terça-feira, 16 de abril de 2024

Estante de Livros (“O Analista de Bagé”, de Luís Fernando Veríssimo)

Como muitos textos de Luís Fernando Veríssimo, O Analista de Bagé fez sua estreia em periódicos (revistas e jornais impressos em papel para quem não lembrar). Devido ao sucesso, virou livro pela L&PM, mas este primeiro volume não trazia só as histórias do analista, trazia outras crônicas de temáticas variadas e cotidianas do autor. Um pouco mais tarde, o Analista também viraria peça de teatro de grande sucesso.

O Analista de Bagé é uma sátira bem embasada e estudada da psicanálise. Ele se diz Freudiano mais ortodoxo que rótulo de Maizena, mas possui técnicas polêmicas como o joelhaço, trocou o divã pelo pelego e o vivente é obrigado a deitar por estar incluído no preço.

Apesar da fama, o Analista dividiu espaço com outras histórias do Luís Fernando Veríssimo; protagonizando dois livros – O Analista de Bagé e Outras do Analista de Bagé – e sendo um convidado ilustre em A Velhinha de Taubaté. Depois d´A Velhinha de Taubaté, o Analista não teve mais novas histórias (em prosa) contadas pelo Veríssimo.

Os demais contos de Veríssimo tratam de cotidiano, costumes, fatos engraçados da vida e da política da época. Sim, há política nessa mistura, e até nas histórias e declarações do analista. Sobretudo em A Velhinha de Taubaté, Luis Fernando Veríssimo se mostra um afiado crítico do poder e da ditadura militar.

O próprio Analista de Bagé critica a psicanálise. Afinal, nem todos os problemas são internos e pessoais. Muita coisa deve ser resolvida aqui fora, no social. Quando a psicanálise diz que tudo é interno, ela culpabiliza a todos e se torna cúmplice, afinal, gengiva não morde, mas segura os dentes.

A obra é uma coletânea de crônicas, mas a maioria das histórias é protagonizada pelo analista de Bagé, um psicanalista irreverente, que criou uma terapia revolucionária e inovadora: a Terapia do Joelhaço. Seu divã e sua sala de atendimento, assim como sua relação com a secretária, são abordados constantemente no livro.

O psicanalista fica tão famoso e requisitado que resolve criar um método de triagem, aceitando apenas casos graves ou difíceis. Sempre oferece chimarrão a seus pacientes e os convida a se deitarem em seu pelego (tapete gaúcho, feito de pele de carneiro ou ovelha, usado em arreios), que substitui o divã tradicional.

Alguns personagens são estereotipados, o que causa certo desconforto nos(as) leitores(as). Além disso, o protagonista faz muitas piadas machistas e apresenta um tom homofóbico. Não se sabe, contudo, se a obra tinha como objetivo provocar uma reflexão crítica sobre esses assuntos ou se realmente era a opinião do autor.

De qualquer forma, trata-se de uma leitura fluida, trazendo elementos do sul do país que são pouco conhecidos. O personagem se autointitula ortodoxo, mas tem uma maneira bem própria de aplicar os fundamentos da psicanálise.

Quando o paciente é homem, ele o recebe com um joelhaço, método que consiste em atingir as partes íntimas do analisado em questão. Assim, o leitor se diverte e se espanta com as histórias exageradas e as relações amorosas deste psicanalista.

Análise do estilo das histórias na obra

O Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, destaca-se por retratar a relação analista/paciente de forma jocosa, fazendo alusões ao regionalismo, à intelectualidade e à política nacional. A obra apresenta a identidade do homem gaúcho estereotipado, desde os costumes aos preconceitos, e, ao mesmo tempo, aborda temas de relevância mundial, como é o caso da psicanálise.

O protagonista da obra é o maior representante disso, pois se trata de um psicanalista que se pretende freudiano ortodoxo, mas com hábitos e intervenções marcadas por sua origem, Bagé. Curiosamente, Bagé é um município brasileiro do pampa gaúcho que faz fronteira com o Uruguai, o que, de certa forma, indica a linha tênue entre “regional” e “mundial” apresentada na obra.

