segunda-feira, 17 de julho de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao Entardecer) – 2


 A chama em minha alma acesa
que o vento instigava forte,
hoje é lume sem defesa
que um sopro conduz à morte.
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Agrediu nosso romance,
rasgando cartas, retrato,
como se em último lance,
desse termo a um pugilato.
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A loira cor do arrebol
que os campos de trigo enfeita
é mel que emana do sol,
dulcificando a colheita.
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A verdade, transparente,
me diz que não vais voltar,
mas meu coração, carente,
se recusa a acreditar.
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Bendigo o canto das águas
que fiel à correnteza,
arrasta angústias e mágoas
e cicatriza a tristeza.
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Desperdiçou toda a vida
semeando ódio e falsidade;
e hoje, enferma e esquecida.
colhe o fruto da maldade.
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Do bom e do que sofri
no percurso das estradas,
resta a paz que eu adquiri.
O mais... são águas passadas.
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Ela, ansiosa, em sobressalto,
ele a esboçar um poemeto...
E o flerte era o ponto alto
pelas voltas ao coreto.
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É símbolo de confiança
e a tensão nos descontrai,
a mãozinha da criança
aninhada ò mão do pai.
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Levando minhas imagens,
a musa me abandonou,
e inerme, ao léu das voragens,
o meu verso naufragou.
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Leva o barco as nossas mágoas,
sulcando as ondas além,
mas do outro lado das águas,
leva esperanças a alguém.
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Na seara de minha vida,
dos fracassos já refeita,
semeio, e em nova investida,
calma eu aguardo a colheita...
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O amor chega sem aviso,
e em surdina, sem razão,
no mais tranquilo improviso,
se instala em um coração.
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Orgulhoso, o mar gigante
desdenha dos rios a frágua,
sem lembrar, nem por instante,
que surgiu de um olho d'água.
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O sol, silencioso, desce,
e é mais um dia a morrer,
mas do outro lado uma prece
lhe agradece o renascer.
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Pela faixa policroma,
mensageira da bonança,
traz o arco-íris que assoma
o retorno da esperança.
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Poeta, em doce magia,
eleva-se do seu chão,
atrelando a fantasia
às correntes da razão.
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Que alegre repique o sino
trazendo mensagem tal
como a do arauto divino:
"Paz na Terra! Hoje é Nata!!''
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Que ao som dos brindes em festa,
Natal a comemorar,
Jesus encontre uma fresta
e retorne ao seu lugar!
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Reverencia o amigo
que te amparou na subida,
que esteve sempre contigo
nos maus momentos da vida!
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Sempre que a insônia me apanha,
eu busco a voz das estrelas.
Vem-me a paz e... coisa estranha,
eu nem preciso entendê-las.
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Uma flor despetalada,
por acaso ou ironia,
é a imagem desalentada
de um amor em agonia,
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Vendo, em mudo sofrimento,
a vida me desertar,
entendo enfim, porque o vento
se recusa a silenciar.
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Vi no esplendor do arco-íris
desprezo à prece que fiz;
pois cada faixa, ao partires,
foi perdendo o seu matiz.
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Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 3: O potrinho

Nas manhãs frias de inverno, as mais congelantes de todo o país, os peões Juca, Simão, Pedro, Juliano, dentre outros, para se protegerem do frio, iam para a lida vestidos com ponchos pesados, feitos de pura lã, extraída das ovelhas da região.  Juca, o capataz da fazenda, dava início às ordenhas bem antes do raiar do sol. Ele sempre foi o homem de confiança da família Machado, e também o motivo de muitos cochichos entre os colegas, pois corria à boca pequena (
fofoca) que a sua esposa, Amélia, uma jovem descendente direta de indígenas,  o traía entre os arrozais com o peão Simão, que não era mais jovem e nem mais bonito do que o capataz, mas fazia sucesso com as mulheres.

Mas esqueçamos os cochichos e voltemos a refletir sobre os encantos daquele lugar dadivoso, um dos ambientes mais graciosos de todo o Rio Grande do Sul.

Ao leste da fazenda, ficava a plantação de arroz. Ao oeste, foram construídos os currais e cocheiras que abrigavam numerosos animais, a maioria, bois, ovelhas e cavalos. Ao norte das terras, cultivava-se um jardim colorido, com flores de diversas espécies e árvores frutíferas. O constante bailado das borboletas e o afinado cantar dos pássaros compunham ali um cenário verdadeiramente divino. Isadora adorava aquele canto da fazenda. Ali, conversava consigo e tentava entender os desígnios da vida.  Da vida como um todo. E da sua própria vida.

Ao sul, portal de entrada e saída, ficava o armazém "Peleando contra o Trago”. E ao lado, a escola onde Isadora estudou até que a professora, dona Almerinda, faleceu e o colégio teve as portas fechadas, deixando as crianças da localidade sem terminar os estudos.

Eram cinco horas da manhã, e dona Ana estava cheia de encomendas de aniversário a serem entregues no início da tarde. Sabendo que dificilmente daria conta do serviço sozinha, bateu à porta do quarto da filha.

-  Isa, acorda! Preciso da tua ajuda.

- Já vou mãe! - respondeu a filha com voz de sono.

Ao entrar na cozinha, Isadora se deparou com a mesa lotada de preparativos para quitutes e com o fogão à lenha quase sem espaço para colocar tantas panelas.

- A senhora está fazendo doces para servir a um batalhão, minha mãe?

- Olha que coincidência: dois vizinhos de nossas terras estão aniversariando hoje.
 
– Minha mãe, isso é escravidão.

- Deixa de ser exagerada, filha. Estamos precisando de dinheiro, como bem sabes. Mãos à obra.

 - Sim, eu lhe ajudo. Mas isso não está certo. A senhora é esposa de um rico fazendeiro. Na dispensa já falta comida. Onde o pai coloca o dinheiro que ganha? - indagou Isadora, com profundo desconsolo.

A mãe se calou. E ambas se concentraram nos quitutes.

Do lado de fora se ouvia o palavreado do Tagarela, papagaio de estimação, o latido do vira -lata, Costelinha, nome dado pelo seu aspecto muito magro... E o canto dos pássaros que adoravam pousar nos ipês que enfeitavam os arredores da casa.

Ipês, de flores brancas, rosas e amarelas. Os de copas amarelas eram as árvores favoritas da menina Isadora.

No intervalo dos trabalhos, quando as massas de bolos estavam assando,  debruçada no parapeito da janela da cozinha, Isadora começou a dissertar um trecho de um texto do educador Rubem Alves, também, adorador da mesma espécie de planta:

“Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está para chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio”.

Lá pelas três horas da tarde, Ana e a filha estavam exaustas, mas com os doces e salgados prontos.

- Isa, chama o Juca para fazer as entregas.

- Está bem. Vou ver se o encontro. Mãe, agora trate de descansar um pouco.

- Vou tomar um banho e deitar um pouquinho - disse a mãe que, sem ânimo, acabou adormecendo na cadeira com a cabeça e os braços debruçados sobre a mesa.

Isadora correu a fazenda à procura de Juca. Ao vê-la passar, os peões pararam o serviço e, por instantes, se apegaram à ilusória felicidade de um dia poder apertá-la entre os braços.

A moça tinha consciência do encanto que despertava naqueles homens simples, sedentos de aventuras, e sentia-se lisonjeada por isso.

Achava graça em ver a cara de bobo de cada um e respondia aos seus acenos. Mas ao se aproximar, mesmo simpática, nunca aceitava ouvir cantadas.

Certa vez um jovem peão a convidou para sair. Mas, no mesmo instante ela cortou as intenções do pobre rapaz.

E quanto aos casados, com frequência, cochichava ao pé de seus ouvidos -  pares de me olhar assim ... Senão conto tudo à tua esposa.  E depois seguia com o seu jeito livre de ser... Como se nada estivesse acontecendo.

- Pedro! Viste o Juca? – perguntou ela.

- Não vi o companheiro ainda hoje.

- Bem. Então vou até a cocheira apanhar o Relâmpago. A cavalo o acharei depressa.

Pedro tirou o chapéu em sinal de reverência e respeito, mas logo espichou os olhos e se deleitou ao observar o balanceado do corpo da jovem patroa no seu distanciar frenético.

