quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 6


Aluízio de Azevedo
( Aluízio Tancredo Belo Gonçalves de Azevedo)
(São Luis/MA, 14 de abril de 1857 – Buenos Aires/Argentina, 21 de janeiro de 1913)

" POBRE AMOR "

Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-to muito e muito, e, todavia,   
preferira morrer a ver-te um dia
merecer o labéu de esposa impura!   

Que te não enterneça esta loucura,
que te não mova nunca esta agonia,
que eu muito sofra porque és casta e pura,
que, se o não foras, quanto eu sofreria!

Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
com teus beijos de amor, as minhas faces!

Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
mas quanto sofro mais porque resistes!
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Alvarenga Peixoto,
( Ignacio Jose de Alvarenga Peixoto)
(Rio de Janeiro/GB, 1744 – Ambaca/Angola, 1793 )

ESTELA E NIZE "

Eu vi a Linda Estela, e namorado
fiz logo eterno voto de querê-la;
mas vi depois a Nize, e a achei tão bela
que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste estado
não posso distinguir Nize de Estela?
Se Nize vir aqui, mono por ela;
se Estela agora vir, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
pois sabe que estou preso em outros braços,
e esta não me quer por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços;
ou faz de dois semblantes um semblante,
ou divide o meu peito em dois pedaços!
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Alvares de Azevedo
(Manuel Antonio Alvares de Azevedo)
São Paulo/SP, 12 de setembro de 1831 – Rio de Janeiro/GB, 25 de abril de 1852 )

" SONETO PÁLIDA LUZ "
                                  
Pálida, à luz da lâmpada sombria,
sobre o leito de flores reclinada,
como a lua por noite embalsamada,
entre as nuvens do amor ela dormia.

Era a virgem do mar! na escuma fria
pela maré das águas embalada...
Era um anjo, entre nuvens de alvorada,
que, em sonhos, se banhava e se esquecia.

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos, as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando,
por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!
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Alvaro Moreira
(Alvaro Maria da Soledade Pinto da Fonseca Velhinho Rodrigues Moreira da Silva),
(Porto Alegre/ RS, 23 de novembro de 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 21 de setembro de 1964)

" AO AMOR "

Meu tio-avô Manuel morreu de amor
em Póvoa de Varzim, num dia antigo.
Eu quero bem a todos os parentes,
mas é desse Manuel que sou amigo.

Foi o sincero da família. Por
destino, vocação, prêmio, ou castigo,
os bons Moreiras, nós tão diferentes,
somos iguais no amor. Sei por que digo.

Apenas não morremos. Continuamos
com o desejo que fica na saudade,
com o sorriso que fica em cada dor.

Arvores velhas, e de flor nos ramos,
vamos amando para a eternidade,
e o último amor ainda é o primeiro amor ...
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Alves Júnior (1904/1944)
(José Alves Júnior)
(Juiz de Fora/MG, 11 de março de 1904 – Belo Horizontes/MG, 04 de março de 1944)

" LONGE DA VISTA "

Para dar um consolo, um lenitivo
a esta saudade que me traz penando,
a distância em que vives e em que vivo
eu costumo vencer, de quando em quando.

Vou visitar-te. E volto, pensativo,
pensando mais em ti e mais te amando,
e inutilmente busco, em vão, motivo
para a dor desta ausência ir abrandando.

Sempre que volto, meu amor, eu vejo
que a cada vez maior esse desejo
de ter-te sempre junto a mim... E em vão

busco ocultar a dor que me contrista:
- quanto mais longe estas de minha vista
mais perto ficas do meu coração!

" MIRAGEM "

A mulher que há de vir para ser minha
será diversa das demais mulheres:
- há de ser nobre como uma rainha,
- há de ser pura como os malmequeres...

Hão de entoar-lhe os sinos, misereres,
quando ela entrar na igreja! E ela sozinha,
valerá mais que todas as mulheres
porque será unicamente minha...

Hei de exaltar-lhe a graça e a formosura!
Hão de invejá-la as flores mais amadas
e as estrelas mais rútilas da Altura...

E ela será na vida transitória,
consolo as minhas ilusões fanadas,
suprema inspiração de minha glória !

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Teatro de Ontem e de Hoje (Corpo de Baile)


Terceira produção do grupo Boi Voador, fruto de experiências anteriores com adaptações para a cena de originais literários. Aqui é estabelecida uma entropia sobre a obra Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, um conjunto de novelas em que cada uma é denominada 'coreografia'. 

Esse espírito roseano ligado à música e à dança fornece estímulo para Ulysses Cruz, o encenador, e Débora Colker, a responsável pela direção de movimento, materializarem em cena imagens diretamente construídas sobre o ritmo e a agilidade. O ponto de partida é a visão míope do pequeno herói Miguilim, ou seja, uma realidade circundante percebida por essa visão desfocada. Os trabalhos de dramaturgia e assistência de direção ficam ao encargo de Jayme Compri, que estabelece um roteiro composto por sete movimentos: 1) o despacho de Guimarães Rosa; 2) a visão de campo de Miguilim; 3) a busca de Cara de Bronze; 4) a casa ensolarada das mulheres; 5) uma história de amor na festa de Manuelzão; 6) Dão-Lalaão: Doralda e Soropita; 7) o recado. 

A música de André Abujamra é composta por sonoridades estranhas e rock, conferindo ao todo, juntamente com a iluminação de Domingos Quintiliano e Edvaldo Rodrigues, o pretendido teor não-realista e a descontextualização do espaço em que a ação se desenvolve. Os figurinos de Domingos Fuschini sugerem soluções de super-heróis para os jagunços e diáfanos tecidos para as mulheres sertanejas. Grandes carretéis de madeira, utilizados de formas diversas pelos atores, compõem a cenografia do espetáculo.

Saudado como uma encenação inovadora e que areja a aproximação com um escritor tomado como regionalista, Corpo de Baile faz grande sucesso nas diferentes cidades onde se apresenta. Em 1992 o grupo realiza uma segunda versão do espetáculo, alterando diversas passagens, para levá-lo à Europa. A excursão por diversos países confirma o prestígio da montagem, sintoma do universalismo do teatro nos anos 80, prenunciado por Macunaíma na década anterior.