Os contrastes tornam a narrativa intrigante, por exemplo, a imagem que se faz de um psicanalista, supostamente sério e intelectual, é quebrada ao encontrar um profissional que usa como técnica o “joelhaço” e como divã, o pelego. Nesse sentido, Veríssimo não só desmistifica a psicanálise como também aproxima o(a) leitor(a) de sua obra.

Ao usar uma linguagem acessível e acontecimentos do cotidiano mesclados ao humor, estrutura característica da crônica, o autor sentencia o próprio sucesso. O Analista de Bagé foi reeditado inúmeras vezes, transformado em quadrinhos e encenado no teatro.

Fontes>
– Texto de Rodrigo Rosas Campos para o blog Literakaos!

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Isabel Furini (Poema 57): Leveza

 

Artur de Azevedo (In extremis)

O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos. lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal.

Quero dizer que Gilberta - era este o seu nome - se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem condição certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambujens (pequenos lucros) adventícias.

O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.

- Deixe-a! – opinou o Viegas. – Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...

O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.

O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.

- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...

Gilberta corou e sorriu.

- Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem for que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não me parece que este homem te convenha, não tem posição social definida, não ganha bastante para tomar sobre os ombros quaisquer encargos de família, e - deixa que teu pai seja franco - não é lá muito bem visto no comércio... Não és uma criança nem uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.

Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.

De nada valeram os conselhos paternos.

Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermão, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!

Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Brígido sacrificou-se em pura perda.

Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.

Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento, depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três contos de réis. Já tinha posto alguma coisa de parte e contava mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.

O casamento ficou assentado.
* * *

O Major Brígido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.

Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises (expectoração de sangue) eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.

Nesta situação extrema, o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Brígido, e disse-lhe:

- Meu velho, eu vou morrer...

- Deixa-te de asneiras!

- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...

- Não se lembre agora disso!

- Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para as mãos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este não se oporá, talvez, a uma fortuna da qual participará mais tarde. A situação desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma moça solteira, casar-se-á com uma senhora viúva...

E acrescentou:

- Viúva e virgem.

O Major Brígido recalcitrou; que haviam de dizer? Seriam capazes de inventar até que ele abusara de um agonizante! Mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é
sagrada.

Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso.

A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:

- Meu pai, faça o que entender!
* * *

Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres, testemunhas, escrivãos, tabeliões, sacristãos, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.

As hemoptises tinham cessado.

Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.

Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.

- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.

- Mas as hemoptises...

- Que hemoptises, que nada. Hematêmeses (vômitos de sangue da mucosa gástrica), isso sim!

Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem à Europa com sua mulher. Era preciso por uma barreira entre ela e o Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlântico?
* * *

A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.

Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.

Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.

- Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!

- Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...

Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:

- E creia, Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos Cariocas. Publicado em 1928. Disponível em Domínio Público http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000080.pdf

Caldeirão Poético LXXXV

Elvira Drumond

FLORAÇÃO 

Ainda que capine a dor no peito
e extirpe todas ervas tão daninhas, 
não posso remover das “terras minhas”
alguns ressentimentos… (de que jeito?)

Ainda que revolva o campo eleito
à cata de vegetações mesquinhas, 
a força de tais plantas, se vizinhas, 
parece enraizar o meu defeito…

Mas quero, ao adubar o meu terreno, 
que a terra se renove no sereno, 
que o céu, lacrimejando, lave o chão. 

Que a graça de orvalhar cada esperança 
devolva a luz… (quem sabe a vista alcança)
e traga um novo tempo em floração!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fernando Antônio Belino

INSTÁVEL

O tempo, que nos prende em sua grade,
traz, alternadamente, bem e mal.
Não leva em conta gosto nem vontade;
espalha amor e dor, em dose igual.

Quem busca abrigo sólido, em verdade,
nem sempre alcança a salvação total,
pois chega, sorrateira, a tempestade
e faz da vida intenso lamaçal.

Não há, de fato, em nada, infelizmente,
o que garanta acerto permanente.
É muito instável nossa travessia!

As chances de vitória ou de fracasso,
descobriremos sempre, a cada passo,
na estrada em que seguimos, dia a dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Giliard Santos

AMPULHETA

A areia ali se move lentamente
Neste artefato frágil e incolor...
E em sua ação mecânica e silente,
Vai alcançando o bojo inferior.