Na cocheira, Isa se deparou com Juca tentando salvar a vida de um potrinho.

- O que houve com o bichinho? - indagou ela preocupada.

- Encontrei o pobrezinho abandonado no meio da estrada. - disse o peão.

- Ele está muito fraco. Deve ser fome. Traz leite, Juca. Rápido.

O agregado obedeceu.

Eles tentaram fazer com que o animal se alimentasse, mas o bichinho rejeitou a mamadeira.  

- Acho melhor chamar o veterinário Bernardo, senão ele vai morrer - disse Isadora - Ó Deus! Ao ver o animal assim, até esqueci. A mãe precisa que faças as entregas de umas encomendas com urgência. Manda o Juliano chamar o veterinário. Vou ficar aqui cuidando do pobrezinho.

   - Mas o patrão não vai gostar de saber que a filha dele está enfiada entre os bichos e os peões dentro de uma cocheira. - alertou o atencioso capataz.

- Com o pai eu me entendo depois. Agora vai.

Isadora aguardou o socorro ao lado do potro. E relembrou que numa tarde semelhante àquela, quando tinha apenas sete anos e pode acompanhar pela primeira vez o parto de um potrinho, filho da Generosa, uma linda égua baia, a mais cara da criação, que morreu após dar à luz. Antes de fechar os olhos, observou o filhote de forma tão terna e doída. Naquele momento sentiu um arrepio de dor vindo daquela mãe que não era um ser humano, mas também possuía sentimentos. Desde aquele acontecimento, Isadora se apegou aos bichos. Especialmente aos cavalos, seus companheiros de andanças sem destino.

Infelizmente, a espera pelo veterinário foi inútil. No decorrer dos exames o animalzinho faleceu.

- Mal nasceu para a vida e já se encontrou com a morte, ao contrário do que aconteceu à Generosa - disse ela chorando.

- Quem é Generosa? perguntou o veterinário. Mas ela, com um nó na garganta, se manteve calada.

- Sei o quanto gosta dos cavalos, mas não podemos fazer mais nada. - afirmou o veterinário. Tu vives em meio aos bichos, e sabe que essas coisas acontecem.

- Sei. Mas evito estar presente.

Ao término daquele momento triste, ela tomou o seu Relâmpago e, galopando, desapareceu por entre as trilhas de terra da fazenda.  
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora

Contos e Lendas do Paraná - 18 (Campo Mourão - Cerro Azul - Guaratuba)


Nota: em letras maiúsculas o nome da cidade que é originária a lenda/conto


CAMPO MOURÃO
A lenda de São Tomé (o caminho do Peabiru)


Num dos dias mais frios do mês de junho, Nhô Juca, figura muito conhecida na região, por ser uma personagem enigmática e muito amável com todos que o conheciam, estava em seu rancho, às margens do rio Piquiri, acendendo uma pequena fogueira para se aquecer. Ia assar
pinhão, fruto da Araucária. Era costume dos moradores dali comer pinhão e também saborear o chimarrão, a erva nativa.

Nhô Juca tinha muitos compadres, pois sendo uma pessoa muito antiga no lugar, ajudava todos que o procuravam, com seus remédios caseiros, seus conselhos de ancião e seus belos causos. No rústico rancho onde vivia, nos finais de tarde, recebia seus amigos. Sentados em banquinhos, ou pedaços de troncos, ouviam e contavam histórias, principalmente causos de assombração, boitatá, saci-pererê e muitas outras. Além da iluminação da fogueira, no centro do rancho usava-se uma lamparina de querosene.

Então nesse final de tarde, como um ritual, seus companheiros, após um dia de lida na roça, vieram conversar com o compadre Juca e também ver se ele não estava precisando de nada, pois era sozinho na vida. Dele não se conhecia a existência nem de mulher, nem de filhos. A conversa estava tão animada que nem perceberam a tempestade que se aproximava. O vento era tão forte que atravessava de um lado para outro do rancho, ficando impossível manter a lamparina acesa.

Os visitantes estavam assustados, porém Nhô Juca, em sua calma, começou a lhes contar uma nova história. Disse que aquela região já havia pertencido aos índios e que estes haviam construído um caminho muito importante: o caminho do Peabiru. Era uma trilha muito antiga e comprida, começava no Oceano Atlântico e terminava no Oceano Pacífico, atravessando a América do Sul. Tinha mais ou menos 3 mil quilômetros de comprimento e cerca de 1,4 metro de largura, mais parecendo uma grande valeta no meio da floresta.

– E este caminho ainda existe? – perguntou Pedro, maravilhado.

– Pois bem, os índios, nossos antepassados, tinham a sua sabedoria, não eram bobos não. Eles plantavam nesse caminho uma grama miúda que evitava que a chuva lavasse a terra e, ao mesmo tempo, impedia que as ervas daninhas invadissem a valeta. Assim, o caminho ficaria sempre limpinho, mais parecendo um corredor encarpetado de verde, bem fofinho.

– Ah! Que espertos, hein, compadre? – disse Pedro, admirado.

– Pois bem, como eu lhes falei, os índios não eram burros não, essa grama era plantada em alguns trechos e ia se reproduzindo e avançando o caminho. E também soltava umas sementinhas gelatinosas que grudavam nos pés e pernas dos que por ali passavam e a levavam pelo caminho; dessa forma, as sementes iam caindo e novos trechos iam sendo formados.

E a conversa continuou, falaram dos índios, seus costumes e até da sua saída da região. Nhô Juca, então, resolveu contar-lhes sobre a lenda que envolve este caminho milenar.

– “Sabem, compadres, dizem que por este caminho andava muita gente importante da nossa história. Ouvi, certa vez, um moço lá da capital, que tava cavocando uns buracos na beira do rio, procurando sei lá o que, dizer que por aqui passou um homem branco, pois só existiam os índios e este homem fez muita coisa boa para eles. Dizem que ele veio das águas e que seu nome era Tomé ou Pai Zumé, como os índios o chamavam. Era um homem branco, alto, com longas barbas. Usava cabelos curtos com uma tonsura no alto da cabeça, igual às que os padres tinham. A roupa branca ia até os pés, amarrada por um fino cinturão de couro. Nas mãos trazia um livro semelhante ao Breviário dos sacerdotes e também uma cruz.

– “Por todos os lugares onde passava, deixava seus ensinamentos, condenando a poligamia e a antropofagia. Ele evangelizava os índios falando sobre o único Deus. Também ensinou aos índios o cultivo de outras culturas como a cana-de-açúcar e o milho. Por pregar a palavra do bem e censurar a imoralidade, causou grande revolta nos chefes e pajés que, furiosos, mandaram persegui-lo, incendiando as cabanas onde se abrigava para descansar, disparando flechas e pedras no profeta. Ileso dos atentados sofridos, sempre fugia pelas águas dos rios ou do mar.

– “Muitos dos antigos dizem que o homem branco era Tomé, apóstolo de Jesus Cristo, o mesmo que duvidou da ressurreição, pois pediu para colocar seus dedos nas chagas de Cristo para ver o sinal dos cravos em suas mãos. Como foi descrente, Jesus lhe deu a missão de pregar o evangelho nas terras mais longínquas do mundo. Naquela época, o mundo era apenas o Oriente, a Europa, África e a Ásia. Dizem que Tomé foi primeiro para a Pérsia. Assim que concluiu suas pregações, entrou num barco de mercadores rumo às Índias. Alcançou a Índia chegando até a China. Depois avançou no mar, indo parar em ilhas não determinadas. Como chegou ao Brasil, não se sabe, apenas alguns padres jesuítas relatam sua passagem por estas terras. Seu percurso começava no oceano Atlântico e terminava no Pacífico.”

– Nossa, compadre, esse caboclo viajou muito, hein! – exclamou Pedro.

– Pois é, era a sua missão e nada o impedia. Porém, certo dia os inimigos conseguiram pegá-lo e o amarraram numa grande pedra. Furiosos, surraram-no e o largaram desmaiado. Então, três grandes águias desceram do céu, cortaram as amarras e o libertaram. Ele fugiu pelas águas da mesma maneira que havia chegado e nunca mais ninguém soube do seu paradeiro.

– E esse caminho do Peabiru ainda existe, compadre? – pergunta Pedro.

