quinta-feira, 1 de junho de 2023

Irmãos Grimm (O tico-tico e o urso)

Certa vez, num belo dia de verão, um urso e um lobo saíram a passear pela  floresta. ouvindo o canto de uma ave, o urso disse:

- Irmão lobo, que pássaro é esse que canta bonito?

- É o rei das aves, -disse o lobo - diante dele temos de nos curvar.

O passarinho era um tico-tico.

- Sendo assim, - falou o urso - gostaria de ver o palácio real. Leva-me até lá.

- Isso não é tão fácil assim. - respondeu-lhe o lobo - Terás de esperar até que venha Sua Majestade a rainha.

Pouco depois apareceu a rainha, seguida do rei, trazendo no bico a comida para seus filhinhos.

O urso teria gostado de ir logo atrás, mas o lobo segurou-o pelo braço e lhe disse:

- Não! Agora terás de esperar até que o senhor rei e a senhora rainha tenham saído.

Tomaram nota do lugar onde estava o ninho e se afastaram. Mas o urso não se conformou com a espera. Queria ver, o quanto antes o palácio real e, pouco depois, voltaram lá novamente. O rei e a rainha estavam fora e ele resolveu dar uma espiada no ninho. Viu lá dentro uns cinco ou seis filhotes.

- Ah! então é este o palácio real?! - exclamou o urso. - Mas que palácio mais à toa! E vocês também não são príncipes; não passam de uns embromadores!

Quando os tico-tiquinhos ouviram aquilo, ficaram furiosos e gritaram:

- Não, não somos nenhum embromadores! Nossos pais são gente muito direita. Você vai nos pagar, seu urso mentiroso!

O urso e o lobo deram volta, assustados, e foram sentar-se nas suas cavernas.

Os pequenos tico-ticos, porém, continuaram gritando, fazendo uma algazarra dos diabos. Quando seus pais trouxeram a comida, eles declararam:

- Não tocaremos nem numa perninha de mosca, estamos dispostos até a morrer de fome, enquanto não ficar provado se somos ou não uns embromadores. O urso esteve aqui e nos disse uma porção de desaforos.

- Fiquem descansados, - disse o velho rei - que eu vou tirar isso a limpo.

Ele e a senhora rainha saíram voando até à entrada da caverna do urso e o rei gritou:

- Velho resmungão! Por que insultaste meus filhos? Isso te sairá caro. Vai dar numa guerra tremenda!

E assim ficou declarada a guerra ao urso. E ele então chamou em seu auxílio todos os quadrúpedes: o boi, o burro, o veado, o tigre e todos os demais que andam de quatro pés por este mundo em fora. O tico-tico, por sua vez, convocou tudo o que voa. Não só os pássaros grandes e pequenos, mas também os mosquitos, marimbondos, abelhas e moscas tiveram de acudir.

Quando chegou a data em que a guerra deveria começar, o tico-tico enviou seus espias para descobrir quem era o general comandante das tropas inimigas. O mosquito, que era o mais esperto, saiu pelo mato onde estavam reunidos os adversários e escondeu-se entre as folhagens da árvore em cuja sombra os inimigos discutiam os planos de guerra. Ali estava o urso, que chamou a raposa e lhe disse:

- Raposa, tu és o mais esperto de todos os bichos. Quero que sejas o nosso general. É preciso que no guies durante a batalha.

- Bem, - disse a raposa - mas que senha combinaremos, para eu dar as ordens a vocês?

Ninguém atinava com uma senha que o inimigo não pudesse descobrir. Aí a raposa continuou falando:

- Tenho uma bela cauda  comprida e bem peluda, que se parece com um penacho vermelho. Se eu a  mantiver em pé, será sinal de que tudo corre bem, e vocês deverão continuar avançando. Mas se eu abaixar a cauda, saiam disparando o mais depressa possível.

Quando o mosquito ouviu aquela combinação, regressou voando e contou tudo, direitinho ao tico-tico.

Na madrugada em que seria travada a batalha, via-se, de longe, o exército dos quadrúpedes correr em grande velocidade, fazendo um barulhão que estremecia a terra. O tico-tico, por sua parte, vinha pelo ar, à frente de seu exército, em tremenda algazarra; era um gritar e um zumbir que dava medo. E os dois exércitos investiram com furor.

Aí então o tico-tico enviou o marimbondo, com ordem de ficar embaixo do rabo da raposa e de picá-la com toda a força que tinha. Na primeira ferroada a raposa estremeceu e levantou uma perna. Mas resistiu, mantendo a cauda de em pé. A segunda picada a obrigou a abaixá-la um momento e, à terceira, não podendo mais aguentar a dor soltou um berro e meteu o rabo entre as pernas . Quando os animais viram o sinal, acreditaram que tudo estava perdido e começaram a fuga, procurando cada qual esconder-se em suas covas. E assim as aves ganharam a batalha.

O senhor rei e a senhora rainha voaram, então, ao ninho dos seus filhotes e lhes disseram:

- Alegrem-se, pequenos; comam e bebam à vontade. Ganhamos a guerra!

Mas os filhotes replicaram:

- Não comeremos até que o urso venha ao nosso ninho pedir desculpas e reconheça que não somos impostores.

O tico-tico voou até a gruta do urso e gritou na entrada:

- Urso resmungão, tens de ir até o ninho de meus filhos, pedir-lhes perdão e dizer que são crianças direitinhas; do contrário, teremos de quebrar todos esses teus ossos!

O urso, assustado, apressou-se em ir apresentar desculpas. Só então os pequenos tico-ticos ficaram satisfeitos, comeram e beberam como nunca e ficaram festejando até uma hora em que as crianças já deviam estar deitadas.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Lucy Hay (Como escrever e publicar um livro) – 1 –

Escrever um livro e publicá-lo não é uma tarefa fácil. Mas com dedicação suficiente, algumas pessoas para ajudarem, como editores e agentes, e sua mente criativa, você pode conseguir. Comece definindo metas diárias que possa atingir. Depois que finalmente tiver um livro, veja suas opções de publicação. Seja realista quanto às suas expectativas. O processo deve ser divertido, não oneroso. Ser publicado não é tudo o que há no campo da escrita. Divirta-se com o que está fazendo!

ESCREVENDO SEU LIVRO

1. Comece a formar ideias.

Anote algumas delas e depois selecione as que quiser.

Algumas pessoas conseguem começar a escrever com apenas uma frase como inspiração. Outras passam meses ou anos pensando em uma história antes de colocar uma única palavra que seja no papel. Não importa que tipo de escritor você é; o truque é seguir uma ideia até o
fim.

Stephen King, um autor famoso, declarou que não anota as ideias em um caderno. Para ele, "um caderno de escritor é a melhor maneira de imortalizar ideias ruins". Isso não significa que você não deva colocar as ideias em um caderno que levar por aí. Se esse método funcionar para você, siga-o, porém tome cuidado com o que vai anotar. Pergunte a si mesmo se essa ideia seria boa o bastante para ser lembrada no dia seguinte, se não fosse anotada.

Depois que encontrar inspiração para uma ideia que quer desenvolver, comece a escrever.

Não se preocupe com os erros; você pode corrigir sua escrita mais tarde. As melhores histórias são produzidas quando se continua a escrever sem olhar para a tela e ficar obcecado com cada errinho. Se você ficar encarando a tela, é provável que queira alterar tudo na hora em vez de continuar a história.

Ao escrever um livro e esperar publicá-lo, você produzirá muitos rascunhos antes dele estar pronto para ser enviado. Alguns deles provavelmente farão grandes mudanças na sua história, mas no começo você só está tentando construir um mundo e colocar as ideias no papel ou na tela.

Concentre-se em construir os personagens. Certos livros têm foco no enredo, o que não é um problema. Mas geralmente, as pessoas querem ler aqueles que tratam mesmo das personagens e da importância da situação na qual você as coloca. Embora o enredo faça a história seguir, são os momentos entre as personagens que vendem um livro. Não importa se você está escrevendo uma fantasia, como Harry Potter, ou um romance como o "Liberdade", de Jonathan Franzen.

Concentre-se em sobre "quem" você está escrevendo. O "quando", o "quê", o "onde" e o "por quê" virão mais naturalmente.

2. Defina objetivos de escrita diários.

Não deverá haver um limite do quanto você pode escrever por dia, porém defina um mínimo para ajudá-lo a se concentrar na história.

Não importa se sua meta é 300 palavras por dia ou uma hora, ela vai ajudá-lo a se manter no caminho. Esse número não é muito, mas pode ser ótimo para começar. Caso você seja novo na escrita ou muito ocupado, dê a si mesmo um objetivo menor que possa alcançar facilmente.

Os objetivos maiores são bem mais difíceis de alcançar e muitas vezes farão com que você nem escreva. É necessário dar um passo de cada vez para chegar a um fim maior.

Você pode aumentar sua meta diária conforme avançar ou se tiver mais tempo livre para escrever. Só atenha-se a ela. Mesmo que se sinta travado em algum ponto do texto, faça um esforço para alcançar seu objetivo. Você nunca sabe quando a inspiração vai chegar.

