segunda-feira, 8 de abril de 2024

Olavo Bilac (Poesias para crianças) – 2


A AVÓ

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . .
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala . . .
Entram rindo e papagueando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando . . .

A velha acorda sorrindo,
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados*,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos, dourados.

Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
"Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!"

Então, com frases pausadas,
Conta historias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas . . .

E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem . . .
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* Engelhados = enrugados
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OS POBRES

Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, de pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai quando os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhe os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio do vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receieis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão . . .
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JUNHO

Coro de crianças:

Passem os meses desfilando!
Venha cada um por sua vez!
Dancemos todos, escutando
O que nos conta cada mês!

Junho:

Em chamas alvissareiras,
Ardem, crepitam fogueiras . . .
— E os balões de S. João
Vão luzir, entre as neblinas,
Como estrelas pequeninas,
Entre as outras, na amplidão.

Não há casinha modesta
Que não se atavie, em festa,
Nestas noites, a brilhar:
Não se recordam tristezas . . .
Estalam bichas chinesas,
Estouram foguetes no ar.

Fogos alegres, pistolas,
Bombas! ao som das violas,
Ardei! cantai! crepitai!
Num largo e claro sorriso.
Seja a terra um paraíso!
Folgai, crianças, folgai!

Coro de crianças:

Aí vem Julho, o mês do frio . . .
Vamos os corpos aquecer,
Acelerando o rodopio . . .
— Pode outro mês aparecer!
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O RIO

Da mata no seio umbroso,
No verde seio da serra,
Nasce o rio generoso,
Que é a providência da terra.

Nasce humilde; e, pequenino,
Foge ao sol abrasador;
É um fio d'água, tão fino,
Que desliza sem rumor.

Entre as pedras se insinua,
Ganha corpo, abre caminho,
Já canta, já tumultua,
Num alegre burburinho.

Agora ao sol, que o prateia,
Todo se entrega, a sorrir;
Avança, as rochas ladeia,
Some-se, torna a surgir.

Recebe outras águas, desce
As encostas de uma em uma,
Engrossa as vagas, e cresce,
Galga os penedos, e espuma.

Agora, indômito e ousado,
Transpõe furnas e grotões,
Vence abismos, despenhado
Em saltos e cachoeirões.

E corre, galopa, cheio
De força; de vaga em vaga,
Chega ao vale, alarga o seio,
Cava a terra, o campo alaga . . .

Expande-se, abre-se, ingente,
Por cem léguas, a cantar,
Até que cai finalmente,
No seio vasto do mar . . .

Mas na triunfal majestade
Dessa marcha vitoriosa,
Quanto amor, quanta bondade
Na sua alma generosa!

A cada passo que dava
O nobre rio, feliz
Mais uma árvore criava,
Dando vida a uma raiz.

Quantas dádivas e quantas
Esmolas pelos caminhos!
Matava a sede das plantas
E a sede dos passarinhos . . .

Fonte de força e fartura,
Foi bem, foi saúde e pão:
Dava às cidades frescura,
Fecundidade ao sertão . . .

E um nobre exemplo sadio
Nas suas águas se encerra;
Devemos ser como o rio,
Que é a providência da terra:

Bendito aquele que é forte,
E desconhece o rancor,
E, em vez de servir a morte,
Ama a vida, e serve o Amor!

Fonte> Olavo Bilac. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929.

Coelho Neto (As formigas)

À sombra de uma faia, no parque, enquanto o príncipe, que era um menino, corria perseguindo as borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis.

Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaçavam nos ares e ele não ouvia as vozes das aves nem dava pelos insetos: se levantava os olhos do livro era para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro.

Saiu, porém, o príncipe a interrompê-lo com um comentário pueril sobre as pequeninas formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma folhinha seca. Disse:

— Deus devia tê-las feito maiores. São tão pequeninas que cem delas não bastam para arrastar aquela folha que eu levanto da terra e atiro longe com um sopro.

O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu imperial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da natureza, disse-lhe:

— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as formigas... Ah! meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? Um conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do Tempo. São rápidos e a rapidez com que passam fá-los parecer pequeninos. São eles, entretanto, que, reunidos, formam as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as semanas, as semanas completam os meses, os meses perfazem os anos, e os anos, Alteza, são os elos dos séculos.

“Que é um grão de areia? Terra; uma gota d'agua? Oceano; uma centelha? Chama; um grão de trigo? Seara; uma formiguinha? Força. Quem dá atenção à passagem de um minuto? É uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.