Os grãos de areia nunca irão se opor
À lei da gravidade contundente...
Transcorrem, exercendo seu labor,
Cumprindo sua sina, tão somente.

Naquele artigo que hoje adorna a sala
A areia nunca volta, nunca entala
E vai, por ele, sendo consumida.

O tempo, em categórica faceta,
Trabalha assim, conforme essa ampulheta,
Levando, pouco a pouco, nossa vida.
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Jerson Brito

ESPERAS

Suplicam asas, numerosos pares,
estes desvairos do juízo, implumes,
porque me atingem, da lascívia, os gumes,
brilham banquetes de carnais manjares.

Se eu te levar, invadiremos ares,
infinitudes da paixão, ardumes;
abraçaremos vendavais, perfumes,
para Afrodite levantando altares.

Senhora, vem extravasar teu gosto,
deitar a seiva, colorir meu rosto,
apaziguar um coração aflito!

Tua presença me alimenta feras,
amansa lábios, adocica esperas
e satisfaz enclausurado grito.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Lucília Alzira Trindade Decarli

"PÁSSAROS" SEM RUMO

Feliz é o ser que encontra em seu caminho
doce aconchego e segue, vida afora,
sem conhecer a dor de estar sozinho,
exposto ao desabrigo, que apavora.

Há “pássaros” sem asas e sem ninho
– somente o sonho voa, quando aflora...
No mundo perambulam sem carinho
e a sorte, inexorável, os ignora.

Não falo, aqui, dos pássaros que cantam,
nem das revoadas rápidas, que encantam,
mas, sim, daqueles onde a mágoa assola...

Dos muitos “passarinhos” desnorteados;
 no alçar do voo incerto, encurralados
e, em meio às penas, presos na “gaiola!...”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Maurilo Rezende

SONETO DO AMOR INGENTE

Resipiscência* que conduz o meu futuro,
Nuvem azul que chove em forma de esperança,
Fadiga longa em que meu peito não se cansa,
Anseio vasto... Sentimento muito puro...

Toda importância dessas coisas que procuro,
A mão de Deus, o meu sorriso de criança...
Sombra que junto ao meu cansado corpo avança,
Luz que ilumina meu espírito no escuro...

Amarelados versos, páginas contadas,
Sonhos perdidos pelas curvas das estradas,
Caminhos ínvios, quase sempre... Mas eu vou...

Parte do céu que creio minha ser um dia...
Princípio pelo qual externo não seria,
Se já não fosse exatamente quem eu sou…
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*Resipiscência: Reconhecimento de uma falha que leva ao arrependimento e à vontade de remissão, da busca pelo perdão e do desejo de não voltar a cometê-la.
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Pedro Ornellas

FANTASIA

Na casa tosca e pobre a mesa parca;
coração cheio e mãos sempre vazias...
Fartura de ilusões e fantasias
no reino em que, soberbo, eu fui monarca!

Por sobre a areia fina dos meus dias
o tempo deslizou deixando a marca;
sulcos profundos que o meu pranto encharca
quando o passado volta em noites frias!

Como era doce a antiga brincadeira...
Meu trono: um simples banco de madeira,
e de esperanças meu castelo eu fiz!

Hoje, à mercê da vida que me afronta,
já não sou mais o rei do faz-de-conta,
já não sei mais brincar de ser feliz!
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Ricardo Camacho

VIGÍLIA

Desmaia a luz e a tarde, adormecida,
Na rubidez* pungente do poente
Que trouxe a treva rútila, regente
Da etapa escura e gótica da vida.

Abaixo da redoma enegrecida,
A noite expande-se na lei vigente,
Mostrando um ponto tão tremeluzente
Da chama de uma estrela esmaecida.

Bem perto, a lua, em nébula abraçada,
Caminha em direção à madrugada,
Na solidão do espaço encantador...

