domingo, 22 de julho de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Parte 2: Cabo Verde)

(foi mantida a grafia original)

2. CABO VERDE

De qualquer modo, será de admitir ter sido menos resistente e organizada a vida cultural em Moçambique do que em Angola e Cabo Verde [15]. É certo que de uma maneira geral os intelectuais cabo-verdianos de origem europeia terminaram por emigrar para Portugal, na maioria dos casos por motivos familiares, e foi em Lisboa que muitos se fizeram escritores, naturalmente desenraizados dos problemas da Terra-Mãe, alguns deles acabando por alcançar lugar de prestígio nos meios literários lisboetas, deixando obras de mérito, como Antónia Gertrudes Pusich (1805 — 1883) e Henrique de Vasconcelos (1875 — 1924), autor de uma vasta obra [16]. No entanto, criado e accionado pelo cónego António Manuel Teixeira, o Almanach Luso — Africano (2 vols., 1894 e 1899) regista colaboração de natureza literária.

Porventura período ainda mal estudado, afirmações definitivas podem induzir-nos em erro. No entanto, cada vez mais se nos enraiza esta convição: não houve em Cabo Verde uma verdadeira literatura colonial por muito insólita que possa parecer esta afirmação. O período colonial não implica forçosamente a existência de uma literatura colonial nos termos em que para trás a designámos. A colonização, a partir da segunda metade do século XIX, havia já adquirido no Arquipélago uma feição própria. Pelo visto, a posse da terra e postos da Administração, a pouco e pouco transitavam para as mãos de uma burguesia cabo-verdiana, mestiça, branca ou negra. Isto, que não condiciona a exploração, pode condicionar as relações da exploração e alterar assim a natureza da oposição: em vez de colonizado/colonizador, flectiria, em grande parte, para explorado/explorador, tal como sucede nas sociedades de tipo capitalista, salvaguardando, claro, e sempre, os aspectos de uma situação especificamente colonial, notadamente nas relações entre o poder político e as populações.

Um exemplo elucidativo do que acabamos de afirmar, entre outros, é a narrativa de José Evaristo de Almeida, por nós há alguns anos referenciado, O escravo, cuja acção decorre na primeira metade do século XIX e se situa na ilha de Santiago com incidências, através de jlashbacks, na ilha de Santo Antão, e referências a Iisboa e a Bissau [17].

Marcado, como é óbvio, pelas características da literatura do período romântico, nos segmentos da intriga ganham realce a exacerbação dos sentimentos de amor ou de fraternidade, o amor platónico, a trama dramática das relações familiares no jogo do imprevisto, chegando a esboçar-se o incesto e, de sequência em sequência, na acumulação dos acontecimentos, a tragédia desencadeia-se, alarga-se, intensifica-se. Uma das virtudes deste texto está em que a quase totalidade das personagens manipuladas são africanas (negros, mestiços, mulatos). E o espaço é o da escravidão, abrindo-se-nos à compreensão de um mundo longínquo no tempo, permitindo uma perspectiva diacrónica de largo alcance. Assim, e em termos de escrita, ficamos a saber, ao vivo, que senhores de escravos havia que eram africanos: pelo menos, mulatos.

Romance libertador, procurando redimir a humilhação escrava e compreender e valorizar o homem africano em geral; organização romanesca equilibrada, a linguagem d'0 escravo suporta o confronto com autores mais do que minimamente dotados, com ressalva para os diálogos, demasiadamente retóricos, desajustados à capacidade expressiva dos protagonistas — mas esse é também um senão que se pode endossar a muitos escritores de valimento da época romântica (e não apenas).

Ora este texto de José Evaristo d'Almeida, na verdade, vem ao encontro daquilo que nos andava, até há pouco, no domínio da suspeição: o não ter havido em Cabo Verde uma literatura colonial.

O escravo é um exemplo acabado ao qual podemos juntar, também por localização recente, outros textos, e estes agora de autores cabo-verdianos. António de Arteaga: «Amores de uma creoula», 1911 [18] e «Vinte anos depois», 1911 [19]; Guilherme A. da Cunha Dantas (século XIX — 1888): «Bosquejos d'um passeio ao interior da ilha de S. Thiago», 1912 [20], «Contos singelos — Nhô José Pedro ou Scenas da ilha Brava», 1913 [21], e «Memória de um rapaz pobre», romance, 1913 [22] Eugênio Tavares (1867 — 1936): «Vida creoula na América», 1912 - 1913 [23], «A virgem e o menino mortos de fome», 1913 [24], «Dramas da pesca da baleia», 1913 [25]. E com este registo, que ora se faz, ao que julgamos pela primeira vez, se começa a preencher a grande lacuna que vinha envolvendo o quadro histórico da literatura cabo-verdiana no século XIX e começos do século XX.

De um modo geral, estes autores procedem às suas abordagens colocando-se dentro do universo cabo-verdiano e o seu registo é dominado pelo concurso de algumas das contradições do sistema social, donde uma mensagem criticamente positiva e esclarecedora.

Cedo em Cabo Verde se teria criado e desenvolvido o ensino primário particular, e depois o secundário. Há notícia (assinalamo-lo em nota), da criação de bibliotecas, como a da Praia, de associações culturais, entre outras.

O padre António Vieira, numa das suas derrotas para o Brasil, de passagem pela que é hoje cidade da Praia, capital de Cabo Verde, dá-nos uma ajuda para visionarmos um tanto melhor esse grau de desenvolvimento e saber, havido já no recuado século XVII: «São todos pretos, mas somente neste accidente se distinguem dos europeus. Tem grande juizo e habilidade, e toda a politica que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza». Adiantava ainda que havia ali «clérigos e cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão auctorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas cathedraes» [26].

Por outro lado, ali se vai reestruturando uma cultura caldeada nos valores africanos e europeus, tendendo para uma univalência cultural e construindo uma harmonia racial que contrasta, por exemplo, com o caso antilhano — e isto para referirmos um fenómeno de aculturação também de natureza insular. O sentimento da cor da pele tão diluído é que a literatura cabo-verdiana não chega a denunciar a cor das personagens. E, se tal acontece, a distinção vem envolvida de uma carga afectiva [27].

Tudo quanto vem de dizer-se pressupõe não só a existência de condições propícias ao aparecimento de produtores de textos como também à formação de uma literatura de características especiais no seio do próprio século XIX. A maioria sem livro publicado, é certo. Aos nomes já referidos ajuntamos mais os de poetas como Luiz Theodoro de Freitas e Costa, (1908 — Séc. XX), José Maria de Sousa Monteiro Júnior (1846 — 1909) e Custódio José Duarte, (1841 — 1893), este último possivelmente sem livro publicado. E a estes há que agrupar figuras esquecidas por jornais, revistas e almanaques, como Manuel Alves de Figueiredo de Barros, (1895 — séc. XX), António Corsino Lopes da Silva (1893 — séc. XX), João Mariano, (1891 — séc. XX), já citado, Gertrudes Ferreira lima (séc. XIX — séc. XX), todos poetas. Como poetas são Joaquim Maria Augusto Barreto (1850 — séc. XK), Luis Medina Vasconcelos (séc. XIX — séc. XX), Rodrigo Aleixo ou, com obra publicada, João José Nunes, (1885 — c. 1965/6), Mário Duarte Pinto, (1887 — 1958) [28]. A partir da década de vinte o nome que se impõe à consideração pública é o de José Lopes (1872 — 1962), de par com o de Eugênio Tavares (1867 — 1930) (este, essencialmente de expressão dialectal) e o do poeta bilingue Pedro Cardoso (c. 1890 — 1942), também autor do estudo Folclore caboverdiano (1933; finalmente, Januário Leite (1865 — 1930).

Foi todo este percurso de quase um século que funcionou como fermento da original explosão trazida pela Claridade, como um «longo processus subterrâneo de consciencialização cultural» (Jaime de Figueiredo in Introdução à antologia Poetas modernos cabo-verdianos, 1961, p. XVI).

Mas, pergunta-se: José Lopes ou Pedro Cardoso (este enquanto poeta de língua portuguesa) ou Januário Leite trouxeram ou não uma contribuição válida para a moderna poesia? Considera-se a autêntica literatura cabo-verdiana aquela que exprime a cabo-verdianidade, ou seja o conjunto de textos cujo enunciado reflecte o real cabo-verdiano. Com frequência, e alguma veemência, a partir de década de trinta, a questão ficou devidamente clarificada e demarcada, embora nem sempre isenta de excessos, como quase sempre acontece em momentos de ruptura (e a parte de responsabilidade que nisso nos cabe não a queremos enjeitar) [29].

Mas importa averiguar por que razão estes escritores, com especial relevo para José Lopes, sofreram o ataque e depois a marginalização das gerações que lhes sucederam. Os intelectuais e escritores, a partir da Claridade, como adiante teremos ocasião de verificar, projectaram o seu esforço criador nos grandes segmentos que representavam ou simbolizavam a parte viva da sua pátria, ou seja, aquela que não adoptava os critérios e os padrões que serviam o colonialismo; e assim, aberta ou implicitamente, condenavam tudo quanto vivesse fora deste projecto nacional.

Simplesmente, acontece que o arquipélago de Cabo Verde é hoje uma República independente. A sua realidade política é, por essência, outra bem diferente. A sua realidade histórica, outra é. Com isto se conjuga também uma nova realidade cultural. A este período, logicamente corresponderá uma nova literatura ou uma nova fase da sua literatura. Subjacente ou emergente a tudo isto está uma consciência nacional. Está a formação de um profundo sentimento nacional que há-de alimentar-se nas raízes da longa história do processo social e político de Cabo Verde, não a partir da data em que a luta foi desencadeada pelo P. A. I. G. C, não a partir da data das teses de Amilcar Cabral (embora por via de tudo isto mesmo), mas a partir da remota origem cabo-verdiana.

