quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 9


Aristheu Bulhões
(Maceió/AL, 8 junho 1909 – 31 outubro 2000)

" AMOR PROIBIDO "

"Crescei, multiplicai" - disse o Senhor
mas a sua palavra o mundo olvida,
porque na Terra, justamente o amor
converteu-se na coisa mais proibida.

Ama o sol, ama a planta, o inseto, a flor,
amam todos os seres que tem vida,
é uma aurora de afeto embriagador
a própria natureza colorida.

Somente ao homem se proscreve o culto
da amizade sem mácula e defeito,
que não tem ambição e afronta o insulto.

Bem mais humano é o animal bravio
que extravasa a ternura do seu peito
quando a força do amor explode em cio!
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Arthur Azevedo
Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo,
(São Luís/MA, 07 julho 1855 – Rio de Janeiro, 22 outubro 1908)

" ARRUFOS "
                                                         
Não há no mundo quem amantes visse
Que se quisessem como nos queremos...
Um dia, uma questiúncula tivemos
Por um simples capricho, uma tolice.

— "Acabemos com isto!", ela me disse,
E eu respondi-lhe assim — "Pois acabemos!"
E fiz o que se faz em tais extremos:
Tomei do meu chapéu com fanfarrice.

E, tendo um gesto de desdém profundo,
Saí cantarolando... (Está bem visto
Que a forma, aí, contrafazia o fundo).

Escreveu-me... Voltei. Nem Deus, nem Cristo,
Nem minha mãe, volvendo agora ao mundo,
Eram capazes de acabar com isto!

" TRANSEAT  "
                                                        
Tu és dona de mim, tu me pertences,
E, neste delicioso cativeiro,
Não queres crer que, ingrato e bandoleiro,
Possa eu noutra pensar, ou noutro penses...

Doce cuidado meu, não te convences
De que tudo na terra é passageiro,
Frívolo, fútil, rápido, ligeiro...
E a pertinácia do erro teu não vences!

Num belo dia - has de tu veres - desaba
Esta velha afeição, funda e comprida,
Que tanta gente nos inveja e gaba...

Choras? Para que lágrimas, querida?
Naturalmente o amor também se acaba,
Como tudo se acaba nesta vida.

" VEM... "

Escrúpulos?... Escrúpulos!... Tolices!
Corre aos meus braços! Vem! Não tenhas pejo!
Traze teu beijo ao encontro do meu beijo,
e deixa-os lá dizer que isto é doidice!

Não esperes o gelo da velhice,
não sufoques o lúbrico desejo
que nos teus olhos úmidos eu vejo!
Foges de mim?... Farias mal... Quem disse?

Ora o dever! - o coração não deve!
A amor, se é verdadeiro, não ultraja
nem mancha a fama embora alva de neve.

Vem!... Que o teu sangue férvido reaja!
Amemo-nos, amor, que a vida é breve,
e outra vida melhor talvez não haja!
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Assis Garrido
(Francisco de Assis Garrido)
(São Luiz/MA, 14 agosto 1899 – 1969)

" VÊNUS "

Deusa, a teus pés a flor das minhas crenças, ponho!
Mulher, eu te procuro, eu te amo, eu te desejo!
Para a tua nudez, — a gaze do meu Sonho,
para a tua volúpia, o fogo do meu beijo.

Divina e humana, impura e casta, o olhar tristonho,
cabelos soltos, corpo nu, como eu te vejo,
dás-me todo o calor dos versos que componho
e enches-me de alegria a vida que pelejo.

Glória a ti, que, do Amor, cantaste, aos evos, o hino,
que surgiste do mar, branca, leve, radiante,
para a herança pagã do meu sangue latino!

Glória a ti, que ficaste, à alma dos homens, presa,
para a celebração rubra da carne estuante
e a régia orquestração da Forma e da Beleza!
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Augusto de Lima 
((Nova Lima, então Congonhas de Sabará, 5 de abril de 1859 — Rio de Janeiro, 22 de abril de 1934)

" ALMAS PARALELAS "
                   
Alma irmã de minh'alma, espelho vivo
de outro espelho fiel, que te retrata;
alma de luz serena e intemerata,
cujo influxo de amor me tem cativo!

Bem sinto que em mim vives e em ti vivo;
no entanto (e eis o desgosto que me mata! )
de amor a doce vaga me arrebata,
e não posso atingir teu vulto esquivo.

O mesmo curso têm nossos destinos,
do gozo, o mel; da dor, os desatinos,
a um nada inspiram, sem que o outro inspirem;

mas, triste some! Ó bela entre as mais belas!
Eles São como duas paralelas:
- próximos correm, sem jamais se unirem!
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Augusto dos Anjos
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos
(Engenho Pau D’Arco/PB, atualmente Município de Sapé, 20 abril 1884 –  Leopoldina/MG, 12 novembro 1914)

 " IDEALISMO "

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Olivaldo Junior (O Guarda-Chuva)


Havia chegado à idade mental em que só se sai de casa com o guarda-chuva. A chuva, inda em São Paulo, e o tal embaixo do braço. O braço do homem havia se desacostumado de abraços. Braços servem para muitas coisas, inclusive para um violão. Violão, embora tenha um braço, está sempre ocupado em segurar as cordas de que surgem as notas, que exortam canções. Sons de chuva estavam mudos, o mundo estava seco, mas o homem não largava o guarda-chuva.

A verdade é que chovia dentro dele, fizesse chuva, fizesse sol, a cada dia. Dia quer dizer variação porque não há nenhum igual ao outro. Os dias são dados que Deus joga com os anjos. Anjos são luzes que acendem quando tudo é de noite. Noite com chuva, noite em que se vai mais cedo para cama. 