Vagando calmamente em horas calmas,
Na dimensão sonífera das almas,
Prossigo distraindo a minha dor.
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*Rubidez = rubor.
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Fonte> Academia Brasileira de Sonetistas Clássicos. Trilha 1. 6 set 2023.
https://www.recantodasletras.com.br/sonetos/7873455

Recordando Velhas Canções (O Barquinho)


Composição: Roberto Menescal / Ronaldo Bôscoli

Dia de luz, festa de Sol
E o barquinho a deslizar
No macio azul do mar
Tudo é verão, o amor se faz
No barquinho pelo mar
Que desliza sem parar
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo desse mar
E o Sol
Beija o barco e luz
Dias tão azuis

Volta do mar, desmaia o Sol
E o barquinho a deslizar
E a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho, coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz
Tudo isso traz
Uma calma de verão
E então
O barquinho vai
E a tardinha cai
O barquinho vai
E a tardinha cai

Volta do mar, desmaia o Sol
E o barquinho a deslizar
E a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho, coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz
Tudo isso traz
Uma calma de verão
E então
O barquinho vai
E a tardinha cai
O barquinho vai
E a tardinha cai
Vai, vai
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Navegando nas Águas da Bossa Nova com 'O Barquinho'
A música 'O Barquinho', interpretada por Nara Leão, é um clássico da Bossa Nova, gênero musical que surgiu no final dos anos 50 e início dos anos 60 no Brasil. A canção, composta por Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, é uma ode à leveza e à beleza dos dias de verão, utilizando a metáfora de um barquinho que desliza pelo mar para evocar sentimentos de tranquilidade e contentamento.

A letra descreve um cenário idílico, onde o 'dia de luz' e a 'festa de sol' criam o ambiente perfeito para o amor. O barquinho, elemento central da canção, simboliza a jornada suave e sem preocupações pela vida, assim como o movimento contínuo e harmonioso do amor. A música também faz uso de imagens poéticas, como o sol que 'beija o barco e luz', para transmitir uma sensação de união com a natureza e alegria existencial.

A canção termina com a imagem do barquinho voltando e a tarde caindo, sugerindo um ciclo que se completa, mas que também promete recomeçar. 'O Barquinho' é uma expressão da filosofia de vida da Bossa Nova, que valoriza a beleza das coisas simples e a serenidade. Nara Leão, com sua voz suave e interpretação delicada, captura perfeitamente o espírito da canção, tornando-a um hino atemporal à paz e à felicidade encontradas nos pequenos momentos da vida.

Contos e Lendas do Mundo (Holanda: O Herói de Haarlem)

Há muitos, muitos anos, vivia em Spaarndam, na Holanda, um menino que tinha cerca de oito anos.

O pai dele era guarda de comporta e, às vezes, deixava-o ir com ele até ao cimo do dique ou lá abaixo, à terra seca.

Numa tarde de outono que prometia tempestade, a mãe entregou-lhe umas panquecas e pediu-lhe que as levasse a um velhote que era cego e que morava no campo. O menino lá foi e ficou um bocadinho em casa do seu velho amigo.

Quando começou a chuviscar, disse-lhe:

- "Vou voltar já para casa!"

E, com o pratinho vazio debaixo do braço, atravessou o dique a caminho de casa. Mas mal tinha iniciado a caminhada, olhando em redor, reparou que o nível da água no dique tinha subido muito.

"Isto não é bom sinal", pensou e apressou o passo. 

O vento soprava com força e o nível da água subia cada vez mais. Começava a ficar muito escuro e o menino caminhava ainda mais depressa. Por fim, desatou a correr.

Mas, de súbito, parou. Ouvia-se ali um ruído estranho.

Seria o vento, uma tempestade prestes a rebentar? Deu mais alguns passos devagar. Aquele ruído era cada vez mais claro.

Não, o vento não era. O ruído vinha de dentro do dique. Mas de onde? E o que seria?

Com cautela, o menino desceu pelo dique e começou a procurar o sítio de onde vinha aquele barulho. Sim, agora já devia estar perto, porque o ruído se ouvia cada vez melhor.

“Oh, o que era aquilo?”

Espantado e assustado, o menino ficou imóvel. O seu coração começou a bater muito depressa. Dali jorrava um fiozinho de água. Não de cima do dique, mas de dentro do dique. Devia existir um furo. E se ele não fosse tapado depressa, todo o terreno ficaria inundado e também a cidade de Haarlem estaria ameaçada.

