pensar no seu destino.

— “Não tenho dinheiro,” pensou ele, “não tenho profissão, só sei lutar, e agora que só existe paz, eles não precisam mais de mim, então, já estou pressentindo que vou morrer de fome.”

De repente ele ouviu um barulho, e quando ele olhou em volta, uma figura estranha estava diante dele, a criatura usava um casaco verde, tinha um olhar imponente, mas tinha pés rachados que nem de cabra o qual ela ocultava.

— “Eu sei o que você está precisando,” disse o homem, “ouro e muitas riquezas é o que você terá, tanto quanto você desejar, mas primeiro é necessário que você não seja medroso, para que eu não aplique em vão o meu dinheiro.”

— “Soldado e covardia, — como estas coisas podem andar juntas?” perguntou o soldado, “Podes me colocar a prova.”

— “Muito bem, então,“ respondeu o desconhecido, “olhe atrás de você.” O soldado se virou, e viu um urso enorme, que vinha rosnando atrás dele.

— “Uau,“ exclamou o soldado, “espera aí que vou dar uma coçadinha no teu nariz, até que você perca a vontade de rosnar,” e foi em direção ao urso e deu um tiro bem no meio do focinho, ele caiu e nunca mais voltou a se mexer.

— “Está provado que não te falta coragem!,” disse o desconhecido, “mas falta ainda outra condição que deves satisfazer.”

— “Desde que isso não ponha em risco a minha vida.” respondeu o soldado, que sabia muito bem diante de quem ele estava.

— “Se a tua vida correr perigo, não serei responsabilizado por isso. Tu deverás fazer tudo sozinho.”, respondeu o homem de casaco verde, que disse “Nos próximos sete anos, não deverás tomar banho, nem pentear a tua barba, nem o teu cabelo, nem cortar as tuas unhas, nem rezar o padre nosso.

— “Eu te darei um casaco e uma capa, os quais deverás usar. Se morreres durante estes sete anos, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres além desse tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.” 
 
O soldado pensou no abandono extremo em que ele se encontrava agora, mas que tantas vezes havia enfrentado a morte, que ele decidiu correr novamente esse risco, e aceitou o convite. O diabo tirou o seu casaco verde, e entregou para o soldado, e disse:

— “Enquanto estiveres usando este casaco nas tuas costas, e colocares as mãos dentro do bolso, sempre os encontrarás cheios de dinheiro.” 
 
Então, ele arrancou a pele do urso e disse:

— “Esta será a tua capa, e a tua cama também, pois nela dormirás, e não farás uso de nenhuma outra cama, e por causa desta roupa você será chamado a partir de agora de Pele de Urso.” Dito isto, o diabo desapareceu.

O soldado colocou o casaco, enfiou as mãos dentro do bolso, e percebeu que realmente tudo era verdade. Depois ele vestiu a pele de urso, e partiu em jornada pelo mundo, e estava feliz, e não se abstinha de nada que lhe fizesse bem e lhe trouxesse dinheiro. Durante o primeiro ano tudo veio a contento, porém, no segundo ele começou a ficar feio como um monstro. Os seus cabelos começaram a cobrir quase todo o seu rosto, a sua barba parecia um pedaço de feltro muito grosseiro, seus dedos se transformaram em garras, e o seu rosto ficou tão coberto de sujeira, que dava até para plantar agrião.

Todos aqueles que o viam, corriam dele, mas como ele sempre dava esmolas aos pobres para que orassem para que ele não morresse durante os sete próximos anos, e como ele pagava bem por tudo, ele sempre encontrava abrigo. No quarto ano, ele entrou numa estalagem, onde o proprietário não o queria receber, e não queria nem que ele ficasse no estábulo, porque ele receava que os cavalos ficassem assustados. Mas, quando Pele de Urso enfiou a mão no bolso e tirou um punhado de ducados, o anfitrião mudou de opinião e lhe ofereceu um quarto na parte externa da estalagem. Pele de Urso, no entanto, devia prometer que não seria visto, caso contrário a estalagem ficaria com má fama.

Quando Pele de Urso estava sentado à noite, e desejava do fundo do coração que os sete anos houvessem se passado, ele ouviu queixas e lamentações que vinham de um quarto anexo. Como ele tinha bom coração, ele abriu a porta, e viu que um velhinho chorava amargamente, e até punha as mãos na cabeça. Pele de Urso se aproximou, mas o homem saiu correndo e tentou escapar dele. Finalmente, quando o homem percebeu que Pele de Urso tinha voz humana, ficou mais tranquilo, e conversando amigavelmente, Pele de Urso conseguiu que o velhinho lhe revelasse a causa de sua tristeza.

Os seus recursos estavam minguando a olhos vistos, ele e as suas filhas começariam a passar fome, e ele era tão pobre que não conseguia pagar o estalajadeiro, e por isso ele seria preso.

— “Se o seu problema for somente esse,” disse Pele de Urso, “fique tranquilo, eu tenho muito dinheiro.”

E mandou que o estalajadeiro fosse trazido até ali, pagou o que o velhinho lhe devia, e pôs ainda uma bolsa cheia de dinheiro dentro do bolso do velhinho.

Quando o velhinho se viu livre de todos os seus problemas, ele não tinha palavras para agradecer.

— “Venha comigo,” disse ele a Pele de Urso, “as minhas filhas são verdadeiras maravilhas da natureza, escolha uma delas para ti como esposa. Quando elas souberem o que você fez por mim, elas não irão te rejeitar.

— “A princípio você parece estranho, mas elas saberão dar um jeito na sua aparência de novo.” 
 
Isto agradou muito ao Pele de Urso, e ele foi.

Quando a filha mais velha o viu, ela ficou muito assustada, com o aspecto dele, e ela gritou e fugiu dele. A segunda ficou parada e o media da cabeça aos pés, mas, então, ela disse:

— “Como é que eu posso aceitar um marido que não tem mais a forma humana e que parece um bicho? O urso pelado que passou por aqui uma vez e que tinha feições humanas me agradava muito mais, pois, de qualquer jeito ele usava roupas e luvas de um hussardo[*]. Se ele fosse apenas feio eu me acostumaria com isso.”

Porém, a mais jovem disse,

— “Querido pai, ele deve ser um bom homem por tê-lo ajudado a resolver os teus problemas, portanto, se você prometeu que daria uma noiva para ele, a sua promessa deve ser cumprida.” 
 
Era uma pena que o rosto de Pele de Urso estivesse coberto de sujeira e de pelos, pois se não estivesse, elas teriam visto como ele ficou feliz ao ouvir estas palavras.