E esta começa quando os portugueses fizeram desembarcar nas ilhas os primeiros colonos e os primeiros escravos. Este será o caminho para a busca de uma totalidade histórica, política, social, económica e cultural. Concomitantemente, o mesmo sucederá para a sua literatura. Com isto queremos dizer que estamos convencidos (só aos cabo-verdianos competirá fazer o que julgarem por bem) que os futuros historiadores da literatura, os futuros estudiosos do processo cultural cabo-verdiano terminarão por considerar a globalidade da actividade literária levada a cabo ao longo das décadas ou de séculos pelo homem cabo-verdiano. E, deste modo, todos aqueles que foram considerados antecessores, ou precursores, terão o seu lugar próprio na história da literatura cabo-verdiana. Se este critério vier a ser considerado correcto, naturalmente ele se há-de aplicar a Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. As futuras histórias da literatura e da cultura dos novos países africanos terminarão por recuperar aqueles autores naquilo que na sua obra houver de significação nacional. Não foi outra coisa o que aconteceu no Brasil e difícil se nos afigura que possa ser de outro modo nos casos vertentes. É evidente que, ao referirmos o Brasil, estamos a considerar sobretudo o período colonial encerrado com a independência do Brasil em 1822. Isto não invalida que, para além das eventuais ou possíveis subdivisões, não venha a considerar-se a literatura cabo-verdiana em duas grandes fases: antes e depois da Claridade.
––––––––
Notas:
15 Segundo Gabriel Mariano, de 1853 a 1892 fundaram-se na cidade da Praia (Cabo Verde) treze associações recreativas e culturais como, por exemplo, a Dramática Associação Igualdade, Sociedade Gabinete de Leitura, Associação Literária Grémio Cabo-Verdiano (Entrevista ao Diário Popular (suplemento literário), 23 de maio de 1963.

16 Henrique de Vasconcelos, cabo-verdiano de nascimento, cremos que desde cedo radicado em Portugal, enquanto vivo desfrutou de prestígio literário em Portugal. É autor, pelo menos, das seguintes obras: Flores cinzentas (p), Coimbra, 1893; Os esotéricos (p), Lisboa, 1894; A harpa do Vanadio (p), Coimbra,
1895; Amor perfeito (p), Lisboa, 1895; A mentira vital (c), Coimbra, 1897; Contos novos (c), Lisboa, 1903; Flirts (p), Lisboa, 1905; Circe (p), Coimbra, 1908; O sangue das rosas (p), Lisboa, 1912.
De temática europeia, qual das histórias da literatura o irá recuperar? A portuguesa ou a cabo-verdiana?

17 Não existe nenhum exemplar na Biblioteca Nacional de Lisboa do romance O escravo (1856) de José Evaristo d'Almeida. O único exemplar conhecido encontra-se na posse dos descendentes do autor, residentes em Cabo Verde. Foi por informação de um deles, Amiro Faria, que o registámos em A aventura crioula, 2. edição, 1973. Possuímos uma fotocópia. No entanto, foi republicado in A Voz de Cabo Verde desde o n.° 244, 22 de maio de 1916 ao n° 294, de maio de 1917,

18 António de Arteaga, «Amores de uma creoula» in A de Cabo Verde, Praia, Cabo Verde, ano I, n.° 1, março de 1951 até ao n.° 17,10 de maio de 1911.

19 Idem, «Vinte anos depois», idem n.° 19, 25 de dezembro de 1911.

20 Guilherme A. Cunha Dantas, «Bosquejos d'um passeio ao interior da ilha de S. Thiago», idem, n.° 22,15 de janeiro de 1912 ao n.° 63, 28 de setembro de 1912.

21 Idem, «Contos singelos. Nhô José Pedro ou scenas da ilha Brava», idem, n.° 78, 10 de Dezembro de 1913 ao n.° 96, 16 de junho de 1913.

22 Idem, «Memória de um rapaz pobre», idem, n.° 106, 25 de agosto de 1913.

23 Eugênio Tavares, «Vida creoula na América», idem, n.°68, 12 de dezembro de 1912, e n.° 70, 10 de dezembro de 1913. O autor, Eugênio Tavares, faleceu em 1888. Logo, a publicação desta novela é póstuma. E das duas uma: ou se aproveitou um inédito depositado nas mãos de familiares ou amigos ou então terá de se admitir a utilização de um exemplar de cuja existência não se sabe o paradeiro. O mesmo se aplica às suas novelas registadas.

24 Idem, «A virgem e o menino mortos de fome», idem, n.° 73, 6 de janeiro de 1913 ao n.° 77, 3 de fevereiro de 1913.

25 Idem, «Drama da pesca da baleia», idem, n.° 101, 21 de julho de 1913 ao n.° 104,11 de agosto de 1913.

26 «Carta do Padre António Vieira escripta de Cabo Verde ao padre confessor de sua alteza indo arribado aquelle Estado» [Datada de 25 de dezembro de 1652] in Cabo Verde. Praia, Cabo Verde, ano II, n.° 23, pp. 11-12.

27 Vide Baltasar Lopes — Cabo Verde visto por Gilberto Freyre. Sep. boletim Cabo Verde, n.° 84-86. Praia, Cabo Verde, 1956; Gabriel Mariano — «Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou» in Colóquios cabo-verdianos, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1959; Manuel Ferreira — A aventura crioula, 2. ed. Lisboa, Plátano Editora, 1973; António Carreira — Cabo Verde — formação e extinção de uma sociedade escravocrata — 1460-1878. Porto, 1972.

28 A este respeito José Lopes fornece elementos de interesse em «Os esquecidos» in Cabo Verde, ano III, n.° 35, Praia, Cabo Verde, agosto de 1952, pp. 29-32; «Ainda os nossos poetas», idem n.° 36, pp. 9-10; e sobretudo em «Vida
colonial» in Vida Contemporânea, ano II, n.° 15. Lisboa, Julho de 1935, pp. 196-204; idem, n.° 18, outubro de 1935, pp. 725-731, e n.° 20, dezembro de 1935, pp. 876-882. Vide também Nuno Catarino Cardoso: Poetisas portuguesas. Lisboa, 1917; Sonetistas portugueses e luso-brasileiros. Lisboa, 1918; Canáoneiro da saudade e da morte. Lisboa, 1920.

29 José Lopes, apesar de uma ou outra alusão aos seus «Irmãos hespertanos!» ou aos seus «bons irmãos de Dakar» (entenda-se cabo-verdianos lá residentes) ou ao seu «Lameirão», «a nossa antiga horta?...», de São Nicolau; ou de chorar a sua desolação quando, por lapso de um ano, se viu obrigado a emigrar para Angola: «Longe de Cabo Verde, em terra estranha/[...] chorarei minha mágoa confidente,/[...] No desolado exílio deste mato...», apesar de tudo isso, o momento em que o poeta partilha do destino do seu próprio povo é na poesia «A catástrofe da Praia», escrita em 1949, quando um grupo numeroso de esfomeados, que recebia assistência na capital, ficou soterrado num barracão que desabou por força de um temporal: «Não bastavam as fomes? A Miséria/Prolongada, de tantos anos,/tantos,/Sem uma luz na escuridão ciméria?/Tantas angústias tanta Dor e prantos?» Mas nem esta longa poesia de quarenta e quatro quadras enformadas de referências mitológicas e conceitos mítico–religiosos pode autorizar-nos a incluir o nome de José Lopes no capítulo da moderna poesia cabo-verdiana.

Por sua vez, a poesia de Januário Leite (1865-1930) é a viva conotação do drama individual de um desadaptado morbidamente incompreendido e infeliz: «As minhas horas sombrias,/São horas do meu prazer;/Quem nunca teve alegrias,/Afeiçoa-se ao sofrer...»

Pedro Cardoso (c. 1890-1942), autor de «Crioula» («Crioula divina/e moça e menina!/(...) É lírio, ébano e coral!»); de «Morna» («Flor de duas raças tristes/Vindas da Selva e do Mar,/Que a nós se acharam um dia/Na mesma praia ao luar»); de «Cabo Verde», («Cabo Verde, que ironia bruta e negra perdida/Toda aberta em ígneo algar/por sobre a verde campinha/Das ondas verdes do mar!»); e de outros poemas, tendo como ponto de partida o vulcão do Fogo, sua ilha natal: «Vesúvio cabo-verdiano!», «Padrão imenso sobre o mar erguido», «simbolizando» «o futuro talvez de um grande povo!», assim poesia de ambiência regional, com relevo para a «VI» do livro Hespérides, sobre as estiagens, citando inclusive a «fome crónica e dura»; apesar de toda esta preocupação humana, que lhe dá o natural direito de ter alcançado maior grau de autenticidade regional do que o próprio José Lopes — mesmo assim, por muito respeitável que tenha sido a actividade poética destes autores, eles ficarão como antecessores, e não como precursores. Eles serão o primeiro termo de uma relação. Eles antecedem, mas não anunciam, não predizem. Justificam, mas dificilmente deixam adivinhar ou perceber a natureza do termo consequente.


 Continua… Moçambique e Guiné-Bissau

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

Libia Carciofetti (Os Amigos São…)

Glicinia
Libia Beatriz Carciofetti é natural de Argentina.