Apressadamente procurou o ponto de onde jorrava a água e depressa descobriu um buraquinho. Era um buraquinho muito pequeno, o seu dedo cabia lá mesmo bem justo. Então, o ruído da água a correr deixou de se ouvir e não saiu nem mais uma gota de água do dique.

"Agora tenho de ficar aqui quieto", pensou o menino, "porque se eu tirar o dedo do buraquinho, ele fica cada vez maior e então, e então..." "Socorro, socorro!" gritou com quantas forças tinha, mas ninguém o ouviu, porque ninguém atravessava o dique àquelas horas.

"Então tenho de ficar aqui até amanhã de manhã", disse o menino valentemente. E lá ficou, toda a tarde e toda a noite.

Ficou enregelado e completamente hirto. Teve a sensação de nunca mais voltar a poder mexer-se. Gritou pela mãe e gritou pelo pai, mas eles não o ouviam. Decerto andavam agora à procura dele.

E a noite avançava e o vento assobiava.

A água batia contra o dique. Era como se murmurasse: "Quero passar, quero passar!" Mas o menino ficou ali quieto, com o dedo enfiado no dique e nem mais uma gota de água de lá saiu.

Assim foi encontrado ao romper da manhã do dia seguinte por um frade. Então, foi logo socorrido e levado para casa.

Tinha salvo a cidade e o país de uma grande desgraça. Era um verdadeiro herói!

Fonte> Embaixada Real dos Países Baixos. disponível em Miluem

domingo, 14 de abril de 2024

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 39

Fonte: Facebook da trovadora
 

Isabel Furini (Quem pode ser escritor?)

Hoje quero falar de um fato curioso, aconteceu com Gabriel García Marquez. Ele enviou o seu livro “O enterro do diabo” para a editora Losada, da Argentina, e recebeu os originais de volta com uma carta do crítico espanhol Guillermo de Torre, o qual o aconselhava: “Dedique-se a outra coisa”.

Também o livro “Ninguém escreve ao coronel” foi recusado por Roger Caillois, da editora francesa Gallimard. Então, não desista se seu livro for recusado, se sua obra não entrar em determinado salão. Gabriel García Marquez teve seus livros rejeitados por editoras, por que você deveria acertar na primeira? Manet, sim, o grande Manet, em 1874, teve seus trabalhos rejeitados pelo Salão Oficial dos Artistas Franceses. Se Manet foi rejeitado pelos organizadores do Salão, por que um jovem artista quer desistir, se não for aceito no primeiro momento?

Tudo bem que é interessante a avaliação dos outros. Para os poetas, contistas e romancistas é importante a avaliação de pessoas dedicadas à literatura, para pintores e escultores é importante a opinião de críticos de arte e de artistas plásticos consagrados, mas se a avaliação não for elogiosa, nada de desistir. Talvez não falte a beleza na sua obra, talvez falte a sensibilidade de professores e críticos para perceber a estética de sua obra. É bom lembrar que se Gabriel houvesse acreditado no crítico Guillermo de Torre, famoso na época, o mundo perderia a chance de ler excelentes livros.

Eu presenciei uma professora de arte, tentando mostrar o seu grande conhecimento, numa exposição com quadros de mais de 50 artistas, lançar a frase venenosa: “Nesta exposição deixam entrar qualquer pessoa. Vejam esse quadro. Que horror!!!” Uma das organizadoras estava perto e anunciou: “Esse quadro é de um artista famoso de Portugal. Premiado em muitos salões”. A professora de arte ficou sem saber o que dizer... "Ah... Eu não gosto de pintura moderna".

Isso mostra que em arte muitos falam, mas poucos sabem. Ou seja, se o quadro era de um iniciante, era muito ruim, mas como era de alguém famoso, está tudo ótimo!

Se até García Marquez apanhou de crítico, como vamos confiar neles?

Lembrou-me de uma frase da atriz Elizabeth Taylor, que dizia que o bom de ser velho é que a gente não dá tanto valor à opinião dos outros. Eu já vi muitas pessoas desistirem antes de tempo. Só porque alguém que se acha o dono do mundo, porque tem um certo nome em arte ou literatura, fala que o texto não é bom ou que o quadro não é bom. Por isso acho que as pessoas devem saber que grandes mestres das artes e da literatura avançaram, apesar das críticas. 