– Olha, eu escutei uns moços, lá no boteco do seu João-Pé-Grande, falando desse caminho, dizem que ainda existem alguns lugares dele. Mas ainda tem mais. O Apóstolo Tomé ou Pai Zumé, dizia que era para preservarem o caminho do Peabiru, e se um dia ele fosse destruído pelos gigantes de ferro e aço, haveria muita seca, as aves e animais iriam acabar e as águas dos rios se tornariam escuras.

Nhô Juca enche a cuia com a água fervente da chaleira preta de ferro e repassa para Pedro. Todos ficam em silêncio. Apenas a fumaça dos palheiros sobe no ar.

– É preciso ver para crer.
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CERRO AZUL
Mais uma do Hermógenes


Isso foi nos tempos da primeira república. Hermógenes, o grandalhão, mandava em Cerro Azul. Sua fama é de um homem muito malvado. Era tão temido, que teve pai batizando filho com o nome de Hermógenes, como sinal de respeito e para aplacar a ira do “Sinhozinho Malta” daquele tempo.

Era um político muito vingativo, segundo a versão de alguns. Ele tinha o apoio do Governo Estadual, por ser o chefe político da região. Como “não havia” autoridade policial era ele que “fazia o serviço”, à sua maneira. Estava sempre rodeado dos seus capangas, que cumpriam religiosamente todas as suas ordens. Quando ordenava para prender alguém e este não obedecia à voz de prisão, os capangas tinham recomendação de matar.

Certa vez, conta-nos Chico Tiblier, Hermógenes teria mandado prender um camarada e disse que se não pudessem trazê-lo vivo, que trouxessem a cabeça dele. E não é que os desgraçados fizeram o serviço ao pé da letra! Trouxeram a cabeça e a colocaram na mesa. Hermógenes, ao vê-la, teria dito:

– Barbaridade! Que serviço vocês fizeram. Com o susto, o tirano desmaiou e nunca mais conseguiu ser o mesmo. A cabeça do homem foi enterrada nos fundos de sua casa, onde é hoje o bar do Jadir. Depois que Hermógenes morreu, contam muitas pessoas, a casa dele ficou assombrada. Dizem, por exemplo, que o assoalho da casa se erguia e formava um caixão.
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GUARATUBA
A lenda do Brejatuba


Itacunhatã, assim é chamada uma rocha que forma o conjunto do morro do Cristo. Nome originário dos índios tinguis, que habitaram o litoral. Itacunhatã era um guerreiro famoso e perdido de amores por Juracê, da família dos Carijós.

Num passeio no alto do Brejatuba, Itacunhatã achou que havia conquistado Juracê. Ao envolvê-la em seus braços, Juracê esquivou-se e saiu correndo. Quando, de repente, caiu do alto do morro, sendo engolida por uma onda. Itacunhatã atirou-se para salvá-la, mas as ondas recuaram, ele foi de encontro às pedras e acabou morrendo.

O mar arrependeu-se e trouxe a jovem de volta para ser salva por Itacunhatã, que já não podia mais salvá-la. E assim o mar tem feito, trazendo sempre Juracê em suas ondas, para que um dia seja pega e salva por Itacunhatã

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2005.

domingo, 16 de julho de 2023

Adega de Versos 109: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Como ser chique)

Muita gente vive preocupada em ser reconhecida como elegante, fina, requintada ou, como ainda se diz, chique. Ser chique é agir de modo apreciado pelas figuras que povoam as altas rodas às quais ascenderam pelo dinheiro e pela aceitação dos outros. Em todas as cidades, até nas pequeninas e de menor importância econômico-político-social, encontram-se homens e mulheres muito interessados em pontear como a nata da sociedade local. Desenvolvem um esforço colossal para causarem boa impressão. Para granjear entre os seus concidadãos a admiração e o aplauso sem os quais a vida lhes parece uma coisa sem graça, penosa de ser vivida. No mundo inteiro, pelo que se percebe, há pessoas para quem a opinião alheia pesa mais do que as próprias convicções.

No passado, tempo em que as oceânicas distâncias impediam o acesso às fontes europeias da cultura e da elegância, as famílias abastadas destas rudes plagas enviavam os filhos à França, berço da “noblesse” e do conhecimento de então. Nossa fonte cultural, como os mais vividos recordam, desde então, recende os seus inegáveis eflúvios franceses. Só nas últimas décadas é que se impôs o domínio cultural norte-americano, que hoje todos conhecemos. Assim como o embrutecimento nas relações humanas, que hoje todos suportamos. No seu tempo de estudantes, muitos adultos de hoje tiveram que estudar francês, não inglês, como atualmente. Alguns chegaram a estudar até latim, matriz da nossa língua e cultura.

A prática da elegância, do fino trato no relacionamento interpessoal, era exigência de qualquer educação digna desse nome. Nem todas as normas eram evidentes ou de fácil assimilação. Por isso, muito se apreciavam os manuais de boas maneiras ou de civilidade, que os estudantes, especialmente os de colégio interno, eram obrigados a conhecer a fundo. Um dos mais divulgados, em todo o Brasil, desde os anos 30, foi o de autoria de Carmen D’ Ávila.

Mais recentemente, quem mostra interesse por saber o que fica bem em sociedade tem que recorrer à mestra Glória Kallil, consultora de estilo e de negócios ligados ao comportamento e à moda. Em matéria de etiqueta e elegância, nada escapa ao seu conhecimento.

Nunca me interessei por conferir o que ela fala ou publica. Nem me preocupou saber em que pensa ou crê. Mas um texto enviado por uma querida amiga levou-me a dar atenção a essa professora da arte de ser chique, como todos desejam. A página é longa, mas interessante. O pedacinho final diz assim:

“Para ser chique, chique mesmo, você tem, antes de tudo, de se lembrar sempre de quão breve é a vida e de que, ao fim e ao cabo, vamos todos terminar da mesma maneira, mortos sem levar nada material deste mundo. Portanto, não gaste sua energia com o que não tem valor, não desperdice as pessoas interessantes com quem se encontrar e não aceite, em hipótese alguma, fazer qualquer coisa que não lhe faça bem, que não seja correta.

Lembre-se: o diabo parece chique, mas o inferno não tem qualquer glamour. Porque, no final das contas, chique mesmo é crer em Deus. Investir em conhecimento pode nos tornar sábios… mas amor e fé nos tornam humanos”.

Conforta saber que isso não é sermão de padre nem de pastor. Afinal, a verdade independe de quem a profere.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 87

Mundanos espalham o medo no mundo e os humanos se recolhem rapidamente como cordeirinhos aos seus abrigos. Manhãs, tardes, noites ficam negras, pensares estacam, a vida encolhe. Lobos disseminam o ruim, o mal, o pior. O planeta é um caos programado. A insânia impera, domina, mata.

O vento espalha a verdade assoprando que a história se repete, as promessas de fim do mundo são pequenos apocalipses de tempos em tempos. A mitologia celta e as sibilinas dos romanos prediziam que no final dos tempos ocorreriam mudanças climáticas, decadência das classes sociais, maldade e o relaxamento dos costumes. Recordemos como chegaram os costumes na decadência do Império Romano.