Cama, mesa, armário, escrivaninha e um pouco de escrita, que o sono já vem. A vinda da chuva não chega, e o cheiro da terra se sente, e o sempre de sempre já tem: guarda-chuva quer chuva. Choveu muito por quem não vem mais, por quem não volta. Voltou-se a si mesmo: oceano. Sentiu que tinha um amigo. O amigo partiu. Amores, não, nunca. E a chuva, sempre em guarda: muda.

Fonte:
O Autor

Ilan Pellenberg (Ponto da Paixão Efêmera)


 Era linda de morrer a mulher parada no ponto do ônibus. Vinícius, debruçado sobre o parapeito de sua janela no sétimo andar, apaixonou-se por ela. O período em que o ônibus levou para chegar ao ponto e levá-la em direção ao seu destino foi o tempo de duração da repentina paixão.

 Criou um mundo de ilusões em torno da bela estranha. Entre tantos férteis pensamentos, imaginou sendo ela desquitada e, quem sabe, sendo mãe de um pequeno filho. Talvez fosse vendedora de alguma loja de roupas e artigos femininos. Devido à hora tarde da noite, poderia ser que a moça estivesse retornando do trabalho para casa. Carregava nas costas uma mochila preta e uma sacola de supermercado em uma das mãos. Quem dera estivesse ao seu lado, pensava, a fim de exercer o cavalheirismo já esquecido por grande parte dos homens ditos modernos. Queria apenas oferecer-se para segurar a mochila e a sacola que pesava em seus finos braços, seria um prazer esse pequeno favor. A gentileza, claro, seria acompanhada de um brilho no olhar e um leve sorriso estampado no canto da boca, cheio de boas intenções.

 Lembrou-se do velho binóculo guardado na gaveta de uma estante. Esse binóculo fora deixado de "herança" por seu finado bisavô polonês que morrera quando Vinícius tinha apenas seis anos. Fez pouco uso do objeto de lentes, umas poucas vezes para assistir mais de perto as confusões geradas por batidas de carro no cruzamento da esquina e para testemunhar os constantes delitos que ocorriam nos finais de tarde. A pivetada era como praga naquele bairro. Um verdadeiro terror para a gente idosa que passava por ali. Finalmente, a ‘herança’ serviria para assistir algo que realmente prestasse. As lentes aproximaram a mulher para junto dele, como num simples passe de mágica, mas a imagem estava desfocada. Deu jeito no foco e pôde, então, apreciar nitidamente os detalhes que jamais enxergaria a olho nu.

 Os olhos da moça, amendoados e um tanto ansiosos, procuravam em meio ao intenso tráfego o ônibus que a levaria dali. Para a mulher, a demora de quinze minutos era uma eternidade; para Vinícius, um deleite. Apesar do rosto e do corpo conservados, a idade era de mulher já feita, por volta dos trinta, no máximo trinta e três. Os cabelos loiros e lisos contrastavam com a pele morena de sol. Percorreu todo o seu corpo até chegar nos pezinhos enfeitados pelas unhas pintadas. Calçava sandálias brancas, dessas que deixam a mulher com ar de imponente. Sem aquelas plataformas, percebia-se que era mulher tipo mignon, como dizem por aí.

 Era nítida a ansiedade da moça. Notava-se pelos suspiros de impaciência causados pelo atraso da condução. De minuto em minuto trocava de lugar. Pegava o saco plástico e o colocava no chão, prensando-o entre as pernas já cansadas de permanecerem ali eretas, criando varizes.

 Um sujeito de bermuda, camiseta de time de futebol e chinelos posicionou-se atrás da moça. As más intenções foram logo denunciadas pelo olhar de tarado que lançava em direção às nádegas contornadas pela calça justa da mulher. Vinícius sentiu o sangue esquentar. Teve vontade de descer de onde estava e envolver o pescoço fino do sujeito em um eficiente mata-leão até lhe causar um merecido desmaio pela falta de respeito com sua amada estranha. Pensou em alertá-la através de um grito. Não, tanto o mata-leão quanto o grito excederiam os limites do senso comum e poderiam assustá-la. Além do mais, o que havia de tão grave em olhar para ela? Era impossível que um homem não se deixasse fascinar pela beleza atrativa que a envolvia. Não demorou muito e o homem com olhos impuros subiu num ônibus qualquer e foi-se para longe dali. E novamente ela pertencia somente a Vinícius.

 Ele percebeu, de repente, um certo ar de alívio no rosto da amada. Era o ônibus que estava chegando finalmente. Em frações de segundos a moça não estava mais lá com a mochila, o saco plástico e as sandálias brancas. O coletivo, como um grande monstro sobre quatro rodas, engoliu a pobre moça sem deixar vestígios do seu nome ou telefone. Vinícius acompanhou de cima do prédio o ônibus partir. Tinha a esperança de vê-la pela última vez, nem que fosse um pedaço do seu fino braço. No banco onde ela se assentou, na fileira do lado oposto à sua visão, Vinícius não pôde alcançá-la. O ônibus partiu e levou de vez a mulher do ponto.

 Ela jamais soubera que naquela noite agraciara com sua beleza o coração de um homem que olhava por um acaso a vida passar. Foi efêmera aquela paixão. Da sua janela, Vinícius sonhara em envelhecer ao seu lado e, se necessário fosse, morrer de amor por ela. Uma vida inteira Vinícius viveria ao lado de Maristela. Esse era o nome que inventara para ela.
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Sobre o Autor
llan Pellenberg Dantas dos Santos (1976), é carioca. Formado pela Universidade Estácio de Sá em Publicidade e Propaganda, quando estagiava nas rádios Tupi FM (hoje Nativa) e no Sistema Globo de Rádio redigia textos que eram lidos no programa noturno “Toque de Amor”. Criava, também, textos publicitários de chamadas promocionais dos patrocinadores dos programas daquelas emissoras. Trabalha como coordenador de eventos empresariais na empresa Anima Eventos.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_ilanp_ponto.asp

Soares de Passos (Sócrates)


Já próximo do ocaso vai descendo
O sol ao mar inquieto,
Os moribundos raios estendendo
Nas alturas do Hymeto;
E Sócrates, sentado sobre o leito,
Inda aos alunos fala,
No silêncio geral notando o efeito
Da razão que os abala.
A verdade sublime lhes revela
Em palavras ignotas,
Suaves como a voz de Filomela
Ou do cisne do Eurotas.
Cebes, o próprio Cebes emudece,
Simias já não duvida:
Nus olhos do inspirado resplandece
Um Deus e a eterna vida!

