quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Antologia Poética)


ASSIM SERÁ

Foi você quem quis assim
Assim será!
Não vou mais me aborrecer
Nem me atormentar,
Não vou mais mandar e-mail,
Vou te deletar...

Dei meu afago, afeto, carinho,
Dei o meu colo pra você deitar,
Na noite de frio dei aconchego
E todo amor que se pode sonhar.

Dei o frescor da brisa suave
Que sopra na aurora bem de mansinho
Dei a cadência do vôo da ave
Que voa cadente em busca do ninho.

Dei pra você o meu mundo encantado
Um céu salpicado de constelações,
Dei o amor que tinha guardado,
Junto aos acordes de lindas canções.

Dei o apego de um homem apegado,
Afeito as coisas quem em vida vivi,
Dei o consolo e tive o cuidado,
De dar a você tudo o que você quis.

Tudo te dei em troca de nada,
Até os meus sonhos que um dia sonhei,
Dei pra você meus contos de fadas,
Mas vejo agora o quanto errei!

E é na presença de um homem presente,
Feliz e contente sem lamentar,
É que eu digo com todas as letras:
Você quis assim – e é assim que será.

ASTRO REI

O sol nasceu nesta manhã cinzenta,
Quase sem cor, sem luz e sem destino,
Quase perdido como nau sem porto
E mais disperso que alguém sem tino.

O sol nasceu nesta manhã de inverno,
Quase sem céu, sem terra e sem mar,
Como um errante louco e alucinado,
Quase sem nada para iluminar.

O sol nasceu nesta manhã tão pobre
Para um tão nobre astro que é o Rei
Que traz a luz a vida e o calor
E tantas coisas que ainda não sei.

O sol nasceu numa manhã sem nada,
Como uma estrada na escuridão,
Sem ter a luz que brilha e acalenta
Os passos firmes de nossos irmãos.

O sol se pôs numa tarde cinzenta,
Como nasceu no alvorecer do dia,
Quase sem cor, sem luz e sem destino
E mais disperso que alguém sem tino...

O sol morreu numa tarde cinzenta...

DEVAGAR EU VOU

Se me levar devagar eu vou,
Eu vou prá qualquer lugar,
Mas no tranco eu não vou, não vou,
Não fui feito pra empurrar...

Deixa a vida me levar,
Devagarzinho,
Sem ter pressa de chegar,
Sem encurtar meu caminho.
Quero contemplar a vida
Cheia de luz e de cor,
Quero sonhar o meu sonho,
Quero encontrar meu amor...

Deixa o sonho me levar,
Devagarzinho
Como um pássaro a voar
Para o seu ninho
Ter meu corpo envolvido
No seu abraço
E acordar bem de mansinho
No calor do seu regaço.

Deixa o tempo me levar
Devagarzinho,
Sentir a brisa soprar
No meu caminho
Contemplar a luz do dia
E o luar na madrugada
Sentir meu corpo roçando
No corpo da minha amada.

TREM DAS TRES

A vida vai de arrasto,
Do sonho nada me resta
E o que sentia tão vasto,
Vejo agora que não presta.

Pranto...prece...procissão,
Passo largo sem destino,
E o meu sonho de menino
Perdeu-se na multidão.

Mundo frio e infiel,
Face fosca e infeliz,
Boca amarga que nem fel,
Esperança por um triz!

Sai do trilho o trem das três,
A trilha fica sem rumo,
A vertical sai do prumo,
E o sonho morre de vez:
Embarcou no “trem das onze”
E apeou no trem das três.

SOL POENTE

Quando contemplo ao longe o sol poente
atrás do monte lá no infinito
sonho acordado o sonho mais bonito,
e tenho a fé de um homem forte e crente.

A luz suave, quase se apagando,
acende em mim um fogo tão ardente,
e ao pensar eu fico imaginando
o amor se pondo assim tão de repente.

O tempo passa e vem a madrugada
como um açoite castigando a gente
na aurora fria, escura e tão calada!

Oh... breve tempo tenha dó de mim
por que flagela um coração carente,
me machucando tanto, tanto, assim!

SORRISO

Esse seu sorriso aberto,
Mais lindo do que o luar
É como chuva miúda
Que faz a vida nascer
E a esperança germinar.

Ele é toque de ternura,
Toda candura que há,
É a beleza mais pura,
Tem a leveza e frescura
Da brisa que vem do mar.

Esse seu sorriso aberto
Transmite tanta energia
Que parece a luz do sol
Raiando ao nascer do dia.

Ele e doce que nem mel,
É como um jardim florido,
É pedacinho do céu,
O meu mundo colorido.

SER AVÔ

Ser avô é bom demais!
Bem melhor que pão de queijo,
Melhor que o primeiro beijo
Roubado da namorada
No escurinho do cinema
No Filme em que não vi nada.

Ser avô é muito bom!
É melhor que goiabada,
Chocolate, marmelada,
Morango com chantilly,
Do que cerveja gelada,
Do que picanha na brasa,
Do que pato ao tucupi.

Ser avô é ter reinado
Sem coroa e sem ter trono,
É sentir do mundo o dono
Diante do seu netinho,
Que chegou devagarzinho
E que em menos de um segundo
Tomou conta do pedaço
Pra reinar em nosso mundo...

NAMORAR EM SONHOS

Namorei por toda a vida
Todos os sonhos que sonhei,
Até meus sonhos perdidos
Confesso que namorei!

Namorei sonhos distantes,
Que senti, mas não toquei,
E até meus sonhos errantes,
Confesso: também gostei!

Namorei sonhos do sul,
Do norte e do nordeste,
Sonho rosa, sonho azul,
Sonho do centro e sudeste,
Sonhos que tanto sonhei
Mas que tu nunca me deste!

Namorei sonhos dourados,
Pretos, brancos, coloridos,
Sonhos nunca imaginados
Que me tocaram os sentidos.

Namorei sonhos da noite
E também da madrugada;
Sonhos doces de criança
Com a primeira namorada,
Sonhos que se perderam
Na poeira das estradas...

Mas o sonho mais bonito,
Com gostinho de maçã,
Foi aquele que sonhei
No despertar da manhã:
Eu te querendo todinha
Você dizendo: hã, hã…

Fonte:
Alma de Poeta.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.63)


Trova do Dia

Natal é tempo de luz,
luzindo com alegria.
Em louvor ao bom Jesus
filho da virgem Maria.
DALINHA CATUNDA/CE

Trova Potiguar

Natal – semente de amor
plantada na humanidade...
Um momento inovador
De paz e fraternidade.
DJALMA MOTA/RN

Uma Trova Premiada

2001 > Petróplis/RJ
Tema > “JESUS” > 19º Lugar.

Meus filhos, não lastimeis
se a sorte às vezes vos falha...
Lembrai: Jesus, Rei dos Reis,
nasceu em berço de palha!...
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA/SP

Uma Trova de Ademar

Neste Natal, que o Senhor,
num ritual de orações,
plante uma árvore de amor
em todos os corações.
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram

Deus com seu saber profundo,
para nos trazer a paz,
mandou o seu filho ao mundo
há dois mil anos atrás.
MIGUEL RUSSOWSKY/SC

Estrofe do Dia

Um dia mamãe falou
do bom velhinho risonho,
mas meu inocente sonho
papai Noel desprezou;
a noite linda rolou
sobre a paz do casario
e, ao levantar-me com frio,
tremendo, ao pé da parede,
só vi debaixo da rede
meu sapatinho vazio.
JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN

Soneto do Dia

– Afonso Vicente Ferreira/SE –
MISSÃO DE JESUS.

A despertar Belém que adormecia,
ao fulgor divinal da etérea luz
de uma estrela que ao longe aparecia,
noticiava que nasceu Jesus.

Entre animais, um Deus então nascia,
e um destino fatal logo o conduz,
dos braços carinhosos de Maria,
ao suplício nos braços de uma cruz.

Em recompensa a tantos benefícios,
entregaram-lhe a cruz dos sacrifícios,
após o amargo beijo da traição.

Exalando o suspiro derradeiro,
com as mãos estendidas no madeiro,
volta aos céus, dando à Terra o seu perdão.

Fonte:
Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XV: Uma Nova Interjeição

Houve um rebuliço de pânico lá dentro, e logo depois surgiram, a fugir pelas janelas, mais filólogos e gramáticos e dicionaristas do que fogem ratazanas duma despensa quando o gatão aparece. A casa da velha ficou completamente vazia.

— Sim, senhor! O seu berro, Quindim, é que nem Flit, e merece ir para a Casa das Interjeições com um letreiro novo: Interjeição espantativa de gramáticos. . .

Desimpedida que ficou a casa da velha, entraram todos, menos o rinoceronte, que não cabia na porta. Toparam a Etimologia intrigadíssima com aquele Muuu!. . . som jamais ouvido na zona.

— Não conheço essa interjeição — declarou ela, assim que os meninos a rodearam. — Só conheço o Mu! dos bois, mas este que ouvi não me parece nada bovino.

— Este é rinocerontino, minha senhora! — explicou

Emília, com toda a sapequice.— Veio da África. A senhora conhece a África?

A Etimologia não conhece as coisas; só conhece as palavras que designam as coisas. De modo que, ao ouvir aquela pergunta, julgou que a boneca se referisse à palavra África, e respondeu:

— Sim, é uma palavra de origem latina, ou melhor, puramente latina, porque não mudou. A propósito. . .

— Espere — interrompeu Emília. — A história da palavra África não nos interessa. Preferimos conhecer a história de outras palavras mais importantes, como, por exemplo, Boneca.

A velha riu-se da presunção da criaturinha e respondeu:

— Boneca, minha cara, é o feminino de Boneco, palavra que veio do holandês Manneken, homenzinho. Houve mudança do M para B — duas letras que o povo inculto costuma confundir. A palavra Manneken entrou em Portugal transformada em Banneken, ou Bonneken, e foi sendo desfigurada pelo povo até chegar à sua forma de hoje, Boneco. Dessa mesma palavra holandesa nasceu para o português uma outra — Manequim.

— Mas então o povo, isto é, os ignorantes ou incultos, influi assim na língua? — disse Pedrinho.

