sábado, 22 de março de 2014

Prémio Literário Florbela Espanca/ Portugal (Resultado Final)

A obra "Longo Caminho para Casa", de Nuno de Figueiredo, de Coimbra, foi a vencedora do Prémio Literário Florbela Espanca 2013, dedicado à poesia e promovido pelo município de Vila Viçosa, revelou hoje a autarquia.

No valor de 2.500 euros, o galardão, criado em 1981 pela Câmara de Vila Viçosa, tem uma periodicidade bienal - sendo alternadamente atribuído a poesia e ficção - e destina-se a premiar obras literárias inéditas de língua portuguesa, independentemente da nacionalidade do autor.

O júri decidiu também atribuir uma menção honrosa à obra "Lamento das Casas Felizes", de Miguel Aires de Campos, de Sieci Firenze, Itália.

A edição de 2013 do concurso, dedicada à poesia, contou com 308 trabalhos inéditos de expressão portuguesa, de autores das mais variadas nacionalidades.

"Longo Caminho para Casa", a obra vencedora, será editada em primeira edição pela Câmara Municipal de Vila Viçosa, numa tiragem de 500 exemplares.

Com este galardão, o município pretende promover, divulgar e apoiar actividades culturais de âmbito literário e, simultaneamente, homenagear a poetisa Florbela Espanca, natural de Vila Viçosa.

Florbela Espanca, autora do "Livro de Mágoas", "Livro de Soror Saudade", "Charneca em Flor" ou "Juvenília", é considerada uma das mais brilhantes poetisas de língua portuguesa de todos os tempos.

A poetisa nasceu em Vila Viçosa, a 08 de Dezembro de 1894, tendo falecido em Matosinhos, na noite de 07 para 08 de Dezembro de 1930, com 36 anos.

Florbela Espanca foi sepultada naquela localidade do norte, mas os seus restos mortais foram depois trasladados para o cemitério de Vila Viçosa.

Fonte:
http://sol.sapo.pt/inicio/Cultura/Interior.aspx?content_id=101182

2º Prêmio SFX de Literatura (Resultado Final)

O 2º Prêmio SFX de Literatura 2014 já tem seus vencedores. Os 30 melhores trabalhos – 15 contos e 15 poesias – foram selecionados entre 240 inscrições feitas nesta edição. A maioria dos autores (15) é do Estado de São Paulo – sete deles do Vale do Paraíba. Os demais são dos estados do Rio de Janeiro (5), Espírito Santo (2), Rio Grande do Sul, Alagoas, Amazonas, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Bahia e Ceará (1).

Os autores selecionados farão parte de uma coletânea a ser lançada no dia 5 de abril no distrito de São Francisco Xavier, durante o Festival da Mantiqueira. “Esperamos reunir o maior número de autores no lançamento, apesar de muitos serem de longe”, ressalta Cristovão Cursino, responsável pela criação e coordenação do concurso.

Os trabalhos foram avaliados por uma comissão formada por representantes das academias de letras de São José dos Campos, Jacareí, Caçapava e Lorena; e também do Instituto de Estudos Valeparaibano (IEV).

“Acredito que estamos contribuindo para divulgar, cada vez mais, o trabalho de diferentes autores, não só da nossa região, mas de outros estados brasileiros”, enfatiza Cristovão Cursino. “Além disso, o concurso também ajuda a consolidar o Festival da Mantiqueira como um dos principais eventos literários do Estado de São Paulo. 

CONTOS Selecionados

1. TATIANA ALVES SOARES CALDAS
Curiosidade 
Rio de Janeiro/RJ

2. DAVI MENOSSI GONZÁLES
Homens de Preto
São Caetano do Sul/SP

3. GLADIS BERRIEL
Os Candeeiros
Canoas/RS

4. MARIA BEATRIZ DEL PELOSO RAMOS
Natureza Morta
Maricá/RJ

5. PEDRO DINIZ DE ARAUJO FRANCO
Paul em Belzonte e Eleanor Ridge
Rio de Janeiro/RJ

6. PAULA KAHAN MANDEL
A Metamorfose da Senhora Esther
São Paulo/SP

7. JOSÉ AUGUSTO OLIVEIRA HUGUENIN
Desencontros Certeiros
Niterói/RJ

8. LUCAS SANTOS DE ALMEIDA
O Labirinto
São José dos Campos/SP

9. RAMON QUEIROZ MARLET
Assassinato
São José dos Campos/SP

10. JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA
Memórias Recorrentes
Maragogi/AL

11. JOSÉ FRANCISCO ARAUJO
O Lado Escuro da Lua
Manaus/AM

12. ANDRÉ LUÍS SOARES
Fragilidades
Guarapari/ES

13. ANDRÉ TELUCAZU KONDO
Ponte Sobre o Rio Douro
Jundiaí/SP

14. RUY AUGUSTO GONÇALVES ROLIM MACEDO
Mário, Um Maravilhoso Defunto
Caçapava/SP

15. ANDREY COUTINHO CARVALHO
O Primeiro Sol
Fortaleza/CE

Poesias Selecionadas

1. ADRIANA DE OLIVEIRA MACIEL
Sabor da Gente
São José dos Campos/SP

2. ADILSON ROBERTO GONÇALVES
Escuta!
Lorena/SP

3. ANA FÁTIMA CRUZ DOS SANTOS
A Cor da Terra
Salvador/BA

4. RODRIGO LYCHOWSKI
Interrogatório
Rio de Janeiro/RJ

5. STEFÂNIA DE MAGALHÃES ANDRADE BARBOSA
Infância no Céu
São José dos Campos/SP

6. JOSÉ RICARDO DOS SANTOS VIEIRA
O Galo Inglês
Belém/PA

7. EDILEUZA BEZERRA DE LIMA LONGO
Salada Poética – São Paulo/SP

8. ELIANE SANTIAGO DE LIMA
Corda Bamba
São Paulo/SP

9. GERALDO TROMBIN
Mais Que
Americana/SP

10. REGINALDO COSTA DE ALBUQUERQUE
O Pilão
Campo Grande/MS

11. FRED ALBANO PEREIRA
Salvador Dali
Jacareí/SP

12. MARIA APPARECIDA SANCHES COQUEMALLA
Portas
Itararé/SP

13. MÁRCIO JERÔNIMO DE FREITAS
Tributo à Palavra
Uberaba/MG

14. ANDRÉ LUIZ SOARES
Aos Tropeiros
Guarapari/ES

15. ANDRÉ TELUCAZU KONDO
Casa Trancada
Jundiaí/SP

Fonte:
Escritores do Vale

3º Concurso de Poesias da Fundação José Francisco de Sousa (Resultado)

O 3º Concurso de Poesia da Fundação José Francisco de Sousa foi encerrada no sábado, 8, com a divulgação do resultado do certame literário e a premiação dos poetas vencedores, que receberam medalhas e troféus feitos exclusivamente para o concurso pelo poeta e colaborador do certame Valterivan Freire.

O evento aconteceu nas dependências da Câmara Municipal e contou com um bom número de poetas inscritos.

Na categoria Cordel, que teve 27 obras concorrentes, o vencedor foi o poeta cordelista de Itaporanga, J. Sousa, com o poema Meu pé de juazeiro; e, em segundo lugar, ficou o também o poeta local João Zito, que concorreu com a obra Os dramas da violência.

Já na categoria Erudito, que teve 92 poetas inscritos, o vencedor foi Reginaldo Costa de Albuquerque com a obra O pilão. Ele é de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Na segunda posição fiou o poeta Jucemar Severino de Sousa, que é de Olho D’água e participou com a obra Transtorno de um desejo.

Após da divulgação do resultado, os poetas presentes ao evento literário e que ficam entre os dez primeiros colocados nas duas categorias receberam sua premiação, entre os quais Nicário Palmeira Honorato, que ficou em 5º na categoria Cordel; Demir Cabral, colocado na 6ª posição da mesma categoria, e Fabinho do Acordeon, premiado em 10º. Todos esses de Itaporanga, e uma outra medalha foi para Hosmá Passos da Silva Filho, de Piancó, colocado em 9º lugar. Um outro poeta regional premiado foi Antônio Cabral, também piancoense, que ficou em 10º lugar na categoria Erudito. Os poetas de fora que não compareceram ao evento receberão suas medalhas pelos Correios.

Poetas de 21 estados e de três países se inscreveram no certame literário de Itaporanga, que teve o apoio do empresário Cícero Carneiro Neto; do vereador Isaac Carvalho, de Olho D’água; do vereador Rênio Macedo, de Santana dos Garrotes; do cirurgião dentista Osvaldo Estevam; do comerciante Leonan Alvino; da Câmara Municipal de Itaporanga; e da Prefeitura de Curral Velho. Foto: poetas premiados. Vejam os dez primeiros nas duas categorias:

Categoria Cordel

1º J. Sousa – Meu pé de juazeiro – Itaporanga, PB.

2º João Zito - Os dramas da violência – Itaporanga, PB.

3º Ruth Hellmann – A lenda da borboleta – Dourados, MS.

4º Ricardo Alexandre Peixoto Barbosa - Lampião em Hollywood – Natal, RN.

5º Nicário Palmeira Honorato – Sexo Seguro – Itaporanga, PB.

6º Demir Cabral - Mulher não tem dono – Itaporanga, PB.

7º Rage – Que piada!- Americana, SP.

8º Wlange Keindé Pinho Oliveira – Athayde – Guapimirim, RJ.

9º Hosmá Passos da Silva Filho – Voluntário Esforçado – Piancó, PB.

10º Fabinho do Acordeon – As coisas que lá deixei – Itaporanga, PB.

Categoria Erudito

1º Reginaldo Costa de Albuquerque – O pilão – Campo Grande, MS.

2º Jucemar Severino de Sousa – Transtorno de um desejo – Olho D’água, PB.

3º José Antônio de Sousa Neto – Infante – Belém, Pará.

4º Antônio Pereira da Costa Junior – Menino Morto – Guarabira, PB.

5º Tristão José Macedo – O rapto – Belo Horizonte, MG.

6º Cláudio Bento – O espelho de Narciso – Belo Horizonte, MG.

7º Robison José da Silva – Indigente – Morrinhos, GO.

8º José Eugênio Borges de Almeida – Encontro – Maragogi, AL.

9º André Luiz Soares – Poesia em carne viva – Guarapari, ES.

10º Antônio Cabral Alves de Souza – Fatalidade – Piancó, PB.

Fonte:
Folha do Vale. Arte e Cultura. 9 de março de 2014.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos)

PROVÍNCIAS

Pensou ser histeria
a província. Estava
olhando o espaço
errado. A província
incógnita contém
ideias indigestas
trazidas de fora. O cosmo
fechado em buracos atrai
a sede da permanência:
bom dia boa tarde boa noite.