“Ali vai um rio a correr — as águas passam aceleradas, ninguém as olha. Que fazem elas na corrida? Regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os minutos. 

“Quereis saber o valor de um minuto, disso que não sentis, como não avaliais a força da formiga? Entrai do mergulho na água e tende-vos no fundo — todo o vosso organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora! O ar de um minuto, que é isso? direis. É a vida, Alteza.

“Vedes a formiguinha que vai e vem procurando migalhas na terra — se a encontra e pode carreá-la leva-a; se é superior à sua própria força, recorre à companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a uma só.

“Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao formigueiro. Assim vós, meu Príncipe, pretendeis um conhecimento, ides ao livro que o contém e inclinais-vos sobre ele. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; desanimais, aborreceis-vos. Se lançardes de vós o livro ficareis sempre em ignorância, mas se persistirdes, apelando para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho franco da certeza.

“Assim é em tudo na vida. O que pretende governar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensinamento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com o seu juízo, chama a conselho os homens de mais experiência e tino, ouve-os, delibera com eles e, juntos, facilmente arredam o que, no princípio, parecia imóvel. Tudo é proporcional na vida. Deus não fez o insuperável. O “Impossível” é uma expressão inventada pelos fracos.

“O que é para a formiga um carreto, voa com o sopro débil de uma criança; o que é para o homem empecilho as águas levam de roldão; onde não pode a força de um braço supre-a o instrumento e, se ainda o embargo se obstina, então o homem apela para o homem como a formiga reclama a companheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave.

“Se eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o reino subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que nele há, a disciplina que o compõe, a harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula a sociedade dos insetos exemplares fácil vos seria governar o povo porque todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, males que tanto malsinam as sociedades.

“Qual é a força da formiguinha? É pouca para um grão de açúcar, entretanto, a formiga pode mudar montanhas se o formigueiro se ajunta em esforço solidário. Que é uma gota de orvalho? Um nada para o calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga concorrendo para o soçobro das maiores naus de guerra.

“Quereis ver a força da formiga, procurai-a no formigueiro, que é a união.” 

Assim falou o preceptor. E, como passasse uma borboleta azul e o príncipe saísse a persegui-la, abriu, de novo, o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura interrompida.

Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Bandeira Branca)


Composição de Laércio Alves / Max Nunes

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

(Pela saudade que me invade)
(Eu peço paz)

Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca, eu peço paz

Bandeira branca, amor
Bandeira branca, amor
Não posso mais, não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz

Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz
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O Apelo Emocional de 'Bandeira Branca'
A música 'Bandeira Branca', interpretada pela icônica Dalva de Oliveira, é um clássico da música brasileira que aborda o tema universal do amor e da saudade. A letra da canção é um apelo emocional de alguém que se encontra em um estado de profunda tristeza e nostalgia, causado pela ausência de um amor. A expressão 'bandeira branca' é tradicionalmente um símbolo de rendição, paz e trégua, e no contexto da música, representa o desejo de reconciliação e o fim do sofrimento causado pela separação.

A repetição do verso 'Bandeira branca, amor, não posso mais' enfatiza a intensidade da saudade sentida pelo eu lírico, que chega a um ponto insuportável, onde a única solução parece ser pedir paz, ou seja, buscar uma resolução para a dor emocional. A saudade é descrita como um 'mal de amor', uma 'dor que dói demais', o que reforça a ideia de que o sentimento é quase uma doença, um mal-estar que precisa ser curado. A canção transmite a mensagem de que, em face do amor e da dor que ele pode causar, às vezes é necessário baixar as defesas e buscar a reconciliação.

Dalva de Oliveira, com sua voz poderosa e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade do sentimento de saudade e a urgência do pedido de paz. A música se tornou um hino para aqueles que já sentiram a dor da saudade e a esperança de um reencontro amoroso. 'Bandeira Branca' é um exemplo da capacidade da música popular brasileira de capturar emoções complexas e universais, tornando-se atemporal e relevante em diferentes gerações.

Samuel da Costa (A epístola de Cassilda: Calibor, o doutor sono!)

Camilla, minha querida irmã! Digo que fiquei alarmada, mas não surpresa, com a tua última carta, eu bem queria te responder de outra forma, tamanha a minha aflição. Mas, por fim, uma carta é a melhor forma para nós duas, pelo menos no momento atual.

Infelizmente, a praga que você mencionou também chegou até aqui! Tu bem sabes, que por aqui a vida e o tempo se arrastam de forma lenta e com poucas mudanças. E, hoje, tenho saudades do bom tempo em que as nossas únicas preocupações sobre violências eram com os poucos roubos de bicicletas e de passarinhos furtados. 