— Os incultos influíram e ainda influem muitíssimo na língua — respondeu a velha. — Os incultos formam a grande maioria, e as mudanças que a maioria faz na língua acabam ficando.

— Engraçado! Está aí uma coisa que nunca imaginei. . .

— É fácil de compreender isso — observou a velha. — As pessoas cultas aprendem com professores e, como aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem o pouco que sabem com outros incultos, e só aprendem mais ou menos, de modo que não só repetem os erros aprendidos como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos adiante. Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e, portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.

Tomemos a palavra latina Speculum — continuou a velha. — Essa palavra emigrou para Portugal com os soldados romanos, e foi sendo gradativamente errada até ficar com a forma que tem hoje — Espelho.

— E os ignorantes de hoje continuam a mexer nela — observou Narizinho. — A gente da roça diz Espeio.

— Muito bem lembrado — concordou a velha. — Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos, como a forma Espelho devia ter sido repelida com horror pelos cultos de dantes. Mas como os cultos de hoje aceitam como certo o que já foi erro, bem pode ser que os cultos do futuro aceitem como certo o erro de hoje. Eu, que sou muito velha e tenho visto muita coisa, de nada me admiro. O homem é um animal comodista. Daí a sua tendência a adotar os erros que exigem menor esforço para a pronúncia. Espelho exige menor esforço do que Speculum, e por isso venceu. Espeio exige menor esforço do que Espelho. Quem nos diz que não acabará vencendo nestes mil ou dois mil anos?

Hoje está mais difícil a ação dos ignorantes sobre a língua, por causa do grande número de livros e jornais que existem e fixam a forma atual das palavras. Mas antigamente quem fazia a língua era justamente o ignorante.

Dona Etimologia tomou fôlego e bebeu um golinho de chá. Emília foi cheirar a xícara para saber se era chá-da-índia ou de erva-cidreira. . .

— Mas qual a sua principal ocupação nesta cidade, minha senhora? — perguntou o menino.

— Eu ensino a origem e a formação de todas as palavras.

— Pois então nos conte a origem de algumas.

Dona Etimologia bebeu mais um golinho de chá (enquanto Emília cochichava para Narizinho: "É de cidreira!") e começou:

— As palavras desta cidade nova, onde estamos, vieram quase todas da cidade velha, que fica do outro lado do mar. Lá na cidade velha, porém, essas palavras levaram uns dois mil anos para se formarem.

— Como foi isso? Explique.

— Nos começos, as terras em redor dessa cidade haviam sido ocupadas pelos soldados romanos, que só falavam latim.

Esses soldados moravam em acampamento (ou Castra, como se dizia em latim), de modo que foi em redor dos acampamentos que a língua nova começou a surgir.

— Que língua nova?

— A portuguesa. Os moradores das terras ocupadas pelos romanos, ou Aborígines, eram bárbaros incultíssimos, que foram aprendendo o latim lá à moda deles — isto é, estropiadamente, todo errado e com muita mistura de termos e modos de falar locais. Tanto estropiaram o pobre latim, que ele virou um Dialeto ou uma variante do latim puro. Depois os romanos se retiraram, mas o dialeto ficou vivendo a sua vidinha, e foi evoluindo, ou mudando, até tornar-se o que chamamos hoje língua portuguesa.

— Então a língua portuguesa não passa dum dialeto do latim?

— Perfeitamente. E também a língua francesa, a espanhola e a italiana não passam de outros tantos dialetos do mesmo latim. No começo, esses dialetos eram muito pobres em palavras e modos de dizer. Com o tempo, entretanto, as palavras foram aumentando enormemente e também foram aparecendo novos jeitos de combinar entre si as palavras. E desse modo essas línguas enriqueceram-se.

— Mas as palavras foram aumentando como? Donde vinham? Quem era o fabricante? — quis saber a menina.

— Umas nasciam lá mesmo, inventadas pelo povo; outras eram criadas pelos eruditos, que são os sabidões; outras eram importadas dos países estrangeiros.

— Mas o povo? Como é que o povo forma palavras?

— Muito simplesmente. O povo combina entre si palavras já existentes e forma novas.

— Isso lá no sítio se chama "tirar cria" — lembrou Pedrinho.

— Em Gramática se chama DERIVAÇÃO, querendo dizer que uma palavra sai de outra, ou deriva de outra. Neste processo de Derivação há umas certas palavrinhas, sem sentido próprio, que possuem uma função muito importante. São os PREFIXOS e SUFIXOS. Os prefixos grudam-se no começo da palavra, e os sufixos grudam-se no fim. Estes constituem verdadeiros rabinhos, que por si nada dizem, mas que, pregados a outras palavras, servem para dar-lhes uma forma nova e um sentido novo.

— Espere! — gritou Emília. — Conheço um rabinho desses muito usado na fabricação de Advérbios — o tal Mente. Basta pregá-lo no traseiro dum Adjetivo para aparecer um lindo Advérbio novo. É Sufixo o tal Mente?

— Sim, bonequinha — respondeu a velha, admirada da esperteza da Emília. — Mente é um sufixo só de uso para fazer Advérbios. Existem inúmeros outros, como Ária, Ado, Agem, Ume, etc. Este Ária, por exemplo, é um Sufixo precioso, que permitiu a formação de grande número de Substantivos novos. Ária em si não quer dizer coisa nenhuma, não passa dum simples rabinho. Mas, ligado a uma palavra, cria outra nova, com idéia de quantidade. Ligado ao Substantivo Cavalo, por exemplo, dá Cavalaria, que quer dizer muitos cavalos.

— Não, senhora — protestou Emília. — Cavalo com o Ária atrás vira Cavaloaria, e não Cavalaria.

A velha riu-se da exigência daquele espirro de criatura.

— Bom, minha filha — respondeu ela pachorrentamente —, confesso que errei. Eu devia ter explicado que, antes de colocar um desses rabinhos, é necessário primeiro cortar a DESINÊNCIA da palavra. Senão o Sufixo não pega, ou não solda. Cada palavra se divide em duas partes — a RAIZ e a DESINÊNCIA. Raiz é a parte fixa da palavra; Desinência é a parte final, mudável. Reparem que, em todas as palavras formadas de Cavalo, a Raiz é Cavai, e notem que essa Raiz nunca muda. Cavaleiro, Cava-laria, Caval-gadura, Caval-hada. . .

— Caval-ência — ajuntou Emília.

— Essa palavra eu não conheço — disse a velha, com expressão de surpresa nos olhos.

— É minha! — berrou a boneca. — Foi inventada por mim com a invençãozinha que Deus me deu. Faz parte dos meus "neologismos".

A velha fez uma careta igual à de Tia Nastácia lá no sítio, quando pendurava o beiço e dizia — Credo!. . .

______________________
Continua ... Capítulo XVI: Emília Forma Palavras
____________________________
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Osvaldo Reis (Livro de Trovas)


À pergunta “o que é um ovo?”,
respondeu a patricinha:
– Ora, ovo... diz o povo
que é caroço de galinha!...

A sereia canta e encanta;
isso eu não faço, mas deixe...
Embora sem graça tanta,
eu também vendo o meu peixe.

Candidato, atrás de voto,
em véspera de eleição,
faz-se contrito de-voto,
de missa e de procissão…

– Cê sabe de argo, seu moço,
pra curá quem cai do gaio?
– Sei de um remédio colosso:
passa pó-pa-tapá-taio.

Companheiro, estenda a mão,
que nem um bom cavalheiro,
ao colega, amigo, irmão...
porém lave a mão primeiro!

E’ dia sim, dia não…
Dia anão?… Ou dia assim?…
Sei lá… mas que confusão!
O jeito é rimar com “fim”…

Esta é uma sábia charada,
bem fácil de se entender:
– Um homem sozinho é nada...
nem chifre consegue ter!

Jequice não paga imposto,
e nem dá pra contestar.
O máximo, ante o mau gosto,
é a gente se lastimar…

Melão do papai, colhido
bem cedinho, antes das sete...
Ah que delícia, servido
na ponta do canivete!

Menininha no quintal,
tadinha, brincando só,
faz algo que lhe faz mal:
cata cocô de cocó...

Mostra o sábio o que destaca
do burro a paca, e sussurra:
– é que o burro sempre empaca,
e a paca jamais emburra...

Na minha dúvida atroz,
pra evitar vexame e enrosco,
não direi “arroz com noz”,
direi sempre “arroz conosco”...

Não por acaso, sou fã
deste casal fascinante:
– o meu galinho é um “galã”;
minha galinha, “chocante”…

Na perna uma pulseirinha
que maus instintos instiga.
– É assim que hoje a canarinha
chama o canário pra “briga”..

Nos extremos desta vida,
um contraste se percebe:
– A Terra chora a partida
daquele que o Céu recebe!

O galo, olhando a pombinha,
pecou por mau pensamento:
– “Que pena que essa baixinha
comeu tão pouco fermento!...”

Passei uma tarde inteira
ouvindo discursos, mas...
é melhor ouvir besteira
do que ser surdo, rapaz!...

Pedido de um sábio idoso
feito aos santos e que-tais:
– Que eu fique feio e rugoso;
metido a moço, jamais…

Se a fé em Deus te acompanha
na andança de déu em déu,
podem barrar-te na Espanha,
nunca na porta do céu!

“Tem quantas partes o crânio?”,
pergunta a mestra à piazada.
Responde unzinho, instantâneo:
“Depende da cacetada!”

Trai a esposa, vive em farra,
“galinha” de festa em festa…
Até que súbito esbarra
num baita “galo” na testa!…

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.62)


Trova do Dia

O Natal nos fez irmãos
pelo Fruto de Maria...
- Se todos dermos as mãos
será Natal todo dia!
YEDDA MAIA PATRÍCIO/SP

Trova Potiguar

Natal... Um lindo presente
de Deus para a humanidade;
uma prova, tão somente,
de amor e fraternidade!
EVA YANNI GARCIA/RN

Uma Trova Premiada

2006 > Fuzeta/Portugal
Tema > VAMOS CANTAR NATAL > Menção Honrosa

Vamos cantar o Natal,
partilhando com o irmão
o nosso Amor fraternal,
na ceia... do coração!
MARIA DA CONCEIÇÃO FAGUNDES/PR

Uma Trova de Ademar

Que o espírito fraternal
que agora habita na gente
não dure só no Natal,
permaneça eternamente!
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram


Suplico ao pai divinal
e a Jesus cristo também
trazer-nos neste Natal
a paz que o mundo não tem!
CLARINDO BATISTA/RN

Estrofe do Dia

O Natal lembra Jesus,
lembra paz, lembra alegria;
lembra amor, lembra amizade,
igualdade e harmonia;
mas não lembra com certeza,
os casebres da pobreza,
que estão na periferia.
LUIZ DUTRA/RN

Soneto do Dia

– Francisco Luzia Neto/SP –
PAPAI NOEL OPERÁRIO.