Trabalhe em um local quieto ou vazio. Encontrar uma área silenciosa onde você possa se concentrar e que possa transformar em sua não tem preço para a escrita. Mesmo que escreva em uma cafeteria, encontre um canto onde não terá muitas distrações.

3. Mantenha-se diligente.

Muitos escritores começam bem, mas logo se distraem, ficam frustrados com o processo lento ou se entediam. Uma das melhores e mais simples maneiras de evitar esse problema é simplesmente sentar na cadeira.

Seguir sua meta diária e atingi-la ajudará você a se manter no caminho certo. O ato de sentar-se e começar a trabalhar ajudará a transformar o objetivo em uma realidade.

Procure ter um horário definido para escrever diariamente, além de uma meta diária. John Grisham já publicou muitos best-sellers e começou sua carreira de escritor enquanto era advogado. Ele acordava cedo todos os dias e produzia uma página.

Transforme a escrita em um vício com o qual não possa parar. Encontre um local único e escreva todos os dias no mesmo horário.

4. Obtenha um feedback precoce.

Ainda que prefira proteger seu trabalho e mantê-lo escondido até que ele esteja pronto, não o faça. Busque um feedback frequente e precoce da sua escrita vindo de pessoas que seriam honestas com você.

Se ainda não fizer parte de uma, considere entrar para uma oficina de escritores local. Esses grupos ajudarão você a tornar suas ideias vivas, lhe darão um feedback e manterão você trabalhando.

Use a internet. Caso esteja nervoso quanto a mostrar seu trabalho a alguém conhecido, encontre um fórum on-line onde possa obter um retorno e trabalhar com as ideias. Locais como o Reddit.com são opções para você conseguir ajuda com seu trabalho.
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Lucy V. Hay é uma autora, roteirista e blogueira que ajuda outros escritores através de workshops, cursos e de seu blog, Bang2Write. Lucy é produtora de duas séries de suspense britânicas e seu romance de estreia, "The Other Twin', está sendo adaptado pela Free@Last TV, que também produziu a série indicada ao Emmy "Agatha Raisin".
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continua…

Fonte:
https://pt.wikihow.com/Escrever-e-Publicar-um-Livro

terça-feira, 30 de maio de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 25

 

Sammis Reachers (De quando fomos desafiar o famigerado Lobão para um jogo de bolas de gude)

Confesso uma vergonha: Nunca fui bom com atividades ou brincadeiras manuais, e mesmo com esportes. Não me interessava por soltar papagaio (que aqui chamamos de cafifa); nunca aprendi direito a jogar bolinha de gude, rodar pião, sequer jogar um bilboquê! De tal desacerto nem eu sei o motivo. Talvez fosse, além de uma inabilidade nata, preguiça em aprender.

De toda forma, a bola de gude era uma febre difícil de ser vencida. Eu queria estar na rua, queria companhia, e assim, mesmo sem ser um jogador, eu me dispunha acompanhar outros jogadores em suas disputas, na falta de ter algo melhor para fazer.

Renato era um grande “fominha” das bolinhas de vidro, e um formidável jogador. A coisa nestas paragens era tão evoluída que por vezes os melhores jogadores do bairro agiam como no velho oeste: Um desafiava o outro, e marcava hora e tudo para a troca de tiros, perdão, de
boladas de gude.

Foi numa noite úmida de verão que Renato me chamou para acompanhá-lo até a casa de um elemento que eu conhecia apenas de vista, até porque ele era mais velho que nós, um mal encarado a quem chamavam de Lobão – sim, como o cantor de rock, popular naqueles fins da década de oitenta.

Chegados em frente da casa do bruto, começamos a chamar. Chama que chama e o tal Lobão, que de lobo parecia não ter nada pois pelo visto era quase surdo, não respondia. Continuamos a chamança, a chamação, o chamado, a chamadeira ou que seja, e nada do lupino pilantra dar as caras. Eu já queria ir embora, mas Renato, fominha, queria jogo, queria duelo, queria aumentar sua coleta daquelas inúteis bolas de vidro.

Lobão morava num quintal de duas casinhas, quintal cuja frente era protegida por uma mureta, coisa de um metro, metro e vinte de altura, tijolos assentados sem chapisco nem reboco. Ninguém dava sinal de dentro da casinha, embora pudéssemos ouvir até a TV ligada, e resolvemos nos achegar à mureta para berrar com mais gosto. O que se seguiu foi um processo contínuo e fulminante: Apenas encostamos na mureta, para melhor chamar o tal lobo surdo, e a maldita veio abaixo, desmontando-se como se feita de pecinhas de Lego, como se o cimento na junção dos tijolos fosse barro...

No mesmo instante, como se sacado de uma cartola de Mandrake, o lobo pulou para fora da toca, furioso como um diabo, xingando nossas mães, avós e irmãs.

Dessa vez não deu pra fugir, e olha que de minha parte cheguei a fazer menção de disparar para casa. Ele sabia onde morávamos e iria com certeza aparecer por lá. E agora? Chora daqui, se desculpa dali, e a solução imposta pelo grandão foi que reerguessemos o muro: Ali mesmo, naquele impropício momento, no escuro abafado duma noite de verão.

Nas praticamente duas horas seguintes, eu e Renato fomos feitos de pedreiros, trôpegos, confusos, aloprados – montando tijolos uns sobre os outros, sem massa nem nada, apenas “no encaixe” como num jogo de Lego mesmo – sob o olhar furioso do Lobo mau.

Mais uma vez, o prejuízo da trupe ficou barato: Se meus pais fossem acionados, eu levaria mais uma coça. Não teve jogatina naquela noite: Após concluirmos a cansativa montagem, fomos honrados com um belo cascudo cada um, e voltamos para casa em silêncio.

Amanhã é sempre um outro dia…
Fonte:
Enviado pelo autor .
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LV


REZA
 
MOTE:
Na hora em que a terra dorme
enrolada em frios véus,
eu ouço uma reza enorme
enchendo o abismo dos céus.

Castro Alves
(Curralinho/BA, 1847-1871, Salvador/BA)


GLOSA:
Na hora em que a terra dorme,
e o silêncio toma conta,
meu pensamento disforme,
com o silêncio se afronta.
 
E minha alma, assim, tristonha,
enrolada em frios véus
sente, então, grande vergonha
como o mais triste dos réus.
 
Nesse silêncio uniforme
surgem vozes sonolentas:
- Eu ouço uma reza enorme-
que mais parecem tormentas.
 
E, às vezes, em oração,
quebram os silêncios meus,
e seguem com emoção
enchendo o abismo dos céus.
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MULHERES...
 
MOTE:
Vêm as rugas...e, no entanto,
a mulher não se intimida...
A perda externa do encanto
não desencanta uma vida!

Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)


GLOSA:
Vêm as rugas...e, no entanto,
o sonho não envelhece,
fica mais forte, garanto,
traz a força de uma prece!
 
Sonhar, traz felicidade!
A mulher não se intimida...
pois sonha com suavidade
em qualquer tempo da vida!
 
Jamais derrama seu pranto
vendo a velhice chegar...
A perda externa do encanto
não vai sua alma abalar!
 
Uma mulher de verdade,
não será, nunca vencida,
mesmo o avançado da idade,
não desencanta uma vida!
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PALHAÇO
 
MOTE:
Vencendo todo o cansaço,
decerto gargalharei,
pois hoje sou um palhaço,
dos sonhos que não sonhei!

Giselda Medeiros
(Fortaleza/CE)


GLOSA:
Vencendo todo o cansaço,
da tristeza que angustia,
vou seguindo, passo a passo,
e talvez, até sorria...
 
Se, de fato, eu conseguir,
decerto gargalharei,
pois o tempo é de sorrir
por tudo quanto chorei!
 
Cantarolar é o que eu faço
mundo afora, sempre, a esmo,
pois hoje sou um palhaço,
um palhaço de mim mesmo!
 
Sigo, então, a minha estrada
e feliz sei que serei,
pois me encontro compensada
dos sonhos que não sonhei!
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MAR... MONSTRO SAGRADO...
 
MOTE:
O mar é monstro sagrado,
mas fragilmente desmaia,
quando beija apaixonado
os lábios quentes da praia!

José Lucas de Barros
(Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN)


GLOSA:
O mar é monstro sagrado,
com suas ondas enormes
por ventos, transfigurado,
provoca visões disformes!
 
É imenso, é potente, é forte,
mas facilmente desmaia,
bendizendo a sua sorte,
mais um doce beijo ensaia!
 
Fica o mar todo excitado
no  vaivém de suas ondas,
quando beija apaixonado
os grãos de areia, nas rondas!
 
Em êxtase, quer ficar,
como espontânea cobaia,
para, então, sempre  beijar
os lábios quentes da praia!
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ROSÁRIO DE LEMBRANÇAS
 
MOTE:
Sozinho, ao fim das andanças,
desfio nas madrugadas
meu rosário de lembranças
de ousadias não tentadas...

Sérgio Bernardo
(Rio de Janeiro/RJ)


GLOSA:
Sozinho, ao fim das andanças,
em completa solidão,
só tenho desesperanças
no meu pobre coração!
 