Mas o sol expirava: era o momento
Que Atenas decretara:
Cumpre os deuses vingar: o sábio atento
À morte se prepara.
Os discípulos tremem, contemplando
O dia já no resto;
Eis o servo das onze entra chorando
No cárcere funesto.
O círculo cruzando, a brônzea taça
A Sócrates estende;
O filósofo a empunha com a graça
Que nos festins resplende.
«Ergamos, disse, nossa prece Aquele
«Que ao longe nos convida,
«Por que seja feliz por meio d'Ele
«A viagem temida.»
E aproximando intrépido e sereno
A líquida cicuta,
Como néctar a esgota, e do veneno
Entrega a taça enxuta.

Um lamento geral, um só transporte
Percorre em torno o bando
Dos alunos fiéis, chorando a sorte
Do mestre venerando.
Apolodoro geme; sucumbindo,
Críton lhe responde;
Fédon abaixa os olhos, e carpindo
No manto o rosto esconde.
Ele sem vacilar, ele somente,
Sorrindo á turba ansiada:
«Amigos, que fazeis? um sol fulgente
«Me luz em nova estrada.

«De presságios felizes rodeemos
«Os últimos instantes!
Chore quem não tem fé – nós que já cremos,
«Nós sejamos constantes!»
Disse, e deixando o leito em que jazia,
Sereno move o passo,
Que o veneno letárgico devia
Obrar pelo cansaço.
Das grades se aproxima, olha o Pártenon,
Olha os muros d'Atenas,
O Falero, o Pireu e as que lhe acenam,
Regiões tão serenas;
Olha os céus, olha a terra, a luz do dia
Expirando nas vagas,
E de harmonias tais se ergue à harmonia
De mais ditosas plagas.
Depois, volvendo ao leito, diz a tudo
O adeus de despedida:
Cobre o rosto co manto e aguarda mudo,
O instante da partida.

O veneno progride, e já do efeito
Redobra a intensidade;
Dos membros se apodera, sobe ao peito,
E o coração lhe invade.
Estremeceu! do gélido trespasse
Era enfim a agonia...
O executor lhe descobriu a face:
Sócrates não vivia!

Triunfa, cega Atenas, ao martírio
O sábio condenaste,
E d'olímpicos deuses no delírio
A razão enjeitaste;
À voz do Areópago, à voz de ferro
Sufocaste a doutrina:
A verdade sucumbe, a sombra do erro
No mundo predomina.

Mas que estrela futura se levanta
Rasgando a escuridade?
Que palavra ressoa, e o mundo espanta
Pregando a alta verdade?
E ele, e ele, o prometido às gentes
Na voz das profecias!
Curvai, ó gerações, curvai as frentes
Ao Verbo do Messias!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Teatro de Ontem e de Hoje (Dois Perdidos Numa Noite Suja)


Estréia profissional de Plínio Marcos, autor de textos marcadamente ligados ao universo da marginalidade, que enfrenta longa luta contra a censura ao longo dos anos 1960 e 1970, tornando-se um símbolo de resistência.

A primeira montagem de Dois Perdidos Numa Noite Suja, ocorre no Bar Ponto de Encontro, da Galeria Metrópole, em São Paulo. O impacto vem, inicialmente, de sua forma extremamente despojada: apenas dois homens conversam, Paco (Plínio Marcos) e Tonho (Ademir Rocha), num paupérrimo quarto de pensão, sobre a dura sobrevivência. A aspereza do diálogo vai atingindo contornos grotescos e absurdos, perceptíveis na briga desencadeada em torno de um par de sapatos; o clima de desamparo e desespero crescentes levará à agressão física e ao assassinato de Tonho. O ponto de partida para a construção do texto veio de um conto de Alberto Moravia, O Terror de Roma. 

Defendendo sua própria criação, Plínio atinge como ator todas as nuanças exigidas pela personagem Paco. A direção de Benjamin Cattan é discreta, apenas um amparo para o texto evidenciar toda a sua potência. A boa acolhida junto aos críticos leva a montagem a ser transferida para o Teatro de Arena, logo ganhando a adesão do público.

"Há no conflito de Dois Perdidos uma evolução crítica sobre a dissolução das classes (...) uma linguagem emocionante, despojada, termostática nas graduações da temperatura social e dramática, em que a palavra sobe e desce para determinar as situações humanas, levadas de limite em limite até o extremo fatal e inexorável de uma realidade que condena. (...) O final da peça é a hemorragia do câncer. Impiedoso. Cruel. Anti-romântico.", salienta o crítico Alberto D'Aversa num de seus comentários sobre a realização paulista".1

Em 1967, um ano após a montagem original, uma outra encenação, agora dirigida no Rio de Janeiro por Fauzi Arap e protagonizada por ele e Nelson Xavier, é aclamada por público e crítica. O texto é transportado para as telas, em filme realizado por Braz Chediak em 1970, ganhando várias remontagens no decorrer das décadas seguintes. Em 2003, José Joffily filma um adaptação de Paulo Halm para o texto, na qual Paco (Débora Falabella) e Tonho (Roberto Bontempo) são dois imigrantes ilegais em Nova York.