O meu Papai Noel, para ser franco,
não era de trenós, das chaminés,
jamais vestiu roupão vermelho e branco
e sua condução eram os pés.

E nunca se pintou, qual saltimbanco,
nem cavalgou jamais nédios corcéis,
andou por esta vida ao solavanco,
remando contra as crises e as marés.

Trabalhador de um mínimo salário,
vivia no Instituto, de ordinário,
reumático que fora desde cedo...

Porém, Papai Noel, sempre cordial,
nunca esqueceu, nas noites de Natal,
de pôr nos meus sapatos um brinquedo!

Fonte:
Ademar Macedo

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Ademar Macedo (Antologia Poética)


Eu senti aumentar os meus desejos
quando pude provar todo o sabor
que contém na doçura dos seus beijos
que é um elixir eficaz para o amor,
e entreguei o meu corpo tresloucado
para ser por você todo beijado
e com os lábios tremendo de paixão,
pude ainda num gemido lhe dizer;
o teu beijo é mais doce, podes crer
que a quixaba mais doce do sertão.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Quando a musa do céu vem e me inspira
pondo brilhos na minha inspiração,
eu desenho na mente uma paisagem
com pincéis vivos da imaginação;
e eu envolto na mais doce aquarela
vou encher de beleza a minha tela
retratando a paisagem do sertão.
Deus pintou o cenário mais bonito
nos neurônios que tem na minha mente.
Com o brilho das luzes da poesia
me ensinou a fazer verso e repente;
me deu todas as dicas sobre a rima
e depois de fazer esta obra-prima
deu ao mundo um poeta de presente.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

PAISAGENS DO MEU SERTÃO!

Um forró numa latada
numa plena Sexta-feira,
um bebum no meio da feira
topando em toda calçada;
uma velha na almofada
com um birro em cada mão,
prestando muita atenção
naquilo que vai fazendo;
isso é mesmo que está vendo
paisagens do meu sertão.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


O SERTÃO É UM POEMA...

Deus na sua magnitude,
fez do sertão um palácio,
deixou escrito um prefácio
na parede do açude;
disse da vicissitude
da flor e do gineceu,
de um concriz que se escondeu
nos garranchos da jurema,
o sertão é um poema
que a natureza escreveu.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

O VÍRUS DA POESIA...

Poesia é a minha paz,
meu mundo, meu universo;
um mar de sabedoria
onde eu vivo submerso;
é minha alimentação,
é meu sustento, é meu pão
feito de rima e de verso...

A partir da madrugada
é esse o meu dia a dia:
já de caneta na mão
recebo uma epifania,
cuja manifestação
é trazer-me inspiração
pra eu fazer minha poesia...

A poesia é minha luz,
é meu santo e meu altar,
feijão puro com farinha
que eu tenho para almoçar;
ela é minha própria vida
é meu lar, minha guarida
meu sol, meu céu e meu mar!

Ao ver poesias aos montes
nascendo em minha vertente,
tive um “derrame” de rimas
nas veias da minha mente
e um maravilhoso “infarto”
eu tive ao fazer o parto
do derradeiro repente!...

Quero então no meu jazigo,
feito em letras garrafais,
aquela minha poesia
que me deu nome e cartaz;
e escrito, seja onde for:
- eis aqui um trovador
que morreu feliz demais!

Quem carrega, como nós,
o vírus da poesia,
tem no sangue uma plaqueta
que se altera todo dia,
aumentando a quantidade
e pondo mais qualidade
nos versos que a gente cria.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

PESADO É PEDIR PERDÃO

Errar, é do ser humano
e todos podem errar;
mas, saiba que perdoar
é divino, é soberano.
Não deixe que um ato insano
lhe amargure o coração,
perdoe-me, e me estenda a mão
pra ser, por mim, apertada;
perdoar não pesa nada,
pesado é pedir perdão!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

POESIA SANTA

A minha poesia é Santa
porque é Deus quem projeta,
é ele mesmo quem planta
no coração do poeta;
pois todos os versos meus
vêm lá da mansão de Deus
como se fosse uma luz;
são escritos com emoção
pela minha própria mão,
mas o autor, é Jesus!...
6 6 6 6 6 6 6 6

TRÊS SETILHAS...

O poeta já vem com a verve feita
por Deus Pai nosso mestre e criador;
alguns nascem com a mente de aprendiz
outros tantos já nascem professor,
e Deus vendo chegar a minha vez,
com a bênção sagrada Ele me fez:
Fuzileiro, Poeta e Trovador.

Escorado no topo da muleta,
eu me fiz um poeta e trovador;
meu passado de atleta e de boêmio
para mim, não foi nada alentador;
mas depois do meu trágico acidente,
encontrei na poesia e no repente
o remédio eficaz pra minha dor.

Como prova de amor, maior do mundo,
Cristo morre por nós, os pecadores.
Vejo ainda no manto de Maria
os vestígios de suas próprias dores;
e, dotado de toda perfeição,
pra falar deste amor e do perdão
Deus criou os poetas Trovadores.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

CONFISSÃO DE FÉ

De um acidente medonho,
sobrou uma amputação,
mas veio a superação,
pois jamais fiquei tristonho.
Comecei viver um sonho:
de frente encarei a dor;
a Deus confessei amor
e, com Fé e muita sorte,
venci o câncer e a morte
e me fiz um Trovador!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

DALVA, ESTRELA MULHER...

Pela luz do pirilampo
e pelo brilho do sol,
pela beleza do campo
e pela cor do arrebol,
por um orvalho caindo
por uma flor se abrindo
e pelos três filhos meus;
Por minha perna amputada,
por Dalva ser minha amada...
Muito obrigado, meu Deus!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

LÁGRIMA

Quando de um amor me aparto,
em tristezas me esparramo:
bebo sozinho em meu quarto
as lágrimas que eu derramo!

Essas gotas maculadas,
itinerantes no rosto,
são as lágrimas magoadas
que dão vida ao meu desgosto.

Lágrimas, fuga das águas
por um riacho inclemente
que numa enchente de mágoas
inunda o rosto da gente!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

DÉCIMA (SERTÃO)

No sertão tem poesia,
tem o preá no serrote
tem mocó dando pinote
e tem cabra dando cria;
tem coalhada na bacia
tem fogueira de São João,
tem festa de apartação
tem porteira e passadiço;
quem nunca viu tudo isso
não sabe o que é sertão!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

DÉCIMA (POETA NORDESTINO)

No sertão eu nasci e fui criado
e amar será sempre o meu destino,
como todo poeta nordestino,
sou da vida, um eterno apaixonado,
cada verso que eu faço é inspirado
nas belezas do meu interior,
como amante e fiel agricultor
eu cheguei a seguinte conclusão:
não há seca que torre o meu sertão
nem macumba que acabe o nosso amor.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

DÉCIMA

Vou abrir a bodega da cultura
a as entranhas fecundas do juízo
e dizer para o povo hoje é preciso
que este mote está à minha altura;
pois eu sou simplesmente a criatura
que Deus irá deixar para semente,
e por ordem do pai onipotente,
não há mote nenhum que eu não dê jeito;
vou abrir a cancela do meu peito
pra passar a boiada do repente
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

NINGUÉM MATA O NOSSO AMOR...

No sertão eu nasci e fui criado
e amar será sempre o meu destino,
como todo poeta nordestino,
sou da vida, um eterno apaixonado;
cada verso que eu faço é inspirado
nas belezas do meu interior,
como amante e fiel agricultor
eu cheguei a seguinte conclusão:
não há seca que torre o meu sertão
nem macumba que acabe o nosso amor.

Sonetos de Natal


– Machado de Assis/RJ –
Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

Pedro J. Bondaczuk/SP
Meu maior presente

É noite de Natal... Estrelas reluzentes
salpicam o céu, este infinito luzeiro.
Na sala, sob a árvore, estão os presentes.
As luzes, piscando, iluminam o pinheiro.

Só, reflito em fatos antigos e recentes,
nos ganhos e perdas deste ano, no final,
nos mui queridos amigos e nos parentes
que estão distantes nesta noite de Natal.

Penso, sobretudo, em você, amiga ausente,
no que gostaria de receber e dar,
no seu grande carinho e generosidade,

no seu sorriso e franqueza no olhar,
pois só quero, amiga, como maior presente,
o rico penhor da sua eterna amizade!

Doroni Hilgenberg/AM
Soneto de Natal

É Natal e uma claridade intensa
Paira por cima de uma noite mansa
E num instante volta a minha crença
E por momentos volto a ser criança

Noite de Natal... e a árvore enfeitada
Bolinhas coloridas, anjos e fitinhas,
Guloseimas e uma noite encantada
Com presentes para as crianças boazinhas.

Que tristeza deve ser para algumas delas
Acreditando que o Papai Noel existe
Sonham...e nada recebem nesta noite linda!

Que descrença... que amargura singela
Para a criança que em seu cantinho triste
Espera pelo presente que não veio ainda!

Pedro J. Bondaczuk/SP
Cenários de Natal

Noite de Natal, a cidade se ilumina...
Brilham estrelas, o mundo se enche de luz.
Mil canções bailam no ar, a paz predomina,
é noite de festas pro Menino Jesus.

Noite de Natal, reacendem-se esperanças,
tristezas desaparecem, tornam-se vultos,
face aos inocentes sorrisos das crianças
que se somam às recordações dos adultos.

A chama do amor os corações incendeia.
A fé eleva nossas preces para o céu...
Em surdina, ouvem-se as notas do Jingle Bell...