Assim, tão só e infeliz
desfio nas madrugadas
o que eu sonhei e não fiz,
num tudo cheio de nadas!
 
Nessas tristes remembranças
rezo do começo ao fim
meu rosário de lembranças
e sinto pena de mim!
 
Passo a noite a relembrar,
em  horas enfeitiçadas,
que minha vida é um mar
de ousadias não tentadas…
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Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Lima Barreto (O meu carnaval)

— Mas foste mesmo recrutado?

— Fui; e comi fogo que não foi graça.

— Como foi a história?

— Aproximava-se o Carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do largo do Rio Comprido. Ao chegar à oficina, na rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas-d’água de um prédio novo”. Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados. A farda, blusa e calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito...

— Que é que eles te disseram?

— O cabo veio direito a mim e perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que você vai?”. Disse-lhe; mas a feroz autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à presença do senhor capitão Lulu”. “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse comigo, esse paisano ia já”. E fez menção de desembainhar um enorme sabre de cavalaria que tinha à cinta.

— Mas que soldados eram estes?

— Não estás vendo logo? Eram guardas nacionais.

— Percebo. Foste?

— Fui. Que remédio?

— Que te fizeram?

— Vou contar-te tintim por tintim. Levaram-me à presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o seria intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você é um reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa servir a sua pátria”. Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso ser desertor?”. O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa, mas perguntou-me: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde é que você mora?”. Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina”. Isto pareceu-lhe contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por fim, falou-me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo qualificado neste batalhão — 01.723.436, regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar de reiteradas intimações, você não se tem apresentado. Está preso disciplinarmente por oito dias”. Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, a tremer. “Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!”

— Puseram-te na cadeia?

— Não. Revistaram-me, tiraram-me as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo na presença do marcial Lulu. Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do regimento”. Após o quê, levaram-me para um outro compartimento, onde me fizeram despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia, a única blusa que me chegava tinha as divisas de cabo. Não quiseram arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me pusessem em serviço árduo.

— Qual foi?

— Meteram-me uma enxada na mão e fizeram-me capinar a chácara durante quase oito dias,
passando fome.

— Como?

— A comida era café ralo e pão duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito malfeito, no qual encontrar um naco de carne-seca era uma raridade de fazer alegria até chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do Carnaval, descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz vestindo em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e esperei as ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor que capturei”. O comandante, recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” O capitão Lulu respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do Carnaval”. O coronel ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!”. À tarde, no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar e aconselhou-me: “Você me parece boa pessoa, disciplinada. Procede muito bem. ‘A submissão é a base do aperfeiçoamento’, disse Victor Hugo. Se sou oficial, se cheguei à posição em que estou, devo não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus superiores. Você veio, acompanhou-me; porte-se bem que não terá de arrepender-se”.

— O que era esse tipo, além de guarda nacional?

— Era servente do Senado.

— Que magnata!

— Não te rias. À hora marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco mil réis, para despesas; mas não os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade de Lulu, a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao largo do Rio Comprido, saltei para tomar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de espanto, me disse:

“Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’!”. “Por quê?” “Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito isto, quando fui preso imediatamente por um polícia que me levou à delegacia onde não me quiseram ouvir e me meteram no xadrez até Quarta-feira de Cinzas.

Está aí em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu Carnaval, naquele ano.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Aparecido Raimundo de Souza (Apagão)

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que aquilo acontecia com ele. Vinha pela rua, cabisbaixo, fumando seu cigarrinho. De repente, uma jovem dos cabelos compridos, pintados de vermelho, um sorriso encantador no rosto de princesa, lhe estancou os passos no exato momento em que parava numa banca para comprar um jornal:

— Garcia, há quanto tempo!

Garcia olhou para a pessoa que lhe chamava pelo nome e tentou se lembrar de onde a conhecia:

— Verdade. Faz bastante tempo mesmo!

— Por que não foi mais lá em casa?

— Falta de tempo.

Naquele momento, pela segunda vez, falhava a memória. Garcia não conseguia se recordar daquela moça bonita, parada, ali, na sua frente, os dentes muito brancos, um corpo perfeito cheio de curvas pecaminosas.

Coisa de uma semana, Garcia vinha passando por esse desconforto. As pessoas se encontravam com ele e o desditoso não conseguia atinar de onde as tinha visto anteriormente. Por mais que se esforçasse, dava um branco. Zerava tudo dentro da sua cachola. Pensou com seus botões:

— Pai Amado! Agora, com essa joia rara, a coisa se repete. Que pedaço de mau caminho, essa guria e eu não faço a mínima ideia de onde a vi em vezes anteriores...

A beldade, sem se dar conta do problema, seguiu adiante:

— Como vai dona Bárbara?

Dona Bárbara era a mãe dele:

— Bem, graças a Deus.

— E seu pai, o velho Juvenal?

— Firme, forte e rijo.

— E a menina Glorinha?

— Casou!

— Casou? Nossa, não diga! Acaso com Bartolomeu?

— Não, com o Zeca.

— Com o Zeca?

— Pois é. Para você ver como são as coisas.

— E o Bartolomeu?

— Escafedeu do pedaço.

— Nossa! Glorinha casou com o Zeca! Quem diria!...

Garcia seguia dissimulando a aflição que o invadia. Estava passado. Realmente, não recordava daquela figura tão fogosamente bela e exuberante.

Ficava chato mostrar a sua estupidez, assim, logo no inicio do encontro. Seria vexatório confessar a gafe. Seu velho pai, vivia dizendo que “não havia nada mais desgastante que um sujeito esquecer uma pessoa tão cativante, ainda mais se ela fosse dona de um rosto literalmente chamativo e sensual”. E aquele bem ali diante de seu nariz tirava qualquer um do sério. Puxou numa derradeira tentativa pela droga da mente. A Deusa de Vênus conhecia a sua família em peso. A mãe, o pai, a irmã, os namorados da irmã. E ele feito um panaca, abobalhado, se mordia tentando resgatar uma nesga de lembrança dentro da amnésia repentina (ou algo parecido) insistindo com veemência em lhe atingir os brios de maneira tão rudemente cruel:

— Valha-me Jesus Cristo!

Estava claro, ela não se enganara. Ele é que se passava por um perfeito idiota. Um babaca que não conseguia alforriar do fundo de seu âmago a figura estonteante daquela maravilha bem ali ao alcance das suas mãos:

— Pelo que estou vendo você não conseguiu deixar o vício.

— Que vício?

— O do cigarro.

— Bem que tentei.

— Lembro que por um bom tempo, você obteve êxito.

— É verdade.

— E por que voltou a fumar?

— Difícil explicar. Na verdade, nem me lembrava que alguma vez consegui deixar o tabagismo. Certamente fraqueza.

— Você sempre foi um homem forte. Demonstrou essa qualidade quando a Margarida...

Por tudo quanto existia de sagrado. A garota lembrava da Margarida. Até da Margarida, sua primeira namorada, a infeliz não se esquecera. Seu primeiro amor. Com a Margarida o Garcia noivou, quase casou. Largou da Margarida pela Bete:

— Por falar nela, tem visto?

— Visto quem? A Margarida ou a Bete, que veio depois dela?

— A Margarida.

— Nunca mais me foi dado esse prazer.

— Soube que se casou.

— Ah, é verdade. Me falaram.

— E você, continua só?

— Ainda.

— Desde a sua formatura?

— Sim. Desde a minha formatura...

Garcia queria sair às carreiras, pedir socorro. Gritar, espernear, chorar. Mas não podia. Ficava chato declarar aquela moça tão meiga e gentil que não lembrava da Margarida, ou via outra, da Bete, aliás, não lhe vinha à cuca, coisa alguma. Tampouco a sua interlocutora, ali, a seu lado, ele fazia ideia de quem se tratava. Seria uma tremenda falta de educação e das grandes.

Atarantado com seus problemas, deu uma última tragada no cigarro. Jogou a guimba no chão e pisou em cima, com a ponta do sapato, para amassar. Voltou a consultar a memória:

— Meu Pai Eterno, quem é essa fofura?  

Talvez, se perguntasse o nome tudo se esclarecesse:

— Escuta, eu não sei de quem se trata a sua...

Antes que terminasse o que pretendia, a estrangeira o interrompeu bruscamente:

—... Garcia, não me diga que continua só desde a sua formatura? Espere um pouco. Depois da Margarida pintou a Bete que lhe botou um par de chifres e depois, a Luzia. O que aconteceu com ela?

— Ela quem?

— A Luzia, ora bolas

— A Luzia morreu atropelada.

— E a Sandrinha do Miguel?

— Sandrinha foi para os Estados Unidos. Casou com um americano. Já é mãe de dois moleques. Quanto ao Miguel se ajuntou com uma sirigaita lá do bairro e ela está grávida de seis meses.

— Nossa!

— Vamos parar de falar de mim. Falemos de você.

— O que quer saber?

— O trivial. Casou?

— Está falando sério?

— Sim.

— Garcia, seu moleque. Isso lá é pergunta que me faça? Não acredito no que estou ouvindo... sinceramente! Depois de tudo que... vi... esquece... vá para o diabo que o carregue.