A vida é infestada de males ? Eles são sazonais. Surgem de tempos em tempos. E sempre aparecem outros - novos ou antigos - que andam rondando nossas herdades físicas, psíquicas e materiais. Bem dizia o avô-filósofo, "onde está o homem está o perigo".
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXXVIII


Ante a paz dos pirilampos,
felizes na escuridão,
vão-se as mágoas pelos campos
e as dores também se vão!
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Ao ver a infância indo embora,
cheia de sonho e saudade,
comparo a uma flor que chora
dando adeus à mocidade!
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As mágoas têm seus agravos;
e, entre as maldades profanas,
o tédio carrega os travos
das amarguras humanas!
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As ondas, em terno açoite,
sob a nudez do luar,
tecem as vestes da noite
na areia branca do mar!
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A trova que afasta o tédio,
que provoca pranto e dor,
pode conter o remédio
para as angústias do amor!
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Bem mais difícil seria,
para manter minha calma,
fazer versos sem poesia,
e, versos pagãos, sem alma!
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Desfaz todos os entraves
e quebra todos os nós,
o timbre das notas graves
do canto dos curiós!
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Diante do altar e de joelhos,
curvo a cabeça ante a Luz
e, ouço os mais santos conselhos
que há no silêncio da Cruz!
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Eis que o amor, se justifica
pelo tempo que perdura;
quanto mais velho ele fica,
mais nos dá força e ternura!
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Juventude!... Ante os teus ais,
pelos teus frágeis acenos,
percebo cada vez mais
que existes cada vez menos!
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Minha rua, pobre e bela
e, eu sempre a quis pobre e nua;
na infância, eu brincava nela
sem ser criança de rua!
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Não sei por que tu partiste;
mas, te impedir, eu não pude,
porque entre nós, não existe
os sopros da juventude!
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Nas pétalas de uma flor,
deixei um recado assim:
– Se alguém tiver mais amor,
proteja essa flor, por mim!
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Nesta manhã, calma e mansa,
nós somos dois arrebóis
jorrando luz e esperança,
na esperança de outros sóis!
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O orvalho que molha a flor,
tem beleza e desencanto:
à noite, gotas de amor
e, à luz do Sol, vira pranto!
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O teu canto, ave canora,
na prisão, que alguém te deu,
tem toda a dor de quem chora
por alguém que já morreu!
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Quando tu passas dengosa,
a vida de amor se banha
e, minha alma preguiçosa,
a tua sombra acompanha!
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São tantos os teus desvelos
nesta fronte encanecida,
que ao contemplar teus cabelos,
contemplo a fronte da vida!
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Saudade - ao som da viola,
numa noite de luar,
na noite em que nos consola
faz a gente delirar!
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Se a desventura te amarga,
e tu, reclamas por isto,
pensa no peso da carga
dos braços da cruz de Cristo!
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Sigo com minha alegria
e, as horas comigo vão;
mas, se eu voltar algum dia,
as horas não voltarão!
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Sobre a vida, às vezes, penso,
à luz de tantas auroras,
que a vida é um sino suspenso
martelando a dor das horas!
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Teu nome, nunca enxovalhes
em busca de fama e glória,
que a verdade em seus detalhes
desfaz as farsas da história!
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Tristonha, e de alma sombria,
em tudo se complicava:
diante do pranto, sorria,
mas, ante o riso, chorava!
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Tuas cartas!... tuas cartas,
só me causam pranto e dor,
por tantas lembranças fartas
desses excessos do amor!
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Tudo que sobra em meu teto,
e a massa do pão, que amasso,
vêm da mistura do afeto
de tudo aquilo que eu faço!
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Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Enviado pelo trovador.

Machado de Assis (Vae Soli!)

Um dia desta semana, farto de vendavais, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, farto de ver como se descompõem os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais, farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silêncio sem quietação, peguei de uma página de anúncios, e disse comigo:

"Eia, passemos em revista as procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magnésias, sabonetes, oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas-de-leite, cobradores, coqueluche, hipotecas, professores, tosses crônicas..."

E o meu espírito, estendendo e juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto, mergulhou por uma coluna abaixo. Quando voltou à tona, trazia entre os dedos esta pérola:

Uma viúva interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruído, e também com meios de vida, que esteja como ela cansado de viver só; resposta por carta ao escritório desta folha, com as iniciais M. R..., anunciando, a fim de ser procurada essa carta.

Gentil viúva, eu não sou o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das mulheres. Ai de quem está só! Dizem as sagradas letras; mas não foi a religião que te inspirou esse anúncio. Nem motivo teológico, nem metafísico. Positivo também não, porque o positivismo é infenso às segundas núpcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não queres amar; estás cansada de viver só.

E a cláusula de ser o esposo outro aborrecido, fato de solidão, mostra que tu não queres enganar, nem sacrificar ninguém. Ficam desde já excluídos os sonhadores, os que amem o mistério e procurem justamente esta ocasião de comprar um bilhete na loteria da vida. Que não pedes um diálogo de amor, é claro, desde que impões a cláusula da meia idade, zona em que as paixões arrefecem, onde as flores vão perdendo a cor purpúrea e o viço eterno. Não há de ser um náufrago, à espera de uma tábua de salvação, pois que exiges que também possua. E há de ser instruído, para encher com as luzes do espírito as longas noites do coração, e contar (sem as mãos presas) a tomada de Constantinopla.

Viúva dos meus pecados, quem és tu que sabes tanto? O teu anúncio lembra a carta de certo capitão da guarda de Nero. Rico, interessante, aborrecido, como tu, escreveu um dia ao grave Sêneca, perguntando-lhe como se havia de curar do tédio que sentia, e explicava-se por figura: "Não é a tempestade que me aflige, é o enjoo do mar". Viúva minha, o que tu queres realmente, não é um marido, é um remédio contra o enjoo. Vês que a travessia ainda é longa, — porque a tua idade está entre trinta e dois e trinta e oito anos, — o mar é agitado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel e indefinível. Não te contentas com o remédio de Sêneca, que era justamente a solidão, "a vida retirada, em que a alma acha todo o seu sossego". Tu já provaste esse preparado; não te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro que uma companhia.

Pode ser que a esta hora já tenhas achado o esposo nas condições definidas. Não estás ainda casada, porque é preciso fazer correr os pregões, e tens alguns dias diante de ti, para examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; não vá ele sair, em vez de um coração arrimado à bengala, um coração com pernas, e umas pernas com músculos e sangue; não vás tu ouvir, em vez da tomada de Constantinopla, a queda de Margarida nos braços de Fausto. Há desses corações, nevados por cima, como estão agora as serras do Itatiaia e de Itajubá, e contendo em si as lavas que o Etna está cuspindo desde alguns dias.

Mas, se ele te sair o que queres, que grande prêmio de loteria! Junto à amurada do navio, vendo a fúria do mar e dos ventos, tu ouvirás muitas coisas sérias e graciosas a um tempo, seguindo com os olhos a fúria dos ventos e o tumulto das ondas livre, do enjoo, como pedia aquele capitão de Nero, e por diferente regime do que lhe aconselhou o filósofo. E a tua conclusão será como a tua premissa; em caso de tédio, antes um marido que nada.

Fonte:
Machado de Assis. Páginas Recolhidas. Publicado originalmente no RJ: Editora Garnier, 1899.
Disponível em Domínio Público

sábado, 15 de julho de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 12

 

Sammis Reachers (A fundação do MMA numa comuna gonçalense)

Demorou bastante para que eu aprendesse a devolver com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim, se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas), naquelas alturas ou profundezas da década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem em criar esta modalidade.

E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES.

Mas, como era isso?

Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos, muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio em troca de... tomar banho numa grande piscina, num casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim, também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo, vadiando até o anoitecer.

Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não apenas a areia era o recurso natural explorado pela comunidade. A areola*, com sua fina textura marrom, utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e também como terra para plantas, era outro recurso lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios.

Acontece que um empreendedor, um inovador desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou enxadada que seja. Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a escavar a areola, que era prontamente vendida. Quanto ao espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era facilitado pela diminuição do patamar da margem, já escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros” num mesmo local.

O inusitado foi que, numa feliz ação do destino guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio – que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho. Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou, presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado” escavado às margens do rio fora ocupado completamente por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo, atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que, com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.

Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já contava com um campinho mais acima do morro. E as areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O areal passou a ser campo de honra – não, não um cemitério – mas campo onde as honras entravam em disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao menos da ação dos pais.

Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até battle royale (todos contra todos) foi experimentada em nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala, qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela pequena e mambembe escolinha de gladiadores gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!

Aquilo se tornara também um campo de sadismo para alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles estimulavam os combates, impediam a fuga dos desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos pelos membros e balançando-nos como fardos que, após ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.

Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia – seus campeões.
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* Areola = (geografia) erosão que se efetua sobretudo lateralmente.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras)


Aquarela no jardim...
Aguada,
A natureza colore as pétalas
Sob a chuva fina
Ranhuras desenhadas
Revelam autênticas
Digitais divinas.
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A Torre
Que a cidade espia
Divide segredos
Com a lua cheia.
Cheia...
Cheia de sonhos e suspiros
Que dos apaixonados escapam.
Sedutora bolha de sabão!
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Bailarina

Como um pisar em solo sagrado
Com sapatílhas de cetim
A borboleta baila
Sobre as delicadas pétalas,
Leve, suave e respeitosa.
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Embrulhados
nas folhas secas
vão-se embora
meus desapegos
abrindo novos espaços
para os sonhos
e um amor sem medo,
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Estive ausente
Por algum tempo...
Mas minha alma cantarolava...
Assobiava...
Não para abreviar os dias
Mas sim
Para regar as flores
Que plantava pra você.
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Fé...
No espelho da minh' alma
Já vejo a felicidade
Sorridente a valsar.
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Derretem as areias do tempo
Passam as tempestades do mar
Uivam os lobos no deserto
E os ventos param de açoitar.
Intacto guardei meu amor.
De bem-me-quer
E malmequer
Não quis brincar
Senhora do meu querer
Não deixei-me despetalar.
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Hoje
Emprestei um sorriso
Do porta retrato.
Assim,
Ninguém percebeu
Que chorei.
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Manhã de inverno...
Mesmo ao sol,
As folhas não dispensam
O cachecol florido.
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Na mandala de pinha
Falha ou pinhão
A gralha azul tira na sorte
Talvez um sim
Quem sabe um não.
Ladainha nas copas verdes
Nas tardes frias do Sul
Desfolha a pinha
Ao passar o vento
Feito contas de rosário
Vindo tudo para o chão.
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Na porcelana antiga
Flores orvalhadas
Perfumes e saudades
Lembranças de você.
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Nas flores bordadas
Pela natureza
O perfume contorna cada pétala
Suaves dobraduras
em papel de seda
Acariciam meu olhar
De amor carente
Desenhando rimas
Colorindo versos
A árvore-menina
Toma um banho
De poesia
Faz a alma suspirar.
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Paz…
Repousou suas asas
Num equilíbrio perfeito
Sossegando o meu peito.
Calmaria de lua
Minhas mãos junto às tuas
Agradecem a Deus.
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Quando o amor
Acorda dentro do peito
A rotina vira instinto
E a aparente obrigação
Passa a ser satisfação
Ao ver o brilho
No olhar do outro.
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Saudade...
Barco quebrado no peito
Que sem ter outro jeito
Faz do coração
O seu único cais.
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  Silenciosos raios de sol...
A alma da orquídea
Desabrocha sedutora
Num arrepiante beijo batom.
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Tarde de inverno.
Na xícara de chá,
O amor-perfeito
Lembrando você,
Aquece o meu olhar.
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Tenho
Um céu particular
Nele
Só guardo coisas boas
E não é qualquer pessoa
Que tem acesso
Ao seu portal.
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 Trago tua imagem
aninhada em meu peito
como quem carrega
um escapulário.
Estala em mim os beijos
que em ti
nunca foram depositados.
Assim, na incompletude do desejo
namoro tua foto
revivendo um pouco do passado.
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  Venho a ti
Com a transparência da verdade.
Por isso,
Quando digo que te amo
É porque minh' alma
No altar do amor,
Te desejou primeiro.
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Fonte:
Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021.
Enviado pelo poeta.

Teófilo Braga (O véu)

Tive apenas um amigo na infância.

Sinto abrir este conto com a minha personalidade e, sem pretensões a humorismo, nem a estilo digressivo, conheço que a pessoa de um autor inculcando-se na sua obra produz o efeito desagradável, que o senso estético original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse também a palheta, o cavalete e os pincéis. O valor da personalidade pouco é, os antigos compreenderam-na perfeitamente, quando deram o nome de persona à mascara que o ator trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caráter, revelado na vontade, são imanentes (
inerentes) no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parênteses aí vão algumas linhas sobre a pessoa do meu único e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de seleta. Não nos demos de repente. Tínhamos o mesmo nome de batismo, fazíamos anos no mesmo dia, começamos a versejar ao mesmo tempo, a afinidade eletiva entre nós não provinha destas coincidências, nunca reparamos nelas; era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na escola fomos sempre antagonistas,  quando passamos a estudar latim, ficamos surpreendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horæ. Ainda os mesmos esforços, o mesmo orgulho.

Então já nos consultávamos sobre alguma dúvida de sintaxe, como de potência a potência. Mais tarde encontramo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as preleções estúpidas de lógica, a lógica que nos havia de tornar maus, capciosos, ergotistas (
gosto de argumentar por silogismos). Já não nos temíamos, éramos amigos, tínhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidências estreitar mais esta afeição. Foi ele o primeiro a faze-las. Não sei se era amor, compaixão ou cinismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

«Eu tive uma prima, não sei em que grau, culpa das sutilezas canônicas. A pobre criança possuía uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A cor morena dizia tão bem com as linhas nítidas da fisionomia árabe, que ela sabia animar com um ar doloroso de uma melancolia expressiva, que se lhe refletia na face! Eu ficara órfão de mãe e acostumara-me a brincar sozinho; ela procurava-me na minha solidão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incomodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indiferença e para disfarça-la trepava acima das árvores carregadas de frutos do pomar onde passávamos o verão, e de lá deixava cair aqueles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ela aparava-os no regaço com a afabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

«Afinal teve vergonha de mim; corava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. Neste tempo contava eu algumas lições de desenho, os meus arabescos tinham uma frescura de inocência, uma rudeza que parecia uma criação de pura arte medieval. Eu tinha a monomania (
ideia fixa) de esboçar cabeças. Não sei quem na família, me pediu que fizesse o retrato dela. Fiz-o. O caso deu-lhe uns longes de semelhança, tive vergonha da verdade; quando ela me agradeceu com um sorriso tímido, eu rasgava o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a tornei a ver naquele dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa desta frieza brutal; a falta de carinhos perdidos logo no berço, a verdade desse verso eterno de Virgilio: “Est mihi pater domi et injusta noverca” (Eu tenho um pai em casa e uma madrasta injusta) tornaram-me taciturno, incrédulo antes do tempo. Às vezes obrigavam-me a brincar com ela. Uma vez fomos todos banhar-nos no Atlântico. A pobre criança também foi. As marés eram gigantescas; era dia para mim de um orgulho imenso, gostava que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a consigo. Desfaleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ofélia na corrente. Quem sabe se ela no seu coração tecia alguma coroa para mim.

«Abracei-a pela primeira vez, impelido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pálida. Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se encapelava. Fora o meu primeiro passo para homem.

«Nesse mesmo dia brincamos, jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. Neste folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos e abraços, ou a dá-los, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que brincava conosco, Anita, uma rapariga de uma candura extrema. Branca pediu-lhe em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim se deu. Um perguntava o que prometiam a quem tivesse o anel. Cada qual se lembrou de uma prenda inocente e sem significado; Branca prometeu um beijo e um abraço muito apertado.

«Eu não devia contar-te mais, porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo e Francesca di Rimini. Branca foi crescendo, tornou-se formosa à luz de uma esperança fugitiva, como a flor de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o calor efêmero do último raio do sol da tarde. Quando ela me sorriu com amargura, e corou de sua queda, sorri também por compaixão, iludi-a. Que fazer, se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gozar o mundo?

«Uma vez tinha eu voltado pela madrugada de uma festa louca. Dormia a sono solto, prostrado pela fadiga, esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces, acordei.

«Era ela! Apareceu desmaiada, como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma cor que lhe realçava a candidez, e disse-me:

—«Vim ver-te na despedida do túmulo. Desde que adoeci nunca mais me apareceste. O esquecimento é frio e pesado como a laje sepulcral. Eu não queria dizer-te isto, não quero magoar-te; perdoa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! Deu-me forças para levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir conta-lo a ti só. Como não choraria minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia; minha alma parecia voar, suspensa numa como cadência, vaga, quase imperceptível, confundia-se com ela até perder-se no céu. Acordei de súbito; restava-me só a ilusão. Olhei em volta, a lampadazinha tornava a solidão pungente, augusta; pavoroso o silêncio de meu quarto. Comecei a lembrar-me de ti, dos tempos passados,  estava já na terra. Foi quando descobri a meu lado uma aparência angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia: que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com ele, e sinto agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.

—E o que lhe respondeste?