Li e reli a última carta, que tu me enviaste e não pude fazer certas ligações com casos isolados, que ocorreram por aqui, as nossas pequenas tragédias. Lembras do Sebastião? O nosso velho Tião, da nossa meninice, sempre bêbado e sempre andando e caindo pelas ruas da cidade? Inofensivo, pedindo dinheiro para mais um trago, pois bem, depois de muitos tragos o velho Tião, um dia ao final da tarde, ele cai no meio da rua. Pois bem, pensamos que por fim tinha morrido, mas não morreu e a história é um pouco estranha. Um policial que fazia a ronda na praça da cidade, que o viu caindo no chão, verificou os sinais vitais e percebeu que o Sebastião ainda estava vivo, e o policial chamou uma ambulância. E assim foi o maltrapilho e barbudo Tião parar no hospital, na cidade vizinha. Camila, minha irmã, foi um fato trágico, embora mais que esperado. E poucos deram mais atenção ao fato em si. E outra tragédia veio para abalar a nossa calmaria, longe dos grandes centros.

Camilla, tu te lembras do Luide? O nosso bom amigo de meninices faceiras! Pois bem, tu bem sabes dos problemas mentais que ele teve quando era mais moço, andando sem rumo pelas ruas da cidade e indo e vindo pelas cidades vizinhas, até ser reconhecido por alguém e o levarem de volta para casa. Ele sempre falava sozinho, interagindo com gente e coisas que não existem. Pois um dia ele ficou mais agitado, gritava, chorava, ria, esbraveja, se encolhia em desespero e por fim era um pouco agressivo. Até que por fim, ele também caiu no meio da rua, no mesmo lugar e na mesma hora que Tião caiu. Também foi socorrido, os socorristas notaram que estava desacordado, e mais uma vez, mais um dos nossos foi socorrido ao hospital.

Essas duas tragédias, em três dias de diferença, não chamaram a atenção de ninguém com muita profundidade, e Camilla, nem o jornal e o rádio de nossa cidade mencionaram os dois casos. O padre, da nossa paróquia, na missa de domingo pediu para rezarmos pelos nossos irmãos convalescidos. E, também, nas pequenas igrejas neopentecostais e protestantes, os pastores pediram orações pelas duas pobres almas.

Camilla, o mais trágico vem depois, Arthur, que tu não conheceste bem, era filho da Glória, a nossa amiga de escola, tu bem sabes que ela era minha amiga, éramos inseparáveis. Se lembra dela estudando? A Glorinha, sempre na nossa casa e às vezes, ela dormia na nossa casa! E o papai nunca deixava eu dormir na casa dela, era sempre uma briga com papai e mamãe e eu a Glorinha sempre chorávamos, quando ouvíamos o não de papai.

Pois bem irmã, tu bem sabes que eu dou aulas de inglês, português e literatura na escola que Glorinha era diretora. A mesma escola, que a gente estudou e nos formamos. Pois, minha querida Camilla, por Deus, Camilla, fui eu que escolhi o nome do primeiro e único filho dela, Arthur. Sempre adorei as lendas do rei Arthur como bem sabes, Camila. Por Deus, Camilla, não se sabe como e nem por quais circunstâncias, o nosso jovem Arthur, o nosso doce Arthur, professor de literatura, muito querido por todos e todas, sempre calmo, estudioso e bem comportado, estava andando pelas ruas da cidade. Estava encharcado de sangue, balbuciando palavras ininteligíveis, era um idioma estranho que ninguém entendia. E ele caiu inconsciente, no mesmo lugar, por Deus, Camilla, foi no mesmo lugar, na mesma hora, no final da tarde. Em um espaço de três dias.

Assim como os outros casos, ele caiu desacordado e mais uma vez foi socorrido por uma ambulância e levado ao hospital. E te confesso que não tive coragem de avisar a minha amiga querida, a minha irmã de coração. Por Deus, Camilla, me contaram depois que a nossa Glorinha não estava mais viva, Arthur a tinha matado. Pensei em uma briga entre os dois, pois era sempre assim quando Arthur perguntava pelo pai dele, quem eram, se estava vivo e onde vivia. Eu mesmo nunca soube e nem perguntei quem era o pai de Arthur. Mas os vizinhos não ouviram nada, pois os dois sempre que brigavam faziam muito barulho. Mas naquele sábado, ninguém percebeu nada e somente um estranho silêncio reinava na casa.