Ele tirou o anel do dedo, dividiu o anel em dois, e deu a ela a metade, e a outra ele guardou para si. Ele escreveu seu nome, todavia, na metade que ficou com ela, e o nome dela, na metade que guardou para ele, e pediu para que ela guardasse com cuidado a metade dela, e então, ele pediu licença e saiu:

— “Eu tenho de perambular por três anos ainda, e depois disso, se eu não retornar, estarás livre, pois eu estarei morto. Mas ore a Deus para que Ele preserve a minha vida.”

A pobre noiva prometida se vestiu inteiramente de preto, e quando ela pensava no seu futuro noivo, os seus olhos se enchiam de lágrimas. As suas irmãs somente a desprezavam e zombavam dela:

— “Cuidado,” dizia a mais velha, ”se você der a mão pra ele, ele vai machucar você com as suas garras.”

— “Seja esperta,” dizia a segunda, “ursos gostam de doces, se ele simpatizar com você, ele vai devorar você inteirinha.”

— “Deves fazer tudo que ele mandar,” começou a mais velha novamente, “ou então, ele vai começar a rosnar.” 
 
E a segunda aproveitou e disse:

— “Mas vocês serão felizes no casamento, porque os ursos gostam de dançar.” 
 
A noiva ficava em silêncio, e não permitia que as suas irmãs a entediassem. Pele de Urso, todavia, viajava pelo mundo de um lugar para outro, fazia o bem quando lhe era possível, e gostava de fazer doações aos pobres para que eles pudessem orar por ele.

Finalmente, quando raiou o último dia dos sete anos, ele tirou a capa mais uma vez, e se sentou debaixo do círculo de árvores. Não demorou muito e o vento começou a assobiar forte, e o tinhoso apareceu diante dele, e olhava furioso para ele, então, ele jogou o seu casaco velho para o Pele de Urso, e pediu o seu manto verde de volta.

— “Nunca chegamos tão longe em nosso acordo,” falou Pele de Urso, ‘‘tu deves me limpar primeiro.” Se o filho do cão gostava ou não, ele foi obrigado a buscar água, e a lavar o Pele de Urso, pentear seu cabelo, e cortar suas unhas. Depois disto, ele ficou parecendo um soldado valente, e estava muito mais bonito do que havia estado antes.

Quando o diabo tinha ido embora, Pele de Urso ficou muito aliviado. Ele foi à cidade, vestiu um magnífico casaco de veludo, se sentou numa carruagem puxada por quatro cavalos, e correu para a casa da sua noiva. Ninguém o reconheceu, o pai acreditou que se tratasse de um general muito importante, e o conduziu para o lugar onde as suas filhas estavam esperando. Ele foi obrigado a se colocar no meio das duas mais velhas, que serviram vinho para ele, lhe ofereceram os melhores pedaços de carne, e ficaram pensando que em todo o mundo não existiria homem mais perfeito.

A noiva, no entanto, sentou-se de frente para ele vestida de preto, e não ousava levantar os olhos, nem tinha coragem de dizer palavra alguma. Quando finalmente ele perguntou ao pai se daria como esposa uma de suas filhas, as duas mais velhas pularam, correram para os seus dormitórios, e vestiram roupas maravilhosas, e cada uma delas ficou imaginando que seria ela a escolhida. O desconhecido, assim que ele ficou a sós com a sua noiva, trouxe a metade do anel que havia ficado com ele, e o jogou dentro de um copo de vinho que ele apanhara em cima da mesa para ela.

Ela pegou o vinho, e depois que ela o bebeu, e descobriu a metade do anel no fundo do copo, o coração dela começou a bater forte. Ela pegou a outra metade, que usava num colar ao redor do pescoço, juntou as duas partes, e viu que as duas metades se encaixavam exatamente uma na outra. Então, ele disse:

— “Eu sou o teu noivo prometido, a quem conhecestes como Pele de Urso, mas, com a graça de Deus a forma humana me foi restituída, e mais uma vez estou limpo de novo.”

Ele foi até ela, abraçou—a, e deu—lhe um beijo. Enquanto isso, as duas irmãs voltaram todas enfeitadas e quando elas viram que o belo homem já estava comprometido com a irmã mais jovem, e souberam que ele era o Pele de Urso, fugiram tomadas de ódio e furiosas. Uma delas se atirou no poço, e a outra se enforcou na árvore. À noite, alguém bateu à porta, e quando o noivo a abriu, viu que era o diabo em seu casaco verde, que disse:

— “Veja você, que eu perdi a tua alma, mas, em compensação consegui duas!”
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* Hussardo: cavaleiro húngaro, soldado da cavalaria ligeira da Alemanha e da França.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Ascânio Lopes (1906-1929) Caderno de Versos


SERÃO DO MENINO POBRE


Na sala pobre da casa da roça
papai lia os jornais atrasados.
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
A luz frouxa do lampião iluminava a mesa
e deixava nas paredes um bordado de sombras.
Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis
— desde criança fascinou-me o maravilhoso.
Às vezes, Mamãe parava de costurar
— a vista estava cansada, a luz era fraca,
e passava de leve a mão pelos meus cabelos,
numa carícia muda e silenciosa.

Quando Mamãe morreu
o serão ficou triste, a sala vazia.
Papai já não lia os jornais
e ficava a olhar-nos silencioso.
A luz do lampião ficou mais fraca
e havia muito mais sombra pelas paredes...
E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior.
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CENA DE UMA RUA AFASTADA
                         Para Martins de Almeida

A solteirona fechou as janelas com estrépito.
Uma mocinha da escola normal passou firme, sem olhar.
Um senhor gordo disse que era uma pouca vergonha
e que nossa polícia não vigiava os costumes.
Mas, indiferentes aos gritos dos carroceiros,
às pedradas dos garotos,
a lulu de D. Mariquinhas e o fox-terriê
                 [ (meio sangue) do sr. Fagundes
continuaram impudicos no meio da rua.
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MINHA NAMORADA

Seu nome era besta e ela também
mas quase não falava e só sabia olhar.
Gostei dela
fiz versos puxados
gastei tempo nas rimas raras
e na colocação de pronomes
porque ela era normalista
e gostava de gramática e não perdoava galicismos.
Mas um dia ela descobriu meus versos modernos
e percebeu que fingia
e gostava de errar nos pronomes
e que meus sonetos eram só pra ela.
Então me deu o fora e arranjou um poeta sincero
que a comparava a Marília
e que sabia de cor a "Ceia dos Cardeais"
e que sapecava todos os ritmos novos
e as poesias sem geometria e compasso.

E ficavam cinicamente amando no portão
quando não iam ao cinema delirar com as fitas
                      [ dramáticas italianas 12 atos.
Ela me deu o fora.
Também nunca mais fiz sonetos.
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SANATÓRIO

Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto
trazida de manso pela mão da noite.

Então minha testa começará a arder,
todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.

Lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
Ah! os meus olhos brilharão procurando
a Morte que quer entrar no meu quarto.