(tradução por J. Feldman)

Os amigos são como o "cachecol" que me teceu minha mãe ... Tão quente e macio! para conservar o seu perfume, embora ela não esteja comigo.

São os caramelos de menta que tenho sempre em minha mesa de cabeceira, no caso de eu ter uma tosse à noite, estendo o meu braço e costumo sentir o "barulhinho" do papel celofane ao desenrolar-los, já me acaricia a garganta ..

Os amigos são os "sapatos" que conservo escondido por ali... e quando eu provei pela primeira vez dei-me conta que eu estava usando uma luva ...

São as "figurinhas" brilhantes que jogava no playground com cara ou coroa, e ganhava e as acomodava entre as páginas do meu livro bem passadas… e não queria perdê-las.

Os amigos são como os "kinder ovos" que papai me trazia porque sabia que toda a noite eu estive pensando “qual seria a surpresa que traria consigo? sem importar se eu comer a cobertura.

São como o "lenço" no bolso da roupa ou avental, pois se me resfrio ...dobrado em triângulo com pontinha tecida por minha avó.

Os amigos são como o "cartão postal" de aniversário que me enviou meu pai. Porque trabalhava muito longe e não podia estar quando eu fiz 5 anos.

São como as "meias" de lã com as quais “patinava” no assoalho da casa sem raspar.

Os amigos são como o "chocolate" quente nas tardes de inverno, que nos alegra o dia… pois com seu calor nos aquece até a alma.

São como o "cofrinho" que nunca se enche, porque sempre que precisamos de "ajuda financeira" sem ser visto abrimos e tiramos moedas.

Os amigos são como as "canetas" que às vezes não escrevem e devemos esfregar o cartucho, aquecê-los para continuar escrevendo.

São como a mascote que sempre nos recebe ao entrar em casa e faz palhaçadas para nós a percebamos.

Os amigos são o "oásis" no deserto da vida, sempre tem algo para nos dar, e quando são verdadeiros, nunca nos censuram, nem pedem nada em troca.

Eles são como as "flores" que adornam os jardins, deleitando os olhos e perfumando a todos que passam.

Meus amigos são como um bando de "glicinas", minha flor favorita ... cada flor ligada a um galho e todas formam um ramalhete... se ... se ... meus amigos são isso, um buquê de florzinhas perfumadas, que no muro de minha vida se vão misturando e me afogando em amor e ternura ... São de sexos diferentes, raças diferentes, idades diferentes, culturas diferentes ...

São como as velas de aniversário que se sopra para apaga-las, mas elas continuam brilhando.

E hoje o mundo comemora o dia do amigo, eu agradeço a Deus, porque graças a Ele, compreendi o verdadeiro significado da amizade ... e por me amar tanto, me deu até seu filho, o único que tinha ... e disse em sua palavra que eu sou sua amiga se eu fizer o que ele quer ... para servir e amá-lo ...

Não é uma bênção ser amigo de Deus?

Obrigado, amigos queridos, por perfumar minha vida com sua amizade!

Fonte:
Texto enviado pela autora no Dia do Amigo

Jogos Florais de Campos dos Goytacazes (Programação)

Fonte:
Diamantino Ferreira

Montagem do convite por J.Feldman

Ialmar Pio Schneider (Soneto ao Dia do Cantor Lírico)

Quando a tarde indolente se reclina
no horizonte de fogo enrubescido,
dos pássaros nos ares o alarido
recorda do cantor a pobre sina.

E é como uma lembrança que fascina
o espírito de quem desprevenido
procura a solidão sem um gemido
para sofrer e amar na paz divina.

Depois a noite chega e a lua andeja,
caminhando nos céus embevecida,
é a rainha que não sabe o que deseja...

E na imensa amplidão já se vislumbra
as estrelas chorando a dor da vida
e a Terra envolta em pálida penumbra…
Fonte:
O autor

Nilto Maciel (Contos Reunidos)

Artigo por Taize Odelli

É estranho começar a ler uma reunião de contos de determinado autor a partir de seu segundo volume, assim como se começasse a ler uma saga da metade da história em diante. Mas não tenho culpa alguma se os livros nunca me aparecem na ordem correta.Nilto Maciel me enviou seus Contos Reunidos: Volume II, e assim tive contato com mais um trabalho partindo da metade. Mas isso deve ser normal para muitos outros leitores. Publicado em 2010 pela editora Bestiário, o livro reúne textos de três outras publicações do autor cearense: As Insolentes Patas do Cão(1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).

Em textos geralmente curtos e lineares, Nilto Maciel aborda histórias corriqueiras e também fantasias simples que fazem parte do imaginário popular das pequenas cidades. O autor vai dos desejos de homens feitos e suas frustrações sexuais à descoberta inocente da sexualidade de jovens adolescentes (às vezes não tão inocentes assim). Narra uma história inteira pelos olhos de um cão ou outro animal. Conta as investidas intelectuais de escritores e professores, cria personagens perdidas no mundo dos sonhos, encerramento de muitos de seus contos. Seus textos oscilam entre a malícia e a inocência, mas sempre com um toque melancólico.

Em alguns textos, Nilto Maciel confunde o leitor quanto ao tempo ou lugar de suas histórias. Um conto passado em São Paulo, cidade grande, nos tempos atuais pode parecer estar ambientado no interior do estado, em uma cidadezinha minúscula ou também em épocas passadas, onde as pessoas se falavam mais e se importavam mais com a vida das outras. As ruas secas e empoeiradas do interior nordestino também são evocadas pelo autor, lembrando personagens cômicas e caricatas que costumamos ver nas adaptações para a TV. Personagens que por vezes se repetem, pois suas histórias não cabem apenas em um conto só – é o caso da beata que, em um segundo conto, tem um filho e emplaca mais um mistério em sua cidade. E há espaço para aqueles que já existiam, protagonistas de momentos históricos ou outros romances – como Dalila, um inusitado encontro entre Ícaro e Santos Dumont, um pesadelo de Pôncio Pilatos e muitos outros casos de personagens conhecidas.

Vários gêneros se misturam nos três livros reunidos neste único volume: policial, ficção científica, fantasia, história, mas todos abordados de maneira a identificar o autor. Então o leitor percebe que a história da criança que se assusta com o cão, do homem que aprende a ser ventríloquo para passar cantadas, do faxineiro que dorme no confessionário, o que cria um tigre para matar a mulher e do professor que nunca terminou de escrever um livro são, apesar de personagens e temas totalmente distintos, frutos da cabeça da mesma pessoa. Ele criou uma gama tão abrangente de histórias que é impossível numerar todas aqui, ainda mais porque ele resolveu experimentar diversos caminhos para determinado tema, às vezes fantásticos, irreais ou estranhos, outras mais concretos, com o pé no chão.

Contos Reunidos traz um apanhado vasto de histórias para serem lidas, com ou sem ordem. O leitor escolhe a melhor maneira de ler os contos de Nilto Maciel, de uma vez só ou em pequenas doses, tanto faz. Essa coletânea apresenta em cada virada de página uma nova história, um novo universo, e apesar de reconhecer o autor em cada uma delas – algo que acontece depois de certas páginas lidas – pode ser complicado memorizar cada conto lido, lembrar de todos os detalhes. Mas justamente essa fragmentação de histórias faz dos textos de Maciel fáceis de retornar, reler e armazenar a informação.

Fonte:

sábado, 21 de julho de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Cantos de Amor, Esperança e Dor)

CANTO E ELEGIA 

Sejam as palavras a forma da minha dor
ou da minha alegria.

Que este é o destino real dos que trouxeram
a poesia,
existirem apenas no canto,
como a chama no fogo,
como a forma na flor!

Canto e elegia...
aonde eu for.

CANTO OU ELEGIA

Porque não me pertences eu te sinto minha.
Sei que estou no teu sono e nos teus movimentos.
Ah! se já tivesse apertado ao meu peito
talvez me pertencesses, - e não fosses minha.

Quantas, quantas julguei possuir, tive-as na posse
e perdi-as no instante em que a taça se esvaziou.
Ah! morremos de sede ! E é água pura que canta
perto de nós, no abismo, esse amor que não temos.

Morro de sede, e sofro... Ó música tão perto
e tão longe na minha solidão ardente!
- Quanto não a ouvirei porque a terei nos lábios?

Quando a possuirei sem notar-lhe a pureza?
E a beberei sem ver, que a estou, lento, matando,
e estou, lento, morrendo, sem saber que morro?

CANTO DO AMOR SEM TEMPO

"Porque nunca te estreitei contra mim
é que nunca te afastas."
(Apontamentos de Malte Laurids Brigge.
Rainer Maria Rilke.)


Cresces no pensamento quanto mais te afastas,
nunca te afastas, nunca, se afinal ressurges
em cada vivo instante - ó flor sem estações,
numa árvore que tem mil profundas raízes!

Para mim, és aquela intangível presença
que construí com o meu louco desejo impossível.
Se não posso tocar-te, hás de acenar-me sempre:
loura estrela que a mão não apaga dos olhos.

Mais alem do desejo - essa fera em tocaia -,
da ternura - esse dote veneno que embriaga -,
paira o amor, e eis o amor, longe de nossas forças,
fruto de ouro da lenda que criamos juntos.

Ah! pudesse eu tocar-te e talvez esboroasses
como um gesto de areia ao abraço das vagas...
Ah! pudesses ser minha, e talvez percebesses
que então, já nunca mais poderias ser minha!