FAMÍLIA

Pais e filhos distanciados
                                em compromissos
             de escola e trabalho

             desconhecidos no final do dia

secas cadeiras de altos espaldares
escondem corpos cansados
                            de frustrações
                              e raiva: poucas
              esperanças de dias acalmados
                                nos finais de semana

             tempo: erro humano de progresso
             e regresso
                         em novos caminhos
                         de reis e rainhas
                                       em troncos
                                       no despetalar
                                       de secas flores

pelas ruas a cidade perambula corpos
isentos de culpas na espera de trens
atrasados desde a infância.

PENSAMENTOS

observo a paisagem
                         além
                         a noite se aclara

pensamentos estrelam
a velocidade necessária

a paisagem cessa na nuvem
em que o pensar permanece
                     
                       atento

tempos difíceis de descobertas
ensombrecem a vida em relações
vazias de interpretação única

retorno à luz das estrelas
no firmamento sem sombras

não encontro o significado
                         para estar aqui

                         meus olhos fixam o horizonte
                         no firmamento que desaparece

(serão) dias de difíceis ultrapassagens
                         pela paisagem fechada

SOLIDÃO

O carro diminui a marcha
                                sinaliza
                       sai da estrada
                       e para

nenhum envelope posto
                             sob a porta

o carro parado
            na noite
            suas luzes
                   indicam a ignição
                                     ligada

nenhuma mão procura
sob a porta
      algum envelope

o tiro ecoa
o corpo cai
             sobre a direção
e as luzes se apagam.

VIDRAÇAS
 

A vidraça transcende defesas: mostra
aos olhos educados a graça da visão.

Determina a transparência e alucina
o corpo visto. Desconta as sombras
e alisa o rosto. Encontra o espaço
e se projeta no vazio da imagem.

Revista em séries inconcebíveis
a vidraça alonga a visão da casa
e a integra ao lado de fora.

Nada pretende além de ligar
o exposto e o imposto
ao silêncio.

MONTANHAS

 Traz o sorriso
em olhos brilhantes
a música rápida e alta
montanhas aparentes
no presente
em que se apresentam
músicos

sorrisos de entrevistas vidas
além dos poucos rostos
que admiram a vista

montanhas e gritos
nos ecos de tempos
em planícies.

SONHOS

Por que não escrevo sobre sonhos
sofro tormentosos instantes
em que a cena desnuda desenredos
de náufragos sentimentos

na busca de longos desencontros

ávidas águas serpenteiam pecados
não acontecidos na comunhão do corpo
                           no esgarçar dos tecidos
                           no semi-brilho das alturas
                           e no não chegar

sou sombra sobra sobrado encantado
da esquina no caminhar retilíneo pela calçada

descoradas paredes liberam o corpo
de meu futuro passado e presente
momento na mumificação do corpo
em sorrisos e esgares

movimento protelatórios
em que o acordar se manifesta
                                     e cessa.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (A Chave)

CAPÍTULO I

Não sei se lhes diga simplesmente que era de madrugada, ou se comece num tom mais poético: aurora, com seus róseos dedos... A maneira simples é o que melhor me conviria a mim, ao leitor, aos banhistas que estão agora na Praia do Flamengo — agora, isto é, no dia 7 de outubro de 1861, que é quando tem princípio este caso que lhes vou contar.

Convinha-nos isto; mas há lá um certo velho, que me não leria, se eu me limitasse a dizer que vinha nascendo a madrugada, um velho que... digamos quem era o velho.

Imaginem os leitores um sujeito gordo, não muito gordo — calvo, de óculos, tranquilo, tardo, meditativo. Tem sessenta anos: nasceu com o século. Traja asseadamente um vestuário da manhã; vê-se que é abastado ou exerce algum alto emprego na administração. Saúde de ferro. Disse já que era calvo; equivale a dizer que não usava cabeleira. Incidente sem valor, observará a leitora, que tem pressa. Ao que lhe replico que o incidente é grave, muito grave, extraordinariamente grave. A cabeleira devia ser o natural apêndice da cabeça do major Caldas, porque cabeleira traz ele no espírito, que também é calvo.

Calvo é o espírito. O major Caldas cultivou as letras, desde 1821 até 1840 com um ardor verdadeiramente deplorável. Era poeta; compunha versos com presteza, retumbantes, cheios de adjetivos, cada qual mais calvo do que ele tinha de ficar em 1861. A primeira poesia foi dedicada a não sei que outro poeta, e continha em germe todas as odes e glosas que ele havia de produzir. Não compreendeu nunca o major Caldas que se pudesse fazer outra cousa que não glosas e odes de toda a casta, pindáricas ou horacianas, e também idílios piscatóricos, obras perfeitamente legítimas na aurora literária do major. Nunca para ele houve poesia que pudesse competir com a de um Dinis ou Pimentel Maldonado; era a sua cabeleira do espírito.

Ora, é certo que o major Caldas, se eu dissesse que era de madrugada, dar-me-ia um muxoxo ou franziria a testa com desdém. — Madrugada! era de madrugada! murmuraria ele. Isto diz aí qualquer preta: — "nhanhã, era de madrugada..." Os jornais não dizem de outro modo; mas numa novela...

Vá pois! A aurora, com seus dedos cor-de-rosa, vinha rompendo as cortinas do oriente, quando Marcelina levantou a cortina da barraca. A porta da barraca olhava justamente para o oriente, de modo que não há inverossimilhança em lhes dizer que essas duas auroras se contemplaram por um minuto. Um poeta arcádico chegaria a insinuar que a aurora celeste enrubesceu de despeito e raiva. Seria porém levar a poesia muito longe.

Deixemos a do céu e venhamos à da terra. Lá está ela, à porta da barraca com as mãos cruzadas no peito, como quem tem frio; traja a roupa usual das banhistas, roupa que só dá elegância a quem já a tiver em subido grau. É o nosso caso.

Assim, à meia-luz da manhã nascente, não sei se poderíamos vê-la de modo claro. Não; é impossível. Quem lhe examinaria agora aqueles olhos úmidos, como as conchas da praia, aquela boca pequenina, que parece um beijo perpétuo? Vede, porém, o talhe, a curva amorosa das cadeiras, o trecho de perna que aparece entre a barra da calça de flanela e o tornozelo; digo o tornozelo e não o sapato porque Marcelina não calça sapatos de banho. Costume ou vaidade? Pode ser costume; se for vaidade é explicável porque o sapato esconderia e mal os pés mais graciosos de todo o Flamengo, um par de pés finos, esguios, ligeiros. A cabeça também não leva coifa; tem os cabelos atados em parte, em parte trançados — tudo desleixadamente, mas de um desleixo voluntário e casquilho.

Agora, que a luz está mais clara, podemos ver bem a expressão do rosto, É uma expressão singular de pomba e gato, de mimo e desconfiança. Há olhares dela que atraem, outros que distanciam — uns que inundam a gente, como um bálsamo, outros que penetram como uma lâmina. É desta última maneira que ela olha para um grupo de duas moças, que estão à porta de outra barraca, a falar com um sujeito.

— Lambisgóias! murmura entre dentes.

— Que é? pergunta o pai de Marcelina, o major Caldas, sentado ao pé da barraca, numa cadeira que o moleque lhe leva todas as manhãs.

— Que é o quê? diz a moça.

— Tu falaste alguma cousa.

— Nada.

— Estás com frio? — Algum.

— Pois olha, a manhã está quente.

— Onde está o José? O José apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o José, Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior. Da outra barraca tinham já saído as duas moças, que lhe mereceram tão desdenhosa classificação; o rapaz que estava com elas também entrara no mar. Outras cabeças e bustos surgiram da água, como um grupo de delfins. Da praia alguns olhos, puramente curiosos, se estendiam aos banhistas ou cismavam puramente contemplando o espetáculo das ondas que se dobravam e desdobravam — ou, como diria o major Caldas — as convulsões de Anfitrite.

O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos; tinha já luz bastante para ler as notícias; mas não o fazia nunca antes de voltar a filha do banho. Isto por duas razões. Era a primeira a própria afeição de pai; apesar da confiança na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou simplesmente boiava "como uma náiade", acrescentava ele se falava disso a algum amigo.

Acresce que o mar naquela manhã estava muito mais bravio que de costume; a ressaca era forte; os buracos da praia mais fundos; o medo afastava vários banhistas habituais.

— Não te demores muito, disse o major, quando a filha entrou; toma cuidado.

Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surgiu fora muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça.

— Hoje o bicho não está bom, ponderou um banhista ao lado de Marcelina, um homem maduro, de suíças, ar aposentado.

— Parece que não, disse a moça; mas para mim é o mesmo.

— O major continua a não gostar d’água salgada? perguntou uma senhora.

— Diz que é militar de terra e não do mar, replicou Marcelina, mas eucreio que papai o que quer é ler o Jornal à vontade.

— Podia vir lê-lo aqui, insinuou um rapaz de bigodes, dando uma grande risada de aplauso a si mesmo.

Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surgiu fora, com as mãos sacudiu os cabelos. O sol, que já então aparecera, alumiava-a nessa ocasião, ao passo que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de água. Foi assim que a viu, pela primeira vez, com os cabelos úmidos, e a flanela grudada ao busto — ao mais correto e virginal busto daquelas praias —, foi assim que pela primeira vez a viu o Bastinhos — o Luís Bastinhos —, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro banho no Flamengo.
 
CAPÍTULO II

A ocasião é a menos própria para apresentar-lhes o sr. Luís Bastinhos; a ocasião e o lugar. O vestuário então é impropriíssimo. Ao vê-lo agora, a meio-busto, nem se pode dizer que tenha vestuário de nenhuma espécie. Emerge-lhe a parte superior do corpo, boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça é que não precisa dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. Não há cabeleireiro, nem óleo, nem pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrário, a pressão fisionômica de Luís Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marítimo. Talvez perca, quando se pentear. Quanto ao bigode, fino e curto, os pingos d’água que ora lhe escorrem não chegam a diminuí-lo; não chegam sequer a ver-se. O bigode persiste como dantes.

Não o viu Marcelina, ou não reparou nele. O Luís Bastinhos é que a viu, e mal pôde disfarçar a admiração. O major Caldas, se os observasse, era capaz de casá-los, só para ter o gosto de dizer que unia uma náiade a um tritão. Nesse momento a náiade repara que o tritão tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e bóia.

Mas o tritão é teimoso, e não lhe tira os olhos de cima.

"Que importuno!" diz ela consigo.

— Olhem uma onda grande, brada um dos conhecidos de Marcelina.

Todos se puseram em guarda, a onda enrolou alguns, mas passou sem maior dano.

Outra veio e foi recebida com um alarido alegre; enfim veio uma mais forte, e assustou algumas senhoras. Marcelina riu-se delas.

— Nada, dizia uma; salvemos o pêlo; o mar está ficando zangado.

— Medrosa! acudiu Marcelina.

— Pois sim...

— Querem ver? continuou a filha do major. Vou mandar embora o moleque.

— Não faça isso, D. Marcelina, acudiu o banhista de ar aposentado.

— Não faço outra cousa. José, vai-te embora.