O crítico Roberto Peres assim sintetiza o impacto produzido pela montagem: "Se a dança vem procurando eliminar as distâncias com o teatro, numa separação que nunca existiu, mas acabou simulada por imposições, há mais tempo ainda o teatro assumiu a dança como parte que sempre foi do seu corpo. E este ganhou projeção no espaço cênico, e nessa vitória Ulysses Cruz atinge o ponto máximo. Seu elenco é ágil, bonito, expressivo, capaz de utilizar várias técnicas e linguagens para contar as novelas de Rosa. Destaque para a postura física do elenco na primeira parte da gênese, Miguilim, acocorado para dar exatamente a ótica míope da criança vendo o mundo de baixo para cima. A seguir o esplendor e a sensualidade dos corpos dos vaqueiros, que celebram uma inebriante festa de Manuelzão sobre os carretéis, trançam suas lanças para criar malhas e armadilhas. Depois a sensualidade explosiva das Mulheres Imaginárias de Guimarães, derramando-se em seguida nas surpreendentes imagens do Cara de Bronze. E nessa entropia tudo é possível, até o carretel de fogo que corta o palco".1 
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Notas
1. PERES, Roberto. Corpo de Baile: uma aproximação da dança com a beleza. A Tribuna, Santos, p. 7, 7 ago. 1988. 

Fonte:

Soares de Passos (Enfado)


Dos homens, ai quem me dera
Longe, bem longe viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.

Que vista! cede a inocência
À voz do crime traidor;
Folga a devassa impudência,
Nas faces não há rubor.
Traz o vício a fronte erguida,
E a virtude, sem guarida,
Geme transida de dor.

Vão ao templo da cobiça,
Vão todos sacrificar:
Consciência, fé, justiça,
Tudo lhe deixam no altar.
Devora-os a sede d'ouro;
O seu deus é um tesouro,
Porque o viver é gozar.

E que importa que o infante
Morra à fome, e o ancião?
Que importa que gema errante
O proletário, sem pão?
Oh! que importa que o talento
Esmoreça ao desalento?
Que vale do génio o condão?

Proclamou-se a lei do forte:
A lei do fraco é gemer.
Ai do triste a quem a sorte
Fez entre espinhos nascer!
É um dogma a tirania,
A liberdade heresia,
A servidão um dever.

Que tempos, que tempos estes!
Quem há-de viver assim
No mundo que rasga as vestes
Do justo; no seu festim?
Quem há-de? mas esperança!
Um dia foge; outro avança,
E a redenção vem no fim.

Hoje, porém, quem me dera
Longe dos homens viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Machado de Assis (José de Alencar: O Guarani)


UM DIA, respondendo a Alencar em carta pública, dizia-lhe eu, com referência a um tópico da sua, — que ele tinha por si, contra a conspiração do silêncio, a conspiração da posteridade. Era fácil antevê-lo: O Guarani e Iracema estavam publicados; muitos outros livros davam ao nosso autor o primeiro lugar na literatura brasileira. Há dez anos apenas que morreu; ei-lo que renasce para as edições monumentais, com a primeira daquelas obras, tão fresca e tão nova, como quando viu a luz, há trinta anos, nas colunas do Diário do Rio. É a conspiração que começa.

O Guarani foi a sua grande estréia. Os primeiros ensaios fê-los no Correio Mercantil, em 1853, onde substituiu Francisco Otaviano na crônica. Curto era o espaço, pouca a matéria; mas a imaginação de Alencar supria ou alargava as coisas, e com o seu pó de ouro borrifava as vulgaridades da semana. A vida fluminense era então outra, mais concentrada, menos ruidosa. O mundo ainda não nos falava todos os dias pelo telégrafo, nem a Europa nos mandava duas e três vezes por semana, às braçadas, os seus jornais. A chácara de 1853 não estava, como a de hoje, contígua à Rua do Ouvidor por muitas linhas de tramways, mas em arrabaldes verdadeiramente remotos, ligados ao centro por tardos ônibus e carruagens particulares ou públicas.

Naturalmente, a nossa principal rua era muito menos percorrida. Poucos eram os teatros, casas fechadas, onde os espectadores iam tranqüilamente assistir a dramas e comédias, que perderam o viço com o tempo. A animação da cidade era menor e de diferente caráter. A de hoje é o fruto natural do progresso dos tempos e da população; mas é claro que nem o progresso nem a vida são dons gratuitos. A facilidade e a celeridade do movimento desenvolvem a curiosidade múltipla e de curto fôlego e muitas coisas perderam o interesse cordial e duradouro, ao passo que vieram outras novas e inumeráveis. A fantasia de Alencar, porém, fazia render a matéria que tinha, e não tardou que se visse no jovem estreante um mestre futuro, como Otaviano, que lhe entregara a pena. Efetivamente, daí a três anos aparecia O Guarani. Entre a crônica e este romance, medearam, além da direção do Diário do Rio, a famosa crítica da Confederação dos Tamoios, e duas narrativas, Cinco Minutos e A Viuvinha. A crítica ocupou a atenção da cidade durante longos dias, objetos de réplicas, debates, conversações.

Em verdade, Alencar não vinha conquistar uma ilha deserta. Quando se aparelhava para o combate e a produção literária, mais de um engenho vivia e dominava, além do próprio autor da Confederação, como Gonçalves Dias, Varnhagen, Macedo, Porto Alegre, Bernardo Guimarães; e entre esses, posto que já então finado, aquele cujo livro acabava de revelar ao Brasil um poeta genial: Álvares de Azevedo. Não importa; ele chegou, impaciente e ousado, criticou, inventou, compôs. As duas primeiras narrativas trouxeram logo a nota pessoal e nova; foram lidas como uma revelação. Era o bater das asas do espírito, que iria pouco depois arrojar vôo até às margens do Paquequer.

Aqui estão as margens do Paquequer; aqui vem este livro, que foi o primeiro alicerce da reputação de romancista do nosso autor. É a obra pujante da mocidade. Escreve-a à medida da publicação, ajustando-se a matéria ao espaço da folha, condições adversas à arte, excelentes para granjear a atenção pública. Vencer estas condições no que elas eram opostas, e utilizá-las no que eram propícias, foi a grande vitória de Alencar, como tinha sido a do autor d'Os Três Mosqueteiros.