Os meus olhos brilharão como os da fera
que defende a entrada do seu fojo.
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Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá (MG), em 1906, mas foi criado em Cataguases, onde faleceu, em 1929. O poeta transferiu-se para Belo Horizonte em 1925, onde cursou a escola de direito. Em 1928, já doente, retornou a Cataguases.

Uma atividade marcante na curta vida de Ascânio Lopes foi sua participação no grupo que fundou a revista Verde, publicada em Cataguases 1927 e 1929. Publicação modernista, a Verde reunia jovens como o romancista Rosário Fusco e o poeta Guilhermino César. Cataguases era um polo de criação artística. Na mesma época, o cineasta Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, havia montado na cidade sua produtora, a Phebo Sul America Film.

Modernista de primeira hora, Ascânio Lopes se correspondia com Mário de Andrade e escrevia poesia, prosa, ensaio. Seus versos, como não podia deixar de ser, têm muitos traços do modernismo anos 20. O poema "Serão do Menino Pobre" até lembra o lirismo drummondiano de "Infância" (de Alguma Poesia, 1930). Ascânio: "Na sala pobre da casa da roça / papai lia os jornais atrasados. / Mamãe cerzia minhas meias rasgadas."  Drummond: "Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia."

Em textos como "Cena de Uma Rua Afastada" e "Minha Namorada", Ascânio Lopes mostra a irreverência da fase heroica do modernismo, com uma irresistível inflexão para o poema-piada. No primeiro, trata de um tema que jamais poderia ser motivo de poema nos padrões tradicionais. No outro, numa ironia bem ao estilo do "Desafinado" bossa-novista, queixa-se de uma namorada normalista que colocava bem os pronomes e detestava versos modernos.

Em "O Chefe", o poeta se volta para a crítica aos desmandos dos potentados interioranos. Por fim, vem a nota mais doída. É a crônica amarga de um jovem que se vê definhar num hospital sem esperança de cura. "Sanatório", poema autobiográfico, é a página mais citada de Ascânio Lopes.

Com a morte do poeta, a revista Verde se dissolveu. Os remanescentes publicaram ainda um último número, exatamente para homenagear o amigo morto. Sobre Ascânio escreveram nomes como Mário de Andrade, Antonio de Alcântara Machado e Carlos Drummond de Andrade.

Em vida, Ascânio Lopes publicou apenas um livro, chamado Poemas Cronológicos (1928). Ao todo, sua obra resume-se a 48 poemas, um fragmento de novela, três ensaios e quatro resenhas. Todo esse material, mais outros documentos sobre o autor, está reunido no volume Ascânio Lopes – Todos os Possíveis Caminhos, do romancista cataguasense Luiz Ruffato.
Carlos Machado


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 02

 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIV

A austeridade de outrora,
começava ao namorar,
hoje, ninguém mais namora,
todos pensam em "ficar".
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A família sempre acolhe
o filho que dela evade,
nunca a punição o tolhe
mesmo sendo só saudade.
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A vida tem se mostrado
tal sorvete a ser sorvido,
no início, doce e gelado,
mas no final, derretido.
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Da inveja, somada ao ódio,
nasce a divisão renhida,
multiplicando o episódio
de subtrair paz à vida.
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Entre a dor e o desespero
há um pedregoso caminho,
tal um amargo desterro
que o ser palmilha sozinho.
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Há quem mude a todo instante
conforme o que lhe convém,
Ignora o seu semelhante
como se fosse ninguém.
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Muitas pedras espalhadas
no leito e fora dos rios,
podem ser consideradas
base para os desafios.
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Não pretendo ser lembrado
apenas por um "ninguém",
mas por ter colaborado,
nesta vida em ser alguém.
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Nas trevas do isolamento
o homem se insula e padece,
aumenta o padecimento
e à sombra abissal fenece.
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Nenhuma estrela pereça
sem transmitir seu fulgor
e à luz, com garbo se aqueça
a alma que buscar calor.
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Ninguém gosta de adentrar
num local sem ar nem luz,
a não ser para encontrar
a fonte que à vida aduz.
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O frio se intensifica
e a temperatura cai,
a paisagem modifica
e o vivente se contrai.
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O que faz a humanidade
aumentar de forma errada,
se esconde à curiosidade,
cada vez mais explorada.
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Perdemos tempo testando
métodos e alternativas
e acabamos encontrando
frustrações nas tentativas.
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Pra que se ater na matéria
quando for inerte ou vil?
Se a ilusão gera a miséria,
a queda, um sonho senil.
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Rente o fim da caminhada,
o andante retrai seus passos,
oxalá encontre na estrada,
mais conquistas que fracassos.
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Se faltar no campo a planta
e o seu fruto a fervilhar,
não terá almoço, nem janta.
sobre a mesa familiar.
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Sem jamais titubear
ao responder, se indagado,
até no solo lunar
diz pousar, já tem sonhado.
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Sê tu mesmo a solução!
Jamais, parte de um problema.
Muito mais que proteção,
a supressão do dilema.
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Também me sinto envolvido
num processo de mudanças,
como um soldado aguerrido
que não perde as esperanças.
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Toda a pedra à mão guardada,
não sabe como termina,
poderá ser lapidada
ou tornar-se uma assassina.
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Tudo o que começa mal
termina igual, ou pior,
planejar bem é vital,
para alcançar o melhor.
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Tudo o que há na natureza
tem um meio a lhe prover,
na condição de defesa
se um ataque acontecer.
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Tudo o que tens nesta vida
jamais deves desprezar,
se ajudou-te na subida,
pode ao descer, dor causar.
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Um bom prato de alimentos
posto à mesa, a fome abate,
mas após alguns momentos,
retorna a mais um combate.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Mia Couto (Amor à última vista)

Enquanto vestia o morto, seu obituado marido, Dona Faulhinha mantinha uma conveniente lágrima. Era sempre a mesma lágrima, a única que ela derramara depois que Ananias Xavier se decidira defuntar. Se a lágrima merecia desconfiança, o falecimento não era menos fiável. A mulher deitava dúvida em Ananias, mesmo no trespasse fatal. O homem invocara uma suspeitosa doença. Pouco contava, agora, a verdade do motivo. Certo é que a suspeita ruminava em seu peito. Na penumbra da sala, Faulhinha recebia as condolências. Para efeito das visitas, ela exibia a lágrima, prova da sua tristeza, rebrilhando no fundo negro do rosto.

Quando ficou sozinha com o cadáver, Faulhinha chorou de verdade. Não por pena do falecido. Mas com desgosto de não ter sido ela a levada. Com inveja de o dedo de Deus não ter revirado sua página no livro dos viventes. Que lhe restava, agora? Ser uma réstia, sobra do nada que fora a sua vida? Durante o casamento nunca fora feliz. Mas, ao menos, ela se nutria de ódio por seu esposo, supremo mulherengo, mestre das malandragens.