Ah! o amor, como nós o afastamos, no instante
em que julgamos, tontos, loucos, celebrá-lo.
Só depois que o possuímos é que compreendemos
que possui-lo é afinal parti-lo e mutila-lo.

Quem diria? A conquista é o "requiem" do amor,
e o que devera ser eterno e indivisível,
vai sendo mutilado toda vez que um golpe
de prazer, fere e atinge a substancia do sonho.

Só - como estas, assim, estou sempre ao teu lado,
sempre comigo estas -, assim só, como estou.
Que faríamos nós para salvar o amor
se eu pudesse planta-lo em teu corpo, a enraizar-me?

Ah! os braços são alças do esquife imprevisto,
colhem flor sem raiz, colhem astros sem céu.
o meu amor, só tu cintilas em meu sonho
porque enquanto me buscas eu jamais to alcanço!

O destino do eterno atraiçoou nossos planos.
Nossa conspiração frustrada nos endeusa.
E esse amor, que eu quisera estrangular de beijos
sobe como uma chama angelizada no ar!

CANTO DE ONTEM

Vamos, põe teu braço no meu braço, vamos recordar
os velhos tempos
do nosso amor.
Passeávamos assim, e que frias eram as tuas mãos
no momento do encontro,
e que dóceis teus lábios depois da rendição.

Muitas vezes perdi-me em teus lábios e não soube voltar.

Que era o mundo senão um punhado de perspectivas
que saíam do ponto coração
e se perdiam nos teus olhos?

Tanta cousa esperamos e alguma cousa colhemos
mas que triste, amor, este todo-o-dia matando
o que esperávamos jamais ser tocado pelo tempo.

Tu me queres ainda, eu sei que te aninhas, por habito ou por frio
junto ao meu corpo, e esperas.

E eu te quero ainda, muito mais pelo que deixaste
nas raízes mergulhadas
e pelo que representas nas nuvens que se acumulam
do que pelo momento de tédio e ternura, elementos
do nosso coquetel cotidiano...

Vamos, põe teu braço no meu braço, como antigamente,
entrega-me docilmente os teus lábios, e pensa
que eu te beijo há mil anos, num tempo em que seremos
sempre os mesmos
e o nosso amor imortal.

CANTO INTEGRAL DO AMOR

Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma,. presente,
surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música,
e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras.

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,
sem braços, te envolveria invisível, como a aragem,
sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração
como o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,
e sem corpo, estarias nas formas do pensamento
como o perfume no ar.

E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias
no arbusto que tivesse suas raízes em meu ser,
- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.

CANTO AO FUTURO

O trabalho não pesará. Será como a tua cabeça
que carregas todos os dias sem sentir.

Os caminhos serão os mesmos - subindo as montanhas -
rasgando as planícies - serão os mesmos -

A inveja não minará a bondade
a bondade não será apenas a face que ri.

Nem haverá caridade. - só a justiça -
ninguém agradecerá, ninguém se curvará,
a gratidão se purificará.

Todos chegaremos a ser homens
depois de ser crianças,
não virá a ferramenta
sem passar pelo brinquedo,
não chegará a ciência
antes da história de fadas,

A necessidade não atropelará a infância .
Oh! a infância, sagrada infância!
não será privilégio, - estará em todos os passados,
subiremos a serra para encontrá-la .

Sairá das tuas mãos o que nela estiver
teu cérebro trabalhará contigo para melhor ate ofereceres.

Não haverá rumos impostos,
escolheremos a direção.
Nem haverá boléias, - todos conduziremos
os nossos carros, as novas vidas.

CANTO DO POETA MENOR

Sou o poeta menor, o trovador humilde,
que nasceu nesse Brasil grande, numa vila sem nome,
em meio às árvores, aos pássaros, aos rios e jacarés
porque o resto não há.

Não me recebem. Estão sempre em reunião importante.

Estou na rua, com o povo, que "a praça é do povo
como o céu é do condor",
já cantou o grande Poeta.

Não trago quatrocentos anos na sacola,
não sou de ferro, não sou de bronze,
não desci orgulhoso da alta montanha
falando como Zaratustra,
- sou um poeta, de barro,
como qualquer homem...

Não cheguei de Ita, com alma palaciana,
disposto a conquistar a grande capital,
não invadi os jornais e suplementos
construindo "igrejinhas" sem fieis.

Sou o poeta menor, o poeta humilde, sem história,
que nasceu nesse Brasil grande, numa vila sem nome,
pra lá, muito pra lá...
- a vila de Tarauacá.

Poeta sem brasão, sem orgulhos, sem rodinhas,
apátrida entre irmãos,
poeta nú e sozinho, com sua poesia,
pelos quatro cantos de sua terra
misturado com o povo.

Sou o poeta antigabinete ministerial
sem rondós e sem falsas luxúrias,
não sou amigo dos reis,
sou simplesmente o poeta da rua,
como um violeiro e sua viola,
como um cego e seu realejo...

Quando toca a minha poesia
a criançada vem correndo para ouvir,
os trabalhadores param o serviço
e comentam,
as empregadas e os transeuntes fazem roda.
as moças se debruçam nas janelas
e ficam cantarolando.

Sou o poeta menor. Não me recebem.
Estão sempre em reunião importante.

Não faz mal. De mãos dadas com o povo,
como em noite de lua
faço ciranda na rua.

CANTO SOLITÁRIO E TRISTE
à Memória de Medgar Evers

(Líder negro assassinado traiçoeiramente, em sua luta contra a segregação racial nos Estados Unidos)


A maldade e a covardia caminham de mãos dadas
sobre a tua memória.

Os versos vertebrados de Langsthon Hughes
(Ó soturnas e graves badaladas!)
antecipavam tua sorte
e descreviam tua história.

Colheu-te a morte, megera branca,
- noiva do nada,
sem ter coragem de olhar-te a face
transfigurada.

Nos campos de Springfield os restos de Lincoln,
teu velho Presidente, - o que caiu por teu amor,-
sofreram como as raízes que no âmago da terra
sofrem, quando o tronco recebe os golpes do lenhador.

Tombaste, tal como Lincoln,
o velho Presidente,
e sobre o solo, teu sangue rubro
é essa bandeira, cor da revolta,
que segue à frente!

E agora, feito luz
que se liberta e irradia,
- diáfano, sem cor,
chegaste à verdadeira Democracia
que é o Reino do Senhor!

Irmão negro que caíste à traição
vítima do Caim-branco norte-americano
na mais nefanda guerra,
guarda este canto, - misto de hino e de prece,-
que de meu peito fugiu,

- canto de um poeta nascido em outra terra
feliz e orgulhosa de ser mestiça,
onde os homens brancos, negros, amarelos,
são todos Brasil!

Guarda este canto em tua memória
de um poeta teu irmão que hoje queria apenas
a glória
de poder ser negro como tu,
ao menos um minuto,
para, por tua morte e pela espécie humana,
pôr-se também de luto!

CANTO DE ÓDIO E AMOR

I
Sempre nos encontraremos
não adianta fugir, nos encontraremos .

Meu passo estará adiante, minha mão estará à frente
aguçada coma uma lâmina.

Sim, sou cristão . Sei amar a odiar com justiça .
Não darei a outra face à bofetada
nem terás tempo .

Só que não merecias a terra, a doce terra democrática,
onde te dissolverás com antecedência
para que o ódio termine.

Meu irmão, ire buscar-te, no fundo do abismo de mil degraus
nos feriremos juntos, as mãos, o coração,
dividirei o meu gole dágua
entregarei meu pão, cederei minha cama .

Oh! o amor, sim amarei! - Mais que meu braço, secarei meu corpo
me dispersarei na total doação, terei mil corações,
descansarei no grande berço, na doce terra democrática,
para que haja amor.

CANTO DO COLONO

Há quatrocentos anos te disseram que estes campos
e estas montanhas tinham dono,
deram-te uma enxada, só a primeira,
eras teu avô.

Houve festas, império, casa-grande e senzala,
corpetes, cartolas, mulatos, padrinhos,
culote, carruagem, charutos, escravos.

Sempre escravos, - ontem, - hoje.

Agora te dizem que estas terras têm donos
teus filhos morreram, teus frutos levaram,
compraste uma enxada e te pões a cavar.

Só falta uma cruz.

CANTO IMPASSÍVEL À SOLIDÃO

Hoje estou só,
perfeitamente só.

No vazio apartamento, nada desejo senão esta solidão
receio mesmo encontrar-me e surpreender-me com os
[restos de algum naufrágio cotidiano.

Não serviria vinho ao amigo que nesta hora fosse
[apenas um intruso
não sorriria ao amor, cujo carinho seria apenas um
[irritante contacto,
fechei todos os livros, silenciei-os como túmulos
nem desejo ressuscitar fantasmas em meu branco
[pensamento.
Hoje estou só,
deixei que o tempo passasse para que pudesse
[encontrar-me
sem perturbação,
preparei-me para abrir a janela sobre abismos sem
[perturbar-me a vertigem
das alturas.

Nem mesmo a música, essa alma da criação, esse halo
[das coisas
poderia chegar aos meus ouvidos, sem bater como uma
[estranha.

Hoje estou só, perfeitamente só, conscientemente só
como um rochedo no alto mar
orgulhoso do meu egoísmo e da minha força, satisfeito
[como um deus,

criando a minha música e me divertindo.

E percebo deslumbrado
que nunca estarei só
nem nunca temerei a solidão
como o resto dos homens.