Não venho criticar O Guarani. Lá ficou, em páginas idas, o meu juízo sobre ele. Quaisquer que sejam as influências estranhas a que obedecer, este livro é essencialmente nacional. A natureza brasileira, com as exuberâncias que Burke opõe à nossa carreira de civilização, aqui a tendes, vista por vários aspectos; e a sua vida interior no começo do século XVII devia ser a que o autor nos descreve, salvo o colorido literário e os toques de imaginação, que, ainda quando abusa, delicia. Aqui se encontrará a nota maviosa, tão característica do autor, ao lado do rasgo másculo, como lho pedia o contato e o contraste da vida selvagem e da vida civil. Desde a entrada estamos em puro e largo Romantismo. A maneira grave e aparatosa com que D. Antônio de Mariz toma conta de suas terras, lembra os velhos fidalgos portugueses, vistos através da solenidade de Herculano; mas já depois intervém a luta do goitacá com a onça, e entramos no coração da América. 

A imaginação dá à realidade os mais opulentos atavios. Que importa que às vezes a cubram demais? Que importam os reparos que possam fazer na psicologia do indígena? Fica-nos neste o exemplar da dedicação, como em Cecília o da candura e faceirice; ao todo, uma obra em que palpita o melhor da alma brasileira.

Outros livros vieram depois. Veio a deliciosa Iracema; vieram as Minas de Prata, mais vastos que ambos, superior a outros do mesmo autor, e menos lidos que eles; vieram aqueles dois estudos de mulher, — Diva e Lucíola, que foram dos mais famosos. Nenhum produziu o mesmo efeito d' O Guarani. O processo não era novo; a originalidade do autor estava na imaginação fecunda, — ridente ou possante, — e na magia do estilo. Os nossos raros ensaios de narrativa careciam, em geral, desses dois predicados, embora tivessem outros que lhes davam justa nomeada e
estima. Alencar trazia-os, com alguma coisa mais que despertava a atenção: o poder descritivo e a arte de interessar. Curava antes dos sentimentos gerais; fazia-o, porém, com largueza e felicidade; as fisionomias particulares eram-lhes menos aceitas. A língua, já numerosa, fez-se rica pelo tempo adiante. Censurado por deturpá-la, é certo que a estudava nos grandes mestres; mas persistiu em algumas formas e construções, a título de nacionalidade.

Não pude reler este livro, sem recordar e comparar a primeira fase da vida do autor com a secunda. 1856 e 1876 são duas almas da mesma pessoa. A primeira data é a do período inicial da produção quando a alma paga o esforço, e a imaginação não cuida mais que de florir, sem curar dos frutos nem de quem lhos apanhe. Na segunda, estava desenganado. Descontada a vida íntima, os seus últimos tempos foram de misantropo. Era o que ressumbrava dos escritos e do aspecto do homem.

Lembram-me ainda algumas manhãs, quando ia achá-lo nas alamedas solitárias do Passeio Público, andando e meditando, e punha-me a andar com ele, e a escutar-lhe a palavra doente, sem vibração de esperanças, nem já de saudades. Sentia o pior que pode sentir o orgulho de um grande engenho: a indiferença pública, depois da aclamação pública. Começara como Voltaire para acabar como Rousseau. E baste um só cotejo. A primeira de suas comédias, Verso e Reverso, obrazinha em dois atos, representada no antigo Ginásio, em 1857, excitou a curiosidade do Rio de Janeiro, a literária e a elegante; era uma simples estréia. Dezoito anos depois, em 1875, foram pedir-lhe um drama, escrito desde muito, e guardado inédito. Chamava-se O Jesuíta, e ajustava-se fortuitamente, pelo título, às preocupações maçônico-eclesiásticas da ocasião, nem creio que lho fossem pedir por outro motivo. Pois nem o nome do autor, se faltasse outra excitação, conseguiu encher o teatro, na primeira, e creio que única, representação da peca.

Esses e outros sinais dos tempos tinham-lhe azedado a alma. O eco da quadra ruidosa vinha contrastar com o atual silêncio; não achava a fidelidade da admiração. Acrescia a política, em que tão rápido se elevou como caiu, e donde trouxe a primeira gota de amargor. Quando um ministro de Estado, interpelado por ele, retorquiu-lhe com palavras que traziam, mais ou menos, este sentido — que a vida partidária exige a graduação dos postos e a submissão aos chefes, — usou de uma linguagem exata e clara para toda a Câmara, mas ininteligível para Alencar, cujo sentimento não se acomodava às disciplinas menores dos partidos. Entretanto, é certo que a política foi uma de suas ambições, se não por si mesma, ao menos pelo relevo que dão as altas funções do Estado. A política tomou-o em sua nave de ouro; fê-lo polemista ardente e brilhante, e levantou-o logo ao leme do governo. Não faltava a Alencar mais que uma qualidade parlamentar, — a eloquência. Não possuía a eloqüência, antes parecia ter em si todas as qualidades que lhe eram contrárias; mas, fez-se orador parlamentar, com esforço, desde que viu que era preciso. 

Compreendera que sem a oratória, tinha de ficar na meia obscuridade. Se o talento da palavra é a primeira condição do parlamento, no dizer de Macaulay, — que escreveu essa espécie de truísmo, suponho, para acrescentar sarcasticamente que a oratória tem a vantagem de dispensar qualquer outra faculdade, e pode muita vez cobrir a ignorância, a fraqueza, a temeridade e os mais graves e fatais erros, — sabemos que para o nosso Alencar, como para os melhores, era um talento complementar, não substitutivo. Deu com ele algumas batalhas duras contra adversários de primeira ordem. Mas tudo isso foi rápido. Teve os gozos intensos da política, não os teve duradouros. As letras, posto que mais gratas que ela, apenas o consolaram; já lhes não achou o sabor primitivo. Voltou a elas inteiramente, mas solitário e desenganado. A morte veio tomá-lo depressa. Jamais me esqueceu a impressão que recebi quando dei com o cadáver de Alencar no alto da essa, prestes a ser transferido para o cemitério. O homem estava ligado aos anos das minhas estréias. Tinha-lhe afeto, conhecia-o desde o tempo em que ele ria, não me podia acostumar à idéia de que a trivialidade da morte houvesse desfeito esse artista fadado para distribuir a vida.