Depois de chorar, lhe pareceu que qualquer coisa eclodira dentro de sua alma. Se sentiu vazada, mas não vazia. Porque o seu dentro se fez fora: lhe veio o irreparável desejo de morrer. Sempre fora mulher de sombra, no quieto subúrbio do seu viver. Se nunca tomara o pulso à vida como podia, agora, decidir pôr termo a si mesma? Não, ela nunca teria coragem para o derradeiro gesto.

Faulhinha foi a um canto do quarto e retirou a gaiola com o pássaro de estimação do falecido Ananias. Um papagaio de cabeça cinzenta que sempre a irritara e cujo trato ela declarara estar fora das suas domésticas obrigações. Mas que ela prometera tratar, com respeito, após a morte dele. Ficou olhando a gaiola e mais o incompetente bicho sobre a mesa de jantar. Viu uma tristeza nos olhos do pássaro. Simples impressão, papagaio é bicho enganoso, bem apropriado para o malandro do Ananias. Depois, a mulher ficou parada como se nela aflorasse, por fim, a mais antiga decisão de toda sua vida.

Então, se ajoelhou, ela que nunca se havia prostrado. Sofria dos ossos e das junções.

— Um dia que me ajoelhe nunca mais sairei do chão — sempre dizia.

Mas, desta vez, demorada e custosamente, ela se dobrou, joelhos na nudez da pedra. E pediu a Deus que emendasse tal morte. A levasse, sim, a ela, Dona Faulhinha da Conceição Dengo. Que ela não daria nenhum trabalho. Os anjos não necessitariam de cumprir horas extra. Morreria com tanta modéstia que nem se daria conta que se havia retirado da vida. A morte, naquela noite, nem lhe haveria de doer. Engoliria a última gota de ar, em deslize da vida para o nada. Sem suicídio, sem golpe, sem autoria. Como porta que se fechasse sem gesto nem vento. Ausentemente. Nem morrer aquilo seria: o nenhum verbo.

Vale a pena ouvir as palavras de Faulhinha Dengo. Ela que vivera sempre calada, agora, no extremo momento, se empenhava na mais cuidada oratória. Seu fito: encantar o próprio Senhor dos céus, Ele que, coitado, estaria saudoso da beleza da palavra.

Escute-se, pois, a estranha oração de Faulhinha, com a devida vênia:

— Estou a pedir licença a Deus para sair da vida hoje. Sim, me encomendo, certa e deserta. Me deixe passar para lá da margem, senhor Deus. É que, nesse outro lado, eu podia ajudar Ananias a se vestir, servir seu prato, remendar seus trapos.

Num repente, um ruído no quarto a sobressaltou. Um ranger de leito, um estalar de ossos, a fez arrepiar. Olhou de viés, que o medo não a autorizava a mais. Levou as mãos à boca para não gritar. Ali sobre o féretro, o cadáver emendava sua morte, erguendo-se e começando a falar:

— Florzita: não fale assim com Deus!

Era uma ordem? Não, era uma súplica. Pela primeira vez, ele lhe pedia alguma coisa, com humildade.

— Não faça isso, mulher, não peça para ir.

— Não se meta, marido!

— Eu preciso que fique aí, nessa outra banda. É que não tenho nenhum vivo que continue tratando de mim.

Mas Faulhinha continuou, após o susto, proferindo suas orações, encomendando a pouca réstia de alma. Ela estava pensando com o corpo no universo: como o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A gente chegaria até ouvir gargalhadas dos defuntos, saídas da terra quando a lua lustrasse em cima, arredondadinha. É que, da maneira que se retiram contrariados, os mortos sentem ciúme da Vida, carecendo de substância.

Cansado de escutar, o falecido agravou seu tom. Ele já não pedia. Voltava a seus modos de vivo. E berrou, ameaçou. Impassível, a esposa suspirou:

— Cale-se, Ananias. Se não, eu não consigo ouvir a voz de Deus.

— Escusa... Deus não vai falar consigo.

A esposa não dava ouvidos. E regressava às rezas. Ananias seguia, fermentando fúria. A dado momento, ele até se riu. De novo, sua risada desvalorizava a mulher. Mas depois, ele se retomou patrão, sisudo mandador.

— Eu só tenho um instante, mulher, me escute. É que tenho tarefas para você ir executando por aqui.

— Bem pode falar. Já lhe escutei demasiado quando você era vivo.

— Na nossa raça quem não respeita os mortos? Eu.

— Está armada em branca?! Pois lhe pergunto.. você está falar para qual Deus? Os nossos antigos ou esse de agora?

— Escuta, Ananias. Você não morreu?

— Sim, morri.

— Então deixe-se estar morto.

Se calasse. Mais ainda: deixasse de ter voz, deixasse sequer de deixar memórias. Que ele há muito já a tinha feito extinguir. A ela que nascera de mais. Nascera tanto que pensara que seria para sempre. Não se adivinhava mas Faulhinha tivera o seu reino. Não parecia mas ela tinha sido menina feliz, com infância farta. Era isso que a tinha salvado: o estar guarnecida de lembranças de um tempo que só há fora do Tempo.

Casara para ser duas, acabara sendo nenhuma. Asa esquecida, sua alma já esquecera o perfume do voo. Culpa dele, o Ananias. Por isso, ele a deixasse sair da vida, como ela bem queria.

O morto escutava, alarmado, as palavras de sua esposa. Falasse Faulhinha tão lindo: ele nem sabia. Antes, ela sempre se apagara em silêncio. E agora, escutando a rendeada oração, Ananias a desconhecia. Por exemplo, suas estas palavras:

— Eu quero entrar no chão antes que acabe a terra.

E, de novo, Faulhinha dirigia suas petições para ouvidos divinos. Enterrada fosse ela de cara visando o chão. Olhos fitando o céu. Agora já não lhe bastava amar as flores: necessitava ser haste e pétala, florescer por aí, fazer, por fim, justiça a seu nome.

De repente, o morto fez menção de avançar sobre a esposa. Aproveitou ela estar de joelhos e a segurou pelo pescoço. Mas a mulher respondeu com raiva e a força de seu braço reconduziu o falecido ao seu último leito. Quando falou, debruçada sobre o espantado Ananias, Faulhinha cuspia rancores:

— Não entende, sacana? Não entende que eu não quero ser sua viúva?

Pior que ter sido esposa seria carregar o luto dele. Podia ser viúva de qualquer um. Menos dele, saturada de ser sombra, ausência, espera. O morto, surpreso, ainda falou:

— Mas ainda há pouco você pedia a Deus que queria tratar de mim, aqui nos aléns...

— Pois mentia.