Pois bem, Camilla, soube mais tarde que Arthur estava desacordado no hospital. Os três casos, em um intervalo de três dias. E nesta hora, que tu passas os olhos nesta carta, você deve estar se perguntando porque você, de nada ficou sabendo. Pois bem, você tinha acabado de sair daqui, para dar as tuas aulas de música e em meu amor infinito por ti, não imaginava você voltando para casa e não era justo para contigo. Aqui se repetiu o mesmo silêncio que acontece por aqui, um hiato inexplicável.

O que aconteceu depois, minha querida Camilla, algo muito estranho, para além das estranhas tragédias que abalaram a nossa calmaria interiorana. Uma equipe médica, veio ver os três pacientes. Você sabe que poucas coisas escapam de um universo tão pequeno como o daqui. Uma aeronave descendo em uma fazenda por aqui não passou despercebida. E quando sai de dentro da aeronave uma equipe médica, na luz do dia, fica muito difícil de se esconder. Desembarcaram aqui e depois foram para o hospital na cidade vizinha.

E um nome começou a circular pela cidade, Calibor, o doutor sono. Só depois fiquei sabendo que ele era um neurologista estrangeiro, reconhecido no mundo da medicina. Eu gostaria de não o ter conhecido, mas tive o desprazer de o conhecer, pois este homem era tudo, menos o que se espera de um médico mundialmente renomado. Soubemos de muitas coisas, porque muitos médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiras que trabalham no hospital, vieram viver por aqui na zona rural. Gente de fora que veio trabalhar no hospital.

Pois bem, Camilla, este sujeito passou por aqui, na nossa cidade, neste fim de mundo. Vi este homem de pele escura, sem um fio de cabelo na cabeça, rosto fino, um cavanhaque, parecia um egípcio. Não usava um jaleco branco como os médicos e o povo da saúde usam, ele estava usando um jaleco amarelo pálido.

E lá estava ele, analisando o local onde os três tinham caído, ele e seu séquito, homens e mulheres bem alinhados, e mais o diretor do hospital onde estavam os internados os infelizes cidadãos de nossa cidade.

Camilla, eu não queria ter visto, mas vi, pois do alvoroço da cena que tinha mobilizado a cidade, eu não escapei do canto da sereia. Eu vi quando o doutor tirou os óculos escuros e redondos de aro de tartaruga, as lentes eram espelhadas, vi os olhos dele, Camilla, os olhos não eram frios, e nem exalavam maldade, eram olhos blasfemos. Eram profundos, abissais e álgidos! Depois eles foram embora, como se nada fossemos, pois nem mesmo os políticos locais conseguiram convencer aquele homem estranho a ficar mais tempo na nossa cidade. Foram embora em uma limusine, levantando poeira.

Camilla, que cena, horrível ver aquele homem ali, eu senti na minha alma, eu bem sabia que algo de ruim estava por vir e veio. E o que passo a pensar que começou aqui, na nossa cidade, Camilla, vi nascer aqui a tempestade que te assola aí no litoral. É um sentimento meu, que guardo para mim e agora divido contigo. 

Da tua irmã Cassilda.

Fonte> Fragmento do livro Sono paradoxal, de Samuel da Costa. Enviado pelo autor.

domingo, 7 de abril de 2024

Trova ao Vento – 010

 

Beatrix Potter (O Conto de Jemima Pato)


Que visão engraçada é ver uma ninhada de patinhos com uma galinha!

— Ouça a história de Jemima Pato, que estava chateada porque a esposa do fazendeiro não a deixava chocar seus próprios ovos.

Sua cunhada, a Sra. Rebeccah Pato, estava perfeitamente disposta a deixar a incubação para outra pessoa – “Não tenho paciência para sentar em um ninho por vinte e oito dias; e você também não, Jemima . Você os deixaria esfriar; você sabe que sim!”

“Quero chocar meus próprios ovos; vou chocá-los sozinha”, grasnou Jemima Pato.

Ela tentou esconder seus ovos; mas eles sempre foram encontrados e levados.

Jemima Pato ficou bastante desesperada. Ela decidiu fazer um ninho longe da fazenda.

Ela partiu em uma bela tarde de primavera ao longo da estrada de carroças que sobe a colina.

Ela estava usando um xale e um gorro.

Quando chegou ao topo da colina, viu um bosque ao longe.

Ela pensou que parecia um local seguro e tranquilo.

Jemima Pato não tinha o hábito de voar. Ela correu morro abaixo alguns metros agitando o xale e então saltou no ar.

Ela voou lindamente quando teve uma boa largada.