A posteridade dará a este livro o lugar que definitivamente lhe competir. Nem todos chegam intactos aos olhos dela; casos há, em que um só resume tudo o que o escritor deixou neste mundo. Manon Lescaut, por exemplo, é a imortal novela daquele padre que escreveu tantas outras, agora esquecidas. O autor de Iracema e d' OGuarani pode esperar confiado. Há aqui mesmo uma inconsciente alegoria. Quando o Paraíba alaga tudo, Peri, para salvar Cecília, arranca uma palmeira, a poder de grandes esforços. Ninguém ainda esqueceu essa página magnífica. A palmeira tomba. Cecília é depositada nela. Peri murmura ao ouvido da moça: Tu viverás, e vão ambos por ali abaixo, entre água e céu, até que se somem no horizonte.

Cecília é a alma do grande escritor, a árvore é a Pátria que a leva na grande torrente dos tempos. Tu viverás!

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Nívea Martins (Maringá Poético)


Nívea Martins – Nome artístico de Maria Nívea Cerqueira Cezar Pereira Martins. É atriz de teatro e poeta. Quando residia em Santos, atuou sob a direção de Plínio Marcos em A balada de um palhaço, da autoria do referido dramaturgo. Entre as diversas peças em que atuou em Maringá, sempre sob a direção de Newdemar de Souza (Grupo Quilombo), estão Ternura e sol (baseada no livro homônimo de Ary Jacomossy), E agora Drummond? e A dança do caos (criação coletiva).
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SEPARAÇÃO 

Desnudo-me
Proponho que me esqueças
Eu pararei nos portos da vida
Tu prosseguirás sem razăo
Então, vou cuspir ao vento
Minha fragilidade
Que se faz poesia
Rasgando o solo frio desse chão

ORGISOFIA

Quando te encontro
nada mais penso
quando te quero
de tudo me desfaço
quando me solto
seus lábios estremecem
quando desnudo-me
seu corpo enlouquece

Quando năo me encontro
vocę declama poesia
quando tento e penso
vocę cheira ressaca de maresia
quando eu mesma me faço
vocę me toca com olhar de magia
quando me visto e insisto
vocę me lembra de sua ideologia
pensa năo ter mais nada a falar
se encolhe 
me escolhe
e é só filosofia!

SER-VEJA 

Brinco em cada palavra
que na minha voz 
é pronome perfeito
meio sem jeito pulo o verbo
que de todo ato repulsa a fala
sem particípio
e participo do encontro em que foge a consoante
consciência que sei que tudo se fez.
Hiato, talvez um desacato ao sujeito eleito!
Ah! Tantos encontros consonantais que já não sei
se encaro ou páro!
Se corro com dois ou um r só 
esse desespero de regras!
Se já não posso decifrar
sílabas tônicas
verbalizo então
ser-veja 

ALGUM ALGUÉM 

Saiu de sua terra. Tão cedo!
Comeu o pão do diabo...
Tão inocente!

Amou o pecado... De leve!
Pisou nesse chão... Foi breve!
Deixou nada pra ninguém,
não queria marcas incuráveis,
não desejaria mal algum, mas... Foi a vida,
a vida que tão vivida não tinha nenhuma constância.
foi mais um sem fé!
Digo até que com muita razão...
não saboreou o pão, engoliu seco, sem sentidos!
Não bebeu o vinho,
não existia cálice, muito menos palavras!
Passou despercebido,
nada conta a sua existência!
Levou a pressa consigo
e devagar, sem nenhuma dor, desconheceu o amor...
desbravou a si mesmo
perfurou suas entranhas
quis a morte,
que de sorte estava por perto, 
deu-lhe um sinal aberto...
e se foi, sem biografia. 
Só uma poesia sem intenção,
só de passagem, sem ilusão!
Não me pergunte quando, 
como nem porquê.
É uma psicografia.

SAUDADES DE MIM!

Sou vida enlouquecida!
Sou lua ferida!

Sou ave incontida!
Sou nenhuma razão
sou sua fome de pão
sou cada passo no chão!

Ser o que nada pensa
e nunca existe

Ser o que desequilibra
fera enfurecida
orgástica saliva!

Nem eu mesma lembro!

Talvez fada esquecida...
orquídea amortecida
em um jardim
com cheiro de fim...

do princípio ao meio...
a saudade de mim

MUTAÇÃO 

em cada dose
de sentimentos...
pulsa sangue quente
ausência...
reencontro
notas suaves...
contam estrelas no firmamento
minha intuição aflorada
desabrocha pétalas indecisas
orquídeas desenfreadas
até que o mundo se cale
talvez ...

DEIXEI O VENTO ME LEVAR

Não quis voltar!

provei de uma fruta
e ninguém mais vai saborear...
conheci o segredo
não ouso desvendar...
trago comigo o paraíso
me viciei em sabores
me deliciei nos sumos
me embriaguei
estourei os cadeados
desfiz as correntes
parei nas esquinas...
é minha sina
amores irreais...
é alma menina
desse destino imortal
é essência cristalina
despir-se dos valores
ficar de bem com o mal

TUDO QUE SE PLANTA, DÁ.

Psicose, neurose, cirrose
no gole nosso de cada dia
distorção frontal
colhe-se delírios
hare, assim seja namstê
fim da massa cerebral.
Os pontos que interrogam...
cobram um porquê.
O grito não sai...
a fala tremida
a boca maldita!
É vácuo
o espaço da inerte criatura.
É assim que se fez o relatório humano.
No engano da história
a falta de memória!
Nenhuma saída...
voto obrigatório...
seja eleito então
vazio.

PROFILAXIA

Anoitece.