— Mas, nhanhã...

— Vai-te embora! O José ainda esteve alguns segundos, sem saber o que fizesse; mas, parece que entre desagradar ao pai ou à filha, achou mais arriscado desagradar à filha, e caminhou para terra. Os outros banhistas tentaram persuadir à moça que devia vir também, mas era tempo baldado. Marcelina tinha a obstinação de um enfant gâté. Lembraram alguns que ela nadava como um peixe, e resistira muita vez ao mar.

— Mas o mar do Flamengo é o diabo, ponderou uma senhora. Os banhistas pouco a pouco foram deixando o mar. Do lado de terra, o major Caldas, de pé, ouvia impaciente a explicação do moleque, sem saber se o devolveria à água ou se cumpriria a vontade da filha; limitou-se a soltar palavras de enfado.

— Santa Maria! exclamou de repente o José.

— Que foi? disse o major.

O José não lhe respondeu; atirou-se à água. O major olhou e não viu a filha.

Efetivamente, a moça, vendo que no mar só ficava o desconhecido, nadou para terra, mas as ondas tinham-se sucedido com freqüência e impetuosidade. No lugar da arrebentação foi envolvida por uma; nesse momento é que o moleque a viu.

— Minha filha! bradou o major.

E corria desatinado pela areia, enquanto o moleque conscienciosamente buscava penetrar no mar. Mas era já empresa escabrosa; as ondas estavam altas, fortes e a arrebentação terrível. Outros banhistas acudiram também a salvar a filha do major; mas a dificuldade era só uma para todos. Caldas, ora implorava, ora ordenava ao moleque que lhe restituísse a filha. Enfim, José conseguiu entrar no mar. Mas já então lutava ali, junto ao funesto lugar, o desconhecido banhista que tanto aborrecera a filha do major. Este estremeceu de alegria, de esperança, quando viu que alguém forcejava por arrancar a moça da morte. Na verdade, o vulto de Marcelina apareceu nos braços do Luís Bastinhos; mas uma onda veio e os enrolou a ambos. Nova luta, novo esforço e desta vez definitivo triunfo. Luís Bastinhos chegou à praia arrastando consigo a moça.

— Morta! exclamou o pai correndo a vê-la.

Examinaram-na.

— Não, desmaiada, apenas.

Com efeito, Marcelina perdera os sentidos, mas não morrera. Deram-lhe os socorros médicos; ela voltou a si. O pai, singelamente alegre, apertou Luís Bastinhos ao coração.

— Devo-lhe tudo! disse ele.

— A sua felicidade me paga de sobra, tornou o moço.

O major fitou-o alguns instantes; impressionara-o a resposta. Depois apertou-lhe a mão e ofereceu-lhe a casa. Luís Bastinhos retirou-se antes que Marcelina pudesse vê-lo.
 
CAPÍTULO III

Na verdade, se a leitora gosta de lances romanescos, aí fica um, com todo o valor das antigas novelas, e pode ser também que dos dramalhões antigos. Nada falta: o mar, o perigo, uma dama que se afoga, um desconhecido que a salva, um pai que passa da extrema aflição ao mais doce prazer da vida; eis aí com que marchar cerradamente a cinco atos maçudos e sangrentos, rematando tudo com a morte ou a loucura da heroína.

Não temos cá nem uma cousa nem outra. A nossa Marcelina não morreu nem morre; douda pode ser que já fosse, mas de uma doidice branda, a doidice das moças em flor.

Ao menos pareceu que tinha alguma cousa disso, quando naquele mesmo dia soube que fora salva pelo desconhecido.

— Impossível! exclamou.

— Por quê? — Foi ele deveras? — Pois então! Salvou-te com perigo da vida própria; houve um momento, em que eu cuidei que ambos vocês morriam enrolados na onda.

— É a cousa mais natural do mundo, interveio a mãe; e não sei de que te espantas...

Marcelina não podia, na verdade, explicar a causa do espanto; ela mesma não a sabia.

Custava-lhe a crer que Luís Bastinhos a tivesse salvo, e isso só porque "embirrara com ele". Ao mesmo tempo, pesava-lhe o obséquio. Não quisera ter morrido; mas era melhor que outro a houvesse arrancado ao mar, não aquele homem, que afinal era um grande metediço. Marcelina esteve inclinada a crer que Luís Bastinhos encomendara o desastre para ter ocasião de a servir.

Dous dias depois, Marcelina voltou ao mar, já pacificado dos seus furores de encomenda.

Ao olhar para ele, teve uns ímpetos de Xerxes; fá-lo-ia castigar, se dispusesse de um bom e grande vergalho. Não tendo o vergalho, preferiu flagelá-lo com os seus próprios braços, e nadou nesse dia mais tempo e mais fora do que era costume, não obstante as recomendações do major. Levava naquilo um pouco, ou antes, muito amor-próprio: o desastre envergonhara-a.

O Luís Bastinhos, que já lá estava no mar, travou conversação com a filha do major. Era a segunda vez que se viam, e a primeira que se falavam.

— Soube que foi o senhor quem me ajudou... a levantar anteontem, disse Marcelina.

O Luís Bastinhos sorriu mentalmente; e ia responder por uma simples afirmativa, quando Marcelina continuou: — Ajudou, não sei; eu creio que cheguei a perder os sentidos, e o senhor... sim... o senhor foi quem me salvou. Permite-me que lhe agradeça? concluiu ela, estendendo a mão.

Luís Bastinhos estendeu a sua; e ali, entre duas ondas, tocaram-se os dedos do tritão e da náiade.

— Hoje o mar está mais manso, disse ele.

— Está.

— A senhora nada bem.

— Parece-lhe? — Perfeitamente.

— Menos mal.

E como para mostrar a sua arte, Marcelina entrou a nadar para fora, deixando Luís Bastinhos. Este, porém, ou por mostrar que também sabia a arte e que era destemido — ou por não privar a moça de pronto socorro, caso houvesse necessidade —, ou enfim (e este motivo pode ter sido o principal, se não único) — para vê-la sempre de mais perto —, lá foi na mesma esteira; dentro de pouco era uma espécie de aposta entre os dous.

— Marcelina, disse-lhe o pai, quando ela voltou a terra, você hoje foi mais longe do que nunca. Não quero isso, ouviu? Marcelina levantou os ombros, mas obedeceu ao pai, cujo tom nessa ocasião era desusadamente ríspido. No dia seguinte, não foi tão longe a nadar; a conversar, porém, foi muito mais longe do que na véspera. Ela confessou ao Luís Bastinhos, ambos com a água até o pescoço, confessou que gostava muito de café com leite, que tinha vinte e um1 anos, que possuía reminiscências do Tamberlick, e que o banho do mar seria excelente, se não a obrigassem a acordar cedo.

— Deita-se tarde, não é? perguntou o Luís Bastinhos.

— Perto de meia-noite.

— Oh! dorme pouco! — Muito pouco.

— De dia dorme? — Às vezes.

Luís Bastinhos confessou, pela sua parte, que se deitava cedo, muito cedo, desde que estava a banhos de mar.

— Mas quando for ao teatro? — Nunca vou ao teatro.

— Pois eu gosto muito.

— Também eu; mas enquanto estiver a banhos...

Foi neste ponto que entraram as reminiscências do Tamberlick, que Marcelina ouviu, quando criança; e daí ao João Caetano, e do João Caetano a não sei que outras reminiscências, que a um e a outro fez esquecer a higiene e a situação.
 
CAPÍTULO IV

Saiamos do mar que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dous heróis nos próprios "paços de Anfitrite", como diria o major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina. Too much of water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou, ao passo que tu sais sã e salva, com a roupa de banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus! e entras na barraca, e se alguma cousa ouves, não são as lágrimas dos teus, são os resmungos do major. Saiamos do mar.

Um mês depois do último banho a que o leitor assistiu, já o Luís Bastinhos freqüentava a casa do major Caldas. O major afeiçoara-se-lhe deveras depois que ele lhe salvara a filha. Indagou quem era; soube que estava empregado numa repartição de Marinha, que seu pai, já agora morto, fora capitão-de-fragata e figurara na guerra contra Rosas. Soube mais que era moço bem reputado e decente. Tudo isto realçou a ação generosa e corajosa de Luís Bastinhos, e a intimidade começou, sem oposição da parte de Marcelina, que antes contribuiu parA chave, com as suas melhores maneiras.

Um mês era de sobra para arraigar no coração de Luís Bastinhos a planta do amor que havia germinado entre duas vagas do Flamengo. A planta cresceu, copou, bracejou ramos a um e outro lado, tomou o coração todo do rapaz, que não se lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça. Era o que ele dizia a um amigo de infância, seu atual confidente.

— E ela? disse-lhe o amigo.

— Ela... não sei.

— Não sabes? — Não; creio que não gosta de mim, isto é, não digo que se aborreça comigo; trata-me muito bem, ri muito, mas não gosta... entendes? — Não te dá corda em suma, concluiu o Pimentel, que assim se chamava o amigo confidente. Já lhe disseste alguma cousa? — Não.

— Por que não lhe falas? — Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico obrigado a não voltar lá ou a freqüentar menos, e isso para mim seria o diabo.

O Pimentel era uma espécie de filósofo prático, incapaz de suspirar dous minutos pela mais bela mulher do mundo, e menos ainda de compreender uma paixão como a do Luís Bastinhos. Sorriu, estendeu-lhe a mão em despedida, mas o Luís Bastinhos não consentiu na separação. Puxou-o, deu-lhe o braço, levou-o a um café.

— Mas que diabo queres tu que te faça? perguntou o Pimentel sentando-se à mesa com ele.

— Que me aconselhes.

— O quê? — Não sei o quê, mas dize-me alguma cousa, replicou o namorado. Talvez convenha falar ao pai; que te parece? — Sem saber se ela gosta de ti? — Na verdade era imprudência, concordou o outro, coçando o queixo com a ponta do dedo índice; mas talvez goste...

— Pois então...

— Porque, eu te digo, ela não me trata mal; ao contrário, às vezes tem uns modos, umas cousas... mas não sei... O major esse gosta de mim.

— Ah! — Gosta.

— Pois aí tens, casa-te com o major.

— Falemos sério.

— Sério? repetiu o Pimentel debruçando-se sobre a mesa e encarando o outro. Aqui vai o mais sério que há no mundo; tu és um... digo? — Dize.

— Tu és um bolas.

Repetiam-se essas cenas regularmente, uma ou duas vezes, por semana. No fim delas o Luís Bastinhos prometia duas cousas a si mesmo: não dizer mais nada ao Pimentel e ir fazer imediatamente a sua confissão a Marcelina; poucos dias depois ia confessar ao Pimentel que ainda não dissera nada a Marcelina. E o Pimentel abanava a cabeça e repetia o estribilho: — Tu és um bolas.
 