Sem se despedir, e visivelmente furiosa a inimitável virou as costas e deixou o Garcia de boca aberta, os olhos arregalados e um tremendo vazio rodando no embaralho de sua cabeça.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 2 –

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 84

As caminhadas são verdadeiras crônicas onde um mosaico de situações, de paisagens, de pensares são arrolados no espaço de tempo de uma hora ou pouco mais. Suficientes para que os olhos clínicos, assessorados pela caneta e o papel, apreendam os matizes do trecho.

A romaria começa registrando flores do casario que se estende até a mata logo adiante. E então as pandelícias do caminho - o riacho bombeando entre os verdes, o esquilo trêfego (
esperto) saltitando na galharia, o canto veraneiro do sabiá.

Adelante. O banhadinho das saracuras, o campito dos quero-queros, as ciliares fartas de flores silvestres. Aqui as araucárias, lá céu azul. A cascata cascateando . . .

O pequeno mundo é um vasto mundo, vívido, vigoroso, verdadeiro. Onde se anda a natureza é inspiração e poesia. E a vida de viandante lembra das palavras do poeta: " Vivo matizado de matizes. O viver é colorido".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Coelho Neto (A flauta e o sabiá)

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão (
verniz negro ou vermelho), jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, suspensa do teto, morava um sabiá.

Estando a sala em silêncio e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma volata (
sequência modulada de tons rapidamente executados).

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar (
rir com escárnio) no estojo, como a zombar do modulo cantor silvestre.

— De que te ris? – indaga o pássaro.

E a flauta, em resposta:

— Ora esta ! Pois tens coragem de lançar tais guinchos diante de mim ?

— E tu quem és? Ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Marsyas*, lutou com Apolo e venceu-o, por isso o deus, despeitado, imolou-o. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer. Eu sou um mísero sabiá da mata. Pobre de mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu ?

— Eu canto.

— O oficio rende pouco. Eu que o diga, que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, me não houvessem escravizado — se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta ! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante...?!

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. Ao ritmo dos meus delicados trilos bailam as damas, guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao luar. O meu canto é a harmoniosa Inspiração dos gênios da rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! Por que?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso lazer.

— Ah! É assim...?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga — modéstia à parte — vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia.

Assim, da tua vangloria há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não  se movem se os não amparam, não cantam se lhes não dão sopro, não sobem se os não empurram.

O sabiá voa e canta — vai à altura, porque tem asas; gorjeia, porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos.

Flautas, flautas . . . Cantas nos paços e nas catedrais. Pois vem daí a um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se o sabiá cantar e a flauta de prata no estojo de veludo... moita (fica calada)! Faltava-lhe o sopro.
= = = = = = = = = = = = = = = = =
* Marsyas = Na mitologia grega, Marsyas é um sátiro frígio, que passa a se considerar um músico tão perfeito que desafia Apolo para uma competição, sendo que o vencedor teria o direito de punir o perdedor. Apolo vence, Marsyas é amarrado a uma árvore e esfolado vivo. Do seu sangue, nasce o rio Marsyas, na Frígia. Algumas vezes, Marsyas é substituído por Pan, no episódio da competição com Apolo. O mito simboliza a superioridade da cultura grega (representada pela lira de Apolo) em relação à cultura da Ásia Menor (representada pela flauta de Marsyas). (wikipedia)

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 14

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Quem raiva de mim tiver,
grande paixão há de ter,
há de ladrar como cão,
mas sem lograr me morder.
= = = = = = = = = = =  

0 cachorro está latindo
lá pra banda do chiqueiro;
— Cala a boca, cachorrinho,
não sejas mexeriqueiro.
= = = = = = = = = = =  

Cachorro que late grosso
é bonito, quando acua.
Um amor, quando é de gosto,
ai, meu Deus, que coisa boa!
= = = = = = = = = = =  

Todo animal traiçoeiro
onde pastou, quer pastar:
Quando eu saio dos teus braços
é já pensando em voltar.
= = = = = = = = = = =  

Menina, minha menina,
como estás tão bonitinha...
No reino do céu se vejam
tua mãe, tua madrinha.
= = = = = = = = = = =  

A batata, quando nasce,
deita a raiz pelo chão.
Menina quando se deita
bota a mão no coração.
= = = = = = = = = = =  

Não tem confiança em si
estas meninas de agora...
Entregam-se, corpo e alma,
ao primeiro que as namora.
= = = = = = = = = = =  

Menina, aproveita o tempo,
quem espera, desespera,..
Olha que o tempo perdido
nunca mais se recupera...
= = = = = = = = = = =  

Menina não tenhas pressa
tua hora de chegar
Tu tens tempo de escolher,
vai com tempo e devagar...
= = = = = = = = = = =  

Estas meninas de agora
só querem é namorar.
Botam panelas no fogo
e não sabem temperar.
= = = = = = = = = = =  

Menina, rainha menina,
minha flor de cananeia,
tu nasceste neste mundo
pra seres minha teteia.
= = = = = = = = = = =  

Menina, diz-me o teu nome
e também tua morada,
eu tenho um cavalo gordo
e um galope não é nada...
= = = = = = = = = = =  

Menina da saia branca
já não falas com ninguém;
Quando a saia se romper,
fala comigo, meu bem.
= = = = = = = = = = =  

Esta menina faceira
com todos dizem que manga,
comigo é perder seu tempo
inda que chore pitanga!
= = = = = = = = = = =  

A pimentinha mordida
rabeia, desesperada,
e assim certa menina
quando fica despeitada.
= = = = = = = = = = =  

Lá se vai o sol entrando
deixando raios atrás.
Tanta morena bonita,
que pena eu não ser rapaz!
= = = = = = = = = = =  

Laranjeira ao pé da porta,
na cama me vai o cheiro.
Tanta mocinha bonita
Para mim que sou solteiro!
= = = = = = = = = = =  

No alto daquele morro,
passa boi, passa boiada,
também passa a moreninha
da trancinha cacheada.
= = = = = = = = = = =  

Morena, minha morena,
não tenhas pena do chão...
Tomara achar quem me diga
onde viu mais perfeição.
= = = = = = = = = = =  

Cajueiro pequenino,
carregadinho de flor,
eu também sou pequenina
carregadinha de amor...
= = = = = = = = = = =  

Moreninha, doce de ovos
não se come sem canela...
Quem é gente de bom gosto
não pode passar sem ela...
= = = = = = = = = = =  

0 teu rosto de morena
levemente tem a cor,
para o poder comparar
não encontro uma só flor.
= = = = = = = = = = =  

As morenas da Bahia
todas têm um certo quê,
temperam a vida da gente
como à moqueca o dendê.
= = = = = = = = = = =  

Morena, você me mata
com essa graça que tem;
Você fica criminosa
e eu sem você, meu bem!
= = = = = = = = = = =  

Uma morena bonita
não precisa mais rezar:
Basta o encanto que tem
pra sua alma se salvar.
= = = = = = = = = = =  

Menina quando eu te vi
despedir, sem me falar,
me fugiu a cor do rosto -
e o coração do lugar.
= = = = = = = = = = =  

Em mortalha de papel
fumo verde não fumega,
onde há moça bonita
meu coração não sossega.
= = = = = = = = = = =  

Quem me dera ser a seda,
depois da seda o cetim,
para andar de mão em mão,
As moças pegando em mim.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

A. A. de Assis (Bona > Bõa > Boa )

O til – o risquinho fanhoso – nada mais é que um pequenino “n”

Recentemente falei da cedilha. Um amigo carioca, Renato Alves, poeta e professor, chamou-me a atenção para outro sinal gráfico, o til (~), que tem igualmente uma historinha bem interessante.

O til – aquele risquinho fanhoso que parece uma pequena onda – é nada mais que um pequenino “n” – um n-zinho. Em espanhol ele é colocado em cima do “n” para produzir o som “nh”: “España, mañana. Em português é usado para nasalizar vogais: botão, corações.

O til acompanhou a evolução do nosso idioma. Uma das especulações a respeito diz que seus inventores foram uns monges copistas que trabalhavam em conventos na Espanha e em Portugal. Por alguma razão, costumavam colocar o “n” em cima da vogal anterior em palavras como “chão” (planus > chano > chão); “mão” (manus > mano > mão). Uma forma de abreviatura, mais ou menos como se faz hoje no internetês: pq, vc, ñ, bjs.

Na história da língua portuguesa há incontáveis exemplos de transformação do “n” em til. Lembremos alguns: cidadanus > cidadano > cidadão;  germanus > hermano > ermano > ermão > irmão; vulcanus > vulcão; canes > cães; panes > pães; leones > leões.

Em alguns casos, a evolução chegou à desnasalização: “bona” virou “bõa, que depois virou “boa”. Deu-se o mesmo com persona > persõa > pessoa; corona > corõa > coroa; plena > chena > cheia; arena > areia; luna > lua.

Ficou claro? Então tá. Porém, como um assunto puxa outro, vem-me à lembrança uma polêmica ainda não suficientemente resolvida, embora os gramáticos, para amenizar a briga, digam que as duas formas estão corretas: /Roráima/ ou /Rorãima/? Vamos conferir.