Nota 

1 D'AVERSA, Alberto. Dois Perdidos Numa Noite Suja. Diário de São Paulo, São Paulo, 27 dez. 1966.

Fonte:

Ivan Herzog de Oliveira (Namoro nos Anos Dourados)


Arranjou uma namorada carioca, coisa linda de morrer, no seu tipo mignon, na sua tez morena de menina de Copacabana. Conheceu-a em Petrópolis e entre as muitas cartas trocadas, havia sempre um fim-de-semana para ir encontrá-la no Rio. 

Eram os anos dourados, fins da década de 50, fim de um tempo que não volta mais. 

Embora maiores de idade, o namoro, pelo menos da parte dela, era mantido em segredo perante seus parentes. 

E os dois adoravam quando se encontravam, quando conseguiam se falar por telefone, até gozando os momentos que passariam juntos no sábado e marcando os detalhes para irem à praia ou a uma festa em casa de parentes dele, que os tinha no Rio. 

A única praia que podiam freqüentar era a Praia Vermelha, na Urca. Razão: a única que dispunha de cabines para a troca de roupa, pois ele não poderia sair de Petrópolis, tomar um lotação para Copacabana na Praça Mauá e de lá, da Rua Barata Ribeiro, tomar outro lotação até a Av. Pasteur onde saltavam e iam a pé até a Urca, vestindo um short ou uma bermuda, coisa que qualquer garotão faz hoje. Naqueles tempos dourados, nem pensar. Ainda havia decoro e respeito pelo próximo. 

Esta era a odisséia do nosso herói, cada vez que descia para encontrar seu amor. 

Sair de Petrópolis bem cedo, saltar na praça Mauá, embarcar em um bólido Mauá-Copacabana, geralmente dirigido por um alienado, descer na Barata Ribeiro, esperar sua namorada quase uma hora na porta do edifício onde ela morava, andar até a N. S. de Copacabana e lá embarcar em outro bólido que passasse pelo Iate Club, onde saltavam e depois de uma última caminhada, a triunfal chegada à praia. 

Mas, em nome do amor e pelo amor, se faz qualquer sacrifício, para que ele “seja eterno enquanto dure”, não é verdade, Vinícius de Moraes? 

Em um desses dias, depois dessas peripécias todas, heis os dois à beira-mar, prontos para o primeiro e refrescante mergulho nas águas outrora límpidas. 

De pé sobre umas pedras quase à flor d’água, quando a mansa onda vem, ela grita e mergulha “Vamos, meu bem!” 

Por uma fração de segundo ele titubeia. Quando a onda vai, ele também. Sai da água metros adiante, ainda dando pé. Ela já o aguarda, pronta para lhe dar um caldo, e se possível, trocar um furtivo beijo, coisa rápida e esquiva, não era como essa chupação que se vê hoje em dia em qualquer lugar, a qualquer hora do dia. Aqueles eram os anos dourados! 

Onde é que eu estava mesmo? Ah! Nosso herói se espanta com a cara de espanto da sua amada. Ela está simplesmente horrorizada! 

– Meu amor, o que aconteceu? Você está coberto de sangue, da cabeça até a cintura. 

Realmente. Ao mergulhar, ele raspara toda a parte frontal do corpo no fundo, na areia cheia de pedacinhos de mariscos e conchas. Do alto da testa até aos joelhos. A água salgada não o deixara sentir assim de pronto, o que acontecera. 

– Vamos já para o pronto-socorro! 

– Não é preciso, meu bem. Foi superficial, nenhum arranhão mais profundo... 

– Não senhor. Vamos já. Ali em frente tem uma farmácia. 

Na farmácia, um vidro de mercurio-cromo foi fartamente aspergido pelos arranhões. O sangue parou de correr, mas o dito cujo ficou parecendo um índio pintado para a guerra com os caras-pálidas. 

Depois dessa, nada mais a fazer do que recolher a roupa, trocá-la entre gemidos e fazer todo o percurso inversamente, mas chamando a atenção de meio mundo para eles. Ela, se desdobrando em cuidados e carinhos para com seu amado e ele, com a cara mais infeliz do mundo. 

Ao chegar em casa, de tardinha, a mãe se espanta: 

– Meu filho! Que foi isso? Você foi atropelado? Eu não te disse para não se meter a namorar no Rio? 

– Não, mãe. Não foi nada disso. Não é nada grave. O diabo não é tão feio como o pintam... 

Fonte:
Arca de Não É, 1993 

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 766)



Uma Trova de Ademar  

Quando se manda um bilhete
para alguém que a gente gosta,
se faz logo um balancete,
quando não vem a resposta!
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Quem nas letras se revela,
quem canta o bem existente, 
quem a vida, em rimas sela, 
é Poeta, é diferente ! 
–Lóla Prata/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Qualquer inveja revela
uma doença infinita,
que deixa a maior sequela
nos corações onde habita.
–Marcos Medeiros/RN– 

Uma Trova Premiada  

1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ 
Tema : CORRENTEZA  1º Lugar 

Veja, filho, infelizmente
como o tempo é rude e vário: 
Você, correnteza á frente... 
eu, correnteza ao contrário!... 
–Eduardo A. O.Toledo/MG – 

...E Suas Trovas Ficaram  

A gente nem sempre alcança 
o que a esperança prediz, 
porém... viver de esperança 
é um modo de ser feliz... 
–João Freire Filho/RJ– 

U m a P o e s i a  

O mendigo que sofre só reclama 
pede a bênção de Deus, nossa senhora 
quando entra na loja vão embora 
quando passa na rua ninguém chama, 
uma calça que veste é cor de lama 
a camisa que usa é cor do chão, 
ele é mais humilhado que um cão 
sem família, sem pão e sem abrigo; 
nos fiapos das roupas do mendigo 
tem visíveis sinais de humilhação. 
–Nonato Costa/CE– 

Soneto do Dia  

SONETO DA REGENERAÇÃO. 
–Djalma Mota/RN– 

Sabemos que tem gente para tudo.. 
Tem até quem não goste de poesia! 
Este, certamente de alma vazia, 
tem no seu peito um coração miúdo 

Poesia é sentimento de alegria. 
É a força da expressão e, sobretudo, 
transmissora eficaz do conteúdo 
da essência que o poeta sempre cria. 