Feliz, sentado à mesa, em posição central,
o pai preside a familiar e santa ceia...
A cidade se ilumina... Noite de Natal...

Antonio Olinto/MG
Soneto de Natal

Mudaria o Natal ou mudo iria
Mudar sempre o menino o mundo em tudo?
Ou fui só quem mudei, e meu escudo
Novidadeiro, múltiplo, daria

Ao mudadiço mito da alegria
Em noite tão mutável jeito mudo?
O homem é mudador, muda de estudo,
De mucama, de verso, pouso, dia,

Porque a muda modula esse desnudo
Renascimento em palha, e molda e afia
O instrumento da troca, o fim miúdo,

A noite amena erguendo-se em poesia.
Mudei eu sempre sem saber que mudo
Ou somente o Natal me mudaria?

Pedro J. Bondaczuk/SP
Mensagem de Natal

Um dia – memorável dia – a humanidade
teve expiados todos os erros seus,
através da magnífica oportunidade
de conviver cotidianamente com Deus.

O arquiteto do universo, que irradia
luz, poder, glória infinita e imorredoura,
nasceu, sem pompa ou luxo, numa estrebaria,
só tendo, por berço, uma reles manjedoura.

O seu nascimento traz a maior lição
do que ao homem deve ser essencial:
a bondade, a pureza e amor no coração

e a luz da verdade por perene ideal.
Esta foi a mensagem do Deus do perdão
há dois mil anos, numa noite de Natal!
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Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.61)

Trova Potiguar Natal é festa de luz de sentimento profundo, quando o menino Jesus vem trazer a paz ao mundo. HÉLIO PEDRO/RN Uma Trova Premiada 2002 > Garibaldi/RS Tema > Natal > Menção Honrosa Minha maior alegria, no Natal, era a emoção do amor, que meu pai trazia sob a barba... de algodão! SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP Uma Trova de Ademar Tal qual num conto de fadas, quem sabe eu possa ver isto: todas nações de mãos dadas no aniversário de Cristo! ADEMAR MACEDO/RN ...E Suas Trovas Ficaram Quanto mais festa e mais luz nesses Natais de salões, mais nós sentimos Jesus ausente dos corações! LUIZ OTÁVIO/RJ Estrofe do Dia Neste Natal quero ser companheira e generosa com meu povo e meu Jesus, fazer do espinho, uma rosa e amenizar qualquer dor sendo bem mais amorosa. DÁGUIMA VERÔNICA/MG Soneto do Dia NATAL DE NUNCA MAIS Na véspera, um peru se embebedava no terreiro da casa da alegria... - E eu fui saber que a "pinga" que tomava tornava a sua carne mais macia. A Ceia de Natal entrelaçava papai, mamãe e a minha fantasia... - Sem perceber que a vida caminhava e o sonho terminava no outro dia. Quando a vida fluiu e pôs distância, eu descobri, sem sombras de arrogância, que o tempo tem seus planos desiguais... E sigo, em meio ao risco e ao recomeço, buscando, em vãos caminhos, o endereço daquele meu Natal de nunca mais ! ! ! Fontes: Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XIV: A Senhora Etimologia

Depois que se despediu do Verbo Ser, Emília foi correndo em procura dos companheiros. Encontrou-os na Praça da ANALOGIA, rodeados de várias palavras. O Visconde conversava com duas absolutamente iguais na forma, embora de sentido diferente — as palavras Pena (dó) e Pena (de escrever).

— Não acho isso direito — dizia o Visconde para a primeira Pena —, se a senhora significa uma coisa tão diversa da significação da sua companheira por que não muda, para evitar confusões?

— Sim — disse Emília, chegando e metendo a sua colherzinha torta na conversa. — Por que não usa um sinal — uma cruz na testa ou uma peninha de papagaio na cabeça, por exemplo?

— Nós, palavras, não temos a liberdade de nos mudar a nós mesmas — respondeu Pena (dó). — Unicamente o uso lá entre os homens é que nos muda, como acaba de suceder a esta minha HOMÔNIMA, a Senhora Pena (de escrever.) Ela já teve dois NN e agora tem um só.

— Pare! — gritou Emília. — Que "Homônima" é essa, que apareceu sem mais nem menos?

— Pena (de escrever) é minha Homônima. Homônima quer dizer uma palavra que tem a mesma forma de outra, embora de significado diverso. Nós duas aqui somos Homônimas, do mesmo modo que grande número de outras palavras desta cidade. Cesta (balaio) e Sexta (número), por exemplo; Cela (quartinho) e Sela (de cavalo), Bucho (estômago) e Buxo (árvore), Cartucho (de espingarda) e Cartuxo (frade) são palavras Homônimas.

E há ainda outras diferencinhas. Se somos iguais unicamente no som, os gramáticos nos chamam HOMÓFONAS, como essas que citei. E se somos iguais na forma escrita, eles nos chamam HOMÓGRAFAS.

— Então você, Pena (dó), é Homônima, Homófona e Homógrafa de Pena (de escrever) — disse Emília, que tinha prestado toda a atenção. — Que judiaria! Tão pequenininha e xingada pelos gramáticos de tantos nomes esquisitos.

— Mas isso de vocês terem a mesma forma ou o mesmo som — observou Narizinho — há de atrapalhar muito aos homens. Quando eles se encontram diante de palavras Homônimas, Homófonas e Homógrafas devem ficar tontos.

— Puro engano — respondeu Pena (dó). — Seria assim se os homens nos encontrassem soltas como andamos aqui. Mas lá entre eles só aparecemos metidas em frases, e então é pelo Sentido que os homens nos distinguem. Quem ouve a frase: Estou escrevendo com uma pena de bico chato, vê logo que se trata da minha amiga Pena de escrever. Mas quem ouve exclamar: Que pena tenho dela! percebe imediatamente que se trata de mim. É pelo sentido da frase que se conhecem as palavras.

— Muito bem — disse Emília. — A senhora é uma grande sabidinha. E quem são aquelas que ali estão de prosa, duas a duas?

— Oh, aquelas são as palavras SINÔNIMAS e ANTÔNIMAS.

— Explique-nos isso — pediu a menina.

— Palavras Sinônimas — disse Pena (dó) — são as que significam a mesma coisa, ou quase a mesma coisa, embora tenham forma diferente. Lábio e Beiço, por exemplo; Habitar e Morar; Cavalo e Corcel; Olhar e Ver; são palavras Sinônimas.

— E as Antônimas?

— Palavras Antônimas — respondeu Pena (dó) — são as que têm sentido oposto, como Noite e Dia; Sim e Não; Com e Sem; Ódio e Amor; Bom e Mau.

— Engraçado! — berrou Emília. — Então Dona Benta é Antônima de Tia Nastácia!. . .

— Que absurdo é esse, Emília! — exclamou Narizinho.

— Sim, sim — insistiu a boneca —, porque uma é branca, e outra é preta.

— As cores delas é que são Antônimas, boba, e não elas. . .

Durante toda a conversa o rinoceronte manteve-se afastado, de beiço caído, refletindo distraidamente. Emília deu-lhe um beliscão.

— Acorde, boi sonso! Que nostalgia é essa?

— Estou pensando em coisas passadas — respondeu o excelente paquiderme. — Estou pensando na velhice destas palavras. Vieram de muito longe, sofreram grandes mudanças e continuam a transformar-se, como essa Pena de escrever, que acaba de perder um N. A maioria delas já morou na antiga Roma, dois mil anos atrás. Depois espalharam-se pelas terras conquistadas pelos romanos e misturaram-se às palavras que existiam nessas terras. E vieram vindo, e vieram vindo, até chegarem ao que hoje são.

Enquanto vocês estavam de prosa com Pena (dó), eu pus-me a recordar a forma dessa palavra no tempo dos romanos. Escrevia-se Poene. E antes ainda de escrever-se assim, escrevia-se Poine, no tempo ainda mais antigo em que ela morava na Grécia.

— Que divertimento interessante não deve ser o estudo de cada palavra! — exclamou Pedrinho. — Hão de ter cada uma o seu romance, como acontece com a gente. . .

— E assim é — confirmou o rinoceronte. — Esse estudo chama-se Etimologia.

— Quem está falando aí em Etimologia? — gritou Pena (dó), que estivera distraída a ouvir a boneca narrar as aventuras da viagem ao céu; e vendo que era o rinoceronte, acrescentou: — A Senhora Etimologia reside aqui perto. Por que não dão um pulinho até lá, para visitá-la?

— Boa idéia! — exclamou Pedrinho. — Mas não é muito rabugenta, essa dama?

— Nada! — respondeu Pena (dó). — É até uma excelente criatura — e sabidíssima, upa!. . . Conhece a vida de todas nós, uma por uma, nos menores detalhes. Sabe onde nascemos, de quem somos filhas e de que modo vimos mudando através dos séculos. Constantemente aparecem por aqui filólogos, gramáticos e fazedores de dicionários para consultar Dona Etimologia a propósito de mil coisinhas.

— Pois vamos vê-la — propôs o Visconde, já assanhado. Velhas eram com ele, que também já estava velho e embolorado. Só Emília discordou. Preferia visitar a Senhora PROSÓDIA, que ensina o modo de pronunciar as palavras. Emília errava muito na pronúncia e queria aprender.

— Prefiro saber como é que se pronuncia uma palavra a saber onde, como e quando ela apareceu. Sou "prática".. .

Mas Narizinho empacou.

— Agora, não, Emília. Depois. Depois visitaremos Dona Prosódia. Neste momento eu resolvo que se visite a Etimologia. Você não manda.

E como o caso fosse assim despoticamente resolvido, dirigiram-se todos para a residência da Senhora Etimologia.

Encontraram lá uma velha coroca, de nariz recurvo e uma papeira — a papeira da sabedoria. Encontraram-na com a casa entupida de filólogos, gramáticos e dicionaristas. Foi o que disse a criada que os atendeu da janela.

Pedrinho espiou pelo buraco da fechadura.

— Xi!. . . — exclamou. — Está "assim" de carrancas lá dentro. Impossível que ela nos receba hoje. Os carrancas estão de óculos na ponta do nariz e lápis na mão, tomando notas. Até que ela atenda a todos. . .

Puseram-se a escutar. A velha explicava a um daqueles homens como é que certa palavra havia passado do grego para o latim.