CANTO INICIAL

Hoje sou puro, nada me perturba
nenhuma mancha me atingirá.

Nada desejo, além das coisas que me cercam
as ruas, as casas, as árvores, a amanhã.


Ouço pássaros com suas claras vozes na minha alegria,
vejo a terra úmida com suas águas que passam
[escachoantes
e as verdes folhas que nascem na sombra com a forma
[de coração
e que tomam a voz dos córregos para cantar.

Não quero ler, não quero contágios, não quero poluir-me,
encontrei-me numa remota infância, sem futuro, sem passado,
sem vida,
e tenho nu o corpo, sinto o sol na epiderme.

Hoje quero olhar o céu, as nuvens itinerantes
desmanchando símbolos ao vento,
quero molhar os pés no mar, no vazio mar, na vazia praia
mesmo cheio de barcos, mesmo cheia de gente.

Hoje quero surpreender-me nas origens
descobrir-me, como a um córrego entre pedras verdes
na mata fechada onde a luz é um bailado de frestas inquietas.

Quero surpreender-me nas origens, e vou escalar-me,
[vou descobrir-me
nas coisas que me cercam,
no canto dos pássaros, no movimento das folhas, na
[alegria do mar,
na música do espaço.

Hoje, sou puro, os animais não se espantam à minha
[passagem, os peixes conversarão comigo,
os pássaros responderão ao meu canto,
as crianças me estenderão as mãos para fazer roda,
e inutilizarei todas as palavras, e em silêncio, no
[profundo e luminoso silêncio
cantarei

Hoje sinto-me puro, - o instinto como um cristal
[trespassado de luz.

CANTO EFÊMERO

Feliz no mundo eu só!... Ninguém mais é feliz!
Ninguém mais é feliz!... Eu só, sorrio e canto!
Enfim o teu amor!... Quanta coisa! Quem diz,
- quem poderia crer que eu merecesse tanto!

Esplendor! a paisagem mudou por encanto!
No negro da minha alma há rabiscos de giz
traçando ante meus olhos trêmulos de espanto.
- "Feliz no mundo, eu só !... Ninguém mais é feliz!"

Certo do teu amor, tudo ao redor se anima,
em ouro se transforma a fuligem do pó
e a minha alma, a beleza das coisas sublima!

Enfim o teu amor!... E o teu amor primeiro!
Meu Deus! eu sou feliz!... Feliz no mundo eu só!
Ninguém mais é feliz, ninguém!... no mundo inteiro!

CANTO PRETENSIOSO

Exilado num tempo de perfídias,
de misérias, de lutas, de torpezas,
- pergunto em vão, nesse clamor de insídias
onde vivem as almas e as belezas?

Trago as asas e as ânsias sempre presas
se o mundo é um choque eterno de dissídias...
- onde andarão aquelas naturezas
do século de Péricles e Fídias ?

No meu destino singular de eleito
subo à procura do alto da montanha,
onde o ar é mais puro e o céu perfeito!

- Que as montanhas, as eras não consomem,
e nessa ânsia em que avanço, sinto a estranha
vocação de ser deus dentro de um homem !

CANTO PERDULÁRIO

Hei de gastar minha alma – a alma dos poetas
é como a luz do Sol ou como o luar,
deve espalhar-se, para embelezar
e iluminar as sombras mais discretas...

Como as águas que cantam, irrequietas,
deve o silêncio, um pouco, musicar,
ou como a onda que se ergue, - a alma dos poetas
deve de espumas enfeitar o mar!

Cumpro assim o meu destino, e neste bando
de versos, perdulário a vou gastando,
e quanto tenho de alma já nem sei...

E hei de esbanjá-la mais, de instante a instante,
e morto – hão ede encontrá-la ainda estuante
nos versos onde a vida a desperdicei !

CANTO PURO

Como se fosse uma árvore me sinto
a bracejar a luz desta manhã:
do azul dos céus, azul puro e retinto,
embebedo a minha alma livre e sã.

Há uma alegria esplêndida e pagã!
Cheiro de terra a provocar o instinto!
O dia, é um bago rubro de romã
e o Sol renasce de um incêndio extinto

Que gosto bom esse de andar no chão
de pés descalços, tal como as raízes,
a ouvir cantar no peito o coração

Como as aves nas ramas enfloradas
ou como as águas claras e felizes
que cantam pelo chão, despreocupadas…

Fonte:
http://www.jgaraujo.com.br/biblioteca/biblioteca.htm

José Carlos Aragão (No palco, todo mundo vira bicho!)

ARAGÃO, José Carlos. No palco, todo mundo vira bicho!
Ilustrações de Luciana Carvalho. São
Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2007.
56 pp.

Celso Sisto (Fábulas Para Brincar de Teatro)

O jogo do faz de conta é próprio do teatro e das brincadeiras de criança! “Agora eu era...” é frase comum na boca da meninada, e basta para indicar que o pacto começou! E elas são rápidas na divisão dos papéis, no desenvolvimento do enredo e na solução da história. E repetirão mil vezes se for prazeroso!

O autor deste livro se vale de algumas fábulas de Esopo (o escravo escritor lendário, que viveu na Grécia Antiga) e as transforma em cenas, bem curtas, com predomínio do humor, para serem representadas pelas crianças. Temos aqui 10 fábulas, que dão origem a 10 pequenas cenas, dentre elas “O lobo e o carneiro”, “O macaco comilão”, “O cachorro sabido e o lobo bobo”. São histórias vividas por animais com comportamentos humanos que terminam sempre em lições bem aprendidas (e experimentadas na pele!), como costuma acontecer nas fábulas!

Após a ilustração que abre cada história, há um box com a lista de personagens e o cenário sugerido para a encenação. Tudo muito simples (inclusive as falas!) e sucinto, para não complicar quem quer apenas brincar de representar. As ações sugeridas pelo autor, para os atores mirins executarem, estão destacadas dentro do texto, em verde.
Como se publica muito pouco teatro para ser lido (e representado, claro!) neste país, este livro torna-se ainda mais louvável. As crianças precisam deste tipo de material, sobretudo para se familiarizarem com os códigos do texto dramático.

As ilustrações em preto e branco, aplicadas, sobre um fundo verde são criativas e poéticas, com jeito de cultura popular, o que as tornam muito charmosas! As vinhetas (ou pequenos desenhos) aplicadas no topo ou no centro de páginas em branco também conferem beleza ao projeto gráfico do livro. A diagramação faz o livro ficar vistoso e atraente!

O autor é jornalista, cartunista, dramaturgo e tem mais de 14 livros publicados. A ilustradora é educadora e atualmente faz mestrado em Artes e Design. O trabalho de um casa muito bem com o do outro!

Fonte:
Artistas Gaúchos

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 1

Introdução

Histórias


Contar histórias é uma atividade praticada por muita gente: pais, filhos, professores, amigos, namorados, avós... Enfim, todos contam-escrevem ou ouvem-lêem toda espécie de narrativa: histórias de fadas, casos, piadas, mentiras, romances, contos, novelas... Assim, a maioria das pessoas é capaz de perceber que toda narrativa tem elementos fundamentais, sem os quais não pode existir; tais elementos de certa forma responderiam às seguintes questões: O que aconteceu? Quem viveu os fatos? Como? Onde? Por quê? Em outras palavras, a narrativa é estruturada sobre cinco elementos principais:

Elementos da narrativa
Enredo
Personagens
Tempo
Espaço
Narrador

Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem. As gravações em pedra nos tempos da caverna, por exemplo, são narrações. Os mitos — histórias das origens (de um povo, de objetos, de lugares) —, transmitidos pelos povos através das gerações, são narrativas; a Bíblia — livro que condensa, história, filosofia e dogmas do povo cristão compreende muitas narrativas: da origem do homem e da mulher, dos milagres de Jesus etc. Modernamente, poderíamos citar um sem-número de narrativas: novela de TV, filme de cinema, peça de teatro, notícia de jornal, gibi, desenho animado... Muitas são as possibilidades de narrar, oralmente ou por escrito, em prosa ou em verso, usando imagens ou não. Neste livro, porém, iremos nos deter nas narrativas literárias e em prosa.

Gênero narrativo

Gênero é um tipo de texto literário, definido de acordo com a estrutura, o estilo e a recepção junto ao público leitor ouvinte. Procuraremos aqui adotar a classificação mais usual.

Gêneros Literários

1. épico: é o gênero narrativo ou de ficção que se estrutura sobre uma história;

2. lírico: é o gênero ao qual pertence a poesia lírica;

3. dramático: é o gênero teatral, isto é, aquele que engloba o texto de teatro, uma vez que o espetáculo em si foge à alçada da literatura.

O gênero épico recebe tal nome das epopéias (narrativas heróicas em versos), apesar de modernamente este gênero manifestar-se sobretudo em prosa. Neste livro usaremos o termo gênero narrativo por acreditarmos que seja mais pertinente à prosa de ficção.

O conceito de ficção merece também um esclarecimento, já que de modo geral as pessoas atribuem a ele um senti do mais limitado: narrativa de ficção científica. Na verdade o termo tem significado mais abrangente: imaginação, invenção. Para os limites deste livro fica estabelecido que literatura de ficção é a narrativa literária em prosa.

Tipos de narrativa

As narrativas em prosa mais difundidas são o romance, a novela, o conto e a crônica (ainda que esta última não seja exclusivamente narrativa).

Romance

É uma narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens (em relação à novela e ao conto), maior número de conflitos, tempo e espaço mais dilatados. Embora haja romances que datem do século XVI (D. Quijote de La Mancha, de Cervantes, por exemplo), este tipo de narrativa consagrou-se sobretudo no século XIX, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa.