CAPÍTULO V

Um dia assentou Luís Bastinhos que era vergonha dilatar por mais tempo a declaração de seus afetos; urgia clarear a situação. Ou era amado ou não; no primeiro caso, o silêncio era tolice; no segundo a tolice era a assiduidade. Tal foi a reflexão do namorado; tal foi a sua resolução.

A ocasião era na verdade propícia. O pai ia passar a noite fora; a moça ficara com uma tia surda e sonolenta. Era o sol de Austerlitz; o nosso Bonaparte preparou a sua melhor tática. A fortuna deu-lhe até um grande auxiliar na própria moça, que estava triste; a tristeza podia dispor o coração a sentimentos benévolos, principalmente quando outro coração lhe dissesse que não duvidava beber na mesma taça da melancolia. Esta foi a primeira reflexão de Luís Bastinhos; a segunda foi diferente.

— Por que estará ela triste? perguntou ele a si mesmo.

E eis o dente do ciúme a trincar-lhe o coração, e o sangue a esfriar-lhe nas veias, e uma nuvem a cobrir-lhe os olhos. Não era para menos o caso. Ninguém adivinharia nessa moça quieta e sombria, sentada a um canto do sofá, a ler as páginas de um romance, ninguém adivinharia nela a borboleta ágil e volúvel de todos os dias. Alguma cousa devia ser; talvez a mordesse algum besouro. E esse besouro não era decerto o Luís Bastinhos; foi o que este pensou e foi o que o entristeceu.

Marcelina ergueu os ombros.

— Alguma cousa que a incomoda, continuou ele.

Um silêncio.

— Não? — Talvez.

— Pois bem, disse Luís Bastinhos com calor e animado por aquela meia confidência; pois bem, diga-me tudo, eu saberei ouvi-la e terei palavras de consolação para as suas dores.

Marcelina olhou um pouco espantada para ele, mas a tristeza dominou outra vez e deixou-se estar calada alguns instantes: finalmente pôs-lhe a mão no braço, e disse que lhe agradecia muito o interesse que mostrava, mas que o motivo de tristeza era-o só para chave e não valia a pena contá-lo. Como Luís Bastinhos teimasse para saber o que era, contou a moça que lhe morrera, nessa manhã, o mico.

Luís Bastinhos respirou à larga. Um mico! um simples mico! Era pueril o objeto, mas para quem o esperava terrível, antes assim. Ele entregou-se depois a toda a sorte de considerações próprias do caso, disse-lhe que não valia o bicho a pureza dos belos olhos da moça; e daí a escorregar uma insinuação de amor era um quase nada. Ia a fazê-lo: chegou o major.

Oito dias depois houve em casa do major um sarau — "uma brincadeira" como disse o próprio major. Luís Bastinhos foi; estava porém arrufado com a moça: deixou-se ficar a um canto; não se falaram durante a noite inteira.

— Marcelina, disse-lhe no dia seguinte o pai; acho que tratas às vezes mal o Bastinhos.

Um homem que te salvou da morte.

— Que morte? — Da morte na Praia do Flamengo.

— Mas, papai, se a gente fosse a morrer de amores por todas as pessoas que nos salvam da morte...

— Mas quem te fala nisso? digo que o tratas mal às vezes...

— Às vezes, é possível.

— Mas por quê? ele parece-me um bom rapaz.

Nada mais lhe respondendo a filha, entrou o major a bater com a ponta do pé no chão, um pouco enfadado. Um pouco? talvez muito. Marcelina destruía-lhe as esperanças, reduzia-lhe a nada o projeto que ele acalentava desde algum tempo, — que era casar os dous; — casá-los ou uni-los pelos "doces laços do himeneu", que todas foram as suas próprias expressões mentais. E vai a moça e destrói-lho. O major sentia-se velho, podia morrer, e quisera deixar a filha casada e bem casada. Onde achar melhor marido que o Luís Bastinhos? — Uma pérola, dizia ele a si mesmo.

E enquanto ele ia forjando e desforjando esses projetos, Marcelina suspirava consigo mesma, e sem saber por que; mas suspirava. Também esta pensava na conveniência de casar e casar bem; mas nenhum homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura não servia a nenhumA chave? Quem teria a verdadeirA chave do coração de Marcelina? Ela chegou a supor que fosse um bacharel da vizinhança, mas esse casou dentro de algum tempo; depois desconfiara que A chave estivesse em poder de um oficial de Marinha. Erro: o oficial não traziA chave consigo. Assim andou de ilusão em ilusão, e chegou à mesma tristeza do pai. Era fácil acabar com ela: era casar com o Bastinhos.

Mas se o Bastinhos, o circunspecto, o melancólico, o taciturno Bastinhos não tinha A chave! Equivalia a recebê-lo à porta sem lhe dar entrada no coração.
 
CAPÍTULO VI

Cerca de mês e meio depois fazia anos o major, que, animado pelo sarau precedente, quis comemorar com outro aquele dia. "Outra brincadeira, mas desta vez rija", foram os próprios termos em que ele anunciou o caso ao Luís Bastinhos, alguns dias antes.

Pode-se dizer e acreditar que a filha do major não teve outro pensamento desde que o pai lho comunicou também. Começou por encomendar um rico vestido, elegeu costureira, adotou corte, coligiu adornos, presidiu a toda essa grande obra doméstica. Jóias, flores, fitas, leques, rendas, tudo lhe passou pelas mãos, e pela memória e pelos sonhos. Sim, a primeira quadrilha foi dançada em sonhos, com um belo cavalheiro húngaro, vestido à moda nacional, cópia de uma gravura da Ilustração Francesa, que ela vira de manhã.

Acordada, lastimou sinceramente que não fosse possível ao pai encomendar, de envolta com os perus da ceia, um ou dous cavalheiros húngaros — entre outros motivos porque eram valsadores intermináveis. E depois tão bonitos! — Sabem que eu pretendo dançar no dia 20? disse o major uma noite, em casa.

— Você? retorquiu-lhe um amigo velho.

— Eu.

— Por que não? assentiu timidamente o Luís Bastinhos.

— Justamente, continuou o major voltando-se para o salvador da filha. E o senhor há de ser o meu vis-à-vis...

— Eu? — Não dança? — Um pouco, retorquiu modestamente o moço.

— Pois há de ser o meu vis-à-vis.

Luís Bastinhos curvou-se como quem obedece a uma opressão; com a flexibilidade passiva do fatalismo. Se era necessário dançar, ele o faria, porque dançava como poucos, e obedecer ao velho era uma maneira de amar a moça. Ai dele! Marcelina olhouo com tamanho desprezo, que se ele lhe apanha o olhar, não é impossível que de uma vez para sempre ali deixasse de pôr os pés. Mas não o viu; continuou a arredá-los dali bem poucas vezes.

Os convites foram profusamente espalhados. O major Caldas fez o inventário de todas as suas relações, antigas e modernas, e não quis que nenhum camarão lhe escapasse pelas malhas: lançou uma rede fina e instante. Se ele não pensava em outra cousa o velho major! Era feliz; sentia-se poupado da adversidade, quando muitos outros companheiros vira cair, uns mortos, outros extenuados somente. A comemoração de seu aniversário tinha, portanto, uma significação mui alta e especial; e foi isso mesmo o que ele disse à filha e aos demais parentes.

O Pimentel, que também fora convidado, sugeriu a Luís Bastinhos a idéia de dar um presente de anos ao major.

— Já pensei nisso, retorquiu o amigo; mas não sei o que lhe dê.

— Eu te digo.

— Dize.

— Dá-lhe um genro.

— Um genro? — Sim, um noivo à filha; declara o teu amor e pede-a. Verás que, de todas as dádivas desse dia, essa será a melhor.

Luís Bastinhos bateu palmas ao conselho do Pimentel.

— É isso mesmo, disse ele; eu andava com a idéia em alguma jóia, mas...

— Mas a melhor jóia és tu mesmo, concluiu o Pimentel.

— Não digo tanto.

— Mas pensas.

— Pimentel! — E eu não penso outra cousa. Olha, se eu tivesse intimidade na casa, há muito tempo que estarias amarrado à pequena. Pode ser que ela não goste de ti; mas também é difícil a uma moça alegre e travessa gostar de um casmurro, como tu — que te sentas, defronte dela, com um ar solene e dramático, a dizer em todos os teus gestos: minha senhora, fui eu que a salvei da morte; deve rigorosamente entregar-me a sua vida... Ela pensa decerto que estás fazendo um calembour de mau gosto e fecha-te a porta...

Luís Bastinhos esteve calado alguns instantes.

— Perdôo-te tudo, a troco do conselho que me deste; vou oferecer um genro ao major.

Dessa vez, como de todas as outras, a promessa era maior do que a realidade; ele lá foi, lá tornou, nada fez. Iniciou duas ou três vezes uma declaração; chegou a entornar um ou dous olhares de amor, que não pareceram de todo feios à pequena; e, porque ela sorriu, ele desconfiou e desesperou. Qual! pensava consigo o rapaz; ela ama a outro com certeza.

Veio enfim o dia, o grande dia. O major deu um pequeno jantar, em que figurou Luís Bastinhos; de noite reuniu uma parte dos convidados, porque nem todos lá puderam ir, e fizeram bem; a casa não dava para tanto. Ainda assim era muita gente reunida, muita e brilhante, e alegre, como alegre parecia e deveras estava o major. Não se disse nem se dirá dos brindes do major, à mesa do jantar; não podem inserir-se aqui todas as recordações clássicas do velho poeta de outros anos; seria não acabar mais. A única cousa que verdadeiramente se pode dizer é que o major declarou, à sobremesa, ser esse o dia mais venturoso de todos os seus longos anos, entre outros motivos, porque tinha gosto de ver ao pé de si o jovem salvador da filha.

— Que idéia! murmurou a filha; e deu um imperceptível muxoxo. Luís Bastinhos aproveitou o ensejo. "Magnífico, disse ele consigo; depois do café, peço-lhe duas palavras em particular, e logo depois a filha." Assim fez; tomado o café, pediu ao major uns cinco minutos de atenção. Caldas, um pouco vermelho de comoção e de champagne, declarou-lhe que até lhe daria cinco mil minutos, se tantos fossem precisos.

Luís Bastinhos sorriu lisonjeado a essa deslocada insinuação; e, entrando no gabinete particular do major, foi sem mais preâmbulo ao fim da entrevista; pediu-lhe a filha em casamento. O major quis resguardar um pouco a dignidade paterna; mas era impossível.

Sua alegria foi uma explosão.

— Minha filha! bradou ele; mas... minha filha... ora essa... pois não!... Minha filha! E abria os braços e apertava com eles o jovem candidato, que, um pouco admirado do próprio atrevimento, chegou a perder o uso da voz. Mas a voz era, aliás, inútil, ao menos durante o primeiro quarto de hora, em que só falou o ambiciado sogro, com uma volubilidade sem limites. Cansou enfim, mas de um modo cruel.

— Velhacos! disse ele; com que então... amam-se às escondidas...

— Eu? — Pois quem? — Peço-lhe perdão, disse Luís Bastinhos; mas não sei... não tenho certeza...