A fonética geralmente obedece às tendências naturais do nosso aparelho fonador, que por sua vez obedece à “lei do menor esforço” (lex minoris conatus). Por uma dessas tendências naturais, as consoantes nasais “m” e “n” contagiam a vogal que venha atrás delas. Assim é que, por exemplo, na palavra “cOmo” o primeiro “o” soa nasal, enquanto o segundo soa oral. Dá-se o mesmo com “drAma”, “trEme”, “sOno”, “pOmo”, ‘mÍni”, “hÚmus”, “mÚnus”. “Muito” talvez seja o único caso em que o “m” nasaliza a vogal posterior a ele.

Nos ditongos (vogal + semivogal), a consoante nasal nasaliza a vogal (o fonema mais forte): ”paina” /pãi-na/. Nos hiatos (vogal + vogal), é nasalizada a vogal mais próxima do “n” ou do “m”: “Janaína” /Ja-na-ÍN-na/, “Coimbra” /Co-IM-bra/.

Mas voltemos a Roraima (que significa “Montanha Verde”). Os roraimenses pronunciam /Roráima/, aliás amparados até numa norma estabelecida pela Assembleia Legislativa. Parece que em todo o Norte e Nordeste há também preferência por essa forma. Nas demais regiões, todavia, a pronúncia mais frequente tem sido /Rorãima/, tal como ocorre com “Bocaina” /Bocãina/, “faina” /fãina/, “aplaina” /aplãina/, “amaina” /amãina/, “andaime”  /andãime/ e outras tantas.  

Para concluir: você diz /bá-nã-na/ ou /bã-nã-na/? E chama o Jaime de /Jáime/ ou de /Jãime/?

Lembra-se do padre Zanettini? Ele chamava Dom Jaime de /Dom Jãime/.

Fonte:
Jornal do Povo – Maringá – 09.3.2023, obtido no facebook do autor

Minha Estante de Livros (Despertar dos Deuses, de Isaac Asimov)


Despertar dos Deuses (The Gods Themselves) é uma obra de Isaac Asimov, famoso escritor de ficção científica, publicada em 1972. O livro é divido em três passagens distintas que, apesar de fazerem parte da mesma narrativa, possuem muitas diferenças em sua estrutura.

O título do livro e o título de suas três partes teriam sido inspirados na citação de Friedrich Schiller (1759–1805): "Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão".

Enredo

O livro narra um estranho acontecimento, quando cientistas descobrem que uma amostra de Tungstênio-186 foi estranhamente trocada por outra de Plutônio-186. Acontece que o Plutônio-186 não é estável e nem mesmo possível, segundo as leis da física conhecidas, e por isso, em pouco tempo o elemento perde a sua estabilidade e começa a liberar radiação. O radioquímico Frederick Hallam cria a teoria de que este elemento teria vindo de um outro universo, onde as leis da física pudessem aceitar a existência do mesmo. O elemento ao chegar ao nosso universo seria capaz de se manter estável, por trazer parte de seu verdadeiro universo, mas com o tempo, o nosso universo conseguia fazer valer suas leis sobre ele e o Plutônio-186 se desestabilizava.

Através das experiências de trocas dos elementos, os cientistas recebem placas enviadas por seres deste "outro universo" (Universo Paralelo), onde eles descreviam como criar uma máquina que faria a troca de elementos dos dois lados, recebendo a Terra o Plutônio-186, e enviando para eles o Tungstênio-186 (assim como Plutônio-186 em nosso mundo, o Tungstênio-186 seria instável e radioativo no Para-Universo). Esta máquina (chamada de "Bomba Eletrônica") seria capaz assim de criar energia radioativa cíclica e infinita, para os dois lados.

Dr. Peter Lamont, que estava trabalhando em um artigo sobre a história da Bomba de Elétrons, chega a conclusão de que tal Bomba traria a ruína ao nosso universo. Com a troca constante de "leis" entre ambos os universos, suas regras se misturariam e tudo que faz o nosso universo funcionar como é, aos poucos se desestabilizaria. Isto foi previsto pelo Dr. Hallam, mas a prazos de bilhões de anos. De acordo com Denison, podia acontecer em menos de cem anos.

UM LIVRO, TRÊS HISTÓRIAS

1. Contra a estupidez...

A primeira parte narra a descoberta do Plutônio-186 e a criação da Bomba Eletrônica, sendo o Dr. Frederick Hallam aclamado como o pai do projeto. Mas o que parecia ser uma solução perfeita para os problemas de energia da Terra, poderia significar uma grande desgraça. Investigando os fatos e indivíduos envolvidos em torno da criação da Bomba Eletrônica, o jovem Dr. Peter Lamont chega a conclusão de que esta poderia significar a aniquilação do Universo. Ele passa a investigar a tradução das placas enviadas pelos seres do Universo Paralelo com a ajuda de um perito linguístico, Dr. Myron Bronowski. A situação complica-se quando começam a surgir placas com mensagens de que a Bomba seria perigosa, ao mesmo tempo que os esforços de Lamont em provar sua teoria da possível destruição não se veem reconhecidos.

2. ...Os próprios deuses...

A parte mais fantástica do livro, narra sobre o Universo Paralelo, um mundo habitado por seres fantásticos, de natureza completamente diferente da vida encontrada na Terra.

Estes Seres estariam divididos em 2 grupos em seu mundo, os "Suaves" e os "Duros".

Os Suaves são seres mais simples, de composição maleável, capazes de modificar suas formas (alguns até em formas gasosas). Os Suaves deviam se reunir em trindades (Tríades), sendo que cada ser da tríade possuía um tipo de personalidade que representava um dos 3 papéis existentes em seu mundo:

– Emocionais: eram a porção feminina da Tríade, os mais sutis e sensíveis, reunindo em si os sentimentos, emoções e preocupações.

– Parentais: representavam o lado instintivo da Tríade, responsáveis pela gestação, criação e educação dos filhos, a medida que nascem.

– Racionais: a parte intelectual do trio, com a capacidade de aprendizado, intelecto e raciocínio muito aguçados.

Os Duros representam a elite da sociedade destes Seres, possuindo seus corpos mais sólidos e consistentes, sendo inteligentíssimos e responsáveis pela evolução do mundo. Para os Suaves, os Duros eram dignos de todo respeito, e a origem deles dentro de sua espécie nunca foi uma coisa muito clara (este fato é explicado mais adiante nesta parte do livro).

Na História temos Dua, a Emocional, que fazia parte de uma Tríade com Odeen, um Racional e Tritt, um Parental. Dua era considerada uma Esquerda-Em, por ser uma Emocional com grande capacidade intelectual e por compreender os assuntos dos Racionais. No decorrer da história, Dua começa a tomar ciência sobre as verdadeiras intenções e implicações da Bomba Eletrônica, e se vê na tentativa de impedir o seu uso.

3. ...Disputam em vão?

O desfecho do livro é protagonizado pelo Dr. Benjamin Allan Denison (ex-colega de Frederick Hallam, e que foi ridicularizado por este, na época primeira da descoberta da amostra de Plutônio-186). Denison viaja até a Lua, procurando na colônia selenita um recomeço para sua carreira que fora destruída na Terra por Hallam. Lá conhece Selene, uma selenita que serve de guia a ele no diferente ambiente lunar. Logo, Denison vê-se novamente envolvido com os problemas da Bomba Eletrônica e se torna a peça chave para explicar as teorias que comprovam seu perigo e por elaborar uma possível solução para todo o problema.

Fonte:
Wikipedia

domingo, 28 de maio de 2023

Adega de Versos 106: Renato Alves

 

Hans Christian Andersen (O caminho espinhoso da glória)

A  velha lenda do "Caminho espinhoso da glória" fala-nos de um atirador que chegou, por fim, obter honras e dignidades, mas somente o alcançou depois de uma longa série de desgostos e combates perigosos. Ouvindo a lenda, quem não se lembrará do seu próprio caminho ignorado, mas cheio de espinhos, e dos inúmeros reveses que padeceu?

Lenda e realidade limitam uma com a outra: mas enquanto a lenda encontra aqui mesmo na terra a sua solução harmoniosa, a realidade aponta as mais das vezes para além da vida terrena - para as eras por vir, para a eternidade.

É a História Universal uma lanterna mágica que nos mostra em diapositivos, sobre o fundo sombrio do presente, de que maneira os benfeitores da humanidade , os mártires do gênio, peregrinam pelo caminho espinhoso da honra e da glória.

Vindo de todas as épocas, de todos os países, chega até nós o fulgor dessas imagens: e, ainda que rutilem por um só instante, cada uma delas representa uma vida inteira, uma vida de lutas e vitórias.

Vejamos, em um rápido volver de olhos, alguns dos mártires dessa multidão, que só se extinguirá quando o globo terrestre se desfizer em pó.