Podemos classificar o romance quanto a sua temática. Os tipos mais conhecidos são de amor, de aventura, policial, ficção científica, psicológico, pornográfico etc.

Novela

É um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas) paralelos e uma infinidade de momentos de clímax. Um exemplo de novela seria Max e os felinos, de Moacyr Scliar, na qual o personagem central, Max, vive muitas aventuras. A passagem do tempo é muito rápida, tornando a leitura agradável.

Conto

É uma narrativa mais curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo.

Obs.: Tanto o conto quanto a novela podem abordar qual quer tipo de tema.

Crônica

Por se tratar de um texto híbrido, nem sempre apresenta uma narrativa completa; uma crônica pode contar, comentar, descrever, analisar. De qualquer forma, as características distintivas da crônica são: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano.
–––––
Continua… elementos da narrativa

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

Marcelo Spalding (Oficina de Escrita Criativa online)

Utilize teoria e técnicas de criação literária para escrever textos mais criativos, sejam textos profissionais, acadêmicos, jornalísticos ou, enfim, literários. A cada aula é proposto o estudo de um tema e a produção de um texto que será lido e comentado pelo professor Marcelo Spalding.

A oficina também é indicada para quem quer se iniciar na vida literária, pois a troca de textos com o professor permitirá um olhar mais técnico e crítico de seu trabalho.

Início da próxima turma: 30 de julho de 2012

• Curso a distância: faça de onde e quando quiser pela internet;
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Investimento: R$ 180,00 (equivale a R$ 60,00 por mês)

Inscrições abertas: em http://www.marcelospalding.com/wwcursosCRIATIVA.php

Conteúdos do curso:

1 - Apresentação do curso: escrita criativa X criação literária
2 - O estudo da narrativa
3 - O subtexto e o conto moderno
4 - A concisão e os minicontos
5 - Verossimilhança e personagem
6 - O narrador
7 - Tempo e espaço na narrativa
8 - Os perigos do texto criativo
Aula especial: Livro e Tecnologia

PROMOÇÃO: seja um dos 10 primeiro inscritos na Oficina de Escrita Criativa online e ganhe a inscrição no Curso de Língua Portuguesa online de Marcelo Spalding

Para mais informações, escreva para marcelo@marcelospalding.com.

Fonte:
Artistas Gaúchos

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 614)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional 

A sogra véia do Tião
é tão azeda e ranheta
que quando chupa limão
é o limão que faz careta!
–Regiane Ornellas/SP–


Uma Trova Potiguar 

Este teu corpo de misse
me deixa o coração tenso,
imagina, se eu te visse
daquele jeito que eu penso!
–Clarindo Batista/RN–


Uma Trova Premiada 

2002  Belém/PA
Tema  CAROÇO  M/E

Houve enorme estardalhaço,
um grande “angu-de-caroço”,
quando o Zé, no auge do amasso,
sentiu que a “moça” era um moço.
–Héron Patrício/SP–


...E Suas Trovas Ficaram 

Ao contrário do automóvel
com a tração na dianteira,
mesmo quando estás imóvel,
atração tens na traseira...
–Orlando Brito/MA–


U m a    P o e s i a 

O meu currículo de garanhão,
eu confesso, até triste, foi modesto,
se eu parar para fazer um aresto,
confesso: Não foi só decepção.
Mulheres lindas, mas também, “canhão,
umas, só “fiquei”, outras eu amava.
Uma feia de pseudônimo, Java,
era tão feia a danada da “criôla”,
que toda vez que cortava uma cebola,
era a pobre cebola quem chorava.
–Francisco Macedo/RN–


Soneto do Dia 


ADESÃO.
–Aloisio de Carvalho/BA–

Eu adiro, tu aderes, ele adere.
Todos nós aderimos prontamente,
a questão é ficar comodamente,
sem perder os proventos que se aufere.

O que se fez, 'stá feito. Derramar
sangue, por causa disto, é insensatez,
desde que, pra mostrarmos altivez,
basta a prosa da sala do jantar.

Quem tem mulher e filhos, meu amigo,
não ser prejudicado ao mais prefere.
Vir pra rua brigar — não é consigo;

em conflitos assim não interfere;
por isso, nos momentos de perigo,
eu adiro, tu aderes, ele adere.

Teresa Lopes (Doutora Saladina – Bruxa para Todos os Males)

Para a Margarida e para a Pilar, sem outro sentir que não o do bem-me-quer.

Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que os reinos das bruxas e das fadas existem bem perto de nós. Só quem tem coração de pedra é que os não vê.

Ora num desses reinos havia uma bruxinha que, desde muito pequena, se habituara a brincar ao esconde-esconde com uma pequena fada do reino vizinho.

Isto acontecia porque, claro está, nenhuma das famílias tinha conhecimento de tal facto insólito.

Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.

A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.

Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jacto, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.

Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.

Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.

Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.

Os pais pasmaram com tamanha pretensão.

.Que bruxa és tu, minha filha! . dizia o pai.

.Querer ser médica? . interrogava-se a mãe.

.Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? . questionavam ambos.

Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.

E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.

Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jacto. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra. Sim, que as bruxas também têm honra!

Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la?

Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.

.És a vergonha das bruxas! . disse-lhe o pai. . Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.

Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:

DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males

Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.

Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.

Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, apercebeu-se de grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.

Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.

Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:

Afasta-te pó de fada,
Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule,
Abracadabra, já está!

Como por magia, todos acordaram. Quando se aperceberam de quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Muito a medo, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vénias, sem ousar voltar as costas!

Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque. Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.

E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.

Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.

O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.

Claro está que este facto não veio nos jornais e permaneceu fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.

Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.

E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.

Quem poderá ser?

Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.

Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Parte 1: Angola)

(foi mantida a grafia original)

DESCOBERTAS E EXPANSÃO

A literatura africana de expressão portuguesa nasce de uma situação histórica originada no século XV, época em que os portugueses iniciaram a rota da África, polarizada depois pela Ásia, Oceania, Américas. A historiografia e a literatura portuguesas, sob a óptica expansionista, testemunham o «esforço lusíada» da época renascentista. Cronistas, poetas, historiadores, escritores de viagem, homens de ciência, pensadores, missionários, viajantes, exploradores, enobreceram a cultura portuguesa e, em muitos aspectos, colocaram-na ao nível da ciência e das grandes literaturas europeias.

Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Diogo do Couto, Camões, Fernão Mendes Pinto, Damião de Gois, Garcia de Orta, Duarte Pacheco Pereira, são alguns dos nomes cujo discurso é alimentado do «saber de experiência feito» alcançado a partir do século XV, em declínio já no século XVI e esgotado no século XVII. A obra de um Gil Vicente ou, embora escassamente, a de poetas do Cancioneiro, ao lado das «coisas de folgar», foram marcadas pela Expansão ao longo dos «bárbaros reinos». Estamos, assim, a referir uma literatura feita por portugueses,   fruto   da   aventura   no   Além-Mar,   no período renascentista. Hernâni Cidade e outros glorificam-na no espírito da dilatação da «Fé e o Império» (A literatura portuguesa e a expansão ultramarina, 1963 e 1964, 2 vols). Chamemos-lhe a literatura das Descobertas e Expansão.

E evidente que esta literatura, nascida de uma experiência planetária, numa época em que o mundo cristão reconhecia o direito à dominação, à depredação e até à barbárie (a cruz numa mão, e a espada noutra) nada tem a ver com a literatura africana de expressão portuguesa. Este registo destina-se apenas ou, sobretudo, a retermos factos longinquamente relacionados com o quadro cultural e político que, séculos depois, havia de surgir, e é a razão primeira destas páginas.

Quando e como surgiu a literatura africana de expressão portuguesa? E como se desenvolveu?

Os portugueses chegaram à Foz do Zaire em 1482 e, em 1575 [1], fundaram a primeira povoação portuguesa, São Paulo de Assunção de Loanda, hoje capital de Angola. Dos primeiros contactos com o Reino do Congo dá-nos testemunho a correspondência trocada entre os reis do Congo e os reis de Portugal, além de documentos, como os relatórios dos padres jesuítas de Angola. Mas o aparecimento de uma actividade cultural regular na África associa-se intimamente à criação e desenvolvimento do ensino oficial e ao alargamento do ensino particular ou oficializado [2], à liberdade de expressão e à instalação do prelo, que se registam a partir dos anos quarenta do século XIX [3].

LITERATURA COLONIAL

Com efeito, quatro anos apenas após a instalação do prelo em Angola ocorre a publicação do livro Espontaneidades da minha alma (1849), do angolano, mestiço ao que parece, José da Silva Maia Ferreira, o primeiro livro impresso na África lusófona [4]. O primeiro livro impresso mas não a mais antiga obra literária de autor africano. Por pesquisas que recentemente levámos a cabo é anterior àquele, pelo menos, o poemeto da cabo-verdiana Antónia Gertrudes Pusich, Elegia à memória das infelizes vitimas assassinadas por Francisco de Mattos Lobo, na noute de 25 de Junho de 1844, publicado em Lisboa no mesmo ano. Entretanto não será deslocado citarmos o Tratado breve dos reinos (ou rios) da Guiné, escrito em 1594, da autoria do cabo-verdiano André Alvares de Almada; e de origem cabo-verdiana se supõe ser André Dornelas, autor do século XVI, que assina uma descrição da Guiné [5]. E até nós chegou, também, pela pena do historiador António Oliveira Cadornega, o eco de um poeta satírico, o capitão angolano António Dias Macedo, que «tinha sua veya de Poeta».