— Quê! não se correspondem?...

— Não me tenho atrevido...

O major abanou a cabeça com certo ar de irritação e lástima; pegou-lhe das mãos e fitouo durante alguns segundos.

— Tu és afinal de contas um pandorga, sim, um pandorga — disse ele, largando-lhe as mãos.

Mas o gosto de os ver casados era tal, e tal a alegria daquele dia de anos, que o major sentiu a lástima converter-se em entusiasmo, a irritação em gosto, e tudo acabou em boas promessas.

— Pois digo-te, que te hás de casar, concluiu ele; Marcelina é um anjo, tu outro, eu outro; tudo indica que nos devemos ligar por laços mais doces do que as simples relações da vida. Juro-te que serás o pai de meus netos...

Jurava mal o major, porque daí a meia hora, quando ele chamou a filha ao gabinete, e lhe comunicou o pedido, recebeu desta a mais formal recusa; e por que insistisse em querer concedê-la ao rapaz, disse-lhe a moça que despediria o pretendente em plena sala, se lhe falassem mais em semelhante absurdo. Caldas que conhecia a filha não disse mais nada. Quando o pretendente lhe perguntou, daí a pouco, se devia considerar-se feliz, ele usou um expediente assaz enigmático: piscou-lhe o olho. Luís Bastinhos ficou radiante; ergueu-se às nuvens nas asas da felicidade.

Durou pouco a felicidade; Marcelina não correspondia às promessas do major. Três ou quatro vezes chegara-se A chave Luís Bastinhos, com uma frase piegas na ponta da língua, e vira-se obrigado a engoli-la outra vez, porque a recepção de Marcelina não animava mais. Irritado, foi sentar-se ao canto de uma janela, com os olhos na lua, que estava esplêndida — uma verdadeira nesga de romantismo. Ali fez mil projetos trágicos, o suicídio, o assassinato, o incêndio, a revolução, a conflagração dos elementos; ali jurou que se vingaria de um modo exemplar. Como então soprasse uma brisa fresca, e ele a recebesse em primeira mão, à janela, acalmaram-se-lhe as idéias fúnebres e sangüíneas, e apenas lhe ficou um desejo de vingança de sala. Qual? Não sabia qual fosse; mas trouxe-lha enfim uma sobrinha do major.

— Não dança? perguntou ela a Luís Bastinhos.

— Eu? — O senhor.

— Pois não, minha senhora.

Levantou-se e deu-lhe o braço.

— De maneira que, disse ela, já agora são as moças que tiram os homens para dançar? — Oh! não! protestou ele. As moças apenas ordenam aos homens o que devem fazer; e o homem que está no seu papel obedece sem discrepar.

— Mesmo sem vontade? perguntou a prima de Marcelina.

— Quem é que neste mundo pode não ter vontade de obedecer a uma dama? disse Luís Bastinhos com o seu ar mais piegas.

Estava em pleno madrigal; iriam longe, porque a moça era das que saboreiam esse gênero de palestra. Entretanto, tinham dado o braço, e passeavam ao longo da sala, à espera da valsa, que se ia tocar. Deu sinal a valsa, os pares saíram, e começou o turbilhão.

Não tardou muito que a sobrinha do major compreendesse que estava abraçada a um valsista emérito, a um verdadeiro modelo de valsistas. Que delicadeza! que segurança! que acerto de passos! Ela, que também valsava com muita regularidade e graça, entregou-se toda ao parceiro. E ei-los unidos, a voltearem rapidamente, leves como duas plumas, sem perder um compasso, sem discrepar uma linha. Pouco a pouco, esvaziandose a arena, iam sendo os dous objeto exclusivo da atenção de todos. Não tardou que ficassem sós; e foi então que o sucesso se formou decisivo e lisonjeiro. Eles giravam e sentiam que eram o alvo da admiração geral; e ao senti-lo, criavam forças novas, e não cediam o campo a nenhum outro. Pararam com a música — Quer tomar alguma cousa? perguntou Luís Bastinhos com a mais adocicada de suas entonações.

A moça aceitou um pouco de água; e enquanto andavam elogiavam um ao outro, com o maior calor do mundo. Nenhum desses elogios, porém, chegou ao do major, quando daí a pouco encontrou Luís Bastinhos.

— Pois você estava com isso guardado! disse ele.

— Isso quê? — Isso... esse talento que Deus concedeu a poucos... a bem raros. Sim, senhor; pode crer que é o rei da minha festa.

E apertou-lhe muito as mãos, piscando o olho. Luís Bastinhos tinha já perdido toda a fé naquele jeito peculiar do major; recebeu-o com frieza. O sucesso entretanto fora grande; ele o sentiu nos olhares sorrateiros dos outros rapazes, nos gestos de desdém que eles faziam; foi a consagração última.

— Com que então, só minha prima é que mereceu uma valsa! Luís Bastinhos estremeceu, ao ouvir esta palavra; voltou-se; deu com os olhos em Marcelina. A moça repetiu o dito, batendo-lhe com o leque no braço. Ele murmurou algumas palavras, que a história não conservou, aliás deviam ser notáveis, porque ele ficou vermelho como uma pitanga. Essa cor ainda se tornou mais viva, quando a moça, enfiando-lhe o braço, disse resolutamente: — Vamos a esta valsa...

Tremia o rapaz de comoção; pareceu-lhe ver nos olhos da moça todas as promessas da bem-aventurança; entrou a compreender os piscados do major.

— Então? disse Marcelina.

— Vamos.

— Ou está cansado? — Eu? que idéia. Não, não, não estou cansado.

A outra valsa fora um primor; esta foi classificada entre os milagres. Os amadores confessaram francamente que nunca tinham visto um valsador como Luís Bastinhos. Era o impossível realizado; seria a pura arte dos arcanjos, se os arcanjos valsassem. Os mais invejosos tiveram de ceder alguma cousa à opinião da sala. O major chegou às raias do delírio.

— Que me dizem a este rapaz? bradou ele a uma roda de senhoras. Ele faz tudo: nada como um peixe e valsa como um pião. Salvou-me a filha para valsar com ela.

Marcelina não ouviu estas palavras do pai, ou perdoou-lhas. Estava toda entregue à admiração. Luís Bastinhos era até ali o melhor valsista que encontrara. Ela tinha vaidade e reputação de valsar bem; e achar um parceiro de tal força era a maior fortuna que podia acontecer a uma valsista. Disse-lho ela mesma, não sei se com a boca, se com os olhos, e ele epetiu-lhe a mesma idéia, e foram ratificar daí a pouco as suas impressões numa segunda valsa. Foi outro e maior sucesso.

Parece que Marcelina valsou ainda uma vez com Luís Bastinhos, mas em sonhos, uma valsa interminável, numa planície, ao som de uma orquestra de diabos azuis e invisíveis.

Foi assim que ela referiu o sonho, no dia seguinte, ao pai.

— Já sei, disse este; esses diabos azuis e invisíveis deviam ser dous.

— Dous? — Um padre e um sacristão...

— Ora, papai! E foi um protesto tão gracioso, que o Luís Bastinhos, se o ouvisse e visse, mui provavelmente pediria repetição. Mas nem viu nem soube dele. De noite, indo lá, recebeu novos louvores, falaram do baile da véspera. O major confessou que era o melhor baile do ano; e dizendo-lhe a mesma cousa o Luís Bastinhos, declarou o major que o salvador da filha reunia o bom gosto ao talento coreográfico.

— Mas por que não dá outra brincadeira, um pouco mais familiar? disse o Luís Bastinhos.

O major piscou o olho e adotou a idéia. Marcelina exigiu de Luís Bastinhos que dançasse com ela a primeira valsa.

— Todas, disse ele.

— Todas? — Juro-lhe que todas.

Marcelina abaixou os olhos e lembrou-se dos diabos azuis e invisíveis. eio a noite da "brincadeira", e Luís Bastinhos cumpriu a promessa; valsaram ambos todas as valsas. Era quase um escândalo. A convicção geral é que o casamento estava próximo.

Alguns dias depois, o major deu com os dous numa sala, ao pé de uma mesa, a folhearem um livro — um livro ou as mãos, porque as mãos de um e de outro estavam sobre o livro, juntas, e apertadas. Parece que também folheavam os olhos, com tanta atenção que não viram o major. O major quis sair, mas preferiu precipitar a situação.

— Então que é isso? Estão valsando sem música? Estremeceram os dous e coraram muito, mas o major piscou o olho, e saiu. Luís Bastinhos aproveitou a circunstância para dizer à moça que o casamento era a verdadeira valsa social; idéia que ela aprovou e comunicou ao pai.

— Sim, disse este, a melhor Terpsícore é Himeneu.

Celebrou-se o casamento daí a dous meses. O Pimentel, que serviu de padrinho ao noivo, disse-lhe na igreja, que em certos casos era melhor valsar que nadar, e que a verdadeirA chave do coração de Marcelina não era a gratidão mas a coreografia. Luís Bastinhos abanou a cabeça sorrindo; o major, supondo que eles o elogiavam em voz baixa, piscou o olho.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

quarta-feira, 19 de março de 2014

José Feldman (Para Mim é...) 1

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Vicência Jaguaribe (Serenata de Passarinho)

Sibite
Era uma casa de meia-água a que comprei, com um casal amigo, na praia do Morro Branco. No meu quarto, entre uma das linhas e a parede, havia uma abertura que marcava bem uma das quinas. Abertura decorrente do serviço mal feito do construtor daquelas casinhas que formavam os primeiros conjuntos da Tabuba do Morro Branco. Pois por essa abertura entrava, todo dia, cedinho, um passarinho.

            Eu entregara-me ao sono tranquilamente, tirando desforra das noites mal dormidas durante a semana e tentando diminuir o estresse de cinco dias de sala de aula, de engarrafamentos e preocupações, quando era despertada pelo canto ou pelo voo rasante do pequeno pássaro – que ainda hoje não sei de qual espécie era. Talvez um sibite. Mas não posso afirmar. Minha primeira reação era de raiva, afinal de contas, eu estava no melhor do sono e vinha aquele desocupado acordar-me. Ele dava umas três voltas pelo quarto e saía. Eu, às vezes, com raiva por haver acordado, levantava-me e começava o dia mais cedo. Outras vezes, conseguia adormecer de novo. Tanto reclamei dessas visitas madrugadeiras, que acabaram por mandar fechar a abertura. E o passarinho ficou sem a passagem através da qual me dava bom dia, e eu pude dormir sossegada e acordar na hora em que bem quisesse. Se bem que nunca fui de dormir demais. Amigos que tinham conhecimento dessas visitas passarinhescas diziam, para me amolar, que era um privilégio acordar com a serenata de um passarinho dentro do quarto. Eu sempre retrucava: Dispenso esse privilégio.