Lá está o anfiteatro completamente  cheio. Aristófanes, nas Nuvens, despeja torrentes de ironia e de escárnio sobre o povo. No palco é metido a ridículo, física e moralmente, o homem mais notável de Atenas, aquele que foi o esteio e amparo do povo contra os trinta tiranos -Sócrates, que na confusão da batalha salvara Alcebíades  e Xenofonte, e cujo espírito se elevou acima dos deuses da antiguidade. Ele está presente. Levanta-se no banco dos espectadores, para que o público, que ri ,possa confrontar o original com a caricatura do palco, e verificar por si o grau de semelhança entre um e outra. E ali está o filósofo, em frente deles - e muito superior a todos eles.

E é a verde cicuta, a cicuta viçosa e peçonhenta, quem deita a sua sombra sobre Atenas, e não a oliveira!

Sete cidades disputaram a honra de ser o berço de Homero - depois de estar ele morto! Vejamos, porém, como decorreu a sua vida. Lá vai ele, a pé, de cidade em cidade, recitando seus versos, para ganhar a vida. E a preocupação do pão de cada dia lhe encanece cedo a cabeça. É o grande vate, agora cego, tateia em busca do caminho. Agudos espinhos despedaçam o manto do rei da poesia. Seus cantos , porém, continuam vivendo, e é somente por eles que continuam também vivos os deuses os heróis da antiguidade.

E  quadro surge após quadro, já do Oriente, já do Ocidente, distantes entre si no espaço e no tempo, mas representando todos ele um trecho do caminho espinhoso da glória, onde o cardo só rebenta em flores quando chega a hora de adornar o túmulo...

À sombra das palmeiras avançam os camelos , ricamente carregados de anil e de outras preciosidades, que o soberano envia àquelas cujos cânticos despertam a alegria do povo e enchem de glória a pátria.  O homem que a inveja e a mentira tinham atirado ao exílio foi enfim encontrado. Aproxima-se a caravana da cidadezinha onde achara uma asilo. À porta da cidade um cortejo fúnebre detém a caravana: levam um pobre a enterrar. E o defunto pobre é exatamente aquele que iam buscar: Firdusi, que acaba de dar o último passo da sua peregrinação no caminho espinhoso da honra e da glória.

Nos degraus de mármore do palácio da capital portuguesa, um africano de feições rudes, lábios grossos, cabelos pretos e lanosos, estende a mão , mendigando. É o dedicado escravo de Camões. Se não fosse ele, se não fossem as moedas de cobre que lhe atiram os transeuntes, o poeta de Os Lusíadas morreria de fome.

Hoje, que suntuoso  monumento se ergue sobre o túmulo de Camões!

Mais outro quadro.

Por detrás de uma grade de ferro aparece um homem pálido como a morte, de barba longa e emaranhada. E grita:

- Fiz uma descoberta! Fiz a maior descoberta dos últimos séculos! E eles me mantém aqui prisioneiro, há mais de vinte anos!

- Quem é aquele homem?

- Um louco - responde o guarda. - Imagina só quanta coisa a loucura pode inventar! Deu-lhe uma mania: que a gente pode movimentar-se, andar para a frente, por meio do vapor!

Era Salomão de Caus, que descobrira a força do vapor; mas Richelieu não lhe compreendeu a intenção, que ele não explicara com muita clareza. Morreu no hospício.

Lá está Colombo, outrora perseguido e escarnecido pelos moleques da rua, porque pretendia descobrir um mundo novo. E ele o descobriu! No dia do seu regresso triunfante chega até os seus ouvidos o clamor de júbilo que sobe do peito dos homens, e o repique dos sinos das igrejas. não tardará, porém, que os sinos da inveja sobrepujem aqueles. O descobridor de um Mundo, aquele que tirou do mar a terra dourada da América e a deu de presente ao seu rei, recebe em recompensa as correntes de ferro que hão de  agrilhoar. E ele faz  questão de levar essas correntes ao túmulo, porque elas dão testemunho deste mundo e da maneira como os homens avaliam o mérito dos seus contemporâneos.

E um após outro, vão aparecendo os quadros. O caminho espinhoso da glória está cheio.

Lá, na treva da noite, está o homem que mediu os montes da lua, que se arrojou ao espaço infinito, para os astros, para os planetas; aquele gênio poderoso, que entendeu o espírito da natureza e sentiu que a terra se movia sob os seus pés: Galileu. Agora , velho, cego e surdo, aguilhoado pelos espinhos do sofrimento, obrigado abjurar, mal pode levantar o pé - aquele pé que bateu no chão, desesperado, quando viu que ocultavam a verdade, e ele exclamou:

- E contudo, ela se move!

Lá está agora uma mulher, uma mulher com o  espírito de uma criança, cheio de entusiasmo e de fé. É ela quem ergue o pendão à frente do exército em luta, alcançando a vitória e a salvação para a pátria. Alto, bem alto se levanta o clamor de júbilo, e mais alto ainda sobem as labaredas da fogueira: Joana d’Arc, a Bruxa, está sendo queimada. E outro século chegou a cuspir sobre o lírio imaculado. Voltaire, o espírito satírico do bom-senso, decanta a " Pucelle".

No thing, isto é, na sede do tribunal do povo, em Viborg, a nobreza dinamarquesa queima as leis promulgadas pelo rei. Sobem muito alto as chamas, iluminam a época, iluminam o legislador: elas desenham uma auréola lá dentro da escura masmorra da torre onde foi  encarcerado. Encanecido, curvado ao peso dos anos , abrindo com o dedo um sulco na pedra da mesa do popular, amigo do burguês e do camponês - Cristiano II. A história do seu reinado é escrita por inimigos. E não devemos esquecer os vinte e cinco anos que passou na  prisão, ainda que não seja possível apagar a mancha indelével do sangue que ele fez correr.

Lá vai um navio , que deixa a costa dinamarquesa. Encostado ao mastro , um homem lança um último olhar para a Ilha de Hveen. È Tycho Brache. Ele elevou até as estrelas o nome da Dinamarca, e deram-lhe em recompensa humilhações e desgostos. E é por isso que se vai para um país estrangeiro, sempre repetindo:

- Por toda a parte o céu se curva em abóboda acima de mim.  Que mais posso querer?

E o dinamarquês ilustre lá se vai naquele navio; vai viver em país estranho, livre e cercado de honras.

- Ah! Ser livre , embora apenas para padecer as dores insuportáveis do corpo!

É um gemido que ecoa, atravessando as épocas, e chega aos nossos ouvidos. Que quadro! Griffenfeld, o Prometeu dinamarquês, amarrado ao penedo da Ilha de Munkholm.

Estamos agora na América, à beira de um dos maiores rios: ali está reunida uma multidão imensa. Dizem que vai partir dali um navio, arrostando os elementos, os ventos, a intempérie: é Roberto Fulton quem se propõe assim resolver o problema. Começa a viagem, mas de repente o navio para: a multidão ri, apupa, assobia. E o próprio pai do inventor brada:

- Que arrogância! Que loucura! Aí tem ele o que merecia!

E enquanto isso a multidão grita:

- Está louco! Está louco! É preciso prendê-lo!

Mas eis que se parte um preguinho, que tinha por um momento estorvado o andamento da máquina. tornaram a girar as pás, de novo passam pela água, e o navio prossegue a viagem. E a força do vapor vem reduzir a minutos as horas que separavam os continentes.

O gênero humano! Compreenderás tu a bem-aventurança desses instantes de conhecimento partilhado, o sentimento de um espírito compenetrado da sua missão, esse instante em que todo o desespero, todas as feridas rasgadas no caminho espinhoso da glória - até as que vem da própria culpa - se convertem em salvação, em vigor e em claridade? Esse momento em que a desarmonia se muda em harmonia, em que os homens encontram a manifestação da graça divina na criatura e percebem de que maneira esta tudo lhes manifesta?

O caminho espinhoso da glória nos aparece, pois, como uma auréola que fulge ao redor da terra, Três vezes felizes os que foram escolhidos para trilhar esse caminho: aqueles que, sem merecimento próprio, mas pela força da graça, são postos entre o arquiteto da ponte, que é Deus , e a humanidade!

O espírito da História adeja, com asas poderosas, por sobre as épocas; ele anima, consola e desperta ideias suaves, mostrando o caminho espinhoso da glória - esse caminho que não vai acabar, como na lenda, em esplendor e alegria terrena, mas para além deste mundo, nas eras da eternidade.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 31 de Dezembro de 1855.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 14 –

BEIJOS DE MENINO


Te beijarei com beijos de menino
Brincando de sonhar e ser feliz,
Cumprindo minha sorte e meu destino,
De ser do teu destino, um aprendiz.

Te abraçarei com meu melhor afeto,
Com minha inocência mais criança
Que escolhe o seu brinquedo predileto
E nem se preocupa com a esperança.

E te amarei com tanta ingenuidade,
Que quando me bater uma saudade,
Dos tempos do amor mais inocente,

Eu vou cerrar os olhos e sorrir,
Pois quando esse tempo me fugir,
Eu hei de te trazer para o presente
= = = = = = = = = = = = = = = = =

DE RISO EM RISTE

Fingiste não me ver, mas tu me viste...
que triste o teu disfarce... até sorri...
o aceno que te dei, quando te vi,
perdeu-se na alegria que encobriste.