Se a Deos chamão por tu, e a el Rey chamão por vós, como chamaremos nós, a três que não fazem hum, que o povo indiscreto, e nú falto de experiência, fez em lugar de hum três que com toda a Cortezia tú, nem vós, nem Senhoria merecem suas mercês [6]

Tal, porém, não nos autoriza a remontarmos as origens da poesia angolana a tão recuados tempos, como já, com alguma intemperança, se quis insinuar. Repondo, por isso, a questão com certa objectividade pode afirmar-se que a literatura africana chama a si mais de um século de existência. Este longo período de mais de um século de actividade literária está, porém, contido em duas grandes linhas: a literatura colonial e a literatura africana de expressão portuguesa. A primeira, a literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d'Africa, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (1929). Predominavam, então, as ideias da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, como Gobineau, haviam derramado e para as quais teria contribuido o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pre-lógica, — sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer.

Logo no último quartel do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela qualidade de sua escrita João de Lemos, Almas negras, 1937, porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido racista, hoje de inconcebível aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos» (O vék d'oiro, 4.a ed., 1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o Mandobe] que «dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida» (p. 34); Hipólito Raposo {Ana a Ka/unga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no ardor silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho, Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos nossos dias, com tendência, no entanto, para refletir os efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como é o caso de José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio: «Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África, 1936, p. 55).

O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da mentalidade do europeu. Hoje, não há lugar para dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e arrumará a quase totalidade   desta   literatura   no    discurso    da   acção colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado [7].

SÉCULO XIX - SENTIMENTO NACIONAL

1.    ANGOLA


É interessante notar, porém, que já na segunda metade do século XIX, paralelamente a uma literatura colonial, surgem textos de alguns escritores que não poderão ser genericamente catalogados de autores de literatura colonial. Se, por um lado, na representação do universo africano lhes falece uma perspectiva real e coerente, por outro enjeitam a exaltação do homem branco, embora possam, como é natural no contexto da época, não assumir uma atitude de oposição, típica daquilo que viria a ser a autêntica literatura africana de expressão portuguesa. Mas irrealista seria exigir isso de homens que viveram num período em que a institucionalização do regime colonial dificultava uma consciência anti-colonialista ou outra atitude que não fosse a de aceitá-la como consequência fatal da história. Manifestar nessa época recuada um sentimento africano ou uma sensibilidade voltada já para os dados do mundo africano constitui hoje, a nossos olhos, um acto de novidade e de pioneirismo. Eles são, com efeito, e neste quadro, os antecessores de uma negritude ou de uma africanidade.

O mais remoto desses escritores, em Angola, é José da Silva Maia Ferreira, africano de nascimento e de cor, que em páginas anteriores já referimos. O seu livro de poemas Espontaneidades da minha alma (1849) marca assim o início da literatura angolana de língua portuguesa.

Tessitura poética frágil, é certo, mas que cumpre mesmo assim mencioná-lo, até porque de, um modo geral, a poesia angolana desse século acusa toda ela um certo rudimentarismo. A tónica deste discurso é o lirismo vasado sobretudo no amor, mas também na fraternidade, na gratidão, na recordação familiar, na amizade, no enlevo rústico ou paisagístico. E neste campo semântico variado e não muito complexo nem profundo, palpita ainda, e isto é importante, a ternura romântica de um sentimento pátrio:

Foi ali que por voz suave e santa Ouvi e cri em Deos! É minha pátria!,[8] subscreve José da Silva Maia Ferreira no poema «A minha terra», datado do Rio de Janeiro (1849).

Cerca de quinze anos depois outros poetas dão sinal de si em Luanda. Porém esta participação, com excepção para Cordeiro da Matta, deve-se a portugueses radicados. É o caso de Eduardo Neves (c. 1865 — séc. XX), apenas com obra dispersa. Ou o de J. Cândido Furtado (séc. XIX — 1905), também poeta, que viveu por largos anos em Angola. Parte da sua poesia (também dispersa) pode considerar-se, tal como a de outros, indiciadora de representação do tópico da cor:

Qu'importa a côr, se as graças, se a candura Se as formas divinaes do corpo teu Se escondem, se adivinhão, se apercebem Sob esse tão subtil, ligeiro véu? [9]

Ou, então, Ernesto Marecos (1836-1879), que viveu em Luanda desde 1850, um dos fundadores da revistai Aurora, adiante citada, terminando por falecer em Moçambique. Autor de Jucá, a Matumbolla (1865), o seu discurso é uma narração poética trabalhada sobre uma «lenda africana», que o autor situa na região da Lunda. O tema central é o crime que por amor se pratica e se redime também na morte heróica: «E buscou perdão na morte/Qual cumpria ao moço forte,/Ao leonino caçador»); e o «milagre do amor» vai assumir-se em ressurreição «junto ao triste cemitério/Que a bella Jucá escondeu» [10].

No domínio da narrativa impõe-se o nome de Alfredo Troni (1845-1904), em Luanda desde 1873, onde faleceu. Jornalista combativo e prestigiado assina o romancinho Nga Mutúri, publicado em folhetins nos jornais lisboetas Diário da Manhã e Jornal do Comércio e das Colónias, em 1882, e agora reeditado (1973). Centrada na área mestiça da cidade de Luanda da segunda metade do século XIX, os dons revelados em Nga Mutúri não são de somenos, antes pelo contrário. Desde o momento em que, sendo ainda criança, o tio é obrigado a vendê-la por força do quituxi (instituição jurídica africana), passando pela fase em que se transforma na mulher do branco que a comprou, depois pela viuvez (Nga Mutúri = Senhora Viúva), até ao momento em que o narrador dá o corte final da história, longo é o percurso da personagem principal. Através de vários sucessos e pequenas histórias encaixadas, o leque social de Luanda vai-se abrindo a nossos olhos: relações familiares, justiça, hábitos sociais, religiosos, culinária, tradições africanas de algum modo reelaboradas, conceitos de vida, conceitos morais, etc. Alfredo Troni, revelando um conhecimento concreto da sociedade luandense, numa linguagem depurada, cingida ao real, faz gala de uma segurança organizativa invulgar e cuidada utilização de um estilo que vai à ironia repousada, a uma certa malícia subtil buscar o tom geral da narração, mas com tal ciência que, salvo uma ou outra rara excepção, se defende de uma eventual distanciação que fatalmente empobreceria o texto. No toque de relevo da crítica de costumes sobressai a alienação trazida pela assimilação cultural e a transparência da coisificação do homem negro na estrutura instável colonizado/colonizador. Em resumo, texto de prazer e texto de conhecimento.

Já terá de se atribuir menos importância ao Romance íntimo (1892), 2.a ed. da série Scenas d'Ãfrica, de Pedro Félix Machado, ao que parece nascido em Angola (c. 1860 — séc. XX). Começamos por nos convencer de que a narrativa, cuja acção se reparte por Angola e Iisboa, só a muito custo se liberta do âmbito de uma literatura colonial, mau grado a manipulação de personagens da burguesia de duvidosa honorabilidade. Incluí-la aqui é um tanto pela meia dúzia de páginas que aludem a «um importante embarque de negros que interessava muitos dos principaes negociantes d'aquella praça» (p. 28) e tal «embarque projectado era de oito centas cabeças... de alcatrão — diziam os entendidos — as quaes n'essa épocha, deviam render, livres para os carregadores, uns seis centos contos.» (p. 30). Como quer que seja, para um juizo definitivo, seria necessário conhecermos a série completa [11].

O contributo de autores de origem africana, os «filhos do país», encontra em Joaquim Dias Cordeiro da Matta [faquim Ria Matta (1857 — 1894) uma fonte preciosa. Estimulado pelo missionário suiço Héli Chatelain, antropólogo ao serviço do governo americano, mais de uma vez desembarcado em Luanda, a quem se deve não só uma estimulante influência junto dos intelectuais angolanos, como também um trabalho importante no domínio da pesquisa linguística e etnográfica, de que se destaca Folk — Tales of Angola (1897), em edição portuguesa com o título Contos populares de Angola, 1964. J. Cordeiro da Matta, figura destacada da chamada geração de 1880 e um dos valores de maior evidência do século XIX, incitava os seus compatriotas a dedicarem «algumas horas de lazer para a fundação da nossa literatura» [o sublinhado é de quem assina este trabalho] (in Philosophia popular em provérbios angolenses, Lisboa, 1891). Filólogo, etnólogo, jornalista e poeta, parte da sua obra (alguns manuscritos, como os /14 contos angolanos) perdeu-se [12]. O seu livro de versos Delírios, 1857— 1887 (Luanda, 1887), que se considera também desaparecido, mas de que se conhecem algumas das suas poesias, avança na contribuição do tópico da cor, como no capítulo seguinte nos é dado comentar.