            Mas a vida dá o troco. Depois que vendemos a casa do Morro Branco, inventei de cultivar plantas em minha minúscula sacada. Pendurei entre as plantas um bebedouro para atrair passarinho com uma boa garapa de açúcar. E vêm sibites e beija-flores. Pois não é que, de vez em quando, os pequenos sibites entram no apartamento e ficam passeando pelos aposentos?! Já morreu mais de um nessas aventuras – eles entram e ficam debatendo-se, em busca da saída. E não adianta abrir portas e janelas e tentar encaminhá-los para o espaço livre. Eles mesmos é que devem encontrar o caminho. Mas o certo é que quase todo dia acordo aos acordes das serenatas dos sibites?! E não me aborreço mais. Até que gosto. Quando alguém reclama do barulho que eles fazem, com um sorriso de ironia (ironizo a mim mesma) repito o que me diziam nos tempos do Morro Branco: É um privilégio acordar com o canto dos passarinhos.

            O ser humano não tem jeito mesmo. Só gosta do que é difícil, só dá valor ao que lhe custa algum dinheiro, algum trabalho, algum sacrifício. Na casa da praia, os passarinhos visitavam-me sem ser convidados, e eu não despendia nenhum esforço, nenhum dinheiro para tê-los em meu quarto e ouvir seu canto toda manhã. E não lhes dava valor, até enxotava-os. Hoje, quando preciso atraí-los com uma beberagem, quando tenho de gastar dinheiro para comprar o bebedouro, sou uma anfitriã gentil e feliz.

            Às vezes, passo horas na janela do meu quarto esperando a visita de um deles – principalmente dos beijas – para apreciar seu voo ou fotografá-los. E eles não estão nem aí. Descobri que também para ir à minha sacada eles escolhem a época, principalmente os beija-flores. É nos tempos chuvosos que eles se fazem mais presentes. Por quê? Para ser franca, não sei. O que sei é que, quando o sol se esconde, quando fica um pouco nublado, eles começam a aparecer. E, na temporada de chuva, nem se fala. Dão até prejuízo, já que tenho de abastecer o pequeno bebedouro até três vezes ao dia.

            O que sei é que fotografar passarinho virou uma mania – tenho belas fotos de sibites e de beija-flores, que sempre tiro por trás do vidro da janela de meu quarto. Estamos em dezembro, época em que parece até que eles se esqueceram de mim e de minha sacada. Mas agora, enquanto escrevo esta crônica, ouço o canto de um sibite. Para melhor apreciá-lo, vou fechando este texto com chave de... palavras mesmo. Acho que, se os passarinhos do Morro Branco tomassem conhecimento desses fatos, iriam morrer de rir... opa! Já disse um estudioso que rir e chorar são prerrogativas humanas. Serão?

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Pedro Du Bois (Ondas de Poemas) II

CONTATO

antenas
      ouvidos atentos rastreiam
      universos no conhecido
      espaço de quase nada

procuram seres
               que se comuniquem
                                  conosco

estamos aqui
e queremos entender vocês

não há resposta
           além das ondas
           regulares de rádio

estática
na pulsação das estrelas
e nas estradas estelares

a preocupação do humano egoísmo
preso em considerações terrenas
no esquecer o principal: sermos
merecedores da resposta
                e do contato

FERRO
 

no trabalho os homens
       usam suas forças
                        habilidades
malham o ferro
cortam o ferro
fazem com o ferro armações
do esqueleto posto em pé
entre tábuas e pregos

concretada sustentação

                      o prédio
                   o vento e a luz
                o sombreamento

o ferro estaqueado pelo homem
introduz futuras paisagens
fosse nova a área oferecida
pela tragédia descortinada

vista e cansaço na prisão
                        reconfortante dos anos

homens trabalham rápidos
com suas máquinas de cortar o ferro
                                   entortar o ferro
                                   dar forma à disforme
            montanha de onde o ferro é retirado.

CAPAZ

Capaz de irradiar
o fato no sacrilégio
do acontecimento em lance
rápido de ataque. A sistematização
da defesa no entorno da praça. O contorno
do pássaro em ares enjaulado. Imprimir
no verso o movimento lento das parábolas.
Imprimir no selo a marca da passagem.

Ter na capacidade adjetivada
do referendo o dogma não acontecido.

ANO NOVO
 

Fosse o bem-vindo ano da fartura
dos deuses acomodados em abóbadas
silenciosas e calmas. Tempos de calmaria
e sossego sem doenças e telúricos cantos
dos que sofrem os momentos

o vento forçando a janela
a vidraça impedindo a vista: olhos
descansados do trabalho. O início
no recomeço da solidez repetida
dos sapatos sobre o piso. O ano
esperado nas bodas entre o bem
e o sacrifício exigido na ressurreição
das ideias atordoadas em estrondos

fosse chegado o tempo do reencontro
na descontinuada forma de não irmos
                                               embora.

TRADUZIR-ME

a tradução no ouvido atento
dos gestos e das falas
                      cala a palavra
mal dita
       - seja a minha -

outra a sequência
em que as mãos revelam a tese
da solidão sofrida

     não esqueço a leitura
                           amena
das flores em açucenas
          o olhar moreno dos fogos
e das pedras o estilhaço
sobre a vidraça

          repito a noite
de prazeres na linguagem
que acalma o palavrão nas lutas
em dias de raivas
              e amores

traduzido no espírito de conta-gotas
nas frias manhãs de calendários
incompreendidos - sem o tempo
                                    permaneço
na plenitude da palavra significante
das horas cheias em que alego
a confidência e me sufoco.

NASCER

Conhece do mar a correnteza
a força a cor e as ondas
restabelece com o ar relação de força
ao planar o objeto e contar o espaço
em velocidade no desfazer a terra
em pedaços loteados nos alicerces
das casas altas: reanima o corpo
sob o estupor da música
e se deixa ficar: a vida é a mesma
                    desde quando gerado.

ETERNO
 

O corpo desaparece
na imaterialidade
que conhecemos
como o todo

tolo espírito
não freado
na saudade
do diariamente
consumido

sem o corpo
          - posto abaixo -
na lembrança e impossibilidade
do futuro: não há futuro
                na eternidade.

VIDAS

Descendente da geração
perdida em experimentos
de foscas luzes
                prisões primeiras
em esgarçados tecidos libertários
de ouvidos atentos aos chamados
na concretização dos gritos
de descoberta: a igualdade
se faz ao largo
e águas cobrem a face
no naufrágio provocado
em defesa. O rito permanece
no toque sutil do locutor
esportivo: jogo apresentado
ao transeunte distraído
em regras que resgatam o barco
na liberdade tardia e inconsequente
do preço cobrado na passagem.

IMENSIDÃO

as dúvidas dos antepassados
complexas em desdobramentos
e no aprofundamento da ignorância
com que nos deparamos pelo tempo

ao longe a vista alcança calores
em que a imagem é traduzida
e se faz bela e conhecida
com a imaginamos

não é a resposta e a aposta
continua aberta ao desígnio
da imaginação abstrata
retratada em idiossincrasias

a vontade retorna ao tema
e o teorema se faz na imensidão
espacial que nos seduz

Fonte:
O Autor

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) V, final

Fazia escuro lá dentro. Rikki não sabia se o buraco se alargava adiante, de modo a permitir que Nagaína pudesse voltar-se e desferir novo bote. Não se preocupou com isso. Manteve-se firme na mordida, com as pernas afastadas para melhor frear-se naquele declive escuro e úmido. Quando lá do seu galho Darzee viu que os capins a boca da toca haviam cessado de agitar-se, murmurou:

- Foi-se Rikki-tikki! Temos que lhe cantar um canto fúnebre... A valente mangustinha morreu!... Nagaína já a matou, lá no fundo da terra.

E pôs-se a cantar a mais triste das canções, improvisada com as notas mais sentidas da sua comoção. Súbito, quando estava justamente no trecho mais tocante, os capins estremeceram de novo e Rikk-tikki foi reaparecendo suja de terra, primeiro a cauda, depois uma perna e outra, finalmente o corpo inteiro. Parou e lambeu os bigodes. Darzee deu um pio de surpresa, enquanto Rikki-tikki sacudia-se e espirrava.

- Está tudo acabado, disse a mangusta. A viúva não nos incomodará mais.

As formigas ruivas que moram nos caules das plantinhas ouviram essas palavras e trataram de descer em longas filas para verificar se era certo.

Rikki-tikki encolheu-se sobre a relva onde se achava e dormiu - dormiu até bem tarde, porque se sentia cansadinha do duro trabalho realizado.

- Agora, murmurou ela ao despertar, vou para casa. Darzee, conte o caso ao Caldeireiro, que ele espalhará por todo o jardim a notícia da morte de Nagaína.

O Caldeireiro é um pássaro que dá gritinhos absolutamente semelhantes a pancada do martelo numa vasilha de cobre; e faz isso porque é o arauto dos jardins indianos e o espalhador oficial de notícias.

Quando Rikki-tikki ia voltando para casa, ouviu o aviso de "atenção" do Caldeireiro, composto de notas semelhantes a pancadinhas num gongo – "Ding-dong-tock! Nag já não existe! Ding-dong-tock! Nagaína já não existe! Ding-dong-tock!".

A esse sinal todos os pássaros do jardim puseram-se a cantar, e os sapos fizeram coro, porque Nag e Nagaína viviam de comer sapos e passarinhos.

Ao aproximar-se da casa, Rikki-tikki viu saírem ao seu encontro Teddy, a mãe de Teddy (muito pálida ainda, pois havia desmaiado), e logo atrás o pai de Teddy, todos muito comovidos de ternura e gratidão. Choravam. Nessa noite a mangustinha comeu tudo quanto lhe ofereceram, comeu até não poder mais, e foi para a cama sobre o ombro do menino. Quando a mamãe apareceu no quarto para dar ao filho uma última vista d'olhos, viu a mangustinha quietinha, já livre das inquietações da véspera. Dormia.

- Parece incrível, disse a boa senhora ao marido, mas ela nos salvou a vida a todos!...

Rikki despertou de sobressalto, porque as mangustas têm o sono levíssimo.

- Oh, é a mãe de Teddy!  - exclamou reconhecendo-a. Não se inquiete mais, mulher. Todas as cobras foram mortas e, se aparecer mais alguma, aqui estou eu de atalaia.

Rikki-tikki tinha motivos para ficar cheia de si; mas não se encheu de si, não. Limitou-se a guardar o jardim, qual uma verdadeira mangusta – mangusta da ponta do focinho a ponta da cauda - e nunca mais nenhuma cobra ousou enfiar a cabeça para dentro do muro.

Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

Machado de Assis (A Melhor das Noivas)

O sorriso dos velhos é porventura uma das coisas mais adoráveis do mundo. Não o era porém o de João Barbosa no último dia de setembro de 1868, riso alvar e grotesco, riso sem pureza nem dignidade; riso de homem de setenta e três anos que pensa em contrair segundas núpcias. Nisso pensava aquele velho, aliás honesto e bom; disso vivia desde algumas horas antes. Eram oito da noite: ele entrara em casa com o mencionado riso nos lábios.