García Marquez, indiferente à opinião do grande crítico, continuou escrevendo. É tudo o que um artista deve fazer. Lavrar o próprio caminho. Agora que passei dos sessenta, penso que tola fui ao acreditar na opinião dos outros. No momento, só acredito em Deus e em mim mesma. Isso é tudo o que um literato ou artista precisa para trabalhar a sua obra com autenticidade, longe dos modismos de sua época e de seu entorno.

O grande espadachim Miyamoto Mushasi, quando os alunos perguntavam: “É mais fácil vencer com espada curta ou longa?” O mestre respondia: “Nenhuma das duas, só espírito de vitória dá a vitória.”

O espírito de vitória, nisso eu acredito, gente, acredito mesmo!

Fonte> Literatura de Isabel Furini.
https://isabelfurini.blogspot.com/2015/12/quem-pode-ser-escritor.html

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) = 11 =


Ela
Era dissimulada,
Tipo
"Olhos de Capitu"
Até que um dia
"Caiu a máscara"
E o beijo
Deslizou
Pelo
Corpo nu.
= = = = = = = = = 

Nos olhos do menino
Madrugavam sonhos.
"Sem entender direito
O que era fé
Esperava pelo sol
Mesmo diante
Das "chuvas de nãos"
Que tentavam borrar
O seu sorriso.
= = = = = = = = = 

Sem
Palavras
Só você
Consegue
Desenhar
Um
Sorriso
No meu
Rosto.
= = = = = = = = = 

Ela gritava
Por felicidade
Até que um dia quase
a saúde perdeu.
Calou suas queixas
Em preces
Saboreando as urgências
Dos "agoras"
Como se fossem
Um delicioso
Pedaço de pão.
= = = = = = = = = 

Num
Bocejo
Vazio do tempo
Sonolentamente
Pingam estrelas
Adormecidas.
Vida
Que passa
Tão rápido.
= = = = = = = = = 

Chovia...
A janela do meu eu
Lacrimejava e a solidão,
Essa velha louca
Adormecida no porão
Da minh'alma,
Amanheceu
Resmungando
E arrastando
Os seus chinelos
Pela casa.
= = = = = = = = = 

Lágrimas.
Na carta
De despedida
Saem pingos
Em todas
As letras
E não
Somente
No “i”.
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Tudo passa.
Mas quando
Ela passou
Eu fiquei
"Parado"
Na dela.
= = = = = = = = = 

Silenciando
Meus
Abismos
Uma poesia
Pousou
Em meus lábios
Num suave
Beijo.
= = = = = = = = = 

Sem
Nenhuma pressa
No teu jardim
Pouso
O meu olhar
Feito
Um beija-flor
Apaixonado.
= = = = = = = = = 

Quando
O amor
Fala mais alto,
As vozes
Dos deuses
Silenciam.

(É que nada
mais era preciso
ser dito.)
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Com a porta
Entreaberta
Deixei que entrasses
No meu céu.
E no céu da tua boca
Gostosamente
A lua procurei.
Mas foi com
Os olhos fechados
Que estrelas
Enxerguei.
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Fonte> Daniel Maurício. Palavras de cheiro. Curitiba: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo poeta.

Recordando Velhas Canções (Meu Mundo Caiu)


Composição: Maysa Matarazzo

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar
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A Dor de um Coração Partido em 'Meu Mundo Caiu'

A canção 'Meu Mundo Caiu', interpretada pela icônica Maysa, é um clássico da música brasileira que expressa a dor e a desilusão amorosa. A letra da música retrata o sentimento de uma pessoa que teve seu coração quebrado e seu mundo desmoronado pela partida ou traição de um amor. A expressão 'meu mundo caiu' é uma metáfora para o impacto devastador que a perda ou o fim de um relacionamento pode ter na vida de alguém, sugerindo uma sensação de desorientação e desespero.

A música também aborda a ideia de independência e resiliência. A narradora da canção deixa claro que, apesar da dor, ela não pediu nada a ninguém e que a responsabilidade de se reerguer é dela mesma. Isso reflete uma mensagem de força interior e a capacidade de superar as adversidades, mesmo quando se está vulnerável. A frase 'Eu que aprenda a levantar' é um reconhecimento de que, embora o outro tenha causado a queda, cabe a ela a tarefa de se recuperar e seguir em frente.