O vulto alegre se entristece. De pavor!
Imutáveis monstros,
delinquentes civis!
Voltando de onde quis...
com o horror que nunca quis!
E lá no fundo desse poço imundo... Mundo!
jazem os crânios
arânios
com suas minas de urânio
a pedir perdão!
Inteligentes,
comoventes como só eles são,
a ditar e interditar,
os atos loucos. 
entre muitos,
poucos com o coração!
Anoitece.
O corpo marcado de pus que se reduz!
E o sol?
O sol com seu brilho,
move no canto do espartilho.
a força esmagadora de amar com prazer!
O que fazer?
Se a noite beneficia...
e o golpe asfixia,
um nó...
sem profilaxia,
com marcas de bem estar!
É, no duro,
hoje...
eu já não pulo o muro 
pois eles se curvam 
com o meu olhar!

LOGOS EU?

Sem razão...
sem rótulos...

sem definições...
ou decretos...
sem sentido
ou lógica de tempo!

nenhuma ordem
ou articulação...

sem previsões
tato, olfato, paladar!

Sem previsões!
Meras especulações.
Irreparável...
irreconhecível...
sem divisão
nem subtração!

Nenhuma religião...
nada cronológico
sem código de DNA 

fora de linguagem
nunca posta em leitura!

Fora de padrão!
Nada que se cobre
nada que se pague!

Nunca...
sem tentativas...

nada retrata minha passagem pela vida...
tão absurda!
Algo informal demais
E?
Logos eu?

É SOFRIDA NOSSA AFINIDADE

É sofrida nossa afinidade.
Basta-me 
Os sonhos,

As lembranças
As lagrimas derramadas
Como sofri quando você se foi
Os meus olhos se entristeceram 
Minha alma adoeceu
O meu corpo 
Virou deserto 
E seco se tornou, sem nenhuma reação
Se antes estremava com o teu toque
Agora dormente jamais será explorado novamente.
Passada esta relação

Acordo para outra vida
Sacrifícios se fazem necessários
E as mudanças 
Promovem em mim
Aquilo que mais me renova

Um amor 
Sem sonhos
Idealizados nas mesmas nuvens 
Sem promessas de chuvas
Estou climatizado nas esperanças futuras
Terei uma longa viajem por outros universos
De você não espero retorno
O passado será demarcado como única saudade
Para ti minhas poucas lembranças
Nada mais...

DESPIDO DE CONCEITOS E ÉTICAS SENDO SIMPLESMENTE EU

sem ilusões pra fugas
espasmos 
tento pensar coerentemente
mas a mente melindrosa
remete-me constantemente a
sonhos mirabolantes
acordando recentemente
recordando sonolentamente
de sonhos reais da alma real
e o que acontece realmente
é que entre o real e o incerto
a linha fina e tênue
separa-nos insanamente
entre o real e a mente que mente

colocando-nos a máscara da incerteza
na loucura da vida bela
neste mundo paralelo
que me criei nesta vida
entre o certo e o errado
no dia que as máscaras caírem
e me mostrar limpo, inteiro
despido de conceitos e éticas
sendo simplesmente eu
nu, cru, despojado de tudo

despojado do deus que criaram
para eu crer no ser eterno
esqueço do presente que é dádiva
do eu natureza vivendo
eternamente no já...

agarrando-me às ideias
de eterno ser.

Fonte:
Revista JIOP (Jornada Interartes Outras Palavras). n.1. Maringá : Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Letras, 2010.

José Saramago (Objecto Quase)


Objecto quase, publicado pela primeira vez em 1978, é uma coletânea de seis histórias breves e tensas do escritor português José Saramago e evidenciam as raízes do maravilhoso messe autor. Em um gênero não muito praticado por ele, os climas são variados - podem ir do humor sarcástico ao lirismo romântico -, os personagens também, mas algo os une intimamente: o pessimismo, onde o autor espelhou não somente o presente, mas o futuro também. Vemos nesta obra o homem "coisificado" e as coisas, "humanizadas"... É simplesmente o reflexo de nossa sociedade, que se preocupa mais com a segurança dos pertences do que com o próprio cidadão!

Neste conjunto de contos, em Objecto Quase, há quase uma sequência, onde a história do homem é montada em painéis, que vão desde a sua alienação, com opressões internas e externas, até à sua própria natureza, espontânea, amoral, livre: o encontro do jovem e da jovem, no final, em que o silêncio renasce, identificado com a natureza, sobre as cinzas da palavra, que de todos os vírus se tornou portadora.

Traduzem um capitalismo em agonia, atmosfera de fim de linha, de sociedades em que os bens de consumo circulam às expensas da própria vida. Daí a escrita que se move em ciclos, emulando ritmos alternados de crise e prosperidade, parodiando a circulação também incessante, distanciada e sem sentido das mercadorias. E, apartada do mundo, a consciência elabora sua vingança. Talvez a maior de todas seja a linguagem, que se destina a ferir e referir as coisas a distância. Daí o permanente poder de crítica desses escritos, capazes de fundir, com extrema habilidade e conhecimento de causa, o poético, o político.

Em algum lugar no passado - ou seria no presente? - uma cadeira cai e em um breve momento o destino de um homem se desfaz; um outro se vê condenado a permanecer colado na poltrona do seu carro; um terceiro pretende reconstruir uma cidade, livrando-a de seus mortos… Esses e outros episódios fantásticos e alegóricos, cômicos e trágicos se encontram em uma narrativa carregada de metáforas que tenta desesperadamente denunciar uma certa condição (des)humana à qual se submetem o corpo e o cérebro quando esses não estão em harmonia. 

Nos contos de Objecto Quase há dois grupos de protagonistas. No primeiro, eles são o avesso do herói, quase objetos que têm a morte indigna por destino: é o empregado que se torna vítima do próprio automóvel em “Embargo”; em “Coisas” é o sujeito que covardemente se submete às normas do mundo; em “Refluxo” é o rei que como Minos, antípoda de Teseu, foge à aventura heróica; em “Centauro” é o ser dividido entre dois mundos e, por isso, sem possibilidade de transpor mundos. No segundo grupo há a luta entre herói e vilão: em “A cadeira” – metonímia do ditador - Salazar é derrotado por um metafórico cupim, que provoca o tombo e a ruína do regime, trazendo um benefício para a sociedade; em “Desforrra”, o protagonista adolescente descobre a força de Eros, ao recusar a repressão sexual representada pela castração de um porco. Nestes casos, há uma luta e a vitória da vida.