Ela deslizou sobre as copas das árvores até ver um lugar aberto no meio da floresta, onde as árvores e os arbustos haviam sido derrubados.

Jemima pousou pesadamente e começou a gingar em busca de um local de nidificação conveniente e seco. Ela imaginou um toco de árvore entre vegetação alta.

Mas, sentada no toco, ela se surpreendeu ao encontrar um cavalheiro elegantemente vestido lendo um jornal.

Ele tinha orelhas pretas eretas e bigodes cor de areia.

“Quack?” disse Jemima Pato, com a cabeça e o gorro de lado – “Quack?”

O cavalheiro levantou os olhos acima do jornal e olhou curiosamente para Jemima.

“Senhora, você se perdeu?” disse ele. Ele tinha uma cauda longa e espessa sobre a qual estava sentado, pois o toco estava um pouco úmido.

Jemima o achava muito educado e bonito. Ela explicou que não havia se perdido, mas que estava tentando encontrar um local seco e conveniente para se aninhar.

“Ah! é mesmo? de fato!” disse o cavalheiro de bigodes cor de areia, olhando curiosamente para Jemima. Ele dobrou o jornal e colocou-o no bolso do paletó.

Jemima reclamou da galinha supérflua.

“De fato! Que interessante! Eu gostaria de poder encontrar aquela ave. Eu a ensinaria a cuidar da própria vida!”

“Mas quanto a um ninho – não há dificuldade: tenho um saco cheio de penas em meu depósito de lenha. Não, minha cara senhora, você não atrapalhará ninguém. Pode ficar sentada lá o tempo que quiser”, disse o cavalheiro de cauda longa e espessa.

Ele liderou o caminho para uma casa muito aposentada e de aparência sombria entre as árvores.

Era feito de lenha e turfa, e havia dois baldes quebrados, um em cima do outro, perto de uma chaminé.

“Esta é minha residência de verão; você não acharia minha terra – minha casa de inverno – tão conveniente”, disse o hospitaleiro cavalheiro.

Nos fundos da casa havia um galpão caindo aos pedaços, feito de velhas saboneteiras. O cavalheiro abriu a porta e conduziu Jemima para dentro.

O galpão estava quase cheio de penas – era quase sufocante; mas era confortável e muito macio.

Jemima Pato ficou bastante surpresa ao encontrar uma quantidade tão grande de penas. Mas era muito confortável; e ela fez um ninho sem nenhum problema.

Quando ela saiu, o cavalheiro de bigodes cor de areia estava sentado em um tronco lendo o jornal – pelo menos ele o havia aberto, mas estava olhando por cima.

Ele foi tão educado que parecia quase arrependido por deixar Jemima ir para casa passar a noite. Ele prometeu cuidar muito bem de seu ninho até que ela voltasse no dia seguinte.

Ele disse que adorava ovos e patinhos; ele deveria se orgulhar de ver um belo ninho em seu galpão de madeira.

Jemima Pato vinha todas as tardes; ela pôs nove ovos no ninho. Eles eram brancos esverdeados e muito grandes. O cavalheiro astuto os admirou imensamente. Ele costumava virá-los e contá-los quando Jemima não estava presente.

Por fim, Jemima disse a ele que pretendia começar a sentar no dia seguinte – “e trarei um saco de milho comigo, para que nunca precise deixar meu ninho até que os ovos choquem. Eles podem pegar um resfriado”, disse o consciencioso Jemina.

“Madame, imploro que não se incomode com um saco; vou providenciar aveia. Mas antes de começar sua tediosa sessão, pretendo lhe dar uma guloseima. Vamos fazer um jantar só para nós!

“Posso pedir-lhe para trazer algumas ervas do jardim da fazenda para fazer uma omelete saborosa? Sálvia e tomilho, e hortelã e duas cebolas, e um pouco de salsa. Vou providenciar banha para o material – banha para a omelete”, disse o cavalheiro hospitaleiro de bigodes cor de areia.

Jemima Pato era uma simplória: nem mesmo a menção de sálvia e cebola a deixava desconfiada.

Percorreu a horta mordiscando pedacinhos de todas as espécies de ervas que servem para rechear o pato assado.

E ela foi até a cozinha e tirou duas cebolas de uma cesta.

O cão collie Kep a encontrou saindo: “O que você está fazendo com essas cebolas? Aonde você vai todas as tardes sozinha, Jemima Pato?”

Jemima estava bastante impressionada com o collie; ela contou-lhe toda a história.