«Disse-lhe que os sonhos mentiam sempre, que eles a matavam. — «Não são os sonhos que me matam, gemeu a desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigílias inteiras a pensar em ti! Cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e esperança; ao repeti-las na mente diziam-me quanto a alma ansiava, e mais ainda, mas enganaram-me sempre. Lembraste daquela noite? Oh! meu Deus, meu Deus. Não sabes quanto me fizeste sofrer! Não conheceste a profundidade do golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É impossível que isto não te doa? Quando me apareceste naquela noite era o luar tão sereno, tudo confidenciava conosco. Estava adormecida quando chegaste. Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo roçar da noite, porque sorriste de um modo incompreensível? Descobriste-me que não casavas comigo, que outro havia poluído a minha candura! Era uma blasfêmia brutal. Deixei-me cair em teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Iludi-te? Porque assim me fugiste? Uma lágrima só reabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.»

— E tu que lhe respondeste?

«Voltei-me sobre o outro lado, e continuei a dormir.»

— Prossegue.

«Foi um pesadelo atroz aquele sono. Julgava-me em uma orgia imensa, na hora ominosa (
funesta) do sabbat (sábado) noturno. Um bando de mulheres volteava reunido em uma roda desenvolta, num tripúdio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios que se cruzavam a espaços na solidão e obscuridade absoluta da noite. Dançavam como possuídas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e flexível, senti um leve suspiro a meu lado, que se perdeu nos ares. Era como o segredo de uma mágoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma balada dos peregrinos do Reno contada por Bulwer (escritor inglês). Junto a mim descobri uma figura de mulher linda, etérea; o semblante tinha a serenidade de uma grande agonia que cauteriza, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua desperta quando se reflete numa lagoa quieta. Era como um serafim quando chora. Não pude olha-la; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cinismo. A viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ela disse:

—«Não sabes como te amo ainda além da campa! O gelo do sepulcro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos me abrazaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais esse flagelo na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regozijo no céu, se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-iam na essência de um anjo, enlevadas num sonho de harmonia, até despertarmos no empíreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e sofrimentos, onde o meu espírito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês esta senda de alvura transparente? Estava quase a tornar-se brilhante de glória! Pedi a Deus este momento tão breve para poder agora ver-te; o gozo fugitivo de contemplar-te, a esperança de te achar triste, cismando em mim com pesar e saudade, a troco de mais cem anos de novos sofrimentos! Cem anos mais, depois de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado numa orgia dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.»  — E desapareceu-me, continuou, como um meteoro fugaz, quando passa nos céus, e deixa após si um rastro luminoso. Acordei.

«Em casa ouviam-se gritos, alaridos, como de um sucesso repentino e funesto. Fui lá ver. Disseram-me que Branca desaparecera. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo a levara consigo. Perguntei debalde. Passou-me pela mente um pressentimento horrível. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um estrondo surdo, como o anseio do último esforço numa luta desigual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada, mais veloz que a ondina da mitologia eslava, a pobre fora saciar os pulmões ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta dos fraguedos (
rochedos), o véu branco que levava flutuar ao vento, como num adeus de despedida. Ela sentira nesse instante a atração do abismo, lembrou-se daquela tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço à vida; quis morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu último sono.

«Comecei então a sentir uma paixão por ela, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beija-la, anima-la com o fogo do meu delírio, despedaça-la nestes braços convulsos, e cair também inanimada. Queria sentir bem junto do peito o contato gélido de um corpo que eu tantas vezes apertei, das faces que eu devorava, quando ela se dava aos caprichos da minha vertigem. Havia neste amor um pensamento de alucinado, um tanto de selvagem, de monstruoso; impelia-me uma inquietação contínua, sentia em mim como um ranger de puas (
espigões) do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu ia sentar-me também na rocha escarpada, a ver o mar, procurando a serenidade que me inspirava a contemplação do sepulcro da minha amada. Vinha visita-lo, à busca desse alívio de que fala o poeta do Oriente.

«Eram decorridos já três dias, não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma vontade fervente, absoluta, o desespero de torna-la a ver linda, roxa, nua, desfigurada. Era o mais que podia sofrer. Ia a maré na vazante, no fim da tarde, as ondas gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias, úmidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei inesperadamente o corpo de Branca estendido na areia. Era uma criança descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do corpo, viera deposita-la na praia. Ia a precipitar-me para ela, uni-la a mim no frenesi dessa loucura. Tive medo! Recuei sem encara-la. Temi profana-la com a vista; estava quase nua, de costas, com os olhos no céu, como pedindo à noite que viesse resguarda-la no seu manto de trevas. Quando tornei junto dela com o lençol para a envolver, senti uma ânsia de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadáver de Branca se voltara de bruços, furtando à vista profanadora o verticilo pudibundo (
púdico) da flor que eu fizera pender sobre o caule e cair murcha. O inexplicável deixou-me um terror que ainda me dura...»

Não tive ânimo para lhe pedir que continuasse.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

Richardson Mateus Souza Silva (Rotina )

Acordo às carreiras para ir no banheiro, rejeitado várias vezes no meio da madrugada. Entro e apoio a minha mão na porcelana branca de trás do vaso que fica do lado da descarga, pensando absolutamente em nada. Ainda com sono, o despertador do smartphone toca, insistente.

— Calma, meu amigo. Já estou desperto. Fica quieto.

Desacreditando que terei de trabalhar mais uma vez, desligo o alarme que tocou durante trinta segundos e que naquele momento, aparentavam ter mais tempo do que o combinado. Em meio aos bocejos e espreguiçadas, pego a escova de dentes dentro do armário amarelo que dependurei acima da pia.

Entusiasmado por ter escovado os dentes (que não são tão brancos assim, talvez pelo fato de ter fumado alguns palitos de cigarros do Paraguai), após tomar aquela xícara de café no copo transparente, presente de um parente que não lembro quem, exatamente dou graças à Deus, por estar vivo.

Ao sair do banheiro, olho para o roupeiro bagunçado e passo a mão na calça que usei na segunda-feira da semana passada, e, por ainda não estar suja, virou meu uniforme fiel até que não se reconheça mais a sua cor original. De igual modo, a camisa preta de mangas curtas tamanho GG, comprada no brechó da Igreja Católica por R$ 5,50, ficou tão confortável, que se eu tivesse sido o primeiro dono, ainda estaria com ela!

Flagro-me novamente procurando minhas chaves, que deveriam ter sido colocadas no gancho improvisado, gancho este parafusado em uma das prateleiras que ficam debaixo do painel da minha tevê de 42 polegadas. Por sorte não é Smart. Por igual ventura, bato no bolso direito do jeans azul claro, e encontro as preciosas.

Ato contínuo, me dirijo até a cozinha da quitinete alugada em que vivo, incrustada ao lado do centro comercial da Cidade onde moro. Por acaso não é a cidade, tampouco o bairro onde nasci.  Vim do interior de Minas Gerais, ou mais precisamente de Ipatinga. Pego o abridor de “fechaduras particular” e escancaro a porta do refeitório onde arrisco em comer alguns dos pratos que fiz no dia de ontem.

Saindo para o corredor do prédio, fecho a porteira, e me encaminho às escadas. Estou no primeiro andar em cima do térreo. Quando finalmente me encontro no portão que acessa a rua, lembro que esqueci do celular. Por mais trincado que esteja, ainda é útil. Dou meia volta e subo as escadas de volta a meu esconderijo. Espero que os degraus não enguicem. Finalmente agarro o celular com unhas e dedos. Mais dedos que unhas.  

Ao entrar na quitinete (a dita é minha até que o contrato acabe), passo perto da geladeira e assomo o portal do quarto. Quando pego o telefone, desbloqueio e percebo que hoje é domingo, e eu não tenho que ir para o trabalho.  Assustado com meu rotineiro costume, atiro-me na cama e ela me ajuda a voltar bem depressinha para os aconchegos de um novo dormir.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 32: Tela Nua

 

Marlene Campos Vieira (O tapete amarelo)

Chego na janela e vejo o tapete amarelo.Fico ali parada, viajando no tempo. Meus olhos fixos no tapete de flores amarelas que a árvore da casa ao lado floriu e se cobriu, despejando pétalas na frente da minha janela.