O falecido Ananias voltou a se entornar no leito. Ficou imóvel, categoricamente falecido. A última sílaba se enroscou nos seus olhos. Com as próprias mãos baixou as suas pálpebras. E refaleceu. Desressuscitado.

Sem se erguer, apenas arrastando os joelhos para perto da mesa, a mulher puxou a gaiola para junto de si. Abriu a porta. O papagaio não saiu logo da clausura. Esperou que o corpo da mulher se vertesse no chão inteiro. Faulhinha se derramou, abraçada pelo chão. O pássaro ainda esperou um tempo mais. Paciente, como se esperasse que o chão se convertesse em terra. Ou como se soubesse assuntos só dele. Depois, sacudiu as asas enquanto lançava um derradeiro olhar sobre a mulher. Se Faulhinha ainda ali estivesse teria reconhecido, com estranheza, aqueles olhos. Só então o pássaro voou, adentrando-se no seu primeiro céu.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

domingo, 4 de setembro de 2022

Adega de Versos 89: Renato Alves

 

José Roberto Balestra (Versos Avulsos)


O tempo acelera, mas... PACIÊNCIA; a vida é tão rara...

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo, e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber?
A vida é tão rara (tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, eu sei, a vida não para (A vida não para, não)
A vida não para

A vida é tão rara...
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Há mais no céu de hoje do que se imagina…

O sol que fica perto de lá... bemol
Neblina que vem d’manhã... é sol
Dó de si o é porque foi... sustenido
E si de dó na volta é bemol... sustentado

Advertiu Riobaldo; viver é muito perigoso!
Então hoje vou estar mais preocupado.
Porque quando não aparece o tinhoso
Costuma vir o secretário atentado.

Preciso me benzer com muito sal:
Hoje tem Lua mais longe de noite
E também eclipse lunar penumbral
Acho muito pr’um só dia de açoite

Assim peço, e me sinto consolado:
- Valei-me meu São Serapião,
Protetor dos órfãos e abandonados,
Tira-me os pés das más coisas do chão
De hoje…

Fonte:
Blog A Balestra
https://zerobertoballestra.blogspot.com/

Concursos de Trovas com Inscrições Abertas (Prazo final: 30 de novembro)


Concurso de Trovas da ATRN/UBT Natal-RN
Prazo: 30 de Novembro

Tema – Âmbitos Nacional/Internacional e Estadual
(Lírica/Filosófica): ESTAÇÃO(ÕES)

Tema – Âmbitos Nacional/Internacional e Estadual
(Humorística): DESLIZE(S)

Tema – Âmbito Interno, associados ATRN e UBT/Natal-RN
(Lírica/Filosófica): CANSAÇO(S)

Tema – Âmbito Interno, associados ATRN e UBT/Natal-RN
(Humorística): SUFOCO(S).


Apenas UMA TROVA por participante;

A palavra tema deverá constar na Trova;

No âmbito nacional/internacional, em língua portuguesa, deverá haver menção à categoria (veterano ou novo trovador);

Novos trovadores concorrerão apenas com Trova Lírica/Filosófica, âmbito Nacional/Internacional;

Enviar a identificação com nome, endereço, telefone e e-mail (se possuir);

A participação será por E-mail e/ou por Sistema de Envelopes:

Para o âmbito Nacional / Internacional Língua Portuguesa

Por Sistema de Envelopes:

A/C de Mara Melinni
Rua Major Camboim, 801
Bairro Paraíba
Caicó/RN
CEP: 59.300-000

 Por e-mail:

Fiel depositário: Magnus Kelly
magnuskelly@yahoo.com.br


Para o âmbito Estadual

 Por Sistema de Envelopes:

A/C de Mário Moura Marinho
Rua Outono, 270
Centro
Sorriso/MT
CEP: 78.890-192

Por e-mail:

Fiel Depositário: Jerson Brito
jersonbrito.pvh@gmail.com


PARA O ÂMBITO INTERNO

Apenas por e-mail:

Augusto Severo
guteco@gmail.com


Prazo máximo para recebimento das trovas: 30/11/2022.
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CONCURSO DE TROVAS DE TAUBATÉ - 2022
Prazo final para envio: 30/novembro

TEMAS:

Nacional / Internacional
(
Lírica/Filosófica) Trovadores do Brasil e do mundo, exceto Estado de São Paulo:

- LIVRO =
para Veteranos e Novos Trovadores
 
Estadual
(Lírica/Filosófica) Trovadores do Estado de São Paulo, exceto Taubaté:

- PROGRESSO
 
Municipal
(Lírica/Filosófica) Trovadores de Taubaté:

- PRECE
 
Humorística (Todos trovadores independente de categoria):

- SOGRO (no masculino mesmo)

Trovadores Mestres
(Lírica/Filosófica):

- PORVIR


- Máximo de 2 trovas por participante para todas as categorias;

- Valem palavras derivadas, cognatas e mesmo somente a ideia do tema contida na trova; a trova deve ser inédita, escrita em língua portuguesa e de autoria própria;

MODO DE ENVIO:

- Em qualquer modo de envio é obrigatório que o Novo Trovador indique essa condição (no corpo do e-mail ou na parte de fora do envelopinho);

 Por email:

Fiel Depositário - Raul Filho

ubttaubateconc@gmail.com


- Ao enviar por e-mail: No campo Assunto colocar: Concurso de Trovas de Taubaté 2022;

- No corpo do e-mail são dados obrigatórios: o tema a que concorre, a trova, a condição junto a UBT Nacional caso seja Novo Trovador e a identificação (nome, cidade/estado/país, telefone/whatsApp e e-mail);

 Pelos Correios - Sistema de envelopes:

Endereço:
Concurso de Trovas de Taubaté 2022
A/C Raul Filho
Rua Jacques Félix, nº 510 - apto. 101 - Centro
Taubaté-SP
CEP 12020-060


- As trovas recebidas no Concurso Nacional/Internacional, serão julgadas separadamente por categorias (Veterano e Novo Trovador).

- Os trovadores Mestres (título outorgado pela UBT Taubaté desde 2015) serão comunicados individualmente;

- Para conhecimento acerca dos critérios para a obtenção do Título de Trovador Mestre, bem como aqueles que atualmente compõe o Quadro de Trovadores Mestres (L/F ou H), a UBT Taubaté estará a disposição para esclarecimentos e dirimir eventuais dúvidas.

- As decisões da Comissão Julgadora serão soberanas e irrecorríveis;

- Casos avulsos serão resolvidos pela Comissão Organizadora;

Taubaté, 20 de agosto de 2022
- Realização: UBT Seção Taubaté-SP
- Apoio: Academia Internacional da União Cultural

sábado, 3 de setembro de 2022

Varal de Trovas n. 567

 

Milton S. Souza (A melhor coisa do mundo)


A pergunta que aquela professora de quarta série de uma escola municipal de Santo Antônio da Patrulha fez para os seus alunos deixou a classe inteira agitada. Ela deu dez minutos para eles responderem por escrito “Qual a melhor coisa do mundo?”. Depois de diversas consultas entre eles, com a formação de grupinhos, os alunos baixaram a cabeça e começaram a escrever as suas respostas. Quando todos terminaram, a professora recolheu as folhas, separou por assuntos, e começou um debate em sala de aula.