Quem se opõe a poesia é desalmado! 
Não merece amar e nem ser amado! 
É um ser tristonho, de amargor profundo... 

Porém, nem sempre é tarde a fazer parte 
deste movimento que expressa a arte, 
capaz de congraçar o amor no mundo.

Jornais e Revistas do Brasil (Diário de Notícias)


Período disponível: 1870 a 1872 
Local: Rio de Janeiro, RJ 

Houve pelo menos três jornais com o título Diário de Notícias no Rio de Janeiro: o de A. Clímaco dos Reis, que começou a circular em 1870; o Diário de Notícias republicano, no qual escreveram Rui Barbosa, Lopes Trovão, Medeiros e Albuquerque, Aristides Lobo e outros notáveis da literatura e política nacionais, e o Diário de Notícias fundado em 1930 por Orlando Ribeiro Dantas e que circulou até meados da década de 1970. Este verbete trata do primeiro deles.

Lançado em 2 de agosto de 1870, uma terça-feira, com tiragem de 6 mil exemplares, era um diário de quatro páginas, vendido ao peço popular de 40 réis e assinatura mensal 1$000 réis. Cobrava 80 réis a linha para anúncios e publicações literárias e 100 réis para a publicação de outras matérias de interesse particular. Era impressoem tipografia situada na rua Gonçalves Dias, 60. 

Embora surgisse num momento em que se iniciava a campanha republicana, com a criação, em 1870, do Partido Republicano do Rio de Janeiro e o lançamento do jornal A República – cujo primeiro número publicou o Manifesto Republicano que iria guiar, dali em diante, a bem-sucedida luta antimonárquica –, o jornal se auto definia por sua “índole inofensiva”, o que significava, nas palavras do seu redator, “sua indiferença absoluta ao movimento dos partidos que se gladiam”. A apresentação revela, além de intenções e expectativas de seu proprietário, algumas das dificuldades, na época, para se fazer um jornal: 

“Surge hoje o primeiro número do Diário de Notícias, tão anciosamente esperado pelo publico que acolheu da forma a mais lisongeira o programma que fizemos distribuir. (...)
 Ninguém ignora quanto são dispendiosas as emprezas desta ordem, e que ellas sem a proteção valiosa do publico não podem progredir na sua marcha civilisadora, por isso esperamos que tendo todos [...] attenção a índole inofensiva do Diário, a sua indiferença absoluta ao movimento dos partidos que se gladiam, o receberão com aquella benignidade que caracterisa um povo essencialmente laborioso e honrado.(...)

Já foi publicado o nosso programma, mas cumpre-nos reproduzilo como lei fundamental que temos de seguir e respeitar.

 O Diário de Noticias, extranho completamente a facções, não deixará de dar conta de todos os movimentos da política, da governação e do estado; publicará todas as occorrencias do mundo, descrevendo com exactidão e minuciosidade todos os successos da corte e os do vasto império do Brasil.; não enserira em suas columnas artigos offensivos a dignidade e honra de qualquer, fazendo manter a maior sisudez nas correspondencias particulares e nos assumptos a pedido; publicara o movimento commercial, festividades religiosas e ephemerides, assim como diversos materiais sobre hygiene, instrucção e recreio; dará uma resenha de todos os espetáculos, apreciando o desempenho das diversas peças que se representarem; publicara romances em folhetins, assim como, chistosos folhetins typicos, locaes e phantasiosos. (...)

O lançamento foi bem acolhido por O Mosquito, o jornal de Cândido Aragonês Faria, na edição de 7 de agosto de 1870, ao vaticinar que o jornal “tornar-se há (...) em breve (...) indispensável a todas as classes da sociedade, já pela extraordinária variedade das suas noticias, já pela barateza da assignatura.” E na edição seguinte, de 14 de agosto, quando, depois de observar que “Começa a tomar notável incremento entre nós a imprensa jornalística”, volta a anunciar a chegada do Diário de Notícias e de outra publicação, a Tribuna do Povo, de Emílio Zaluar, “jornal interessantíssimo e de grande utilidade para o povo, pela sua doutrina democrática, mais (sic) logo virá, outro e outro, e assim chegaremos ao desideratum a que é preciso que cheguemos; mas convém que a imprensa não se torne escrava de interesses sórdidos. Para se facilitar a leitura do povo é preciso não a por pelo preço d’água em occasião de secca.” 

A observação final de O Mosquito, não obstante os elogios aos dois novos jornais, provocou, no entanto, o protesto surpreendente do proprietário do Diário de Notícias, um sinal das ingênuas e personalizadas questões que permeavam o universo jornalístico na época. Dizia a carta protesto de A. Clímaco a O Mosquito:
 Amigo e collega do Mosquito

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/diário-de-notícias

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 3 de junho: O Livro da Semana


Passou ligeira e fugitiva como todos os prazeres deste mundo, a semana das belas noites, dos magníficos luares, dos brilhantes saraus musicais!

Passou, envolta entre as sombras da noite, e como que temendo crestar as suas asas diáfanas e o seu manto cor do céu aos raios ardentes do sol de nossa terra!

Passou, como essas crepusculares que adejam às últimas claridades do sai; ou como essas flores modestas que vivem à sombra, e se expandem à claridade suave das estrelas e ao brando sopro das auras da noite!