— Ché!... — exclamou Emília. — Ainda estão no grego e no latim, imaginem! O melhor é espantarmos esses gramáticos e tomarmos conta da velha só para nós.

E voltando-se para o rinoceronte:

— Vamos, Quindim! Bote o focinho aqui no buraco da fechadura e solte um daqueles berros que os paquidermes dão nas "plagas africanas", quando o leão aparece na "fímbria do horizonte".

O rinoceronte não quis obedecer, achando aquilo impróprio e nada gramatical; mas Emília resolveu o caso dizendo que um berro era uma Interjeição e, portanto, uma coisa perfeitamente gramatical. Quindim então obedeceu. Ajustou o focinho ao buraco da fechadura e desferiu uma formidável Interjeição que abalou a casa:

— Muuu!
______________________
Continua ... Capítulo XV: Uma Nova Interjeição
____________________________
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

domingo, 5 de dezembro de 2010

Vinicius de Moraes (Antologia Poética II)


POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

TERNURA

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

SONETO DA HORA FINAL

Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente,
O beijo leve de uma aragem fria.

Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de trevas, aberta em frente.

Ao transpor as fronteiras do segredo
Eu, calmo, te direi: - Não tenhas medo
E tu, tranqüila, me dirás: - Sê forte.

E como dois antigos namorados
Noturnamente tristes e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.

SONETO DE CARNAVAL

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo

SONETO DO AMIGO

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

SONETO DE ANIVERSÁRIO

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

POESIAS PARA CRIANÇAS

O PINGUIM

Bom-dia, Pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.

A PORTA

Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de sopetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!

Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!

AS BORBOLETAS

Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas

Borboletas brancas
São alegres e francas.

Borboletas azuis
Gostam muito de luz.

As amarelinhas
São tão bonitinhas!

E as pretas, então . . .
Oh, que escuridão

Fontes:
Portal São Francisco
Imagem = montagem José Feldman

Artur da Távola (Coitado, virou poeta!)



Curioso, em nossa fala brasílica, doce e deliciosa, os verbos saltarem mais que baiacu no samburá.

O sol, por exemplo, não “sola”: faz . “- Ontem não fez sol”.

E o frio? Este, não esfria: o frio está. E na fala popular, “tá”. “Tá frio, hoje!”
Já o tempo, este é um leviano! Ele abre e fecha. “Ah, que bom, o tempo “abriu” hoje de manhã. E o tempo fecha também quando há briga “Chii, o tempo fechou lá em casa hoje”.

Você sabia que restaurante “abre”? “Sabia que abriu um restaurante lá no meu quarteirão?”.
Já o jornal é pródigo. Ele “dá” e ele “sai”.
O rádio não sai, dá. “Deu no rádio, não ouviu?”.
Pois não é que a lua também “sai”, a exibida.

A televisão, mais vaidosa não “sai”. Ela “dá”. Como o rádio. “Deu na televisão”. Porém não se contenta em dar. Ela faz aparecer, a milagrosa. “Viu o Jonir? Ele “apareceu” na televisão com a
bandeira do Brasil comemorando a vitória da Seleção”.

Já os místicos arranjaram verbos notáveis. Vejam só. Tarô se “bota”; Búzios “joga”. E carta também “bota”. “A Branca botou o tarô para mim”.

E o verbo bater? Danadinho ele. Encheu-se de significantes e ficou gordinho. Olhem só: “Às duas da tarde me “bateu” uma fome!”. E ele virou até concordância: “Minha opinião “bateu” com a dele!” E cálculo também “bate”, quem diria. “Fiz as contas, comparei com os recibos e não “bateu”.

O cansaço tem complexo de inferioridade. Ele não sobe. Ao contrário “baixa”. “Pô, me “baixou” um cansaço!” Aliás fome não apenas bate. Ela também “baixa”, como “baixa” o sono. “Depois do almoço me “baixou” um sono!”
Sentar. Ah sentar! Além daquele uso meio indecoroso que a gente conhece, agora sentar é reunir-se para deliberar. Sindicatos, grevistas, ministros “sentam”. “Agora precisamos “sentar” para resolver a questão pacificamente”. Uai, só sentado?
E quanta coisa mais: “Ontem “soprou” um vento!” “Fulana “recebe” espíritos”. Céu “limpa”. Já político e poeta a gente “vira”. “Lembra de Artur? Depois que “virou” político, nunca mais escreveu boas crônicas”...

Fonte:
http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/artur.htm

Folclore Português (Lenda da Serra da Estrela)


Era uma vez um jovem pastor que vivia numa longínqua aldeia. Por único amigo tinha um cachorrinho, que nas longas noites de solidão se deitava a seus pés sem esperar nenhum gesto, nenhuma palavra. Sofria este pastor de uma estranha inquietação: cismava alcançar uma serra enorme que via muito ao longe, ver as terras que existiriam para lá da muralha rochosa que constituía o seu horizonte desde que nascera. E muitas noites passava em claro, meditando nesse seu desejo infindável.

Certa noite em que se julgava acordado, sonhou que uma estrela descia até si e lhe segredava que o guiaria até ao objeto dos seus desejos. Acordou o pastor mais inquieto e angustiado que nunca, e procurou no céu a verdade do que sonhara. Lá estavam todas as estrelas iguais a si mesmas, imutáveis e eternas aparentemente. Mas estava também uma que lhe pareceu diferente e mais sua.

Passavam-se os dias e o desejo do pastor aumentava, fazia doer-lhe o corpo, ardia-lhe febril na cabeça. De noite, todas, todas as noites, procurava no céu a sua estrela diferente. E em sonhos ela aparecia-lhe muitas vezes desafiando-o, desafiando-lhe sempre a vontade. Mas a vontade por vezes é tão difícil!!

Uma noite, num ímpeto, decidiu-se. Arrumou tudo o que tinha e era nada, chamou o cão e partiu. Ao passar pela aldeia o cão ladrou e os velhos souberam que ele ia partir. Abanaram a cabeça ante a loucura do que assim partia à procura da fome, do frio, da morte. Mas o pastor levava consigo toda a riqueza que tinha: a fé, a vida e uma estrela. E o pastor caminhou tantos anos que o cão envelheceu e não aguentou a caminhada. Morreu na noite, nos caminhos, e foi enterrado à beira da estrada que fora de ambos. Só com a sua estrela, agora, o pastor continuou a caminhar, sempre com a serra adiante. E à medida que caminhava a serra ia estando sempre ali, no mesmo sítio e à mesma distância.

Passou todas as fomes e frios que os velhos lhe tinham vaticinado. Atravessou rios, galgou campos verdes e campos ressequidos, caminhou sobre rochedos escarpados, passou dentro de cidades cheias de muros e gente, mas a montanha dos seus desejos nunca a baniu do coração. Por fim, já velho, alcançou a muralha escarpada que desde a infância o chamava. Subiu, subiu até ao mais alto da serra e ali pôde então largar o desejo do seu coração, agora em paz e sem desejo.

O horizonte era tão vasto e maravilhoso, a impressão de liberdade tão avassaladora que o pastor, sem falar, gritava dentro de si um hino de louvor que mais parecia o vento uivando por entre os penhascos rochosos de silêncio. Instalou-se o velho pastor e a sua estrela ficou com ele, no céu.

O rei do mundo, porém, ouviu falar naquele velho pastor e na sua estrela fantástica. Mandou emissários à serra: todas as riquezas do mundo daria ao pastor em troca da sua pequena estrela. O pastor ouviu com atenção o que lhe mandava dizer o rei. Depois, olhou em volta. Tudo eram pedras e rochedos. Uma pequena cabana de rocha coberta de colmo era a sua morada. Uma côdea de pão negro e uma gamela de leite as suas refeições. A sua distração a paisagem igual e diferente do mundo de lá em cima. A sua única amiga, a estrela.

Suavemente, como quem sabe o segredo das palavras e o valor de todos os bens possíveis, virou-se para os emissários do rei do mundo e rejeitou todos os tesouros da terra, escolhendo a pequenez da sua estrela. Passaram os anos e o velho morreu. Enterraram-no debaixo de uma fraga e nessa noite, estranhamente, a estrela brilhou com uma luz mais intensa. Os pastores da serra notaram essa diferença porque a reconheciam também entre as outras, pelo que o velho lhes contava em certas noites.

E em memória desta lenda, a serra passou a chamar-se, para sempre, serra da Estrela.

Fonte:
FRAZÃO, Fernanda. Lendas Portuguesas da Terra e do Mar.

Antonio Brás Constante (Presentes para se fazer Presente)


Se for um abraço, que me envolva em seus braços;
Se for um beijo, que eu sinta sua boca;
Se for morder, que use os dentes;
Se for um tapa, bata com a mão;
Se for um palavrão, que seja feio;
Se for um grito, que seja alto;
Se for um elogio, que seja verdadeiro;
Se for uma ameaça, que seja falsa;
Se for uma caneta, que escreva;
Se for um sorriso, que mexa seus lábios;
Se for vingança, conceda o perdão;
Se for uma lágrima, que seja salgada;
Se for dinheiro, seja generoso;
Se for um tiro, que erre;
Se for um palpite, que acerte;
Se for engraçado, que faça rir;
Se for um olhar, que toque minha alma;
Se for um doce, que seja doce;
Se for um filme, que não seja chato;
Se for Mulher, que faça um afago;
Se for Homem, que traga uma garrafa de trago;
Se for um charuto, jogue fora;
Se for uma aventura, que valha a pena;
Se for um livro que seja o livro: “Hoje é seu aniversário – prepare-se”
Se for um cálice de veneno, cruzemos as taças;
Se for frio, que arrepie;
Se for luz, que ilumine;
Se for seu coração, que seja especial;
Se for bacon, que seja frito;
Se for um sentimento, que marque;
Se for uma emoção, que comova;
Se for uma dor, que passe;
Se for solidão, que desapareça;
Se for desprezo, guarde-o para si;
Se for melancolia, que entristeça;
Se for uma prece, que abençoe;
Se for um carinho, que me toque;
Se for ruim, que não aconteça;
Se for a morte, reconsidere;
Porém, se for apenas um pensamento entregue através de um sussurro, será eterno, pois guardarei sempre na lembrança que você é um pão-duro.
------

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.60)


Trova do Dia

Feliz Natal, com certeza,
tu só verás, meu irmão,
se o pão que sobra em tua mesa
chegar às mesas sem pão.
NEWTON VIEIRA/MG

Trova Potiguar

Nesta nova vinda sua,
papai Noel, eu proponho:
para os meninos de rua,
traga um “pedaço” de sonho!
FRANCISCO MACEDO/RN

Uma Trova Premiada


2002 > Garibaldi/RS
Tema > Natal > Menção Honrosa

No meu Natal é rotina
deixar tudo no “capricho”:
no peito faço faxina
e jogo as mágoas no lixo!
ÉLBEA PRISCILA DA SILVA/SP

Uma Trova de Ademar

No Natal, que o Deus menino
possa, por bondade sua,
mudar de vez o destino
dessas crianças de rua.
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram

É Natal! Lá na favela,
no seu barraco sombrio,
ele encontrou na janela
o tamanquinho vazio!
CAROLINA A. DE CASTRO/PE

Estrofe do Dia

Vendo as noites de Natal,
dói na minha alma ferida;
prepara-se mesa farta,
enfeitada, colorida,
para o meu pesar profundo,
convida-se todo mundo
só Jesus, ninguém convida!!!
PROF. GARCIA/RN

Soneto do Dia

– Edmar Japiassú Maia/RJ –
SANTA CEIA.