A dor inesperada que eu senti,
tornou-se tão patética... iludiste
teu próprio coração, tu conseguiste
até falar de mim... mas eu ouvi.

Inveja?... falsidade?... o que sentiste?
... ciúme?... onde está teu frenesi?
Agora que estou só, pois já partiste,

meu rosto ri de mim de riso em riste,
Confesso que até me comovi,
Mas já passou assim que tu sumiste.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

EN-CANTO

Mesmo sem voar, o passarinho
canta... que mistério há nesse encanto?
... posso vê-lo rir, sentindo o pranto
que acaricia o seu carinho.

Neste mundo há tanto desencanto...
mas quem é feliz sendo sozinho,
sabe que é na solidão do ninho
que o cantar se torna um acalanto.

Lindo!... alguém dirá... Como ele canta!
...sua solidão, embora tanta,
é a mais sincera companhia,

pois, no canto escuro da gaiola,
o cantar mais triste que o consola,
faz o som tornar-se... poesia.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

NUMA DOBRA DE JOELHOS

A força invisível é sentida,
A cada vez que a vida enfraquece...
É assim que a energia aparece
Da forma mais sutil... e atrevida.

Então, dentro da dor de uma ferida,
Esse impulso oculto e inexplicável
Rebrota de maneira inefável
E mostra, na esperança, nova vida.

Só Deus pode nos dar esse poder,
Que é tão capaz de nos fortalecer,
Que nem a Medicina o compreende,

Só sabe que além dos aparelhos,
É sempre numa dobra de joelhos
Que a fé do ser humano surpreende.
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QUANDO CHEGA O TEMPO

Chega um tempo em que a tristeza só se cura
Com a ternura que ainda habita um coração,
Porque a alma não suporta a amargura
Que perfura a pele dura da razão.

Chega um tempo em que só há uma solução:
Esquecer ou conviver com a dor sentida,
Porque a vida não carece da emoção
De sentir a solidão da própria vida.

Chega o tempo em que qualquer gota de pranto,
Já cansada de traçar o mesmo rumo,
se acomoda em qualquer riso e perde o prumo,

Todavia, basta apenas um encanto,
Que o sonho se esgueira devagar
E alegra a solidão do nosso olhar.
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Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

João do Rio (O Monstro)

- Ah! Eu sou um monstro!

- Palavra?

- E um monstro, meus amigos, que pode confessar os seus apetites sem correr o risco de poder contemplar o mundo através das grades de um cárcere. Eu sou um infame.

Ditas estas palavras, Luciano de Barros estendeu-se, desalentado, no divã e soprou para o ar o fumo do charuto. Era depois de jantar e nós estávamos em casa de Lauriana de Araújo, uma das mais elegantes raparigas, de uma vaga semi-sociedade em falha, sustentada por um velho banqueiro de tavolagens e com grandes pretensões a mulher de espírito e à literatura. Os jantares eram sempre excelentes; o "maitre d'hôtel" irrepreensível, os serviços lindos, e bem se podia notar naquele ambiente, onde o velho banqueiro tinha o bom gosto de não aparecer, que Lauriana de Araújo sabia escolher com arte uma roda de homens citável. Havia nomes da Academia, nomes da alta elegância, o creme das duas casas do Parlamento, e sempre as altas figuras em trânsito propagador. Naquela casa de jantar cor de morango com frisos de faiança representando a glória de Pomonajá tinham estado um embaixador severo e um quase presidente de grande república europeia. Ao acabar os jantares, Lauriana, sempre de rendas brancas, como envolta em espumas, acendia um cigarro e palestrava. Os homens recostavam-se nos divãs e posavam. De vez em quando tocava-se piano. Quase sempre, entretanto, na varanda guarnecida de jasmins, ouvia-se um séptuor (
septeto) de instrumentos de cordas. Era perfeitamente agradável. Ninguém ignorava que a anfitriã amável realizara já uma grande fortuna e que sabia, como ninguém, liquidar em seu proveito o dinheiro alheio sem estrépitos escandalosos. Só como amante de um ministro, obtendo concessões entre beijos, no espaço de três meses arranjara quinhentos contos.

- Farsista! Tu, infame? Tu não passas de um ingênuo... Era o conselheiro Andrade, conhecido por quarenta anos de ceias consecutivas, desde o remoto Rocher de Cancale até os desvairamentos dos "circles" atuais.

- Eu, ingênuo?

- Pois então? Um infame, nunca diz que o é.

- Conforme.

- Afinal, intervinha Lauriana, o Luciano disse que era um monstro quando eu perguntava como compreendia o amor. O Luciano é sempre bizarro. Vai dizer para aí alguma barbaridade e liquida a infâmia.

- É impossível, minha amiga. Por que sou eu o dedicado servidor, e servidor sem interesse, de todas as mulheres? Nunca ninguém me perguntou. E, entretanto, é apenas por um permanente e cruciante remorso. Tenho trinta e dois anos, um físico menos mau, visto discretamente, sou mais inteligente do que o vulgar e tenho algum dinheiro. Para vocês, nada mais banal. Com esses elementos congregados, porém, e com uma alma incapaz de amar e de se dedicar senão à variedade, consigo numa sociedade moderna ser simplesmente o monstro. Como? Ora, como! Fazendo-me amar...

Um prolongado riso correu pelo salão de fumar

O deputado Almerindo quase engasga, o conselheiro Andrade ergueu as mãos ao teto e o célebre poeta acadêmico Clodomir rebolou positivamente no divã. Luciano continuou tranquilo:

- É preciso partir do princípio que toda a mulher ama. Apenas, porém, ama ingenuamente e deixa-se seduzir, deixa-se amar amando absolutamente uma vez na vida: a primeira. As outras paixões são o resultado do cálculo, do egoísmo, da satisfação dos desejos. É ela a sedutora e seja para o bem ou para o mal, para elevar o homem ou para perdê-lo, para sofrer-lhe as pancadas ou fazer-lhe da vida um rosário de beijos, o seu papel moral é sempre o ativo.

- Estás a lançar paradoxos.

- Estou a dizer coisas velhas. Mas o ambiente, o meio, conseguem também matar o primeiro sentimento. O amor é um perfume sutil... Uma pequena de sociedade elevada, mais ou menos culta, sabendo que há de casar com alguém da sua roda, talvez não ame nunca. Uma rapariga atirada desde cedo ao torvelinho dos bailes, das festas e dos flertes é uma lutadora prestes a devorar o seu marido próximo. E mesmo as moças de família modesta, desde cedo obrigadas a uma profissão e ao exercício de encontrar um esposo, entregando-se aos maiores excessos de permissão aos namorados, quase sempre fatais, não sentem o amor...

- O amor morreu.

- O amor é eterno, mas nem todos o podem ver, através da perversão do flerte ou das luxúrias perdidas. E a minha imensa monstruosidade está exatamente em procurar o amor, gozar esse perfume e perdê-lo. É, talvez, muito vago o que estou a dizer, mas é horrível. Ando por todos esses clubes e aborreço as mulheres que arrastam vestidos de contos de réis; percorro os bailes e os "rahuts" com medo das "fliteuses" (
panfletos); frequento as caixas de teatro e em cada mulher que se pende para mim, sinto a falsificação. Que fazer? Percorrer os meios humildes, e descobrir, sobreirritas e sem nada, as crianças que ainda não amaram. Imaginem vocês um homem com todos os instintos de perversão da nossa roda como facilmente pode empolgar uma alma ingênua, seduzida apenas pelo exterior.

Dizem que nas grandes cidades não há o tipo ingênuo, a inocência... A inocência é uma propriedade, uma qualidade que passa, mas existe em toda a parte. Nas classes mais pobres, nos meios mais miseráveis é que se encontra mais a flor da inocência, exposta ao vendaval e guardando o perfume, por um prodígio. Desfolhar essa flor, violentamente, como um sátiro, não é crime - é instinto. Gozá-la naturalmente sem a intenção senão de a gozar - é a natureza. Cercá-la, prendê-la, ir aos poucos aspirando-a, desfolhando pétala por pétala, com refinamento, intenção dupla, consciente e ferozmente - é que é monstruoso. E vocês não sabem, não podem imaginar a fúria de caçador que eu desenvolvo para as encontrar, vocês não concebem o gozo meu ao prelibar (
provar) a volúpia de um beijo de virgem, um beijo sugado na boca ainda não beijada...

Eu vou, eu passo, eu cumprimento. No dia seguinte torno a passar Três dias depois, mando-lhe uma recordação. Tudo é tão simples com os pobres! Dentro em pouco a criaturinha sente-se envolvida numa atmosfera de cuidados e de delicadezas. A princípio é apenas a vaidade. Um homem tão bem vestido, tão distinto, tão fino, que podia ser amado por lindas mulheres da sua ordem... Depois o orgulho, a sensação de que é melhor do que as outras por ter sido a preferida, - orgulho que se perfuma de gratidão, uma vaga, muito vaga sensibilidade. Em seguida, a alegria da intimidade de um ente que não a ralha, que lhe reflete em admirações como um espelho simpático todas as pequenas belezas da sua beleza. Mas, ainda assim, não é amor, é brincadeira agradável, o namoro - o namoro que está para o flerte como a pureza de uma água pura para a falsificação de um vinho mau. Eu persisto, então, continuo, prolongo a grande cena. E de repente a criança sente o ciúme, um doce e ingênuo ciúme que tem zelos até do inanimado, anseia, treme, e ri e chora sem saber por que, toda ela possuída do perpétuo mal da vida. Então, eu sinto no íntimo uma alegria infernal. É o meu esporte, o meu exercício, o meu prazer de homem da cidade. As regras são infalíveis como para todos os jogos, e a vitória sorri-me. Tenho satisfeito o meu desejo?