O collie escutou, com sua cabeça sábia de lado; ele sorriu quando ela descreveu o cavalheiro educado com bigodes cor de areia.

Ele fez várias perguntas sobre a madeira e sobre a posição exata da casa e do galpão.

Então ele saiu e trotou pela aldeia. Ele foi procurar dois filhotes de cães de raposa que estavam passeando com o açougueiro.

Jemima Pato subiu pela última vez a estrada das carroças, numa tarde ensolarada. Ela estava bastante sobrecarregada com molhos de ervas e duas cebolas em um saco.

Ela voou sobre a floresta e pousou em frente à casa do cavalheiro de cauda longa.

Ele estava sentado em um tronco; ele cheirou o ar e continuou olhando inquieto ao redor da madeira. Quando Jemima desceu, ele pulou.

“Entre em casa assim que você olhar seus ovos. Dê-me as ervas para a omelete. Seja rápida!”

Ele foi bastante abrupto. Jemima Pato nunca o tinha ouvido falar assim.

Ela se sentiu surpresa e desconfortável.

Enquanto ela estava lá dentro, ela ouviu pés batendo na parte de trás do galpão. Alguém com um nariz preto cheirou a parte inferior da porta e depois a trancou.

Jemima ficou muito alarmada.

Um momento depois, houve os ruídos mais terríveis – latidos, latidos, rosnados e uivos, guinchos e gemidos.

E nada mais foi visto daquele cavalheiro de suíças de raposa.

Logo Kep abriu a porta do galpão e soltou Jemima Pato.

Infelizmente, os filhotes correram e comeram todos os ovos antes que ele pudesse detê-los.

Ele tinha uma mordida na orelha e os dois filhotes estavam mancando.

Jemima Pato foi escoltada para casa em lágrimas por causa daqueles ovos.

Ela pôs mais alguns em junho e teve permissão para ficar com eles, mas apenas quatro deles nasceram.

Jemima Pato disse que era por causa de seus nervos; mas ela sempre foi uma péssima babá.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Jemima Pato. Publicado originalmente em 1908 como The Tale of Jemima Puddle-Duck. Disponível em Domínio Público]

Carolina Ramos (Ramalhete de Versos) – 2


AOS QUE TANTO AMAMOS

Se, um dia, a chama deste sentimento
crescer tanto que seja refletida
em nosso olhar e a luz do encantamento
na alma não possa mais ser escondida,

que nos perdoem! - Tanto é o sofrimento
que o coração transporta, morto em vida,
que, se é vida ou se é morte, este tormento,
nem nós sabemos - dor não tem medida!

Não nos acusem, não, só porque amamos!
Lembrem das lágrimas que já choramos,
juntos e ao longe, de saudade loucos!

A estrangular no peito esta amargura
de conhecer do amor toda a ternura,
e, por vocês, tentar mata-la aos poucos!
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MEDO

Antes de ti, amor, havia o medo.
Um medo sem propósito, impreciso,
da vida... do futuro e seu segredo,
da mágoa que se esconde num sorriso!

E, agora, quem sorri é a própria vida
dissipando ansiedades e receios.
O amor, a surpreender, tudo elucida,
dosa emoções, afere devaneios.

Contudo, se mais cresce esta bonança,
inevitável sinto que germina
- tal fora do destino cruel vingança -
um medo diferente, que fascina!

Treme a alma! E meu ser sofre, assustado,
ante essa angústia que desconhecia:
- o medo... o maior medo e o mais odiado,
o medo de perder-te... enfim, um dia!
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NINHO DE AMOR

O mar, cantante, a se estender lá embaixo...
O sol brincando de dourar o mundo...
À noite, a lua, a erguer o níveo facho,
prateia as folhas com palor profundo...

Contemplo, do alto, o farto e louro cacho
da palmeira que alcanço, num segundo...
basta estender a mão… verde penacho,
lembra a esperança de que enfim, me inundo!

Ah! deste quinto andar, vejo (tão linda!)
a paisagem lá fora! Mas, ainda,
me falta alguma coisa... um terno quê:

- Mais perto das estrelas, sinto, embora,
que para o ninho, onde a saudade mora,
ser céu, está faltando só… você!
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PAI

Pai! - que múltiplas faces tem a vida!
Quanta perfídia! Quanta voz sedosa,
ocultando a sutil arremetida
da serpente traiçoeira e venenosa!

Ah! Meu Pai, não me deixes desvalida!
Temo a peçonha da ralé maldosa,
que se faz doce e é quase fratricida;
- o vento, aos beijos, também mata a rosa!