A grande maioria dos alunos colocou a saúde como melhor coisa do mundo. Mas alguns pensaram diferente.

Para aquela menininha de tranças, olhar triste e perdido, “a melhor coisa do mundo é ter um pai e uma mãe”. Ela completou dizendo que “não é fácil viver jogada no mundo e ser criada por estranhos”.

O garoto mais bagunceiro da classe afirmou que “a melhor coisa do mundo é  matar aula para jogar futebol”.

A garota de óculos “fundo de garrafa” que sempre sentava na primeira fila ressaltou que “A melhor coisa do mundo é enxergar bem”.

O menininho raquítico e esfarrapado, que já havia sido ajudado várias vezes pelo atendimento social da escola, garantiu que “a melhor coisa do mundo é ter o que comer”.

E aquela garota gordinha, que seguidamente trazia flores ou maçãs para a professora, esbanjou puxa-saquismo dizendo que “a melhor coisa do mundo é ter uma professora como a senhora”...

Nem é preciso dizer que o debate na sala de aula rendeu muito. O grupo que apostou na saúde enfrentou todos os outros dizendo que “sem saúde não adianta ter comida, casa, mãe e pai ou qualquer outra coisa”. Ao defender a ideia, eles até conquistaram os apoios de vários daqueles que pensavam diferente. Até o matador de aulas concordou que sem a saúde não dava para jogar futebol. Mas o grupo não conseguiu convencer a menina de tranças de que saúde é melhor do que ter pai e mãe: “Se alguém não tem saúde, mas tem um pai e um mãe para lhe cuidar, pode superar os seus problemas. Se alguém tem saúde, mas não tem pai e mãe, pode ficar doente por viver atirada no mundo”. A lógica da menina chegou a emocionar a professora. No final da aula, ela explicou para os alunos que a melhor coisa do mundo seria aquela que a gente estivesse necessitando com urgência naquele momento, seja a saúde, uma casa, um pai ou uma mãe e até um copo de água para matar a sede.

E você, leitor, que resposta daria para aquela pergunta? Eu, por exemplo, teria muita dificuldade para responder. São tantas as coisas boas e valiosas que Deus coloca todos os dias na minha vida que seria quase impossível optar por apenas uma. Talvez eu ficasse com o amor daquela pessoa que mais amo. Talvez colocasse nesta resposta a minha família inteira. Talvez tivesse que pensar muito antes de retirar das opções as minhas duas maiores manias: ler e escrever. Qualquer resposta, por certo, ficaria incompleta. Por isso, vou apostar em uma mais simples que, no meu modo de ver, consegue englobar todas as outras: “A melhor coisa do mundo é, mesmo, viver”…

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/84963

Fabiano Wanderley (Glosas) - 6


BEHRING LEIROS, O POETA,
PÕE NO VERSO, O CORAÇÃO.


Com o esmero, que secreta,
sabe expor, seu sentimento,
faz fluir o seu talento,
Behring Leiros, o poeta.

Quando na alma, ele arquiteta,
uma grande inspiração,
trás no afã dessa emoção,
todo o ardor da sua essência,
com ternura e sapiência,
põe no verso, o coração.
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CADA QUAL TEM SEU ALGOZ
NESTE MUNDO DE MORTAIS


É próprio, de todos nós,
seja rico ou seja pobre,
preto escravo ou senhor nobre,
cada qual, tem seu algoz.

Quem não teve um dia atroz?
Se, ante a Deus, somos iguais.
Não esqueçamos, jamais,
que os ricos também padecem,
que afinal todos perecem,
neste mundo de mortais.
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ESSE CARA NUNCA MENTE,
PORÉM VERDADE NÃO DIZ.


Se escuta, frequentemente,
que ele é dono da verdade,
que adora a sinceridade,
esse cara nunca mente.

Eis que sabe muita gente,
cá, do café São Luiz,
que o mesmo, se contradiz,
nas coisas que ele comenta,
se, de fato, não inventa,
porém verdade não diz.

(A um cidadão, que gosta muito de contar vantagem, mas, que fica furioso, se acha, alguém que o discorde)
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O SENHOR JÁ ME OFERTOU
SETENTA ESTRADAS DE VIDA.


Amigos me premiou,
me deu luz, felicidade,
um grande amor de verdade,
o Senhor já me ofertou.

Também me presenteou
nesta estrada prometida,
uma família querida,
com muita paz e carinho,
marcando, no meu caminho,
setenta estradas de vida.
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PELAS ANDANÇAS DA VIDA,
ME VI, NA TRILHA DO TEMPO.


Buscando sempre guarida,
ante os prazeres do mundo,
vivi meu tempo fecundo,
pelas andanças da vida.

Essa fase tão vivida,
como um mero passatempo,
sem hora, sem contratempo,
sem queixas ou desenganos,
levou consigo, meus anos,
me vi, na trilha do tempo!
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TÃO SOMENTE POR AMOR
CAPOTOU MEU CORAÇÃO...


Fez-se um servo, um servidor,
se entregou de corpo inteiro,
se tornou prisioneiro,
tão somente por amor.

Quase em meio a um torpor,
sem conter tanta emoção,
desprendeu sua paixão,
seu amor tão inerente
e aos pés da Deusa, fremente,
prostrou-se o meu coração.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Arcanjo renegado)

VOCÊ CHEGOU até aqui, não sei vinda de onde, ou a mando de quem. Sei apenas que apareceu do nada, a procura de uma vaga de emprego. Deixou um currículo simples sobre a minha mesa, com foto, telefone de residência, celular, três pessoas conhecidas para discorrerem sobre o seu caráter. Enfim, um portfólio simples, resumido, com os acessórios necessários para um contato posterior, caso eu optasse por eleger o seu nome ao cargo vago na empresa da qual exatos vinte anos tenho sido o insubstituível diretor de recursos humanos. Aconteceu que junto com a pequena apresentação por você trazida, veio algo mais forte embutido no contexto. Na verdade, de roldão, caiu de dentro do envelope rosa, um elo forte, mais robusto que a sua própria vontade de querer trabalhar.