— Muito alegre vem hoje o senhor! — Sim? — Viu passarinho verde? — Verde não, D. Joana, mas branco, um branco de leite, puro e de encher o olho, como os quitutes que você me manda preparar às vezes.

— Querem ver que é...

— Isso mesmo, D. Joana.

— Isso quê? João Barbosa não respondeu; lambeu os beiços, piscou os olhos, e deixou-se cair no canapé. A luz do candelabro bateu-lhe em cheio no rosto, que parecia uma mistura de Saturno e sátiro. João Barbosa desabotoou a sobrecasaca e deu saída a um suspiro, aparentemente o último que lhe ficara de outros tempos. Era triste vê-lo; era cruel adivinhá-lo. D. Joana não o adivinhou.

Esta D. Joana era uma senhora de quarenta e oito anos, rija e maciça, que durante dez anos dava ao mundo o espetáculo de um grande desprezo da opinião. Contratada para tomar conta da casa de João Barbosa, logo depois de enviuvar, entrou ali em luta com os parentes do velho, que eram dois, os quais fizeram tudo para excluí-la sem conseguirem nada. Os dois parentes, os vizinhos, finalmente os conhecidos criam firmemente que D.

Joana aceitara de João Barbosa uma posição equívoca, embora lucrativa. Era calúnia; D.

Joana sabia o que diziam dela, e não arredava pé. A razão era que, posto não transpusesse uma linha das fronteiras estabelecidas no contrato verbal que precedeu a sua entrada ali, contudo ela esperava ser contemplada nas últimas disposições de João Barbosa; e valia a pena, em seu entender, afrontar os ditos do mundo para receber no fim de alguns anos uma dúzia de apólices ou uma casa ou alguma coisa equivalente.

Verdade é que o legado, se fosse de certa consistência, podia confirmar as suspeitas da sociedade; D. Joana, entretanto, professava a máxima extremamente salutar de que o essencial é andar-se quente, embora os outros se riam.

Riam-se os outros, mas de cólera, e alguns de inveja. João Barbosa, antigo magistrado, herdara de seu pai e de um tio quatro ou cinco fazendas, que transferiu a outros, convertendo seus cabedais em títulos do governo e vários prédios. Fê-lo logo depois de viúvo, e passou a residir na corte definitivamente. Perdendo um filho que tinha, achou-se quase só; quase, porque ainda lhe restavam dois sobrinhos, que o rodeavam de muitas e variadas atenções; João Barbosa suspeitava que os dois sobrinhos estimavam ainda mais as apólices do que a ele e recusou todas as ofertas que lhe faziam para aceitar-lhes casa.

Um dia lembrou-se de inserir nos jornais um anúncio declarando precisar de uma senhora de certa idade, morigerada, que quisesse tomar conta da casa de um homem viúvo. D.

Joana tinha apenas trinta e oito anos; confessou-lhe quarenta e quatro, e tomou posse do cargo. Os sobrinhos, quando souberam disto, apresentaram a João Barbosa toda a sorte de considerações que podem nascer no cérebro de herdeiros em ocasião de perigo. O velho ouviu cerca de oito a dez tomos de tais considerações, mas ateve-se à primeira ideia, e os sobrinhos não tiveram outro remédio mais que aceitar a situação.

D. Joana nunca se atrevera a desejar outra coisa mais que ser contemplada no testamento de João Barbosa; mas isso desejava-o ardentemente. A melhor das mães não tem no coração mais soma de ternura do que ela mostrava ter para servir e cuidar do opulento septuagenário. Ela cuidava do café matinal, escolhia as diversões, lia-lhe os jornais, contava-lhe as anedotas do quarteirão, tomava-lhe ponto às meias, inventava guisados que melhor pudessem ajudá-lo a carregar a cruz da vida. Conscienciosa e leal, não lhe dava alimentação debilitante; pelo contrário punha especial empenho em que lhe não faltasse nunca o filé sanguento e o bom cálice de Porto. Um casal não viveria mais unido.

Quando João Barbosa adoecia, D. Joana era tudo; mãe, esposa, irmã, enfermeira; às vezes era médico. Deus me perdoe! Parece que chegaria a ser padre, se ele viesse repentinamente a carecer do ministério espiritual. O que ela fazia nessas ocasiões pediria um volume, e eu disponho de poucas páginas. Pode-se dizer por honra da humanidade que o benefício não caía em terreno estéril. João Barbosa agradeceu-lhe os cuidados não só com boas palavras, mas também bons vestidos ou boas jóias. D. Joana, quando ele lhe apresentava esses agradecimentos palpáveis, ficava envergonhada e recusava, mas o velho insistia tanto, que era falta de polidez recusar.

Para torná-la mais completa e necessária à casa, D. Joana não adoecia nunca; não padecia de nervos, nem de enxaqueca, nem de coisa nenhuma; era uma mulher de ferro.

Acordava com a aurora e punha logo os escravos a pé; inspecionava tudo, ordenava tudo, dirigia tudo. João Barbosa não tinha outro cuidado mais que viver. Os dois sobrinhos tentaram alguma vez separar da casa uma mulher que eles temiam pela influência que já tinha e pelo desenlace possível de semelhante situação. Iam levar os boatos da rua aos ouvidos do tio.

— Dizem isso? perguntava este.

— Sim, senhor, dizem isso, e não parece bonito, na sua idade, estar exposto a...

— A coisa nenhuma, interrompia.

— Nenhuma! — Ou a pouca coisa. Dizem que eu nutro certa ordem de afetos por aquela santa mulher! Não é verdade, mas não seria impossível, e sobretudo não era feio.

Esta era a resposta de João Barbosa. Um dos sobrinhos, vendo que nada alcançava, resolvera desligar seus interesses dos do outro, e adotou o plano de aprovar o procedimento do velho, louvando-lhe as virtudes de D. Joana e rodeando-a de seu respeito, que a princípio arrastou a própria caseira. O plano teve algum efeito, porque João Barbosa francamente lhe declarou que ele não era tão ingrato como o outro.

— Ingrato, eu? seria um monstro, respondeu o sobrinho José com um gesto de indignação mal contida.

Tal era a situação respectiva entre João Barbosa e D. Joana, quando na referida noite de setembro entrou aquele em casa, com cara de quem tinha visto passarinho verde. D.

Joana tinha dito, por brinco: — Querem ver que é...

Ao que ele respondeu: — Isso mesmo.

— Isso mesmo, quê? repetiu D. Joana daí a alguns minutos.

— Isso que a senhora pensou.

— Mas eu não pensei nada — Pois fez mal, D. Joana.

— Mas então...

— D. Joana, dê suas ordens para o chá D. Joana obedeceu um pouco magoada. Era a primeira vez que João Barbosa lhe negava uma confidência. Ao mesmo tempo que isso a magoava, fazia-a suspeitosa; tratava-se talvez de alguma que viria prejudicá-la.

Servindo o chá, depois que João Barbosa se despira, apressou-se a caseira, na forma de costume, a encher-lhe a xícara, a escolher-lhe as fatias mais tenras, a abrir-lhe o guardanapo, com a mesma solicitude de dez anos. Haveria porém uma sombra de acanhamento entre ambos, e a palestra foi menos seguida e menos alegre que nas outras noites.

Durante os primeiros dias de outubro, João Barbosa trazia o mesmo ar singular, que tanto impressionara a caseira. Ele ria a miúdo, ria para si, ia duas vezes à rua, acordava mais cedo, falava de várias alterações em casa. D. Joana começara a suspeitar a causa verdadeira daquela mudança. Gelou-se-lhe o sangue e o terror se apoderou de seu espírito. Duas vezes procurou encaminhar a conversa ao ponto essencial, mas João Barbosa andava tão fora de si que não ouvia sequer o que ela dizia. Ao cabo de quinze dias, concluído o almoço, João Barbosa disse-lhe que a acompanhasse ao gabinete.

— É agora! pensou ela; vou saber de que se trata.

Passou ao gabinete.

Ali chegando, sentou-se João Barbosa e disse a D. Joana que fizesse o mesmo. Era conveniente; as pernas da boa mulher tremiam como varas.

— Vou dar-lhe a maior prova de estima, disse o septuagenário.

D. Joana curvou-se.

— Está aqui em casa há dez anos...

— Que me parecem dez meses.

— Obrigado, D. Joana! Há dez anos que eu tive a boa ideia de procurar uma pessoa que me tratasse da casa, e a boa fortuna de encontrar na senhora a mais consumada...

— Falemos de outra coisa! — Sou justo; devo ser justo.

— Adiante.

— Louvo-lhe a modéstia; é o belo realce de suas nobres virtudes.

— Vou-me embora.

— Não, não vá; ouça o resto. Está contente comigo? — Se estou contente! Onde poderia achar-me melhor? O senhor tem sido para mim um pai...

— Um pai?... interrompeu João Barbosa fazendo uma careta; falemos de outra coisa.

Saiba D. Joana que não a quero mais deixar.

— Quem pensa nisso? — Ninguém; mas eu devia dizê-lo. Não a quero deixar, estará a senhora disposta a fazer o mesmo? D. Joana teve uma vertigem, um sonho, um relance do Paraíso; ela viu ao longe um padre, um altar, dois noivos, uma escritura, um testamento, uma infinidade de coisas agradáveis e quase sublimes.

— Se estou disposta! exclamou ela. Quem se lembraria de dizer o contrário? Estou disposta a acabar aqui os meus dias; mas devo dizer que a ideia de uma aliança... sim...

este casamento...

— O casamento há de fazer-se! interrompeu João Barbosa batendo uma palmada no joelho. Parece-lhe mau? — Oh! não... mas, seus sobrinhos...

— Meus sobrinhos são dois capadócios, de quem não faço caso.

D. Joana não contestou essa opinião de João Barbosa, e este, serenado o ânimo, readquiriu o sorriso de bem-aventurança que, durante as duas últimas semanas, o distinguia do resto dos mortais. D. Joana não se atrevia a olhar para ele e brincava com as pontas do mantelete que trazia. Correram assim dois ou três minutos.

— Pois é o que lhe digo, continuou João Barbosa, o casamento há de fazer-se. Sou maior, não devo satisfação a ninguém.

— Lá isso é verdade.

— Mas, ainda que as devesse, poderia eu hesitar à vista... oh! à vista da incomparável graça daquela... vá lá.. de D. Lucinda? Se um condor, segurando D. Joana em suas garras possantes, subisse com ela até perto do sol, de lá a despenhasse à terra, menor seria a queda do que a que lhe produziu a última palavra de João Barbosa. A razão da queda não era, na verdade, aceitável, porquanto nem ela até então sonhara para si a honra de desposar o amo, nem este, nas poucas palavras que lhe dissera antes, lhe fizera crer claramente tal coisa. Mas o demônio da cobiça produz maravilhas dessas, e a imaginação da caseira via as coisas mais longe de que elas podiam ir. Creu um instante que o opulento septuagenário a destinava para sua esposa, e forjou logo um mundo de esperanças e realidades que o sopro de uma só palavra dissolveu e dispersou no ar.