Havíeis de vê-la surgir, entre a tíbia claridade do crepúsculo da tarde, com uma lira d’ouro na mão, o olhar em êxtase, o gesto inspirado; e, de envolta com os últimos rumores do dia, talvez lhe ouvísseis os prelúdios harmoniosos.

Mas passou; e agora só nos restam as recordações das horas de prazer que nos deu, e que vamos desfolhar uma a uma, como as páginas de um belo livro, que lemos pela segunda vez frase por frase, apreciando a elegância do estilo, os lindos pensamentos e as brilhantes imagens.

E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse for da semana, que abrimos aos nossos leitores, e do qual bem sentimos não lhe poder dar mais do que uma pálida tradução.

Muito; não é um livro, é um álbum de músicas e desenhos, um lindo keepsake, em que os mais hábeis artistas trabalharam para fazer uma dessas obras-primas, dignas das mãozinhas delicadas para que são destinadas.

E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse folhear comigo as páginas desse pequeno livro da vida, talvez pudesse ler nele coisas bem lindas, que diria aos meus leitores, visto que não sou egoísta.

Abriríamos as primeiras páginas, e poderíamos ver essas belas noites de luar que tem feito, e um céu tão puro, e umas estrelas tão brilhantes, que ficaríamos encantados.

Poderíamos sentir a frescura dessas tardes serenas, ou acompanhar esses bandos de moças que passeiam, e ouvir as suas falas doces e os seus risos alegres e festivos. 

Se tendes queda pelos antigos costumes dos nossos pais, que já vão caindo em desuso, iríamos correr as barracas do Espírito Santo, e talvez nos lembrássemos daquelas novenas do campo tão encantadoras com as suas ruas de palmeiras e as suas toscas luminárias.

Também podíamos passear aos belos arrabaldes da cidade, a Botafogo, às Laranjeiras, ao Engenho Velho ou a Andaraí, e, fugindo o gás, ir apreciar o luar na sua beleza primitiva, no meio das árvores e por entre as folhagens.

Mas voltemos a página. Estamos na terça-feira, no salão do Teatro Lírico, assistindo ao concerto do Arnaud.

Podemos ouvir boa música, de diferentes maestros e de gostos diversos, desde o travesso romance francês até a verdadeira música italiana cheia de sentimentos e de poesia.

Arnaud tocou, com o gosto que todos lhe conhecem, uma fantasia sobre motivos da Sonâmbula, e duas composições suas dedicadas a S.M. a Imperatriz e ao Rei de Nápoles.

A Charton cantou, entre outras coisas, uma ária de Marco Spada, tão graciosa na música como na letra. É um lindo gorjeio de rouxinol francês que acaba por este estribilho:

Vous pouvez soupirer,
Vous pouvez espérer;
Mais, songez-y bien,
Je n’accorde rien.

Já vêem, pois, as minhas leitoras que a tal ária do Marco Spada bem se poderia chamar ária dos bonitos olhos, que não dizem mais do que aquele estribilho enigmático.

O primeiro requebro de olhos que vos lança uma bela mulher, o primeiro sorriso de esperança que anima os vossos desejos, é o primeiro verso, é uma permissão, um consentimento tácito. Vous pouvez soupirer.

Daí a muito tempo, quando ela vê que já estais ficando tísico de tanto suspirar, pode ser que se condoa do vosso estado, e que vos lance um segundo olhar; é uma meia promessa Vous pouvez espérer 

Ficais muito contente, fazeis loucuras e extravagâncias, julgai-vos o mais feliz dos homens, começais a ser um pouco exigente, quando lá vem o terceiro olhar carregado de uma ameaça. Mais, songez-y bien!

E não tardará muito que um último volver desdenhoso não venha deitar água fria na vossa paixão e intimar-vos a sentença final. Je n’accorde rien.

Ora, vós sabeis que toda a ária tem repetição (reprise); por conseguinte, depois deste primeiro ritornelo, os olhos cantam uma segunda vez o mesmo estribilho, e acabam executando um duo, porque também depois da ária quase sempre nas óperas se segue o dueto.

Não sei se lá no concerto sucedeu semelhante coisa, porque quase todo o tempo estive fora do salão com muitas pessoas, para quem não havia lugar dentro.

Ora, isto é uma prova de que o artista que dava o concerto é tão bem aceito da nossa sociedade, que mereceu uma grande concorrência; mas também é prova que o salão do teatro não se presta a uma reunião de mais de quinhentas pessoas.

Do contrário, dar-se-á o que sucedeu terça-feira, a se verão obrigados a fazer aquela mesma separação de homens e senhoras, que decerto não é nada galante.

A música é uma coisa muito bela, mas seguramente não é um fogo de Vesta que tenha o poder de nos afastar da companhia amável das senhoras e privar-nos da sua espirituosa conversação.

Não cuidem que digo isso por mim; apesar de sentir bastante aquela separação anti-social, anti-religiosa e anti-política, se tomo o negócio tão a peito, é unicamente por causa das senhoras, que eu adivinho haviam de estar desesperadas.

Os motivos do desespero são diversos.

Em umas era porque lhes faltava o quer que é, porque não ouviam uma fineza, não sentiam em torno o murmúrio de admiração a que estão talvez habituadas.

Em outras é porque não tinham quem lhes fosse ver o copo d’água, quem lhes dissesse de que maestro era a música que se tocava, quem informasse da hora que era, enfim quem lhes servisse de partner num pequeno jogo de alusões maliciosas.   .

Mas deixemos os desconcertos, e voltemos ao concerto.

As glórias musicais da noite couberam a um trio do Padre Martini, composto em 1730, e que Ferranti foi desencavar não sei onde: é o trio das risadas. 

Foi executado pela Charton e por Ferranti e Dufrene com muita graça e naturalidade.

Que excelente música para quando se está triste! Diz um provérbio que quem canta seus males espanta. O tal terceto, porém, faz mais do que espantar os males; obriga a rir; começa-se cantando, e acaba-se às gargalhadas.