Personagens que não se entrelaçam em suas histórias particulares, mas partilham de um mesmo destino: o da vingança, alimentada às escondidas, longe dos olhos da sociedade e das condutas consideradas lícitas. Este pode ser o fio condutor dos seis contos do livro do escritor português. A vingança funciona como motor da trama, ainda que muitas vezes o motor se emperre no meio do caminho.

E aí entra o tônus satírico e crítico de Saramago, antigo detrator do Capitalismo, envolvido em política e membro do Partido Comunista Português. A incompletude dos contos é descrita no título do volume. Tais características ganham força de texto para texto. A começar pela história que inicia o livro, "Cadeira", a descrição de um móvel como se este pertencesse a um universo conspiratório. E assim por diante nos outros contos: "Embargo", "Refluxo", "Coisas", "Centauro" e "Desforra". É uma boa maneira de entrar no universo angustiante do escritor.

Com Objeto Quase, José Saramago denuncia o estado de animalização do homem e a materialização da violência como um capítulo comum, doloroso da história de um povo.

O autor de Objecto Quase, com a "libertinagem" da sua escrita cria potencialidades estéticas que podem passar desapercebidas. As divagações aparentemente fortuitas estão para o episódio como um coro para um solo: reforçam-no. O episódio adquire uma ressonância que o amplia, por ela se abrindo o espaço para a crítica, onde o humor e a sátira engordam, pela insinuação, pela ironia, pela afirmação, parecendo perder-se a pertinência em favor da loquacidade. A voz coloca-se numa direção para ser ouvida numa direção oposta.

A versatilidade de Saramago (verbal, imaginativa, observadora, refletiva) leva-o às raias do surrealismo, patente na roupagem dos "fatos", no conto "Coisas", onde os ingredientes da psicologia patológica, individual e coletiva, e da parapsicologia, são expropriados pelas palavras, cujo objetivo, constante no autor, é o homem, para a despir até à pele e deixá-lo nu na praça pública da história, em confronto com a história, que o mesmo é dizer consigo próprio, o que explica a sua toada sarcástica e a sua intenção pedagógica acerada.

COISAS

O conto "Coisas", o mais longo do livro, é uma espécie de chave para o conjunto da obra. É uma história de ficção científica. Passa-se numa sociedade futurista, dividida em castas. O que diferencia uma casta da outra é seu poder de consumo, determinado por letras que as pessoas trazem tatuadas na palma da mão. Os objetos são fabricados por um processo que lembra mais a reprodução orgânica do que a manufatura e, de fato, são dotados de personalidades e psicologia próprias. Esses objetos vão ficando cada vez mais temperamentais e, um dia, revoltam-se contra as pessoas. Começam a desaparecer misteriosamente. A princípio, são pequenos desaparecimentos, os donos não têm certeza, talvez tenham-nos apenas perdido. Mas os sumiços vão ficando progressivamente mais acintosos, passam a acontecer diante dos olhos de seus proprietários e em escala cada vez maior, de jarros e relógios a edifícios inteiros que simplesmente evaporam, deixando os moradores nus e mortos no terreno vazio. Ao final se descobre que os objetos rebeldes eram os verdadeiros humanos, convertidos em coisas pela sociedade rigidamente consumista:

Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas.

O misterioso desvanecimento dos objetos, uma vez mais, parece ter tido Marx como inspirador:

A revolução constante da produção, os distúrbios ininterruptos de todas as condições sociais, as incertezas e agitações permanentes distingüiram a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações firmes, sólidas, com sua série de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, foram varridas, todas as novas tornaram-se antiquadas antes que pudessem ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente, compelido a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes.

Neste conto, a cidade vai perdendo suas partes. Todas as suas materialidades, aos poucos, somem. Uma porta não precisa ser aberta, pois ali só está presente o vazio. Uma escada não se sobe nem se desce, porque não há pavimento superior, e, se tal tivesse, não existiriam mais degraus para subir. Uma calçada já não se diferencia do meio da rua, pois tudo é uma coisa só, um grande vazio. As ruas não aparentavam grandes prejuízos, mas notava-se, na cidade, uma geral deterioração, como se alguém tivesse andado a tirar pedacinhos aqui e além, como fazem aos bolos as crianças... (1998, p. 87)

A cidade de Saramago, paulatinamente, se desmaterializa, transformando-se em puro vazio. Não há mais espaço, só luz.

Onde antes havia espaço construído, agora, só o espaço do vazio.

Uma vez compreendido o ponto a partir do qual o autor fala, nos voltamos para os outros contos e percebemos que, de um modo ou de outro, são todos presididos por essa revolta dos objetos, homens coisificados, contra seus exploradores.

EMBARGO

No conto "Embargo", é um automóvel que adquire vida e autoconsciência, quando motivações políticas e econômicas ameaçam privá-lo de seu sustento básico, que é o combustível.

O embargo do petróleo traz à superfície histórica o homem como um dependente do carro, exposto que está às dependências criadas pela civilização. O episódio, aparentemente simples, é estirado sobre o patológico, e sob, onde um corpo se entala sem saídas, suportando as angústias de hábitos que estão ameaçados. A dilatação verbal do simples transforma-se em tensão dramática, em problema, em crítica e humor, numa anatomia humana em que o ridículo é bisturi. Tudo isto nos é dado por uma estrutura narrativa que se oculta nos planos sintagmáticos e paradigmáticos da palavra, como se a narrativa, enquanto comunicação, tivesse que subjugar-se às estruturações da palavra e não aos códigos narrativos.

CADEIRA

Em "Cadeira", o móvel roído por um inseto derruba um ditador e os próprios insetos. Neste conto identifica-se quatro componentes fundamentais da escrita do mais recente Saramago com que vinha trabalhando ao longo do texto: a prosa barroca, o discurso cinematográfico, a tendência a digressões e a postura comprometida.

O conto "Cadeira" é o que abre o livro e conta – guardando-se as devidas proporções de uma ficção e sua trama alegórica – a queda acidental do ditador Salazar de uma cadeira, fato ocorrido em 1968 e que foi (devido a impossibilidades cerebrais causadas pelo baque) a responsável pela queda dele do governo e posterior morte em 1970.