É tanta a angústia deste cruel momento,
que chego a repetir em desalento,
as palavras amargas de Jesus,

Pai, oh! Meu Pai, por que me abandonaste?!
És o Amor! - Por amar me castigaste?!
- A cruz é enorme! E o Amor, maior que a cruz!
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TEU OLHAR

No teu olhar, bem ao fundo,
olhar cor de mel, profundo,
há um menino sonhador.
Tristonho e meigo menino,
buscando ver no destino,
carinho, ternura e amor.

Esse menino é que eu amo!
E quando por ele chamo
e ele me fita sereno,
tudo mais desaparece...
- o tempo de andar se esquece!
- o mundo fica pequeno!

Só nós dois... nós dois, somente,
existimos, de repente...
tudo o mais não tem valia!
A marcha do tempo cessa...
pois é quando o amor começa,
que a vida, enfim, principia!

Há tanto enlevo no instante
em que teu olhar cantante
no meu repousa de leve,
que nossos olhos se beijam
e nossas almas almejam
repetir o beijo, em breve!

Como a vida fica bela!
Corais cantam à capela,
em suavidade sem par!
Tudo é sempre vez primeira,
não há sombra derradeira
na ternura deste olhar!

Teu olhar traduz afago,
igual à brisa num lago,
que é carícia em arrepio...
É doçura... é sonho à espera.
- do outono faz primavera
e aquece quando faz frio!...

Se eu pudesse... (e o verso é prece)
ser réstia de sol... pudesse
ser um raio de luar,
eu juro que, noite e dia,
dia e noite eu guardaria
meu olhar... no teu olhar!
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Fonte> Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.  
Livro enviado pela poetisa.

Newton Sampaio (Inspiração)

O grupo ficou estatelado com a saída absurda de Damião. Que diabo acontecera ao rapaz? Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.

— Ora, já se viu?

O Silvino engole violentamente o resto do cafezinho, em sinal de protesto. Mas o Damião caminha, na rua deserta, indiferente à fúria do Silvino. Nem sente direito o vento que corta a cidade de ponta a ponta.

— Eta invernão!

A caminhada não é longa. Damião sobe a escada de três em três degraus, fecha a porta à chave. Toma posição, sem mesmo despir o sobretudo.

Maciazinha, a pena do bico de pato! Uma beleza, de macia... Compraria meia dúzia delas, no dia seguinte. Imediatamente, porém, expulsa, do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de compra e de meia dúzia. Urge encetar a obra. Por isso escreve devagarinho.

Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.

Bota uma vírgula bem caprichada, no fim da linha. E repete, em voz alta:

— “Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.”

Bem esse, o começo que idealizara.

— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o desvelador. Desvelador... Vai bem. Vai bem.

Precisa de um complemento para destino. O destino tem que fazer qualquer coisa. Escreve:

“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”

— Muito comprida, essa linha.

Resmunga e olha o teto, vagamente.

— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na.. Vá lá.

(Pausa).

— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo? Será o tal pleonasmo?

Corre ao dicionário.

“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”

— Vem do grego, hein?

Sentencia o Dicionário Prático Ilustrado (edição revista, com 6000 gravuras, 110 quadros, 90 mapas e um suplemento extremamente útil sobre “tradução e aplicação das principais locuções latinas e estrangeiras” — ab imo pectore, abyssus invocat, alea jacta est, a quelque chose malheur est bon, etc., etc.): “Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância; legítima, quando propositada, para dar maior força à frase”.

— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Exatamente. Eu repeti, para dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com tudo passa para lembrar que tudo já passou.

Cresce, dentro de si, a imagem de Ofélia. Até parece um sonho.

— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.

A pena bico de pato trabalha febrilmente. Risca tudo, tudo, tudo. 

É o seguinte, o novo texto:

“Eu te sonhei assim, Ofélia querida.”

— Assim, de que jeito?

Cata uma ideia. Uma, duas, três vezes. Nada! Quase desiste. Então se lembra de que o casaco pesadão poderia ser o culpado do enguiço. Saca-o fora, incontinenti. Tem movimentos mais livres. E é com verdadeiro júbilo que encontra:

“Dama então pra mim desconhecida.”

— Querida, desconhecida. Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.

Corre dificílimo, o parto. Em todo o caso, sempre dá para terminar assim, a primeira quadra:

“Em cujo olhar todo cheio de candura.
Não lia a causa da minha desventura.”

— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.

Trabalha mais duas horas. De repente, exclama:

— Pronto!

Não parece mau, o verso final:

“Foi assim que te sonhei, Ofélia querida. Foi assim... Foi assim...”