Não! Ao contrario. É o grande momento, o momento do iniciador. As carícias na mão, puxando essa mão que resiste instintivamente e treme, as carícias nos braços, os contatos fugazes que indicam tudo, um beijo nos cabelos, outro longo, guloso, mordido, na nuca... Gozar as gradações do reconhecimento do gozo, a face que enrubesce, o calor da pele, os olhos que enlanguescem e de repente se dilatam como ao reflexo de um clarão, as frases curtas de negativas... É a fascinação inebriante. Toda a minha tática, entretanto, se faz em torno do que a inocência mais custa a dar: a boca. Eu tenho a nevrose das bocas. Há algumas muito vermelhas. Há outras de um róseo pálido. O movimento da língua passando pelos lábios dá-me crises desesperadas, e certas criaturas quando riem sugerem-me auroras em que eu desejo estancar toda a sede de uma noite em claro, que é a minha vida. Às vezes, o beijo rogado vem de súbito. De outras, a princípio é um leve roçar de lábios, depois uma pressão mais longa, enfim, a absorção, a loucura num ambiente em que mesmo de olhos abertos vejo, sinto, cheiro, ouço toda uma sinfonia rósea dos sentidos...

Na roda, os cavalheiros pareciam um pouco nervosos, e Lauriana batia o leque de sândalo. O conselheiro Andrade, o menos excitado, exclamou, de olhos em alvo:

- Caramba! É uma doença cerebral...

Luciano, de olhos cerrados, parecia em êxtase. Então o poeta indagou:

- E que fazes depois?

- Que faço? Aí tens tu o meu horror. Fico com um grande dó da criança, acaricio-a ainda mais, envolvo-a na jura de um amor infinito, chorando a frieza do meu coração incapaz de amar uma só criatura mais de seis meses. E é o mês dos sofrimentos, em que a vida se me faz dilema: - ou casas com essa rapariga para abandoná-la ou, se a levas contigo sem o casamento, cometes o crime ainda maior de perder-lhe a honra. Então, no silêncio do quarto, pensando nela, vendo-a a todo o instante, soluço, choro, deploro-me, escorcho a alma com a violenta ideia de achar um pretexto para não perdê-la. O amor porem, o amor verdadeiro é um breve perfume da virgindade. É senti-lo e é partir. Eu me debato, mas para que serve? Algumas desvairadas têm vindo até ao desenlace e estão por aí. Outras eu perco de vista, aos poucos, porque mais adiante outras parecem-me ainda em botão.

- Não é muito bonito, mas nada tem de ofensivo.

- Achas?

- Há quarenta anos, sem psicologias malsãs, serias apenas um bandoleiro. Agora, com essa mania de análises das próprias sensações, é que te julgas um monstro.

Luciano de Barros deitou fora o charuto que se lhe apagara entre os dedos.

- Infelizmente, nós somos levianos, nós os homens, em tomo desse grave e doloroso sentimento. Que sou eu? Um homem que borboleteia a sua perversão pelos botões entreabertos da vida. Até é bonito! E quem uma vez sentiu a delícia deliciosa de uma boca virgem que se entrega pela primeira vez, deve ter de mim inveja. Mas, se eu me sinto infame? Ainda agora venho de um caso assim. Era uma pequena de quinze anos, alegre como um pássaro. O seu riso lembrava um chilreio e a sua boca cheirava a rosa. Três meses depois, sincera, nobre, pura, ela amava, amava sem interesse, apesar de paupérrima, sem nunca ter recebido uma dádiva que não fosse inteiramente inútil. Dera-lhe o meu nome, mas ignorava o que eu era, onde morava, qual o meu modo de vida. Amava como se ama aos quinze anos, cegamente, e eu tinha essa sensação meio triste, meio ridícula de me saber amado com um encanto de sonho. Que era ela? Um personagem de conto. Que era eu? O príncipe... A crise do amor na estufa preparada por mim floriu. Talvez eu mesmo estivesse mais apaixonado do que parecia. Propus-lhe a fuga, o rapto. Resistiu com o seu fundo honesto, tanto que lhe propus casamento. Ela sorriu entre lágrimas, erguendo os dois grandes olhos negros. - "Não sabes o que dizes! Somos de condições tão diferentes! Isso é impossível." - "Mas, então, que queres?" - "Nada, não quero nada, coisa nenhuma." Eu voltei, continuei a vê-la, mas insensivelmente, a minha lamentável alma sentia a necessidade do afastamento, querendo conservá-la. Ela continuava tal qual, iluminando o semblante quando me via. Certa vez disse-me: - "As vezes quase não tenho coragem de voltar a casa, com medo de me matar." - "Vem comigo, então." - "Não. Já hoje chorei tanto..." Eu gozava aquele martírio por minha causa, aquela inocência perturbada pela minha figura... Há quinze dias não a vi à janela. Passei no outro dia, e interroguei à vizinhança. Tinham-na levado os padrinhos por causa de umas crises de choro que a definhavam. E eu estou na agonia, a pensar nessa criatura pura e doce.

- D. João, sossega! Hás de ver a pequena casada, como as outras.

- Ou perdida, sentenciou, grave, Lauriana.

Luciano ergueu-se, consertando a gravata branca.

- Ou talvez morta, porque já tem acontecido...

Então, a linda Lauriana sorriu com infinita tristeza.

- Mas não te julgues, com esse exagero de análise e de pretensão, o único monstro, meu caro amigo. A cidade está cheia desses defloradores do amor. A vida é uma luta de sexos. Há criaturinhas que morrem ceifadas em betão (
concreto), depois de levemente aspiradas pelos intelectuais gastos como tu. Há outras, porém, que resistem e ficam como eu.

Houve um prolongado silêncio. Ninguém rira. E, só, Luciano de Barros, muito pálido, diante de um grande espelho, parecia pasmo da própria fisionomia. Fora, o séptuor tocava uma valsa lenta, entre os jasmins.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Dentro da Noite. Publicado em 1910.

Minha Estante de Livros (Doutor Benignus, de Augusto Emílio Aluar)


O Doutor Benignus é um dos livros do português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Aluar, publicado em 1875. É considerado a primeira obra de ficção científica escrita no Brasil.

O texto tem como tema central os questionamentos filosóficos e as andanças pelo interior do país do seu personagem principal, o Dr. Benignas, médico e naturalista.

Apesar de ser um obra ficcional, o texto traz referências precisas à obra de diversos cientistas contemporâneos, entre os quais estão Peter Wilhelm Lund, Camille Flammarion e José Vieira Couto de Magalhães.

Em 1875, Augusto Emílio Zaluar escreveu e publicou no Brasil o romance O Doutor Benignus, influenciado pelas obras iniciais de Júlio Verne, Cinco semanas num balão (1863) e Viagem ao redor da lua (1870), e principalmente por Camille Flammarion, astrônomo francês, que publicou, entre outros, o livro A pluralidade dos mundos habitados (1862), referido explicitamente nas páginas do romance. Publicada no jornal O Globo, em fascículos, a obra é considerada o primeiro romance brasileiro no qual se exprimem claramente as várias convenções do gênero ficção científica, que na época ainda estava em formação: o cientista como protagonista, a máquina de ver o futuro e o primitivo mundo perdido. Esta é, de fato, a primeira obra de literatura fantástica escrita no Brasil.

O livro defende o conhecimento científico como forma de alcançar o progresso, construindo assim a identidade de um país. Escrito com uma visão nacionalista, deixando clara a preocupação em caracterizar o Brasil como um território cuja natureza é rica e exuberante, Benignus, médico e cientista amador, pretende provar que o homem americano teria surgido no Brasil e daqui migrado para outros continentes. Apesar de parecer absurda nos dias atuais, a ideia era debatida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e fundamentada pelo paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801–1880), que defendia essa proposta tomando por base os esqueletos humanos encontrados em cavernas na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais.

É de se imaginar que uma obra escrita no século XIX traga inconsistências em relação aos conceitos aceitos pela comunidade científica nos dias de hoje, entretanto, a obra faz clara referência à evolução do homem e à seleção natural de Darwin, hoje plenamente aceita, mas que nem sempre foi assim. É bem possível que, durante as semanas em que o romance foi publicado, muitos leitores tenham ouvido falar de Darwin pela primeira vez, buscando posteriormente outras leituras que envolvessem a teoria da evolução.

Esta obra expressa ao leitor o sonho de Benignus: a visita de um ser espiritual proveniente do Sol que o parabeniza por sua “impaciência de saber”, animando-o a infiltrar o bem na alma de seus semelhantes por meio do conhecimento.