Maysa é conhecida por sua voz marcante e interpretações cheias de emoção, o que confere à música uma intensidade que ressoa com muitos ouvintes. 'Meu Mundo Caiu' é uma música que, através de sua simplicidade lírica e melódica, consegue transmitir um sentimento universal de tristeza e ao mesmo tempo de esperança, característico de muitas canções de Maysa e da música popular brasileira da época.

Luís da Câmara Cascudo (O Príncipe Lagartão)

Uma rainha desesperava-se por não ter filhos. Uma vez, perdendo a paciência, pediu que Deus lhe desse um herdeiro mesmo que fosse com a forma de lagarto. Meses depois, deu à luz um lagartão.

Mesmo lagarto era filho do rei e tratado como príncipe, no berço macio e com o conforto do palácio. Sucedeu, porém, um fato: a primeira ama que entregou o seio para o lagarto mamar ficou sem o bico do peito porque o bicho torou, rente, com um apertão das gengivas. E assim a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, etc.

Ia ficando o palácio sem gente. O lagarto, que tinha a voz de menino, chorava com fome, bulindo com as patas como se fossem braços e pernas. O rei e a rainha, aflitos, vendo a hora do filho morrer de fome, ofereciam prêmios e ordenados altos a quem fosse capaz de alimentar o herdeiro do reinado.

Atraídas pelo dinheiro e pelos presentes, as amas compareciam mas todas ficavam sem o bico do peito, cortado pelo lagarto no momento de começar a mamada.

Perto do palácio real moravam umas moças órfãs, muito honestas e trabalhadeiras. A mais jovem era inteligente como uma fada e querida por quem a conhecia. Ouvindo contar a aflição da rainha, a mocinha, que se chamava Maria, foi oferecer-se para criar o príncipe Lagartão, como estava sendo apelidado.

A rainha, que simpatizava muito com ela, avisou-a dos perigos e perguntou se tinha leite. Maria explicou:

– Rainha, minha senhora! Mande fazer uma armação de ferro na forma de um seio. Enchemos essa forma com leite e o príncipe pode mamar sem ofender a ninguém.

Mandou-se fazer o seio de folha de ferro, cheio de leite, e Maria, amarrando-o ao busto, deu de mamar ao príncipe Lagartão, que ficou com as gengivas machucadas de tentar fazer o que fizera com as outras. Mamou, mamou, ficou satisfeito e adormeceu. O palácio sossegou e os anos foram passando sem alteração.

O príncipe Lagartão estava enorme, comendo tudo. Tinha os olhos e a voz humana. No mais, era um bichão de meter medo ao mais valente.

Quando ele ficou na idade do sacramento, disse para a rainha que precisava casar-se.

A rainha falou ao rei e ambos botaram anúncio no reinado para que as moças comparecessem ao palácio a fim de o príncipe Lagartão escolher sua esposa. Não apareceu ninguém. Não havia moça que quisesse casar com um lagarto, mesmo que o lagarto fosse príncipe.

O rei podia obrigar, mas ficou receoso de ser castigado por Deus pelo seu orgulho. Conversou com o príncipe Lagartão, contando o sucedido. O príncipe Lagartão disse:

– Não tem importância, Rei meu Pai. A noiva está achada e é Maria que me criou com o peito de ferro. Mande chamá-la e pergunte se quer fazer esse outro serviço por mim.

O rei disse à rainha e esta mandou chamar Maria e expôs todo passado. A moça pediu três dias para responder e foi rezar. Rezou, rezou, pedindo que Deus lhe mostrasse os caminhos certos. Voltou ao palácio e aceitou a proposta.

Fizeram o casamento no palácio. Maria ficou bonita como uma rosa e o noivo arrastava-se, todo vestido de seda verde, bordada de ouro e pedras preciosas. Houve banquete e lá para as tantas da noite o casal foi conduzido ao quarto.

Logo que entraram o príncipe Lagartão soprou a luz e ficou nas trevas. Maria mudou a roupa e deitou-se. Apesar do escurão a noiva reparou que o marido estava no meio do quarto, em pé, como um homem, e ia tirando uma por uma as sete capas, deitando-as ao chão. Quando arrancou a derradeira, estava um homem perfeito. Foi para o leito e Maria fingiu que nada vira.