Só então nota o cansaço. Os rins estão doendo.

Relê a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal. Depois, escreve o título, a lápis vermelho, em admirável cursivo:

“Eu te sonhei assim...”

Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Recordando Velhas Canções (Que as crianças cantem livres)


Taiguara

O tempo passa e atravessa as avenidas
E o fruto cresce, pesa e enverga o velho pé
E o vento forte quebra as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é

Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro que é fatal

Vê como um fogo brando funde um ferro duro
Vê como o asfalto é teu jardim se você crê
Que há sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver

E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou o amanhecer…
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A Esperança em Meio à Repressão: 'Que As Crianças Cantem Livres' de Taiguara

Do artista brasileiro Taiguara (1945 – 1996), é uma obra que transmite uma mensagem de esperança e resistência em um contexto de opressão. A letra da canção, repleta de metáforas, reflete sobre a passagem do tempo e as adversidades enfrentadas na vida, sugerindo que as dificuldades podem não ser exatamente aquilo que parecem à primeira vista.

O verso 'E que as crianças cantem livres sobre os muros' é particularmente poderoso, evocando a imagem de inocência e liberdade que contrasta com a repressão e o controle. Taiguara, conhecido por suas músicas de protesto durante o período da ditadura militar no Brasil, utiliza a figura das crianças cantando livres como um símbolo de um futuro onde a expressão não é mais cerceada e os sonhos podem ser perseguidos sem dor.

A canção também fala sobre a importância de aprender com o passado e usar essas lições para construir um futuro melhor. O 'livro sábio' que deixa em branco o que não é verdadeiro sugere a necessidade de discernimento e a busca pela verdade. A música de Taiguara é um convite para olhar além das aparências e encontrar a força para mudar a realidade, mesmo que isso exija resistência e luta.

Estante de Livros (“Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado)


artigo escrito por Jaqueline Machado (RS)

Jorge Amado, Amado Jorge, gratidão por nos presentear com Gabriela, Cravo e Canela, moça bonita dos temperos picantes...

Preconceito com esta e outras obras extraídas do seu imaginário até existe, mas sei que assim como eu, você deve rir disso.

Êta mundinho cheio de preconceitos. Haja paciência!

Mas voltando ao que interessa, analisando Gabriela, Jorge Amado fez uma dissertação.

“Eu acredito que ela tem um tipo de magia que provoca revoluções e promove grandes descobertas. 

Não há nada que eu goste mais do que observar Gabriela no meio de um grupo de pessoas. Você sabe o que ela me lembra? Uma rosa perfumada num buquê de flores artificiais."

Gabriela, que passou de retirante a cozinheira de seu Nacib, veio ao mundo com cheiro de cravo. E este seu perfume logo se misturou à sua cor de canela. Enfeitiçando o mundo inteiro. 

A menina cresceu em meio à pobreza, mas não se deixou dominar pelas amarguras de uma sina difícil: aproveitava o pouco que tinha com um sorriso no rosto.

Tinha um espírito livre e logo tornou-se dona de si. Seu Nacib, o árabe mais famoso da literatura baiana, e dono do bar Vesúvio, jamais conheceu outra mulher igual, sempre pronta para os afazeres da casa, e que sabia cozinhar como ninguém.

Pouco se zangava, vivia a sorrir. Feito menina, brincava com as crianças e com ele, ao entardecer fazia amor. 

E o seu amor era um amor diferente dos demais, um amor doce e ao mesmo tempo quente, cheio de sutis ais... 

Mas devido a algumas normas sociais, pra casar com seu Nacib, Gabriela não podia ser Gabriela: precisaria se transformar numa nova pessoa. Usar sapatos apertados, vestidos caros e acompanhar o marido em algumas conferências. Logo ela que gostava de circo. E tinha que se comportar bem. Muito bem, porque os coronéis, homens que podiam tudo, e assíduos frequentadores de cabarés, eram os que mandavam nos costumes da cidade. E em caso de suposta ou real infidelidade, como aconteceu com o coronel Jesuíno, a mulher era morta. Pois macho que é macho de verdade lavava a honra com sangue.   

O árabe não conseguiu domesticar sua amada. Por isso, eles se uniram, separaram-se e depois uniram-se novamente, porque numa sociedade de rosas artificiais, Gabriela era original. Simples e sensual. E sem ela, sem sua cor, seu amor e temperos, seu Nacib, o “Moço Bonito”, como por sua musa era chamado, não podia mais viver.

Fonte> Texto enviado pela autora