A narrativa contém várias citações históricas e profundamente irônicas que mostram a posição do narrador quanto a ditadura, parece óbvia a importância de saber que Portugal também passou por uma experiência de governo ditadorial. Ela ocorreu em 1928, quando Salazar foi convidado para organizar as finanças de República Portuguesa instalada em 1910. Salazar desenvolveu uma política apoiada no exército e na Igreja, e tinha por princípio defender "a civilização cristã" dos males da época: comunismo, internacionalismo, socialismo, etc.

A organização do Estado Novo, em 1933, seguiu as tendências fascistas: defendia o corporativismo, combatia a democracia e a atividade parlamentar.

O trabalho com a linguagem – que faz do conto uma verdadeira discussão da pluralidade da significação; a alegoria e a visão focal do narrador que convida o leitor a participar do momento exato da queda devem ser considerados na leitura.

O foco inicial é a CADEIRA, seu desabamento, sua madeira acessível ao inseto que a deteriorou por gerações, a perfeição de sua queda que acaba causando a QUEDA da ditadura, ou seja, a influência do objeto nos destinos humanos, mais especificamente nos destinos de Portugal. O que faz com que consideremos a faceta histórica do conto.

A linguagem, com traços barrocos, usada por Saramago permite-se o Ludismo, as digressões quanto as sinonímias e outros recursos de estilo, que não fazem a história “andar”, mas embelezam a sua construção, tudo partindo da significação de desabamento:

A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam.

Ainda na brincadeira do estilo, o narrador aproveita para mostrar sua rejeição, que vai ser amplamente destacada, ao velho ditador:

Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caíndo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira.

Logo depois discute o tipo de madeira que teria servido para confeccionar o objeto, aproveitando para criticar a dizimação expansionista, uma das bandeiras da ditadura de Salazar:

Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índia e ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente (...) Seja pois o mogno e não se fale mais no assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e repousante, depois de bem sentados...

Em um segundo momento, bastante destacado, será a vez de mostrar o gênero do coleóptero que por gerações irá deteriorando a cadeira e porque não o trono, ou ainda,a ditadura. O narrador faz várias associações dele com heróis do povo, coincidentemente, mas nada é coincidência, heróis do oeste americano, como por exemplo Buck Jones. Mas a principal associação é com o “nobre povo luso”, citado até no hino do país:

Em algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o coleóptero, pertencesse ele ao gênero Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado, considerando a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as gerações que se alimentaram deste mogno até o dia da glória, nobre povo, nação valente.

O caminho do Anobium nos veios da madeira é comparado, por isso a importância de saber que é uma representação, uma alegoria, a construção das pirâmides como túmulos dos faráos, parece, portanto pertinente, a alusão à morte, ao fim da ditadura e à irônia com que o narrador trata o ditador que se acha um rei.

Não estranhemos portanto que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de despedida.

A ironia do narrador também se manifesta quando usa os principios ditatorais de Salazar como a religião e a neutralidade nos conflitos para se eximir de culpa de saber da queda e não fazer nada para evitá-la:

Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos.

Depois de todas as associações do Anobium com heróis populares que derrotam os bandidos e se aconchegam nos braços da amada, inicia-se o momento da queda, detalhadamente descrito, quadro a quadro, com direito a parada para reflexões, observe também o tratamento irônico dado ao ditador:

Também agora se sentou este homem velho que primeiro saiu de uma sala e a travessou outra, depois seguiu por um corredor que poderia ser a coxia do cinema, mas não é, é uma dependência da casa, não diremos sua, mas apenas a casa em que vive, ou está vivendo, toda ela portanto não sua, mas sua dependência.

Mais um pouco do quadro a quadro, sempre irônico apontando os erros do governante:

Vê-a de longe o velho que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê (...) e esse é que é o seu erro, sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são de poder (...) O velho pensa que irá descansar digamos meia hora (...) que certamente não terá paciência de ler os papéis que traz na mão.

Mais detalhes e o comportamento de neutralidade do narrador que é estimulado para que seja também do leitor:

Ainda não se recostou. O seu peso, mais um grama menos um grama (...) mais vai mexer-se, mexeu-se, recostou-se no espaldar, pendeu mesmo um quase nada para o lado frágil da cadeira. E ela parte-se (...) podemos até exercitar o sadismo de que, como o médico e o louco, temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos já, passiva, só de quem vê e não conhece ou in limine rejeita obrigações sequer só humanitárias de acudir. A este velho não.

O trecho a seguir mostra uma comparação em que fica muito clara a postura de rejeição do narrador em relação a ditadura e seu efetivador:

Deixemos porém este pó que não é sequer enxofre, e que bem ajudaria o cenário se o fosse, ardendo com aquela chama azulada e soltando aquele seu malcheiroso ácido sulfuroso(...) Seria uma ótima maneira de o inferno aparecer assi como tal, enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás arrastando consigo Satanás, Asmodeu e legião.

A queda se consuma e teremos então os comentários sobre a ajuda que virá, mas principalmente a comemoração de um desejo realizado:

Cai, velho, cai. Repara que neste momento tens os pés mais altos do que a cabeça (...) A cabeça como estava previsto e cumpre as leis da física, bateu e ressaltou um pouco, digamos, uma vez que estamos perto e outras meditações tínhamos acabado de fazer, dois centímetros para cima e para o lado. Daqui para a diante, a cadeira já não importa.

As comparações com a história de Portugal continuam: a morte do Conde de Andeiro e Leonor Teles assumindo como rainha, será essa a reação da esposa? Na história real, Salazar não morre, mas fica incapacitado a ponto de nos dois anos que lhe restarão de vida acreditar ainda estar no poder. O narrador continua a usar um recurso que mostra sua onisciência e onipresença, ele está lá e o leitor na “esteira”, tem o domínio até do tempo um dos elementos da história.

Este velho não está morto. Desmaiou apenas, e nós podemos sentar-nos no chão, de pernas cruzadas, sem nenhuma pressa, porque um segundo é um século, e antes que aí cheguem os médicos e os maqueiros, e as hienas de calça de lista, chorando, uma eternidade se passará.

O corte é pequeno, quase imperceptível, mas houve ruptura nos vasos interiores, a morte já pode entrar como outro coleóptero a consumar a queda:

Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido?