Chega dezembro, o mês das esperanças,
dos votos de saúde... Paz ... Sucesso ...
O mês em que se faz o retrocesso,
num balanço de fatos e lembranças.

Dos Natais me declaro um réu confesso...
E o destino, o verdugo das cobranças,
manda as faturas das destemperanças,
cuja extensão de seu total não meço.

Embora em vinte e cinco de dezembro,
diferem os Natais de que me lembro,
ao som do “Jingle Bells” na noite insone...

E sirvo a ceia, órfão, mas nem tanto,
porque ELE está comigo, isto eu garanto,
na partilha do vinho e panetone!

Fonte:
Ademar Macedo

Lygia Fagundes Telles (Um Coração Ardente)


O velho voltou-se para a janela aberta, que enquadrava um pedaço do céu estrelado. Tinha uma bela voz:

... Mas eu dizia que na minha primeira juventude fui escritor. Pois é, escritor. Aliás, enveredei por todos os gêneros: poesia, romance, crônica , teatro... Fiz de tudo. E mais gêneros houvesse... Meti-me também na política, cheguei a escrever uma doutrina inteira para o meu partido. Mergulhei ainda na filosofia, ô Kant, ó Bergson!... Achava importantíssimo meu distintivo de filósofo, com uma corujinha encolhida em cima de um livro.

Calou-se. Havia agora no seu olhar uma expressão de afetuosa ironia. Zombava de si próprio, mas sem amargor.

Eu não sabia que não tinha vocação nem para político, nem para filósofo, nem para advogado, não tinha a menor vocação para nenhuma daquelas carreiras que me fascinavam, essa é a verdade. Tinha apenas um coração ardente, isto sim. Apenas um coração ardente, mais nada.

Meu filho Atos herdou o mesmo coração. Devo dizer-lhe que um coração assim é um bem. Não há dúvida que é um bem, mas um bem perigoso, está me compreendendo? Tão perigoso... Principalmente na adolescência, logo no começo da vida, no tão difícil começo. Meu pobre filho que o diga...

Calou-se apertando fortemente os lábios. Eu quis então romper o silêncio porque sabia do que aquele silêncio se carregava, mas não tive forças para dizer coisa alguma. O olhar do velho já denunciava as tristes lembranças que o assaltavam: qualquer tentativa para afastá-las resultaria agora inútil. E seria mesmo cruel.

Ele era inteiro um coração, prosseguiu o velho. E foi por saber tão bem disto que corri como um louco para casa quando me disseram que Leonor tinha morrido. Não, não fui nem pensei sequer em ir ao hospital porque adivinhei que ele não estava mais lá, devia ter ficado com a noiva até o último momento. Em seguida, devia ter voltado para casa.

Saí correndo pela rua afora, acenando para os carros que passavam já ocupados. Chovia, chovia horrivelmente. E eu acenava em vão para os carros, tentei mesmo agarrar-me a um deles, 'depressa, depressa, que meu filho vai se matar!' Corri tanto que quando cheguei, encharcado e exausto, atirei- me quase desfalecido nos degraus da escada. E ali fiquei de bruços, a olhar estupidamente uma formiguinha que se infiltrara numa fenda do degrau de pedra. A casa estava quieta. Quieta demais, pensei, erguendo-me de um salto. E precipitei-me aos gritos pela casa adentro, embora soubesse muito bem que ele não podia mais me ouvir, 'filho, não!'

O velho fez uma pausa. Acendi um cigarro. Que ao menos o ruído do fósforo riscado rompesse o silêncio que se abateu na sala. Fixei o olhar numa rosa do tapete puído. E só quando o velho recomeçou a falar é que tive coragem de encará-lo novamente. A imagem do filho, com o peito varado por uma bala, já passara para um plano remoto.

Atos herdou de mim esse tipo de coração. Gente assim ri mais, chora mais, odeia mais, ama mais... Ama mais, principalmente isto. Ama muito mais. E uma espécie de gente inflamável, que está sempre se queimando e se renovando sem parar. De onde nascem chamas tão altas? Muitas vezes não há nenhuma acha de lenha para alimentar o fogo, de onde vem tamanho impulso? Mistério. As pessoas param, fascinadas, em torno desse calor tão espontâneo e inocente, não? Tão inocente. No entanto, tão perigoso, meu Deus. Tão perigoso.

O velho soprou a brasa mortiça do cigarro de palha. Seu largo rosto bronzeado pareceu-me extraordinariamente rejuvenescido.

Como eu entendia bem aquele filho, eu que lhe transmitira o tal coração flamejante! Como se parecia comigo! Faltava-lhe, apenas, o meu senso de humor, ele matou-se com vinte anos.

Com vinte anos, eu já terminara três romances, duas peças, um livro de novelas e uma enorme epopéia da qual tirei a tal doutrina para o meu partido. Lia Bergson, Nietzsche, Shakespeare... Citava-os enfaticamente, com ou sem cabimento. E cada livro que lia, achava que era a obra máxima, meu guia; meu irmão, meu tudo. Isto até ler outro livro. Então punha de lado o anterior e imediatamente adotava o novo, achei o que queria, achei!... Tão desordenada avalanche de leituras me confundiu a tal ponto, que acabei por me perder e não conseguia mais me encontrar. Os heróis de meus livros me marcavam tanto, que de cada um ficava um pouco em mim: sorria como Fausto, investia como D. Quixote, sonhava como Romeu... Tive crises de angústia, fiquei completamente atordoado, infeliz. Como é que eu era afinal? Senti-me de repente vazio e perplexo, um personagem em absoluta disponibilidade diante do autor. E que autor era esse? Deus? Mas eu acreditava Nele? Não acreditava? A vida me dava náuseas. Mas não era ainda maior do que a náusea o pavor que eu tinha da morte? Que é que eu quero? Que é que eu faço?! - ficava a perguntar a mim mesmo até altas horas, a andar de um lado para outro no meu quarto enquanto meu irmão protestava no quarto vizinho, 'quer ter a bondade de ao menos tirar os sapatos?' As perguntas batiam em mim e voltavam e rebatiam como bolas de pingue-pongue numa partida infernal. Assaltava-me, às vezes, o desejo de poder, prestígio e ao mesmo tempo tudo me parecia de uma inutilidade atroz, 'para quê? por quê?' Meus amigos, tão descabelados quanto eu, vinham somar às minhas suas desesperadas dúvidas. E em debates que não acabavam nunca, varávamos a noite até a madrugada. Deitava-me com a garganta seca, exausto e deprimido, ainda mais perturbado do que antes. Um caos.

E eis que, aos poucos, foi-me dominando um desejo feroz de solidão. Senti-me o próprio lobo da estepe, incompreendido e só num mundo que já não falava a mesma língua que a minha. Abandonei o partido. 'Não é a doutrina que me decepcionou, mas os homens...', justifiquei no meu discurso de despedida, que por sinal achei uma obra-prima. Não acreditava mais nos meus companheiros de partido, naqueles homens que falavam o dia inteiro no bem coletivo, na felicidade do povo, no amor ao próximo. Tão idealistas, tão puros! E na prática, não conseguiam dar o mais miserável grãozinho de alegria à própria esposa, ao filho, ao cachorro... Diziam-se independentes, desapegados das vaidades mundanas. Mas quando eram postos à prova... Não era preciso mais do que um convite para uma festa importante, mais do que um aceno para a glória, não era preciso mais nada para transformá-los em reles bajuladores. E sua servidão era bem do estilo deles: fleumática, orgulhosamente dissimulada e por isso mil vezes pior do que a bajulação desmascarada. Tomei um nojo quase físico do gênero humano. Por que as palavras não coincidiam nunca com os pensamentos? Por que os pensamentos não coincidiam nunca com as ações?

Que farsa, pensei repugnado. Arranquei minhas malas de cima do guarda-roupa. Viajar, ir embora, sumir de qualquer jeito, para qualquer lugar! Não seria esta a solução? Minha mãe trouxe-me um bolo com vinte e uma velinhas, eu fazia vinte e um anos. Apaguei as velas de um sopro. E fui falar com meu pai:

- Vou abandonar os estudos, pai. Vou-me embora e não voltarei tão cedo.

Meu irmão, que era muito parecido com minha mãe, encarou-me friamente:

- Deixe de ser histérico, menino.

Meu pai ordenou-lhe que se calasse. E ouviu-me com a maior gravidade.

- A gente sempre volta, filho. Espere um pouco, não tome por enquanto nenhuma resolução.

Concordei em esperar. E olhei para minhas mãos vazias. Se ao menos pudesse agir! Cansara-me dos planos inúteis, das palavras inúteis, dos gestos inúteis... Fazer alguma coisa de útil, de nobre, alguma coisa que justificasse minha vida e que até aquele instante não tinha para mim o menor sentido. Mas fazer o quê?