Voltemos outra página.

Entramos no Teatro de São Francisco na quarta-feira à noite; representam-se duas pequenas comédias muito engraçadas e espirituosas.

Se quereis passar uma noite alegre e rir de coração durante umas duas ou três horas, não deixeis de ir aos domingos e às quartas-feiras ver as representações desse pequeno teatro.

Ouvireis as cômicas facécias de um artista que agora começa, mas que promete muito futuro, se o animarem e souberem dirigir. Vereis como a mobilidade extraordinária de sua fisionomia se presta admiravelmente às expressões de todos os sentimentos e de todas as paixões.

Lá de vez em quando, no meio dessas cenas espirituosas e cômicas, assistireis a um lance dramático, em que uma excelente artista já vossa conhecida pinta com a maior naturalidade o amor, a emoção, o susto ou o terror.

E vereis tudo isto no meio de uma sociedade escolhida, e admirando talvez pelos camarotes algumas  moças bonitas e elegantes que começam a proteger a nascente empresa, e que prometem em pouco tempo fazer deste pequeno salão um dos mais agradáveis passatempos da cidade.

A sociedade tem lutado com muitas dificuldades, e uma delas, talvez a principal, seja a repugnância que tem ainda a classe pobre por esta profissão.

São prejuízos de tempos passados, de que ainda se ressentem os paises pouco ilustrados, e que devemos procurar destruir como um erro muito prejudicial ao desenvolvimento da arte dramática.

O cômico hoje em dia já não é aquele volantin ou palhaço de outrora, sujeito aos ápodos e às surriadas do poviléu nas praças públicas; já não é aquele ente desprezível, aquele paria da sociedade, indigno do trato da gente que se prezava.

Todo o trabalho é nobre, desde que é livre, honesto e inteligente; toda a arte é bela e sublime, logo que se eleva à altura do espírito ou do coração.

O cômico pertence a esta grande classe de artistas que trabalham na grande obra da perfeição: é irmão do pintor, do estatuário,do músico, do arquiteto, de todos esses apóstolos da civilização que seguem por uma mesma religião e um mesmo culto: a religião da natureza e o culto do belo.

Cessem, pois, esses escrúpulos irrefletidos que muitas vezes cortam uma carreira e falseam uma vocação decidida.

Quantos grandes pintores da Itália e o mundo inteiro não teriam perdido, se o desprezo pela arte e os maus conselhos tivessem abafado na alma do artista o fogo sagrado, fazendo de um Ticiano e de outro um mau advogado ou um péssimo fidalgo?

Quem sabe também quanta menina pobre e quanto moço sem fortuna há por aí por esta grande cidade, e cujas esperanças não passam de um obscuro casamento ou de um emprego mesquinho, e que entretanto têm em si o germe de um brilhante futuro, perdido talvez por uma falsa idéia da arte?

Atualmente todo o mundo entende que seu filho deve ser negociante ou empregado público: e, tudo quanto não for isto é um desgosto para a família. Quanto à classe rica e abastarda, esta não quer outra coisa que não seja o sonoro título de doutor.

Doutor atualmente equivale ao mesmo que fidalgo nos tempos do feudalismo. É um grau, um distintivo, um título, uma profissão, um estado.

No tempo da revolução, os fidalgos, os condes, marqueses e barões emigraram e fizeram-se torneiros, sapateiros, pintores e mestres de meninos

É provável que daqui a dez anos, com a fertilidade espantosa das nossas academias, o mesmo venha a suceder aos doutores.

Tudo isto, porém, parte de um grande erro.

Todas as profissões encerram um grande princípio de utilidade social; todas, portanto, são iguais, são nobres, são elevadas, conforme a perfeição a que chegam.

Um mau discurso de deputado não vale um gorjeio ou uma volta da Charton. Um poema insulso, uma poesia sem sentimento não se compara a uma cena pintada por Bragaldi. Um desenho sem gosto não prima sobre as formas elegantes e graciosas que o nosso artista Neto costuma dar a um móvel trabalhado por ele.

E assim tudo o mais: o homem é que faz a sua profissão; a sua inteligência é que a eleva; a sua honestidade é que a enobrece.

Já é tempo de voltarmos a quarta página deste livro das noites, que me comprometo a traduzir-vos.

Chegamos à história de uma representação dada no Teatro de São Pedro, quinta-feira à noite, em benefício de um artista nacional.

Conheceis a comédia, e por conseguinte saltemos por ela para ouvir a Jacobson cantar a ária do Átila, que tão bem representava no Teatro Lírico.

Se a natureza não dotou a esta artista de uma voz doce e suave, deu-lhe em compensação o gosto, o sentimento e a inteligência necessária para compreender todos os mistérios desta arte divina que tem cordas para cada uma das pulsações do coração humano.

O beneficiado tocou no seu violoncelo uma fantasia do Trovador. Nesse momento, algumas pessoas distintas que aí se achavam sentiram decerto um assomo de orgulho e de brios nacionais, quando viram o artista brasileiro, filho da vontade e do estudo, arrancar aplausos no meio dos hábeis instrumentistas estrangeiros que tão cavalheirescamente se prestaram a coadjuva-lo.

.O violoncelo é um admirável instrumento. Fala, chora, geme e soluça como voz humana; se não diz as palavras, exprime os sentimentos com uma força de expressão que arrebata.

Como todos os instrumentos de cordas animais, ele tem com o coração humano essa afinidade poderosa que faz que cada uma das vibrações daqueles nervos distendidos arranque uma pulsação das fibras mais delicadas do homem.

Ainda uma página; a última do livro.

Voltamos ao Teatro Lírico para ouvir Ana Bolena em benefício do Bouché.