Por certo é um presente, uma declaração de amor da natureza cobrindo exatamente o meu lugar, o nosso lugar: o universo.

Estar ali na janela fazendo minhas viagens interiores, correndo pelos jardins suspensos da Babilônia, deitada no tapete amarelo é tudo que faço ao acordar. Muito colorido sem nenhum borrão, arte do artista divino de imensa imaginação.

Logo bem cedo pássaros cantam pulando de galho em galho celebrando um novo dia. As abelhas trabalham incansáveis, são flores incontáveis para extrair o mel. Essa é a essência da natureza: fechar os ciclos, encerrar os capítulos, esquecer-se do inverno e viver a ardente primavera.

Assim vou cultivando meu interior, namorando o tapete amarelo, agradecendo ao artista maior que com esmero o produziu.

Parece tão inacreditável que o vizinho plantou uma árvore e ela fez um tapete para mim. Que majestoso! Todos que passam por ali também podem pensar assim. Vou viver o amarelo, é a alegria da cor, fotografar em minhas pupilas esse acontecimento inesquecível. Fazer uma gravação no CD da minha memória e passá-lo sempre, ouvindo o cantar alegre dos pássaros na árvore amarela.

Penso no hoje, no agora, na minha alma colorida de um amarelo vibrante, o amanhã fica a cargo do artista e seu pincel mágico. Viver é se refazer sem medo de ser feliz, então o inesperado acontece e aparece um tapete amarelo na sua janela.

A natureza convida: fechar os ciclos, abrir-se ao novo, voar no tapete amarelo…
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Educadora, escritora e membro titular da cadeira 29 da Academia de Letras de Teófilo Otoni.
Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni. A essência da vida. in Revista Café com Letras. ano 10. n. 10. Teófilo Otoni/MG: ALTO, dez. 2012

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXXII


" Tudo Esqueço... "

Tudo posso esquecer em minha vida
inquieta e livre como uma enxurrada:
- a ilusão, num segundo, mais querida...
- a mulher, num segundo, mais amada...

a visão de algum trecho azul da estrada
entre ternos carinhos percorrida;
- uma história que um dia interrompida
nunca mais afinal foi terminada!

Os desejos... os sonhos... os amores...
que julgo eternos, e que por enquanto
despetalam-se e morrem como flores...

Esqueço tudo! O que passou, morreu!
Só não consigo me esquecer no entanto
da primeira mulher que me esqueceu…
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" Último Vestígio "

Tu deves te lembrar: aquela casa antiga
entre o verde bambual e a frondosa mangueira,
- a varanda, a esconder-se sob a trepadeira,
e o riacho a marulhar sua velha cantiga...

As flores... o jardim... a estrada, uma alva esteira
onde nós a sonhar andamos sem fadiga
olhando para o céu - tudo isto, minha amiga,
mudou... A nossa vida é mesmo passageira...

As paisagens de outrora, estranhos transformaram:
- o jardim... o bambual... a estrada, e até nem sei
se as águas do regato os anos não pararam...

Uma coisa, porém, existe, eu vi depois:
- é aquele coração com os nomes que gravei
no tronco da mangueira a relembrar nós dois!…
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"Uma Palavra, Um Gesto..."

Não quiseste, - ou quem sabe? ... vacilaste na hora
em que esperei de ti uma palavra, um gesto...
- bastaria um olhar quando me fui embora,
um olhar... e eu feliz entenderia o resto...

Mas, não. Nem um olhar, num um vago protesto,
em um tremor na voz de quem sofre e não chora...
Ah! teria bastado uma palavra, um gesto,
para tudo, afinal, ser diferente agora...

Parti! levou-me a vida, ao léu, e redemoinho...
Hoje, volto, - e tu me olhas a falar de amor
e me entregas as mãos num gesto de carinho...

E evito teu olhar... E não me manifesto...
- É que, já não te posso dar, seja o que for,
nem mesmo uma palavra de esperança, um gesto…
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" Uma Resposta "

Não sabes a alegria em que fiquei
ao ler o que escreveste - o teu cartão
veio um pouco aquecer meu coração,
que de há muito na sombra sepultei...

A tristeza tornou-se-me uma lei
neste estranho pais da solidão...
- já nem sei como vais, nem como vão
aqueles que há mil anos já deixei...

Não penses mais em mim... Sou como um monge,
- não voltarei jamais para a cidade
e o tempo em que me falas vai bem longe...

Fizeste bem em não me acompanhar...
Tinhas toda razão... Felicidade
só eu mesmo encontrei neste lugar !…
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" Vaidade "

Tua vaidade é como um deus antigo
exige sacrifícios aos seus pés...
Olhar-te, é desafiar algum perigo,
amar-te, é procurar algum revés...

Olhei-te, e desde então teus passos sigo...
Amei-te, e mesmo assim. não sei quem és...
Meu amor, pobre amor, quase o maldigo,
talvez seja outra vitima a teus pés...

Amores, esperanças e desejos
ardem nos castiçais dessa vaidade
ao incenso sensual que há nos teus beijos.. .

Eis que te trago aqui meu coração.
Já de nada me serve, se em verdade
converteu-se a tão fútil religião!
Fonte:
JG de Araújo Jorge. Meus sonetos de amor. RJ: Ed. do Autor, 1961.

AJ Fontes (A primeira ficou)

A lâmpada na linha da cumeeira clareia as meias paredes que separam do dormitório e da copa, o quarto onde apetrechos de caminhadas e acampamentos cabem numa caixa organizadora, livros, dicionários, agendas antigas em outra e sabão em pó, desinfetante, água sanitária, pasta dental e papel higiênico numa terceira. Juntei a mesa plástica desmontada, o saco de ração, sapatos, retirei roupas penduradas na corda atravessada.

O chão está limpo e coberto por panos, faz dois dias.

Passava das oito da noite quando trouxe Amora, a negra e grande cadela. Desde cedo da tarde se mostrava inquieta na área de serviço. Silenciosa, procurava meu olhar, caminhava pelos cantos, raspava o chão e a parede com a pata dianteira.

Instalei uma espreguiçadeira e, sentado, assisto aos movimentos repetidos: vai e vem, rói um canto da parede, deita e dá um grande suspiro e perde o olhar no cansaço. Não adiantou os cuidados em evitar a prenhez. Um descuido e não a encontrei no quintal. Os dias seguiram, o apetite aumentou; buscava lixo e voltou, após nova escapada, com um bafo terrível de cocô. Saltou aos meus olhos o cansaço e o corpo redondo.

O imponderável presenteia o incauto e o cuidadoso. O pacote colorido, laçarote brilhante traz surpresas variáveis no valor, afinal são diferentes os olhos e corações que recebem.

A situação inusitada me excitou, confesso. O desconhecimento do pai não foi problema. Preocupei-me com a saúde dela. Cuido de Amora faz poucos meses. A suposta idade acima de cinco anos e várias barrigas, além do coração aumentado, segundo o veterinário, trouxeram dúvidas quanto a capacidade do corpo suportar mais essa.

Cochilos sucedem às observações da cena repetida.

Lembrei das horas angustiantes antes do nascimento do primeiro filho, da correria em busca do anestesista durante o parto do segundo. Será difícil carregar a aquele ser com seus cinquenta quilos até o carro, dirigir até a cidade mais próxima, cerca de vinte e cinco quilômetro do sítio onde estamos.

Ela aparenta estar bem. Sofre as dores, mas o comportamento é de uma conhecedora do assunto. Cabe aguardar.

Impressiona-me a força da mulher. Nós homens não temos como avaliar, embora se diga: expelir uma pedra dos rins pela uretra se aproxima ao sentimento físico, mas é físico. Não conseguimos ao menos imaginar outros sentimentos. Sentir, em um instante, algo novo acontecendo dentro do corpo e acompanhar as mudanças de ambos até que esse novo se projeta aos nossos olhos, iniciando um caminho só dele, mas com marcas, visíveis ou não, dessa união ímpar.

O canto dos pássaros anuncia a chegada do sol. Abro a janela e recebo os raios, frios ainda. Cuscuz, café, ovos, depois de um suco verde, revigoram. A amiga querida descansar, diz o ronco peculiar. Os afazeres me dividem entre ficar ou sair, mas o aparente estado de tranquilidade me encoraja. Carrego o medo no bolso da algibeira, de olho para que não se arvore em crescer, rasgar as calças e me arrastar. Otimista, repito: está tudo bem!