'Amar ao próximo como a si mesmo', fiquei repetindo estupidamente, sem a menor convicção. Ah, sim, porque era fácil dizer, por exemplo, que eu não tinha nenhum preconceito de cor, que era completamente liberal nesse assunto, mas na hora de formar a rodinha dos amigos íntimos, daqueles que poderiam vir a se casar com minhas irmãs, nessa hora chamei por acaso algum negro para participar dela? Era fácil ainda encher a boca de piedade para com os assassinos e as prostitutas, mas o fato de não atirar-lhes pedras significava, por acaso, que um dia chegaria a tratá-los como irmãos? Como se fossem eu mesmo? Não passo de um egoísta, concluí. Um refinado hipócrita e egoísta. Sou capaz de me casar com uma priminha que apresenta todas as características de uma rameira mas jamais me casarei com uma rameira que seja uma santa em potencial. Hipócrita e egoísta! Burguesinho egoísta! - berrei dando um soco na vidraça da janela do meu quarto, enquanto minha mãe batia aflita na porta, certa de que eu me pegava ali dentro com alguém.

Sorri silenciosamente. O velho sorriu também. Seus olhinhos azuis pareciam agora maiores e mais brilhantes. Pôs-se a preparar novo cigarro. Era agradável o som da lâmina do canivete alisando a palha.

Tomei-me de tamanha irritação por mim mesmo que deixei de fazer a barba só para não topar mais com minha cara no espelho. Foi quando senti uma necessidade urgente de amar, de dedicar-me inteiramente a alguém, mas a alguém que precisasse de ajuda, de compreensão, de amor. Oferecer-me como bóia de salvação ao primeiro que me acenasse. No caso, não foi primeiro, foi primeira. E a bem da verdade devo dizer que ela não fez nenhum aceno: eu é que fui bater na sua porta para oferecer-lhe socorro. Seria um amor amargo, cheio de sacrifícios e renúncias, mas não era assim o amor que eu procurava? Acho que já disse que meu irmão era muito parecido com minha mãe. Eu saí parecido com meu pai que era um homem dos grandes impulsos, dos grandes gestos, das grandes paixões. Meu infortúnio parecia-me, até aquele momento, demasiado medíocre: ansiava agora por ser grandemente desgraçado, isto é, amar e ainda por cima escolher mal o objeto do meu amor.

Por uma dessas banais ironias, o prostíbulo situava-se no alto da Ladeira da Glória. Ladeira da Glória, doze. Lembro- me bem de que era um casarão pardo e velho, cheio de ratos que corriam sem nenhuma cerimônia pelos corredores e de mulheres que trançavam seminuas, com menor cerimônia ainda.

Encontrei-a fazendo as unhas. Na maioria das vezes em que a visitei encontrei-a lidando com seus petrechos de unhas ou então bordando miçangas em alguma roupa, tinha mania com miçangas. Se pudesse, creio que até nas cobertas da cama pregaria as tais continhas. E tinha mania com as unhas que eram realmente perfeitas. A cabeleira podia estar em desordem, a pintura do rosto, desfeita, mas as unhas ah, essas deviam estar sempre corretíssimas! Tinha a pele muito branca, com ligeiros vestígios de sardas e cabelos ruivos, muito curtos e encaracolados. Parecia uma cenourinha. Não era bonita, mas quando sorria... Havia tamanha ternura no seu sorriso, uma ternura assim tão espontânea, tão inocente, que chegava a me comover, 'como pode ser, meu Deus?! Como pode ser?!...' Ela voltava para mim os olhinhos redondos como bolinhas de vidro verde: 'Como pode ser o quê?' Então era eu quem sorria. 'Nada. Nada.'

Chamava-se Sandra, mas quando eu soube que seu nome verdadeiro era Alexandra, Alexandra Ivanova, emocionei-me. Descendia de russos. Vi nela uma personagem de romance e eu mesmo me vi na pele suave d'o Idiota, tão cheio de pureza e de sabedoria, 'que faz você sob este céu azul, provavelmente azul?' Atendendo o telefone, a dona da pensão não permitiu, no entanto, que eu encaixasse ali minha citação quando informou-me que Sandra não podia vir falar comigo porque estava muito ocupada. Desliguei atirando o fone no gancho:

- E ainda chama a isso de ocupação!...

Meu irmão, que estava ali ao lado, bateu-me tranqüilamente no ombro:

- Você me dá a impressão de estar o dia todo com a espada desembainhada. Não é cansativo?

Saí sem dar resposta. Mais tarde, bem mais tarde acabamos sendo ótimos amigos. Mas naquela época era impossível haver qualquer entendimento entre nós.

Alexandra tinha vinte e cinco anos e era completamente analfabeta. Mas eu queria uma criatura assim primitiva e xucra, atirada numa pensão de última classe. Seria preciso ir buscá-la no fundo, bem lá no fundo e trazê-la aos poucos para a luz, devagarinho, sem nenhuma precipitação. Era um jogo que exigia paciência, sim, e eu não tinha nada de paciente. Mas a experiência era fascinante.

Três vezes por semana eu ia vê-la, sempre no fim da tarde, quando o mulherio e os ratos pareciam mais tranqüilos em suas tocas. Costumava levar-lhe um presentinho, pequeninas coisas de acordo com minha discretíssima mesada: pacotinhos de bombons, lenços, enfeites de toucador... Assim que eu chegava ela olhava ansiosamente para minhas mãos, como criança em dia de aniversário. E recebia, radiante, as insignificâncias. 'Alexandra. A-le-xan-dra...' eu gostava de repetir lentamente, destacando bem as sílabas. Nos instantes mais graves da minha doutrinação, chamava-a dramaticamente pelo nome todo: Alexandra Ivanova. Ela então desatava a rir.

A princípio, tive um certo trabalho para explicar-lhe que nossa amizade tinha que ser uma coisa de irmão para irmã. Ofendeu-se um pouco:

- Quer dizer que você não quer nada comigo?

- Quero, Alexandra. Quero tudo com você. Mas antes, precisamos conversar muito.

Ela sorria. Quando sorria, chegava a ficar bonita.

- Você é complicado.

- Não, Alexandra, não é isso, mas o caso e que há coisas mais importantes na frente, precisamos antes nos entender, nos amar para então... Você precisa se preparar para ser minha. Minha para sempre, ouviu bem?

- Ouvi. Mas você é complicado, sim.

Mais facilmente do que eu esperava ela acomodou-se logo àquele novo tipo de relacionamento. Era de natureza mansa, indolente. Recebia-me com seu sorriso afável, desfazia o pacotinho, interessava-se alguns instantes pela novidade do presente e em seguida punha-se a lidar com suas eternas miçangas. Bordava miçangas verdes numa blusa preta. Antes que eu me fosse, acendia a espiriteira, preparava o chá e me oferecia uma xícara com umas bolachas que tirava de uma lata com uma borboleta de purpurina na tampa.

- Acho que você é padre - disse-me certa vez.

Achei graça e respondi-lhe que estava muito longe de ser isso. Não obstante, ela ainda me olhava com um sorrisinho interior:

- Acho que você é padre, sim.

Mostrei-lhe então o absurdo daquela suspeita mas até hoje desconfio que Alexandra não se convenceu nada com a minha negativa. E se não voltou a tocar no assunto, foi porque sua natural indolência a impedia de pensar mais de dois minutos sobre qualquer problema. Dissimulava ceder logo aos primeiros argumentos por simples preguiça de discutir.

- Você fala tão bem - ela me dizia de vez em quando, para me animar. - Fale mais.

Com a dolorosa impressão de que minhas palavras borboleteavam em redor de sua cabeça e se iam em seguida pela janela afora, redobrava meus esforços, tentando seduzi- la com temas nos quais ela parecia se interessar mais: Deus, amor, morte... Ela fazia pequenos sinais afirmativos com a cabeça enquanto ia bordando seu labirinto de contas. Quando eu me calava, pedia:

- Fale mais.

E daí por diante só abria a boca para cortar nos dentes o fio de linha da agulha.

Às vezes, eu tentava me convencer de que havia naquele silêncio de Alexandra profundidades insondáveis, mistérios, sei lá!... Sempre achara um encanto especialíssimo nas mulheres silenciosas. Agora tinha na minha frente uma que quase não falava. E então? Não era isso que eu queria? Não era mesmo um amor difícil aquele que eu buscara? Há vinte e cinco anos, praticamente há vinte e cinco anos ela estava naquela vida. A bem dizer, nascera ali. Vinte e cinco anos de mentiras, vícios, depravações. Não seria mesmo com meia dúzia de palavras que eu iria remover toda aquela tradição de horror.

Pedia-lhe o fim das suas tardes, nada mais do que o fim das suas tardes, à espera sempre de que espontaneamente ela fosse abrindo mão também de suas noites de comércio infernal. Mas não. Alexandra me ouvia muito atenta, retocava o esmalte de alguma unha, lidava com suas miçangas, oferecia- me chá com bolachas e assim que eu saía, recomeçava com naturalidade sua vida de sempre. Minha exasperação chegou ao máximo quando descobri que ela estava longe de se considerar infeliz.

- Mas Alexandra, será possível que você está contente aqui? - perguntei-lhe certa tarde.

- Estou contente, sim. Por quê?

Emudeci. Eu tinha justamente acabado de lhe falar sobre um pensionato de moças transviadas, para onde pretendia levá- la. Diante do seu desinteresse pelo meu plano, fiz-lhe a pergunta cuja resposta me deixou perplexo.

- Alexandra Ivanova, você está vivendo no inferno! Não vê que você está vivendo no inferno?!

Ela lançou em redor um olhar assustado:

- Mas que inferno?

Olhei também em torno: o usino de feltro azul, sentado no meio das almofadas em cima da cama, a mesa de toalete cheia de potes de creme e de pequeninos bibelôs, o guarda-roupa com malas e caixas cuidadosamente empilhadas no topo, o coelho felpudo em cima da cadeira, a mesinha coberta com uma toalha que devia ter 4 sido a saia de um vestido ramado... Num canto da mesa, duas xícaras, um bule, a lata de bolachas e o açucareiro com rocinhas douradas, presente meu. Todo o quarto tinha o mesmo ar indolente da sua dona.