Ana Bolena foi uma das oito mulheres desse rei volúvel que estava destinado para nascer sultão na Turquia, mas que por um capricho do acaso, tornou-se filho de uma rainha de Inglaterra.

O caso é que tão mau como se diz que foi Henrique VIII, se ele não tivesse feito as suas brejeiradas, nós não teríamos passado antes de ontem uma tão bela noite.

O que foi esta bela noite sabem os leitores: foi música de Donizetti cantada por Bouché e pela Charton.

Ora, dizer que o Bouché cantou bem seria repetir o que já disse, e isto é sempre monótono e aborrecido.

Quanto a Charton, que brilhou no romance e no rondó final, já não tenho nada de novo que escrever.

Portanto, como os meus leitores não poderiam suportar que lhes falasse do Teatro Lírico sem falar de sua cantora predileta, não há remédio senão, depois de esgotados os prós, recorrer aos contras.

De agora em diante vou estudar-lhe os defeitos, e afinar o ouvido para ver se ela canta em si bemol ou em la sustenido.

Naturalmente hei de descobrir alguma coisa, assim como já descobri que Casaloni canta pelo nariz e que o Capuri é ventríloquo.

Não se admirem se me calo sobre Ghioni, a nova comprimária, que fez nessa noite a sua estréia. Depois que Dufrene me enganou com as suas maneiras estudadas, não arrisco o meu juízo senão depois da terceira representação.

Entretanto, enquanto nada me animo a dizer, ficam sabendo que a nova comprimária tem uma bela figura em cena, e que foi aplaudida depois da ária do segundo ato.

O vestuário era todo novo, rico e a caráter. Henrique VIII estava trajado com muito gosto; mas Ana Bolena tinha um feio roupão de veludo roxo dobrado de cetim azul com uns galões de cor duvidosa, que por felicidade ficou esquecido à vista do elegante vestido de cetim preto com que apresentou no último ato.

Todo este vestuário veio-nos instruir de uma verdade que não se encontra nos livros de histórias; e é que naquele tempo os homens usavam de coleira e as mulheres de asas.

Ora, como as modas revivem, é natural que hoje se dê a mesma coisa; com a diferença que senhoras e homens trazem as suas asas e coleiras escondidas para que ninguém as veja. Antigamente havia mais franqueza.

Temos concluído felizmente a má tradução deste livro, que abrimos na primeira página e percorremos até a última.

É natural que os meus leitores me perguntem o que havia no verso da página.

Eram notas sobre a política, apontamentos a respeito de alguns discursos parlamentares, notícias curiosas do Paraguai, mas tudo em borrão, num tal estado de confusão, tão mal escrito e tão sem nexo, que não me animo a traduzir-vos esses trechos informes.

Prefiro antes dar-vos uma ligeira resenha de tudo, e fazer algumas pequenas observações...

Mau! lá secou-se-me a tinta!

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Dois dias sem Postagens

Dia 24 e 25 não haverão postagens, pois estarei em viagem. 26 retornam ao normal, caminhando em direção a 10 mil postagens.

Deixo meus votos de boas festas a todos que estiveram comigo em mais este ano.
José Feldman


Trova 238 - Francisco José Pessoa (CE)


Mário de Sá-Carneiro (Um Pouco Mais de Sol)

Formatação por Mário Plácido, in http://tertuliadogarcia.blogspot.com

Olivaldo Junior (Ao Fim de Mais um Ano)


“Mais um ano chega ao fim. Chego também. Mesmo que o tempo seja uma ilusão, é a mais verdadeira que conheço.”

Faltava um ano para o fim deste ano, e estou ao fim de mais um ano. Um ano não é nada na clepsidra, no relógio d’água, de Deus, mas no meu, todo técnico e ilógico, um ano é muito, o muito pra se pensar na vida.

Ao fim de mais um ano, vê-se o povo de volta às calçadas, colegas e amigos na mesma toada: comprar e pagar, contando com o décimo terceiro sal diário. Rio de gente, para um mar de lojas, ninguém à margem, luz.

Mas, no meu peito, ao fim de mais um ano, não é isso que existe. O que existe é um pensar na vida, um viver de andar e ter que usar um pé depois do outro, caminhar. Trabalhei, trabalhei e cumpri o que de mim esperavam. Esperei o que não tive. Tive o que não quis. Não, ainda não há ninguém para fazer a trilha por que meu som passeie. Não consigo achar quem toque para que eu cante. Parece um sonho tão simples, mas todos estão ocupados, com uma vida de que não faço parte. Parte de mim não se conforma. E a outra se revolta. Volta e meia, vivo a dar com os burros n’água. Cada um desses burros sou eu. Burros sem corpo, sem forma, só de ideia. Os ideais nem sempre se realizam. A brisa nem sempre traz sementes.

Tenho muitos conhecidos, muitos contatos, mas ainda não tenho amigos que me cheguem a qualquer hora, sem que seja preciso ligar para saber se estou em casa, sem as tais formalidades que só desfazem as surpresas.

Um violão, que não é meu, me olha dia a dia e me questiona sobre quando vou cantar. “Amanhã, amigo, depois, rapaz...”, digo eu, mas sem saber quando é que vou deixar que o canto se desencante em mim, soando a todos sem parar. Parar. Como é que a gente faz para parar de esperar pelo que não vai acontecer? Acontece de eu fazer mais um poema, e eu já me vejo lá, estou cantando.

Cantar é o que quis fazer desde menino. O ninho não é sempre o mundo afora. Fora de mim, minha mãe, meu pai e meu irmão. Houve uma vida que eu tinha e que não vive mais, mas eu não morro. Morte é sonho?

Sonhava tanto... Mas tenho sonhado mais dormindo do que acordado. Os dados de Deus nunca param, e eu paro para ver se saiu o meu número. Romeu só não morre na história que eu mesmo criar. Criar-se-á 2013.

Fonte:
O Autor