Diria que junto com aquela folha de papel, um perfume inebriante (cuja essência entrou pela sala) se fez mais fornido (*1). Grudou nas paredes. Em contínuo, aderiu aos quadros, se anexou aos móveis e, deles, partiu direto se “adjuntando” (*2) para dentro de mim, indo, por consequência, se alojar sorrateiro num lugarzinho secreto existente em meu âmago e também no centro nevrálgico do meu coração. Você deixou, melhor dito, não deixou... ficaram de você, pedacinhos de sua beleza entrelaçados com estilhaços do seu carisma. Igualmente fragmentos de sorrisos bonitos e indescritíveis permaneceram gravados na minha retina. De contrapeso, um mistério bucólico se projetou no ar, e junto, um segredo perene, um mimo cresceu imensamente a partir do momento em que, dado por encerrada a entrevista, você se levantou, me desejou um bom dia, sorriu brejeira e maviosa.

Em seguida, a sua beleza ímpar virou as costas e foi embora. Partiu, e quando me dei conta, percebi que o calor abrasante da sua presença havia se incrustrado em minhas entranhas. O seu cheiro de mulher se fez retido no HD da minha memória. E não foi só. O seu cheiro de fêmea à flor do cio, persistiu veemente, e, logo em seguida, se propagou ensandecendo o meu franzino de homem literalmente esfanicado (*3). A sua voz, ainda agora, tanto tempo passado, ouço, serena e calma, tranquila e deliciosa, “caliente” e fagueira nos meus sonhos, de onde, aliás, nunca mais consegui apagar. Digo tudo o que me vai na alma, nesse exato momento e, tal fato, jogado no ar, assim abertamente, tem o condão de extravasar de dentro da alma o que antes se fez convicção, porque depois daquela despedida, algo inusitado mudou os destinos e os rumos da minha vidinha pacata.

O meu “eu” passou a viver exclusivamente para fortalecer o seu absentismo (*4).  Lembro, dias depois, voltei a ligar e marcamos um apontamento, ou melhor, você me fez um convite que considerei excêntrico e original. Pediu que na sexta-feira, por volta do meio dia, fosse até a sua casa almoçar e, na oportunidade, conhecer a sua mãe. Pior que não resisti à tentação. Não é que não aguentei. Simplesmente não me furtei ao impulso incitante do chamamento. Fora de mim, alvoroçado pelo que sentia, me coloquei em brios de um sujeito sério e respeitoso e meu Deus, lá fui eu, embasbacado, lustrando as presas para o golpe da fera adormecida, caso atonasse. Brincadeira, modo de dizer. Apareci como combinado, de cara limpa, a única, aliás, que me acompanhou desde que me entendi por gente. Surgi assim como você em minha sala, exceto pelo atraso. Quase às duas da tarde, para o tal almoço. Demorasse mais um bocadinho, certamente mataria a sua mãe de fome e a Frigidaire azul dos tempos de Belchior de vergonha (*5).

Depois dos comes e bebes, sentamos na sala. Conversamos, tomamos café, lanchamos e, quase às dez horas da noite chegou a hora de tirar o time de campo.  Passado a magia do inaugural, na segunda-feira voltamos a renovar tudo o que havíamos feito. Lanchamos na padaria perto da empresa. Na terça-feira, você sumiu de vez. Não sei para onde. Escafedeu. Liguei por diversas vezes e ninguém atendeu, nem a sua mãe o telefone fixo. Nessa brincadeira infeliz, um mês se passou. Não mais tivemos contato, nem pessoalmente, nem por WhatsApp. Por esse motivo, bem por esse motivo, acredito, me favoreço com a nostalgia ingrata da sua dispersão. E, por ela, creio, permaneceu no ar, desde sempre, um vazio muito grande, um oco doentio que se tornou maior com o passar das horas e das semanas subsequentes.

Cinco meses hoje. Acabou. Agora entendo, a cabeça ainda doendo, os batimentos acelerados, todavia os pés firmes assentados no chão. Percebo, tudo o que vivemos em tão curto espaço de tempo, virou saudade. O que foi dito e o que não saiu pelas nossas bocas escancaradas, naqueles encontros me faz pensar que coloquei cupim na Santa Cruz. Sinto, em paralelo, no calor destilado da minha emoção, as risadas que demos, os abraços trocados, os beijos permutados, o amor disparatado dentro do carro na garagem da sua casa... me recordo sobremaneira, despindo a goles poucos, o seu corpo diante de uma expressão contumácia. Recapitulo as nossas pernas enclausuradas qual cadeado emperrado... enfim, final de tudo, nossos suores ajoujados como dois gatos selvagens brigando por um ratinho de esgoto. Tudo acabou em coisa alguma, atrelada numa sequência degenerativa que se transformou nessa lacuna enorme e de inconsequente solidão.

Tenho consciência que embarquei numa canoa furada e somente eu careço urgentemente de encerrar essa viagem. Colocar um ponto final definitivo bem sei, demanda, o mais depressa possível à minha consciência desequilibrada. Necessito antes que morra de nostalgia pelo silêncio iracundo (*6) que se perpetuou em derredor da minha vida, me restabelecer à normalidade. De resto, esquecer a sua vinda ao meu quadrado, ao meu mundo. Rasgar o seu currículo em pedacinhos e jogar no lixo o seu retrato. Apagar do meu celular os seus telefones, as conversas e mensagens que trocamos. Tenho que olvidar, igualmente esquecer a sua rua, o seu bairro, a sua mãe, a casa, o almoço, o lanche na padaria, o amor inesquecível que fizemos no banco traseiro do automóvel. Ou isso... ou, em patente hostil e nocivo, acabarei louco... um tresloucado varrido desorbitado e à mercê da própria imbecilidade.   
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* Notas de rodapé:
1 – Fornido: O mesmo que abastecido, robusto, corpulento
2 – Adjuntando: Aquilo que está próximo, contíguo, agregado
3 – Esfanicado: Despedaçado, esmigalhado, esfarrapado
4 – Absentismo: O que falta com seus deveres e obrigações
5 – Frigidaire: Geladeira, refrigerador
6 – Iracundo: Pessoa cheia de ira, encolerizado, violento


Fonte:
Texto e notas de rodapé enviados pelo autor.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 38

 

Humberto de Campos (As camisas)

Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D. Silvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, cetinosa. Apaixonada pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior e, tirando as dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:

- É assim?

- Não.

- É dessas, de seda, enfiadas de fita?

- Não.

- É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?

- Também não!

E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.

- Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?

D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:

- Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.

- Que cor? - indagou, solicita, a moça que o atendeu.

- Cor de rosa.

A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.

- Não são destas? - consultou.

- Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.

- Ah! Já sei! - exclamou a mocinha, sorrindo.

E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.

- Julieta!

Apareceu, em cima, no balaústre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.

- Manda-me dali, por favor - pediu - a caixa de camisas n. 8.645.

E, particularizando, alto:

- Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?

Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

XXI Concurso de Trovas do CTS/UBT Seção Caicó-RN (Trovas Premiadas)


ÂMBITO NACIONAL
TEMA: Labirinto (s)

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NOVO TROVADOR
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1º lugar
José Osmar Rios Macedo
Feira de Santana – BA

Repica suave o sino
da minha infância perdida.
São curvas do meu destino
Nos labirintos da vida.
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2º lugar
Terezinha de Jesus Garcia Ferreira
Campo Grande - MS

Nos labirintos da vida,
me perdi e me encontrei.
Sigo em frente, destemida
e a vitória alcançarei!!!!
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3º lugar
Ademarcos Dantas Santana
Nossa Senhora Aparecida - SE

Se o valente coração
está preso pelo instinto,
escute a voz da razão
pra sair do labirinto.
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4º lugar
Lucca Lopes Dias Santos
Anápolis – GO

Transborda, com muito alento,
o grande temor que sinto
de cada ressentimento
prender-me em seu labirinto.
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5º lugar
Dulce Rocha de Matos
Niterói - RJ

Nos labirintos da vida,
muitas vezes tropecei,
mas nos seus braços querida,
os meus sonhos realizei
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ÂMBITO NACIONAL
TEMA: Labirinto(s)

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VETERANOS
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1º Lugar
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo – SP

Sem chão, sem rumo, a mãe chora
e o fim de um fim a Deus roga,
por ver o filho indo embora
nos labirintos da droga!...
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2º Lugar
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes – PR

Em labirintos, perdida
por seu amor que avassala,
sei que existe uma saída...
mas, nem penso em procurá-la!
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3º Lugar
João Batista Vasconcelos
Nova Friburgo – RJ

Suplício é ver os teus braços
no labirinto do adeus,
fugindo dos meus abraços,
fingindo que não são teus…
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4º Lugar
Ariete Regina Correia
Rio de Janeiro – RJ

Tamanha saudade eu sinto,
que ao cruzar tempo e distância,
te encontrei no labirinto
das ruas da minha infância.
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5º Lugar
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo – RJ

Eu e tu somos tão sós,
de tal maneira, que sinto
que o ciúme faz de nós
dois cegos num labirinto...

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 6º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba – SP

Na nossa cama esse vão
entre nós é um labirinto
onde a insônia dá plantão,
velando um desejo extinto...
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7º Lugar
Renata Paccola
São Paulo – SP

No labirinto da vida
nem sempre há portas abertas,
somente encontra saída
quem faz as escolhas certas!
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8º Lugar
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG

Caminhar por esta vida
sem a fé que nos conduz
é feito achar a saída
de um labirinto sem luz.
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9º Lugar
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba – PR

Nos labirintos sombrios,
o meu sonho se perdeu,
enfrentando desafios,
eu procuro quem sou eu.
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10º Lugar
Cléber Roberto de Oliveira
São João de Meriti – RJ

Enredando-os com enganos,
cruel Mundo, atrais e jogas
novos “farrapos” humanos
no labirinto das drogas!...
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11º Lugar
Andra Valladares
Vila Velha – ES

Nas sendas do inconsciente,
amo-te em sonhos, não minto.
Perdendo-me... ardentemente...
neste interno labirinto.
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12º Lugar
Lothar Bazanella
São Paulo – SP

Nos labirintos da vida,
andei muito tempo a esmo.
E por não achar saída,
Acabei preso em mim mesmo.
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13º Lugar
Antônio Accioly
Nova Friburgo – RJ

O peso desse cansaço
que vive dentro de mim…
Faz de mim um longo traço
de um labirinto sem fim!
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14º Lugar
Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro – RJ

Nos labirintos da vida
sigo em busca dos teus braços
e, quanto mais dura a lida,
mais persevero em meus passos.
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15º Lugar
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte – MG

A tristeza se arrefece
e as mazelas eu transponho
na ladainha da prece,
no labirinto do sonho.
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TEMA: Abrigo(s)

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ESTADUAL (RN)
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1º Lugar:
Marcos Antonio Campos
Natal/RN

Vejo na tela as entranhas,
no abrigo o filho auscultado,
nas imagens tão estranhas
pulsa o rebento esperado.
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2º Lugar:
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN

Voltei ao teto sem forro...
Doeu ver, no velho abrigo,
as ossadas do cachorro
que foi meu melhor amigo.
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3º Lugar:
Francisco Gabriel
Natal/RN

Se outro amor não me consola,
sem temer novos fracassos,
eu quero, até por esmola,
ter o abrigo dos teus braços.
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4º Lugar:
Lucélia Santos
Patu/RN

Coração dilacerado,
amargurado e tristonho...
Abrigo desmoronado,
contendo um resto de sonho.
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5º Lugar:
Professor Garcia
Caicó/RN

Teu ventre, mãe, foi meu ninho
e abrigo dos teus abraços,
onde aprendi, com carinho,
a dar meus primeiros passos!
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6º Lugar:
Eva Yanni de Araújo Garcia
Caicó/RN

Mãe, em sua perfeição,
é o abrigo de outro ser,
que pulsa em seu coração
e outra vida faz nascer!
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7º Lugar:
Rozanni Garcia
Caicó/RN

Sem saber o que há de vir,
num abrigo de ilusões...
Há pessoas a sorrir,
perdidas nas multidões.
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8º Lugar:
Edson de Paiva
Rafael Godeiro/RN

Não tem frio que um mendigo
passe em tenebroso inverno,
que não cesse em um abrigo
quente de um colo materno.
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9º Lugar:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley
Natal/RN

No seu viver, lancinante,
leva a solidão, consigo,
é um mísero, constante,
que tem o chão, como abrigo...
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10º Lugar:
Professor Maia
Caicó/RN

Meu coração safenado,
vítima, do teu castigo;
agora, recuperado,
não quer mais te dar abrigo.
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11º Lugar:
Hélio Pedro Souza
Natal/RN

Nas tempestades da vida,
dentre as fugas que persigo,  
quando não há mais saída
em mim mesmo é que me abrigo.
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12º Lugar:
Mara Melinni
Caicó/RN

A fé que guia os meus passos
e não me deixa sozinho,
é abrigo, nos meus fracassos,
e é clareza, em meu caminho!
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13º Lugar:
Hélio Alexandre Silveira e Souza
Natal/RN

Quem vence a sombra e o castigo
da conduta interesseira
encontra luzes no abrigo  
da amizade verdadeira.
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14º Lugar:
Veridiana Jácome
Messias Targino/RN

Construindo-se uma vida,
sendo humilde e fraternal,
pode-se encontrar guarida
no abrigo celestial.
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15º Lugar:
Ieda Lima
Caicó/RN

Vovó de colo macio,
perfume, candura, afeto:
Abrigo, dias a fio...
Saudade eterna do neto.

Fonte:
Prof. Garcia
Presidente da CTS/UBT Seção Caicó-RN