A ajuda chega, a fisiologia do baque é descrita, o narrador assume uma posição imparcial ou pelo menos indiferente ao terminar o conto, mas o tempo que virá é o novo e não apenas uma referência ao clima.

Já se ouvem passos no corredor(...) Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda(...) É lá que nesse momento se encontra o Anobium, preparado para o segundo turno(...) Vamos até a janela. Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.

REFLUXO

No conto "Refluxo", são definidos como objetos quase: E o mais, com exceção talvez dos insetos, que só por metade são orgânicos (como era convicção muito firme da ciência do país e do tempo.) Nesse mesmo conto, são os mortos que servem de alegoria para as pessoas coisificadas, pois, o que é um cadáver senão um homem que, privado de vida, transformou-se em coisa?

Narrada em tom de fábula, "Refluxo" é a história de um rei que não suporta ser lembrado da existência da morte. Disposto a banir de sua vista todos os indícios da mortalidade humana, manda construir no centro do país um gigantesco cemitério, para onde devem ser transferidos os mortos de todos os outros cemitérios e onde doravante realizar-se-ão os enterros. Mas, previsivelmente, o projeto fracassa. Em torno do cemitério, desenvolve-se um intenso comércio ambulante, com toda sorte de mercadorias (os objetos, de novo) oferecidos às pessoas que vêm se despedir de seus entes queridos. Para abrigar os vendedores e mesmo os visitantes que não têm como voltar a suas casas no mesmo dia, surgem hospedarias, hotéis, casas. Logo, uma cidade ergue-se ao redor do cemitério. Mas a expansão do cemitério invade as ruas da cidade e o sonho megalomaníaco do rei de banir a morte de seu mundo redunda na promiscuidade entre os vivos e os mortos.

"Refluxo" é outro paradigma da escrita saramaguiana. Pelo seu "argumento", a construção de um cemitério, não passará pela cabeça de ninguém o conteúdo desse conto. Conserva a sua natureza episódica, o sonho de um monarca, mas as galerias abertas ao corpo da história, pela palavra, como o caruncho na madeira, dão uma elasticidade à dimensão do conto que o transferem dos seus limites para a procriação ilimitada da história. Tudo é inventado e tudo é verdadeiro, e neste tudo, diversificado e uno, a palavra liberta-se do seu estaticismo referencial para se tornar por si própria dinâmica, pela acumulação de material histórico reativado, pela simbologia quase, pela metáfora quase, pela sátira non-quase, feita a leitura na direção do fio de prumo. Tudo é mensurável neste conto, o exposto e o oculto, o que é suscetível de medida e o que o não é. História quase, este conto, que assim se inicia: Primeiramente, pois tudo precisa de ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto de fim que dele se não pode separar, e dizer 'não pode' não dizer 'não quer', ou 'não deve', é o estreme não poder, porque se tal separação se pudesse, é sabido que todo o universo desabaria, porque o universo é uma construção frágil que não aguentaria soluções de continuidade - primeiramente foram abertos os quatro caminhos.

CENTAURO

No conto "Centauro", uma nova nota é introduzida: é o desencantamento do mundo, associado à ascensão da ordem burguesa, conceito descrito inicialmente por Max Weber e posteriormente desenvolvido por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Em seu projeto de dominação da natureza, dizem esses autores, a ordem burguesa retira progressivamente todas as projeções que o homem primitivo fizera sobre o mundo. As montanhas deixam de ser moradia de deuses, as florestas perdem seus duendes, os mares não têm mais sereias. Saudado pela ideologia iluminista como um avanço do conhecimento sobre a superstição, esse desencantamento do mundo obedece a um imperativo preciso: o de tornar a natureza acessível à exploração humana. Para que as florestas sejam derrubadas, por exemplo, é preciso que elas sejam vistas como simples objetos (ei-los de novo, os objetos) e não como o lar de espíritos encantados aos quais se deve respeito. O mundo converte-se, dessa forma, em simples reservatório de matéria prima que o homem pode explorar como bem entender.

É essa a situação retratada no conto de Saramago. Seu personagem é o último centauro, que sobrevive escondido há milhares de anos e observa como, uma a uma, as criaturas fantásticas como ele mesmo vão sendo destruídas pelo homem, ao mesmo tempo em que os deuses retiram-se da Terra para se refugiar em alturas inacessíveis. Como não podia deixar de ser, chega o dia em que o próprio centauro deve morrer. Depois de seqüestrar uma mulher num frenesi erótico, sua existência é revelada ao mundo e o centauro torna-se um fato da mídia. Já não pode mais se esconder. Os homens o caçam, talvez para transformá-lo em espetáculo, talvez em cobaia. Por isso, querem-no vivo: Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventa-da do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem vôo e percorressem toda a região. Encurralado, o centauro despenca de um penhasco na tentativa de fuga e cai sobre uma pedra pontiaguda que o corta ao meio, separando o homem e o cavalo. É assim que, cindido em dois, dividido, o centauro se torna, ele também, um objeto quase, quase um homem: Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.

O centauro é cavalo e é homem, é força e é sensibilidade, perseguido pelos deuses e pelos homens, até à morte na consciência dos olhos destes. Morte que nos deixa uma recordação amarga, pelo contraste com o amor, manifestado pelo homem-animal em duas páginas poéticas, em que a poesia não é a palavra, mas o acontecimento em si.

DESFORRA

Em "Desforra", último conto do livro, abre-se uma nota de esperança. A dominação da natureza é representada agora por uma cena brutal e chocante, em que um porco é castrado por homens que se deliciam em lhe dar de comer seus próprios testículos. Mas essa violência é contraposta a uma cena idílica em que, depois de verem uma rã mergulhar subitamente na água, como no célebre haikai de Bashô, um rapaz e uma moça reafirmam a capacidade humana de amar que, nem por negada na sociedade predatória em que vivemos, deixa de existir: Círculos que se alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde enfim a rã mergulhara. Então, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco e nu da rapariga recuava para a penumbra dos ramos.

"Desforra", apenas com três páginas, é a afirmação do amor, despido até à simplicidade da natureza, em contraste com a castração - a "desforra".

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/objecto_quase