- Para que um lugar seja o inferno, está claro que não é preciso a presença do fogo - comecei fracamente. Toquei-lhe no ombro. - O inferno pode estar aí.

Ela riu. Em seguida, ajoelhou-se, pôs a cabeça no meu colo e ali ficou como um bichinho humilde e terno. Tomei-a entre os braços. Beijei-a. E descobri de repente que a amava como um louco, 'Alexandra, Alexandra, eu te adoro! Te adoro!...

Naquela tarde, quando a deixei fui como um tonto pela rua afora, a cabeça estalando, os olhos cheios de lágrimas, 'Alexandra, eu te amo...' Crispei desesperadamente as mãos ao me lembrar de que dentro em pouco, de que naquele instante mesmo talvez um outro... 'Vou me casar com ela', resolvi ao entrar em casa. Minha família tinha que aceitar, todos tinham que aceitar aquele amor capaz de mover sol e estrelas, '1'amor che muove il sole e l'altre stelle'... Mas nem Dante nem eu sabíamos que era mais fácil mover a Via- Láctea do que mover minha pequena Alexandra da Ladeira da Glória para o Pensionato Bom Caminho.

Uma tarde, nossa última tarde, encontrei-a arredia, preocupada. Hesitou um pouco, mas acabou me dizendo que a dona da pensão não queria mais saber das minhas visitas.
Perguntei-lhe o motivo.

- Ela acha que você quer me tirar daqui para me explorar noutro lugar.

Fiquei sem poder falar durante alguns minutos, tamanha cólera se apossou de mim.

- Mas Alexandra... - comecei, completamente trêmulo. Dei um murro na mesa. - Chega! Amanhã mesmo você vai para o pensionato, está me entendendo? Já arranjei tudo, você ficará lá durante algum tempo, aprendendo a ler, a rezar, a ter boas maneiras...

Alexandra arrumava sua caixinha de miçangas. Sem levantar a cabeça, interrompeu-me com certa impaciência:

- Mas eu já disse que não quero sair daqui.

- O quê?!

- Eu já disse que não quero sair daqui, logo no começo eu disse isso, lembra? Sair daqui, não.

Respirei profundamente para readquirir a calma, como aprendera num método de respiração iogue.

- Será possível, Alexandra Ivanova, será possível que você também está pensando que... - comecei num fio de voz e nem tive forças para terminar.

- Pois se eu soubesse que você está querendo me agenciar, iria até de muito bom grado, o que não quero é essa história de pensionato. Pensionato, não.

Escancarei a janela que dava para o quintal da casa. Lembro- me de que havia ali uma mulher loura com uma toalha nos ombros, secando os cabelos ao sol. Acendi um cigarro. Minha mão tremia tanto que mal consegui levar o cigarro à boca.

- Alexandra, você precisa ficar algum tempo num lugar direito, decente, antes de... de nos casarmos. Já conversamos tanto sobre tudo isso, ficou assentado que você iria, já conversamos tanto a esse respeito! Será possível?...

Ela pousou em mim os olhos redondos. E falou. Foi a primeira e a última vez que a ouvi falar tanto assim.

- Não conversamos nada. Foi só você que abriu a boca, eu escutava, escutava, mas não disse que queria ir, disse?
Disse por acaso que queria mudar de vida? Pois então. Gosto daqui, pronto. Mania que vocês têm de querer me baldear, foi a mesma coisa com aquelas três velhas da Comissão Pró não- sei-mais-o-quê. Ficaram uma hora inteira falando. Depois escreveram meu nome numa ficha e ficaram de voltar na manhã seguinte. Graças a Deus não apareceram nunca mais. Agora vem você... Por que é que você complica tanto as coisas?
Primeiro, aquela história de ficarmos que nem dois irmãos, agora que tudo ia tão bem, tinha que me inventar essa bobagem do pensionato. Por que é que você complica tudo?

Fiquei aturdido.

- Quer dizer que você não me ama.

- Amo, sim. Amo - repetiu brandamente. - Mas estamos tão bem assim, não estamos? Além do mais, você pode amanhã mudar de idéia, me deixar. E meu futuro está aqui.

Aproximei-me dela. Comecei por arrancar-lhe das mãos os pacotinhos de miçangas e atirei-os longe. Em seguida, agarrei-a pelos cabelos e esmurrei-a tanto, mas tanto, que quase quebrei minha mão. Ela pôs-se a gritar e só se calou no instante em que a joguei com um safanão sobre a cama.
Disse-lhe então as coisas mais duras, mais cruéis. Ela enrolou-se nas cobertas, como um bichinho apavorado, escondendo o rosto que sangrava. E não me respondeu.

Um arrependimento brutal apertou meu coração. Tive vontade de me golpear na cara. E suplicar-lhe, de joelhos, que me perdoasse. Mas continuei inflexível:

- Devia era te matar.

Ela ergueu a cabeça. E como percebesse que eu não cogitava mais de agredi-la e muito menos de matá-la, levantou-se, lavou o rosto na bacia e choramingando, choramingando, pôs- se a catar as miçangas que eu espalhara pelo chão. Parecia mais preocupada com as miçangas do que com o próprio rosto que já começava a inchar. Em nenhum momento me insultou, como seria natural que fizesse. No fundo, tinha por mim um extraordinário respeito, o que me leva até hoje a crer que jamais ela tirou da cabeça aquela suspeita de ser eu um padre disfarçado.

Apanhei a capa e o Código Civil que caíra do meu bolso Tinha vontade de morrer.

- Você vem amanhã? perguntou-me ainda de cócoras, as mãos cheias de continhas vermelhas.

Confesso que até hoje não sei bem que resposta ela queria ouvir. Desci a escada. E só então compreendi o motivo pelo qual ninguém ouvira os gritos de Alexandra: o rebuliço na casa era total. O mulherio gesticulava, falava, chorava, trançando de um lado para outro como um punhado de baratas em chapa quente de fogão. Vi que o tumulto se irradiava de um quarto no fundo do corredor. As portas do quarto estavam escancaradas.

Entrei. Estendida na cama, coberta com um lençol, estava uma moça morta. Na mesinha ao lado, uma garrafa de guaraná e a lata aberta de formicida. No chão, os cacos de um copo.

Desviei da morta o olhar indiferente. Suicídio. E daí? Podia haver fecho mais digno para aquela vida enxovalhada?
Sentada na cama, uma mulher chorava sentidamente, assoando- se na toalha que tinha nos ombros: era a mesma mulher que eu vira no quintal, secando os cabelos. Três outras mulheres revolviam estabanadamente as gavetas da cômoda.

Fiquei a olhar a cena com a maior indiferença. Era essa mesma a vida e a morte que ela escolhera, não era? E então? Por que a surpresa? O escândalo?...

Acendi um cigarro e encostei-me ao batente da porta. Tamanho desinteresse acabou por irritar a mulher da toalha nos ombros e que parecia a mais ligada à morta. Voltou-se para mim:

E você aí, com essa cara... Está se divertindo, está? Vocês, homens, são todos uns cachorros, uns grandessíssimos cachorros, isso é o que vocês são! Por causa de vocês é que a pobrezinha se matou. Só dezoito anos, uma criança ainda!

- Criança que gostava deste brinquedo, hem? - perguntei lançando um olhar em redor. E tive que me abaixar em seguida para fugir do sapato que ela me atirou.

- Seu sujo! Ainda fala assim, o sujo! Saiba que Dedê era muito direitinha, uma menina muito direitinha. Todos os dias vinha se queixar para mim, que não agüentava mais, que tinha horror disto, que não via a hora de ir embora, 'quero minha mãe, quero minha mãe!' ela me pediu chorando tanto que não agüentei e chorei junto com ela também. - A mulher fez uma pausa para assoar-se furiosamente na toalha. - Quantas vezes ela me disse que queria viver uma vida igual à de qualquer moça por aí, com sua casa, seu marido, seus filhos... Caiu aqui, mas ficou esperando que algum dia viesse um homem bom que a levasse... Mas vocês são todos uns bandidos. Quem pensou em dar a mão para ela? Quem?

Pela primeira vez olhei realmente a morta. Tinha no rosto fino uma beleza frágil. Deixei cair o cigarro.

- Ela esperou então que alguém viesse?

- Esperou, esperou. Mas de repente perdeu as forças, foi isso... Bem que ela me disse ainda ontem que não ia agüentar mais, bem que ela disse! Mas a gente diz tanta coisa, eu não acreditei...

Afastei-me para deixar passar os homens da policia. Inclinaram-se sobre a suicida. Agora eu só podia ver o delicado contorno dos seus pés sob o lençol.

Fui saindo do quarto. Mas então? Então... Toquei na maçaneta negra da porta: era ali que eu devia ter batido, era ali, tudo não passara de um pequeno equívoco. Um simples equívoco de porta. Alguns metros menos e...

A tarde estava luminosa e calma. Cruzei os braços. Mas não era mesmo incrível? Coisa mais desconcertante, mais estúpida...

Sentei-me na calçada, com os pés na sarjeta. E de repente comecei a rir. E ri tanto, mas tanto, que um homem que passava, ao me ver rindo tão gostosamente, nu-se também. Ah vida louca, completamente louca, mas de uma loucura lúcida, cheia de nexo nos seus encontros e desencontros, nos seus acasos e imprevistos! Falsa demente, tão ingenuazinha e tão astuta na sua falta de lógica, cheia de misterioso sentido na sua confusão tão calculada, tão traiçoeiramente calculada. Uma beleza a vida!

Baixei o olhar para a sarjeta: entre duas pedras tortuosas, uma pequenina flor apontava sua cabecinha vermelha. Parecia- se com Alexandra. Toquei-lhe na corola tenra. E senti os olhos úmidos. - Minha florzinha tonta - disse-lhe num sussurro - você é tão mais importante do que todos os livros, tão mais importante... Você está viva, minha querida. E que extraordinária experiência é viver!

Ergui-me de cara voltada para o sol. Aproximei-me de uma árvore. Abracei-a. E quando encostei a face no seu tronco rugoso, foi com se tivesse encostado a face na face de Deus.

Fontes:
www.ufpel.edu.br
Imagem = http://poesiasdasu.blogspot.com/2008/04/corao-ardente.html