Pela manhã, quando Maria acordou, já o esposo estava feito o grande lagartão esverdeado e feio. Foram para o café e os dias não trouxeram novidades.

A rainha, com a curiosidade de mãe, tanto perguntou, tanto perguntou, que a moça contou o que vira. A rainha lhe disse:

– Maria, vista sete camisas brancas, virgens de uso, molhadas n’água de laranjeira. Quando for para o quarto, fique na beira da cama, sentada, sem mudar a roupa. O príncipe há de perguntar por que você não troca a roupa. Você diga que só o fará ao mesmo tempo que ele. Cada camisa que você tirar, ele faz o mesmo com uma capa e você reza uma Ave-Maria. No fim, quando acabarem, você estira a mão para ele e espeta-lhe a ponta desse espinho, tirado da coroa de Jesus Cristo na Sexta-feira da Paixão. Faça o que lhe digo e seja feliz, minha filha.

Deu o espinho a Maria e esta, se melhor ouviu, melhor fez. De noite, na hora de dormir, sentou na cama, vestida dos pés à cabeça. O príncipe Lagartão, habituado com a mulher ir-se logo deitando para descansar, fez finca-pé e pôs-se como um homem, no meio do quarto, no escuro. Reparando que a mulher estava acordada e vestida perguntou-lhe se não ia trocar a roupa, como costumava. Maria respondeu que só mudava a roupa ao mesmo tempo que ele. O príncipe Lagartão, que usava sete capas verdes, achou graça, sabendo que ela não podia acompanhar, peça por peça, o número do traje dele. Disse que sim e tirou uma capa pondo-a em cima do tapete. Maria, mais do que depressa, tirou uma camisa e rezou uma Ave-Maria. E foram assim indo, camisa e capa, até as últimas. Maria então pôs a ponta do espinho entre os dedos e aproximando-se do marido, estendeu-lhe a mão. O príncipe Lagartão, sem maldar, apertou-lhe e soltou um grito. As sete capas ficaram transformadas em manto.

Imediatamente o quarto ficou claro como o dia e no meio estava um rapaz bonito, forte e benfeito, todo contente pelo fim do encanto. As sete capas ficaram transformadas em mantos lindos e as sete camisas em flores de laranjeira.

Maria e o marido acordaram o rei e a rainha, contando o caso e todo o reinado festejou muitos dias o fim da penitência, sendo o casal muito feliz.
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Nota sobre o Conto:

Aurélio M. Espinosa (Cuentos Populares Españoles, IIº, nº 131, 267) incluiu El Lagarto de Las Siete Camisas, ouvido em Cuenca. Difere o final. O lagarto despe as sete camisas e a mulher avisa a sogra. Esta queima as camisas e o príncipe fica mais encantado que nunca, desaparecendo para o Castillo de Irás y no Volverás. Se a esposa quiser vê-lo, deverá gastar, na caminhada, sete pares de sapatos de ferro e outros tantos gastará a criança que ia nascer. 

No conto espanhol a mulher é ajudada pela Mãe das Águias e recebeu nozes encantadas, presente da Virgem. Consegue ser reconhecida pelo marido comprando o direito de dormir no mesmo quarto, a troco de maravilhas que as nozes contêm. O príncipe está adormecido nas duas noites mas a vê na última e são muito felizes. 

É visivelmente, convergência de outros contos, comuns em Portugal e Brasil. A parte final do conto brasileiro parece-me mais pura. Acabar o encanto pela queima da pele encantada é o processo tradicional no fabulário europeu. No norte do Brasil assim termina o encantamento da Cobra Honorato, ou Cobra Norato, José Carvalho, O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (Belém, 1930, 21). 

Há os elementos C 750, D 621.1, D 700. Straparola (XIII Piacevoli Notte, noite-II, fábula-I) conta a “história” do Príncipe Porco, filho do rei d’Anglia. O Príncipe mata duas irmãs e casa com a terceira que o desencanta. A pele é rasgada, não podendo o moço, forte e bonito, voltar a usá-la.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.