Outros mais se afirmam por essa época, como Jorge Eduardo Rosa e Lourenço do Carmo Ferreira, mas a maioria militando no jornalismo, em grande parte político e interveniente, não raro denunciador de prepotências e abusos da administração colonial ou de desmandos e repressões de sectores políticos e económicos. O Echo de Angola, por exemplo, (houve outros), fundado em 1881 era dirigido apenas por mestiços   e  negros   (os   «filhos   do   país»).   Inclusive assinala-se a existência, por regra efémera, de jornais e revistas como A Aurora (Luanda, 1856), O Sertão (1886), Ensaios Literários (Luanda, 1901), ao que parece todas desaparecidas, e Lu% e Crença (Luanda, 1902 — 1903), para além de outras não propriamente literárias — como é o caso d'0 Comércio de Luanda (1867) — mas que mantinham secções, pelo menos, literárias. E refira-se ainda a existência de associações literárias e culturais, havendo conhecimento concreto da Associação literária, Angolana [13]. É de igual modo um jornalismo daquele teor o que, em certa medida, existiu no arquipélago do Cabo Verde e em Moçambique [14].
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Notas:

1    A ordem de chegada dos portugueses  ao continente africano foi esta: Cabo Verde, 1460; S. Tomé e Príncipe, 1470;
Foz do Zaire, 1482; Moçambique, 1498.

2    As   primeiras   iniciativas   do   Governo   da   metrópole relacionadas   com   a   ensino   datam   de   1740.   Outras   se seguiram, mas ineficazes. Só a partir dos meados do século XIX o Governo Central procede a uma série de medidas tendentes ao desenvolvimento do ensino em Cabo Verde (Vide José Contado  Carlos  de Chelmichi,  Corografia cabo–verdiana ou Descripção Geografico-Historica da Provinda das Ilhas de Cabo-Verde e Guiné, 1841).
Compulsando os Boletins Oficiais de Cabo Verde, damos conta de várias providências ou diligências levadas a cabo nos fins do segundo quartel do século XIX sobre a instrução pública no Ultramar como, por exemplo, e além de outras:
Em   1845   se  procede  à  organização   da  instrução primária nas províncias ultramarinas, abrangendo as «escolas      principaes»;      «materiaes      de      ensino»; «provimento, vencimentos,  jubilação  e  aposentação dos professores»; «creação dos conselhos inspectores de instrução primária»; «sua composição e deveres» (Dec. de 14 agosto e P. R. 2 setembro 1845, o que pressupõe a existência de um ensino público em fase adiantada, pelo menos em Cabo Verde. Tanto assim que:
Em 1860 é «creado e estabelecido na cidade da Praia um liceu, com a denominação de Lyceu Nacional de Província de Cabo Verde» (P. circular n.° 313-A de 15 dezembro 1860. B. n.° 83). A título de exemplo, entre outras  importantes  medidas,  e  por  curiosidade,   se regista o seguinte:
Em  1875 efectuou-se a remessa de exemplares da Cartilha   Nacional   de    Caldas   Aulete   para    serem distribuídos pelas escolas de Cabo Verde, pedindo-se informação  aos responsáveis  pelo  ensino  sobre  os efeitos produzidos (P. R. n.° 32, 19 março 1878. B. n.° 16).
Em 1866 é «creado o Seminário eclesiástico da diocese de Cabo Verde» (Dec. 3 setembro 1866. B. n.° 44) cuja abertura ocorreu no ano de 1867 (Off. 18 janeiro 1967. B. n.° 9).
Na   segunda   metade   do   século   XIX   existiu   uma biblioteca e um museu nacional, cremos que na cidade da Praia (P. n.° 15,14 janeiro 1871. B. n.° 10).
Anteriormente a 1871 havia sido extinta a Sociedade Gabinete de Leitura cuja biblioteca transitou para a Biblioteca da cidade da Praia (P. n.° 157, 10 maio 1871).
Inclusivamente «a biblioteca foi mandada abrir ao público em todos os dias não santificados e feriados» das seis às oito horas da tarde» (P. n.° 45, 9 fevereiro
1893. B. 6).
No entanto, «por alvará de 12 de Janeiro de 1740 foi para S. Thiago um mestre de gramática, com 50$00 reis annuaes», segundo Christiano José de Sernna Barcellos in Subsídios para a história de Cabo Verde e Guiné. Parte n. Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa, 1900, p. 281.

3 O prelo foi instalado nas ex-colónias portuguesas nas seguintes datas: Cabo Verde, 1842; Angola, 1845; Moçambique, 1854; S. Tomé e Príncipe, 1857; Guiné-Bissau, 1879.

4    Só recentemente se teve conhecimento da existência desta obra. Deve-se à descoberta, cerca de 1966, de um exemplar na New York Public Library, pelo lusófilo  americano  Prof. Gerald Moser. Um segundo exemplar encontra-se agora na posse da Biblioteca da Companhia de Diamantes de Angola (Lisboa).
Janheinz Jahn noticia que o dramaturgo português Afonso Álvares, mestiço, contemporâneo de Gil Vicente, nascido e educado no palácio de D. Afonso de Portugal, bispo de Évora, é «o primeiro escritor africano de uma língua europeia», embora os seus autos não tenham relação com a África (in Manuel de littérature neoafricaine, Paris, Editions Resma, 1969, pp. 7-8.)

5    A. Teixeira da Mota, Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde — André Álvares de Almada e André Dornelas. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1971, p. 39.

6    António de Oliveira Cadornega dá-nos notícia do facto nestes termos: «(...) succedeu ir hum dia o Capitão António Dias de Macedo neste tempo Sargento mór da guerra com huma sua petição sobre certo requerimento, e dizer-lhe o Secretário do Governo Sebastião Rodrigues que emendasse sua Mercê a petição, porque estando em Governo se lhe devia dar Senhoria; o Capitão tinha sua veya de Poeta, entrando ali perto em huma Caza pedio tinta e papel e escreveo o seguinte (segue-se a poesia que transcrevêramos) — in História geral das guerras angolanas «primeiro  tomo,  escrito, Anno  de  1968». Lisboa (edição fac-similada da edição de 1940), 1972, p. 515.

7    Constituída  por  um  volumoso  número   de  obras,  a literatura  colonial,   se  estudada  em  separado,   obrigaria  a subdivisões. Alguns autores ou certas obras de alguns autores pediriam  um  tratamento  especial.  Seriam  as  que  a  uma perspectiva europeizada juntam uma visão humanística, mas em que o travo paternalístico que as percorre impediria a sua inclusão na literatura africana de expressão portuguesa.
É evidente que as obras de Alexandre Cabral (Terra quente, 1953 e os contos de Histórias do Zaire, 1956), produto da sua experiência no Congo; ou os «Três pequenos contos» incluídos em Despedida breve, (1958) de José Augusto França; ou ainda o seu excelente romance Natureza morta (1949) de motivação angolana, por todas as razões, embora diferentes para cada um dos autores citados, estão para lá destes comentários.

8    José da Silva Maia Ferreira, Espontaneidades da minha alma, 1849, p. 17.

9    J. Cândido Furtado, «No álbum de uma africana» in Almanach de lembranças, 1864, p. 116; também in M. Ferreira, No reino de Caliban, 2° vol., 1976, pp. 24-25.

10    Ernesto Marecos, Jucá, aMatumbolla. Lisboa, 1865, pp. 40, 41, 42.

11    Pedro Félix Machado, autor de uma obra repartida pela ficção e pela poesia {Sorrisos e desalentos, colecção de sonetos; Uma teima, monólogo) e os romances da série Scenas d'África —?— Romance íntimo, 3." edição com uma carta de F. A. Pinto [isto  é Francisco António Pinto].  Lisboa,  Ferin,  1892;  2 volumes de 24+213 pp. & 146+1 pp. s/rosto. Cada vol. como uma parte independente.
Parte I — O Dr. Duprat, Parte
II — O Filho adulterino. O autor na 2." edição de O filho adulterino informa ainda que estava no prelo o 2.° vol. da II Parte — Antonias ou o caso do bairro Estephania e anunciava uma Hl Parte em preparação. Na Biblioteca Nacional, segundo as nossas buscas, apenas se encontra O filho adulterino, 2." edição. Carlos Ervendosa (in Itinerário da literatura angolana, 1972, pp. 34-35) afirma que Cenas dAfrica, numa 2." edição foi publicado em folhetins na Gaveta de Portugal.

12 Joaquim Dias Cordeiro da Matta (Jaquim Ria Matta) publicou ainda as seguintes obras: Ensaios de dicionário kimbundo — português; O luandense da alta e da baixa esfera — estudo crítico e analítico; Cartilha racional para se aprender o kimbundo escrito segundo a Cartilha Maternal do Dr. João de Deus; Cronologia de Angola [manuscrito].

13Teófilo José da Costa, «Augusto Silvério Ferreira — Perfil biográfico e alguns aspectos da sua vida». In Jornal de Angola, n.° 111. Luanda, 1961. Trata-se de um artigo de uma série que o autor publicou no citado Jornal de Angola, desde o n.° 108, 31.8.1961 ao n.° 119, agosto 1962, com bastante interesse para o conhecimento da actividade jornalística e cultural do século XIX em Angola.

14 Os primeiros periódicos não oficiais, excluindo, portanto, os Boletins Oficiais, foram: Angola, A Civilização da África Portuguesa, 1866; Moçambique, O Progresso, 1868; S. Tomé e Príncipe, O Equador, 1869; Cabo Verde, O Independente, 1877; Guiné-Bissau, Pró-Guiné, 1924.
Os primeiros Boletins Oficiais foram publicados nas seguintes datas: Cabo Verde, 1843; Angola, 1845; Moçambique, 1854; S. Tomé e Príncipe, 1857; Guiné-Bissau, 1880 (De 1843 a 1879 a Guiné-Bissau e Cabo Verde constituíam um todo administrativamente e por isso o Boletim Oficial era comum).
Vem ainda a propósito dizer que os Boletins Oficiais, para além da matéria governativa, mantinham secções de anúncios, avisos, denúncia de credores, etc, e ainda colaboração literária.


Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977