Desliguei o carro e procuro algum som vindo da casa... nada ouço. Sem estar certo se é bom ou não desço levando compras. Largo tudo no balcão da área de serviço, e atendo o celular. Uma chamada de vídeo da namorada, buscando notícias da parturiente. Caminho para o quarto. Mostro Amora, surge um pacote translúcido, brilhoso, molhado. Silenciosa a mãe trata de remover a placenta, limpar os vestígios e massagear vigorosamente. O rebento chora.

Nasceu o primeiro!

Uma hora depois chega o segundo e nem bem se recompunha, o terceiro; tempo suficiente para os trabalhos de recebimento, um breve descanso enquanto tateiam e reconhecem o corpo e sons a partir desse novo ângulo e encontram as tetas. A vida se inicia aqui fora.

Não sei qual foi mais difícil de deixar: o ventre de minha mãe ou a casa de meus pais na juventude. Do primeiro sei o que contaram, mas busquei sair de casa desde cedo. Nesses dias o conforto, a segurança da família e a vontade de realizar as proezas imaginadas, eram os dois lados de uma gangorra.

Passa do meio-dia e perco mais uma vez a contagem. As cores variam do creme ao negrume da mãe. Um grito fino e apanho o desgarrado ou desgarrada, não sei. Cheguei a perceber um “o que você pensa que está fazendo?” no olhar e devolvi ao mesmo lugar. Seguiu-se um muxoxo e as lambidas na cria.

À tardinha, deitada, arfando, apenas observa o movimento caótico dos sete ou oito ou nove em busca de uma teta. Ajudei a limpar, juntei, com a permissão devida, todos e todas – aproveitei e fiz uma contagem que defini confiável de nove nascidos – passei panos molhados, troquei por outros secos.

Nos dias seguintes os olhos se abrem. Será que pensam eu ser o pai? Afinal me viram depois da mãe. Limpo a sujeira após as mamadas, correm de mim a esconder sob a casinha de madeira no manejo, fitaram meu rosto, as fêmeas e o macho, sentados no momento que acertava a adoção deles. Confesso que acelerei o processo ou ficaria com todos.

Passados dois meses, resta um cocozinho aqui, um xixizinho ali; sobram latidos, grunhidos, garrafas plásticas amassadas; fujo das mordidas nos calcanhares e Amora brinca; lagartas e o gato correm do assédio.

Paçoca, a primeira, ficou.
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AJ Fontes (Antonio José de Oliveira Fontes) - Participou de coletâneas, publicou livro de contos Mantas e Lençóis.

Fonte:
Flávia Suassuna (coord). Rede solidária: coletânea de textos. 2021.
ebook enviado por Therezinha D. Brisolla

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 2: Noite de Super Lua

A dez passos do portão de saída da fazenda, ficava o "Peleando contra o Trago”, armazém antigo do seu Feliciano, um senhor gordo, de idade avançada e bigode largo. O armazém era ponto de encontro dos homens em suas horas livres.

Ali, eles se reuniam para acender o fogo de chão, tomar mate, e preparar o velho e bom churrasco. Em suas rodas de conversa, assim como sempre fizeram os pescadores à beira do cais, contavam causos. Nem tanto sobre o mar, mas, principalmente, sobre as famosas lendas do Rio Grande, que para muitos, não eram lendas. Alguns nem conheciam o significado desta palavra: LENDA. Os moradores da região costumavam crer em seres das culturas folclóricas. Talvez, tais seres não sejam exatamente como dizem, mas que existem, existem, sim! Afirmava o povo.

A noite estava iluminada por uma Super Lua, e os viventes, inspirados, reunidos ao redor do balcão do armazém entraram noite adentro contando as tais estórias ou histórias como muitos acreditavam ser.

Todos sabem que esses contos são cheios de personagens interessantes, e o protagonista da noite foi o Pedro, pois em noite de lua cheia ele nunca se juntava aos amigos.

Seu Feliciano, Juca, Simão e Juliano sempre notavam a ausência dele quando as noites se faziam claras.

- Pedro não veio hoje. - disse o dono do bar saindo detrás do balcão, puxando conversa.

- E o motivo a gente já sabe. – disse Juca, enquanto saboreava uma tira de carne assada.

- Será que ele anda adoentado? - pergunta Arlindo, um velho agregado da fazenda Boitatá, terras vizinhas à "Prenda Bonita”.

- Mas o amigo Arlindo não sabe? - perguntou Juca.

Feliciano toma a frente da prosa e começa a contar as razões que levavam Pedro a sumir em noites de lua cheia.

- Pedro vem de uma família grande. Seus pais, que trabalhavam como lavradores aqui na redondeza, tiveram sete filhas mulheres. No oitavo e último parto, nasceu ele: o bendito fruto entre as mulheres...

- E o que tem demais nisso? - perguntou Arlindo.
 
- Quando um casal tem sete filhas, o oitavo,  se for homem, depois de adulto, vira lobisomem. Ah, e o mesmo vale para as mulheres. Eu acho...

- Verdade. - afirma Juca - Aqui ninguém duvida disso.

- Uns dizem terem visto o boitatá. Outros, contam histórias sobre lobisomem. Mas eu não acredito nessas coisas. - retruca Arlindo.

- Pois devia! - continua seu Feliciano - Há muitos anos Pedro vem se embrenhando por esses matos em noite de lua grande. E, depois, adivinha? Vira bicho e sai à caça. À caça de humanos. Dizem que em seus trajetos, ele vai parando de casa em casa para ouvir por detrás das janelas dos quartos, os gemidos dos casais se amando.

“Lobisomem é bicho solitário e por isso inveja os homens que podem ter esposas. Numa dessas andanças, mal sabia ele que por trás da janela de um dos quartos pelos quais passava e nada escutava, exceto algumas orações vez e outra, vivia Rosinha, admiradora secreta do Pedro lobisomem. Mesmo correndo riscos, certa noite, depois de ouvir incessantes uivos, Rosinha, uma flor de morena, resolve investigar o caso e acaba por descobrir o segredo de Pedro. Pelas frestas da janela assistiu a sua transformação. Encantada, certa madrugada esperou seus pais pegarem no sono, pulou a janela do quarto e, vestida com uma camisola vermelha e uma flor no cabelo, partiu seguindo os rastros do seu lobo uivante.

“Ao se deparar com o monstro, sorriu, despiu-se e, sem temor algum se entregou à fera.

“Os dois viveram um duradouro caso de amor. Mas o tempo foi passando, as novidades daquela experiência foram se esfriando. E Rosinha, preocupada com o seu futuro, achou por bem arranjar um noivo de verdade. Alguém que pudesse lhe oferecer um lar e filhos. O lobisomem Pedro descobriu a traição e armou uma emboscada para o casal enquanto passeavam numa noite de verão. Resultado: a fera matou os dois a golpes de machado.”

- Rosinha e o noivo foram mortos por ladrões! - exclamou Arlindo.

- Os pais da moça inventaram essa história de ladrões assassinos a fim de proteger a reputação da filha. - afirma seu Feliciano.

- Quem pode afirmar que essa história é verdadeira? - indaga Arlindo.

- A vó gorda.

- A benzedeira da região?

- Sim. - afirma o dono do estabelecimento.

O rapaz, pensativo, encerra as perguntas.  

- Pobre da Rosinha! - falou Juca em tom de lamentação - Posso imaginar a triste cena...  

Simão e Juliano não acreditavam na veracidade do crime, mas não opinaram. Preferiram ficar só a escutar o caso contado e recontado pelo dono do bar que, ao repetir o conto, sempre acrescentava algo a mais à história.

Fantasia ou realidade, o caso da moça com o lobisomem invadiu a madrugada. Os demais andantes que foram chegando para saborear a carne, o mate e a boa cachaça da região, também entraram na discussão sobre as verdades e mentiras do caso ou causo.

Só que naquela noite de lua cheia, a única verdade consumada é que Pedro, frequentador assíduo do churrasco que os peões faziam todas as sextas-feiras à noite no armazém, não apareceu.
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continua…
Fonte:
Texto enviado pela autora.