— Lucinda! repetiu ela quando pôde haver de novo o uso da voz. Quem é essa D.

Lucinda? — Um dos anjos do céu enviado pelo Senhor, a fim de fazer a minha felicidade na terra.

— Está caçoando! disse D. Joana atando-se a um fragmento de esperança.

— Quem dera que fosse caçoada! replicou João Barbosa. Se tal fosse, continuaria eu a viver tranqüilo, sem conhecer a suprema ventura, é certo, mas também sem padecer abalos de coração...

— Então é certo... — Certíssimo.

D. Joana estava pálida.

João Barbosa continuou: — Não pense que é alguma menina de quinze anos; é uma senhora feita; tem seus trinta e dois feitos; é viúva; boa família...

O panegírico da noiva continuou, mas D. Joana já não ouvia nada. posto nunca meditasse em fazer-se mulher de João Barbosa via claramente que a resolução deste viria prejudicá-la: nada disse e ficou triste. O septuagenário, quando expandiu toda a alma em elogios à pessoa que escolhera para ocupar o lugar da esposa morta há tão longos anos, reparou na tristeza de D. Joana e apressou-se a animá-la.

— Que tristeza é essa, D. Joana? disse ele. Isto não altera nada a sua posição. Eu já agora não a deixo; há de ter aqui a sua casa até que Deus a leve para si.

— Quem sabe? suspirou ela.

João Barbosa fez-lhe os seus mais vivos protestos, e tratou de vestir-se para sair. Saiu, e dirigiu-se da Rua da Ajuda, onde morava, para a dos Arcos, onde morava a dama de seus pensamentos, futura esposa e dona de sua casa.

D. Lucinda G... tinha trinta e quatro anos para trinta e seis, mas parecia ter mais, tão severo era o rosto, e tão de matrona os modos. Mas a gravidade ocultava um grande trabalho interior, uma luta dos meios que eram escassos, com os desejos, que eram infinitos.

Viúva desde os vinte e oito anos, de um oficial de marinha, com quem se casara aos dezessete para fazer a vontade aos pais, D. Lucinda não vivera nunca segundo as ambições secretas de seu espírito. Ela amava a vida suntuosa, e apenas tinha com que passar modestamente; cobiçava as grandezas sociais e teve de contentar-se com uma posição medíocre. Tinha alguns parentes, cuja posição e meios eram iguais aos seus, e não podiam portanto dar-lhe quanto ela desejava. Vivia sem esperança nem consolação.

Um dia, porém, surgiu no horizonte a vela salvadora de João Barbosa. Apresentado à viúva do oficial de marinha, em uma loja da Rua do Ouvidor, ficou tão cativo de suas maneiras e das graças que lhe sobreviviam, tão cativo que pediu a honra de travar relações mais estreitas. D. Lucinda era mulher, isto é, adivinhou o que se passara no coração do septuagenário, antes mesmo que este desse acordo de si. Uma esperança iluminou o coração da viúva; aceitou-a como um presente do céu.

Tal foi a origem do amor de João Barbosa.

Rápido foi o namoro, se namoro podia haver entre os dois viúvos. João Barbosa, apesar de seus cabedais, que o faziam noivo singularmente aceitável, não se atrevia a dizer à dama de seus pensamentos tudo o que lhe tumultuava no coração.

Ela ajudou-o.

Um dia, achando-se ele embebido a olhar para ela, D. Lucinda perguntou-lhe graciosamente se nunca a tinha visto.

— Vi-a há muito.

— Como assim? — Não sei... balbuciou João Barbosa.

D. Lucinda suspirou.

João Barbosa suspirou também.

No dia seguinte, a viúva disse a João Barbosa que dentro de pouco tempo se despediria dele. João Barbosa pensou cair da cadeira abaixo.

— Retira-se da corte? — Vou para o Norte.

— Tem lá parentes? — Um.

João Barbosa refletiu alguns instantes. Ela espreitou a reflexão com uma curiosidade de cão rafeiro.

— Não há de ir! exclamou o velho daí a pouco.

— Não? — Não.

— Como assim? João Barbosa abafou uma pontada reumática, ergueu-se, curvou-se diante de D. Lucinda e pediu-lhe a mão. A viúva não corou; mas, posto esperasse aquilo mesmo, estremeceu de júbilo.

— Que me responde? perguntou ele.

— Recuso.

— Recusa! — Oh! com muita dor do meu coração, mas recuso! João Barbosa tornou a sentar-se; estava pálido.

— Não é possível! disse ele.

— Mas por quê? — Por que... por que, infelizmente, o senhor é rico.

— Que tem? — Seus parentes dirão que eu lhe armei uma cilada para enriquecer...

— Meus parentes! Dois biltres, que não valem a mínima atenção! Que tem que digam isso? — Tem tudo. Além disso...

— Que mais? — Tenho parentes meus, que não hão de levar a bem este casamento; dirão a mesma coisa, e eu ficarei... Não falemos em semelhante coisa! João Barbosa estava aflito e ao mesmo tempo dominado pela elevação de sentimentos da interessante viúva. O que ele então esperdiçou em eloquência e raciocínio encheria meia biblioteca; lembrou-lhe tudo: a superioridade de ambos, sua independência, o desprezo que mereciam as opiniões do mundo, sobretudo as opiniões dos interessados; finalmente, pintou-lhe o estado de seu coração. Este último argumento pareceu enternecer a viúva.

— Não sou moço, dizia ele, mas a mocidade...

— A mocidade não está na certidão de batismo, acudiu filosoficamente D. Lucinda, está no sentimento, que é tudo; há moços decrépitos, e homens maduros eternamente jovens.

— Isso, isso...

— Mas...

— Mas, há de ceder! Eu lho peço; unamo-nos e deixemos falar os invejosos! D. Lucinda resistiu pouco mais. O casamento foi tratado entre os dois, convencionando-se que se verificaria o mais cedo possível.

João Barbosa era homem digno de apreço; não fazia as coisas por metade. Quis arranjar as coisas de modo que os dois sobrinhos nada tivessem do que ele deixasse quando viesse a morrer, se tal desastre tinha de acontecer — coisa de que o velho não estava muito convencido.

Tal era a situação.

João Barbosa fez a visita costumada à interessante noiva. Era matinal demais; D.

Lucinda, porém, não podia dizer nada que viesse a desagradar a um homem que tão galhardamente se mostrava com ela.

A visita nunca ia além de duas horas; era passada em coisas insignificantes, entremeada de suspiros do noivo, e muita faceirice dela.

— O que me estava reservado nestas alturas! dizia João Barbosa ao sair de lá.

Naquele dia, logo que ele saiu de casa, D. Joana tratou de examinar friamente a situação.

Não podia haver pior para ela. Era claro que, embora João Barbosa não a despedisse logo, seria compelido a fazê-lo pela mulher nos primeiros dias do casamento, ou talvez antes. Por outro lado, desde que ele devesse carinhos a alguém mais que não a ela somente, sua gratidão viria a diminuir muito, e com a gratidão o legado provável.

Era preciso achar um remédio.

Qual? Nisso gastou D. Joana toda a manhã sem achar solução nenhuma, ao menos solução que prestasse. Pensou em várias coisas, todas impraticáveis ou arriscadas e terríveis para ela.

Quando João Barbosa voltou para casa, às três horas da tarde, achou-a triste e calada.

Indagou o que era; ela respondeu com algumas palavras soltas, mas sem clareza, de maneira que ele ficaria na mesma, se não tivesse havido a cena da manhã.

— Já lhe disse, D. Joana, que a senhora não perde nada com a minha nova situação. O lugar pertence-lhe.

O olhar de dignidade ofendida que ela lhe lançou foi tal que ele não achou nenhuma réplica. Entre si fez um elogio à caseira.

— Tem-me afeição, coitada! é uma alma dotada de muita elevação.

D. Joana não o serviu com menos carinho nesse e no dia seguinte; era a mesma pontualidade e solicitude. A tristeza porém era também a mesma e isto desconsolava sobremodo o noivo de D. Lucinda, cujo principal desejo era fazê-las felizes ambas.

O sobrinho José, que tivera o bom gosto de cortar os laços que o prendiam ao outro, desde que viu serem inúteis os esforços para separar D. Joana de casa, não deixava de ali ir a miúdo tomar a bênção ao tio e receber alguma coisa de quando em quando.

Acertou de ir alguns dias depois da revelação de João Barbosa. Não o achou em casa, mas D. Joana estava, e ele em tais circunstâncias não deixava de se demorar a louvar o tio, na esperança de que alguma coisa chegasse aos ouvidos deste. Naquele dia notou que D. Joana não tinha a alegria do costume.

Interrogada por ele, D. Joana respondeu: — Não é nada...

— Alguma coisa há de ser, dar-se-á caso que...

— Que?...

— Que meu tio esteja doente? — Antes fosse isso! — Que ouço? D. Joana mostrou-se arrependida do que dissera e metade do arrependimento era sincero, metade fingido. Não tinha grande certeza da discrição do rapaz; mas via bem para que lado iam seus interesses. José tanto insistiu em saber do que se tratava que ela não hesitou em dizer-lhe tudo, debaixo de palavra de honra e no mais inviolável segredo.

— Ora veja, concluiu ela, se ao saber que essa senhora trata de enganar o nosso bom amigo para haver-lhe a fortuna...

— Não diga mais, D. Joana! interrompeu José fulo de cólera.

— Que vai fazer? — Verei, verei...

— Oh! não me comprometa! — Já lhe disse que não; saberei desfazer a trama da viúva. Ela veio aqui alguma vez? — Não, mas consta-me que há de vir domingo jantar.

— Virei também.

— Pelo amor de Deus...

— Descanse! José via o perigo tanto como D. Joana; só não viu que ela lhe contara tudo, para havê-lo de seu lado e fazê-lo trabalhar por desfazer um laço quase feito. O medo dá às vezes coragem, e um dos maiores medos do mundo é o de perder uma herança. José sentiu-se resoluto a empregar todos os esforços para obstar o casamento do tio.

D. Lucinda foi efetivamente jantar em casa de João Barbosa. Este não cabia em si de contente desde que se levantou. Quando D. Joana foi levar-lhe o café do costume, ele desfez-se em elogios à noiva.

— A senhora vai vê-la, D. Joana, vai ver o que é uma pessoa digna de todos os respeitos e merecedora de uma afeição nobre e profunda.

— Quer mais açúcar? — Não. Que graça! que maneiras, que coração! Não imagina que tesouro é aquela mulher! Confesso que estava longe de suspeitar tão raro conjunto de dotes morais.

Imagine...

— Olhe que o café esfria...

— Não faz mal. Imagine...

— Creio que há gente de fora. Vou ver.

D. Joana saiu; João Barbosa ficou pensativo.

— Coitada! A ideia de que vai perder a minha estima não a deixa um só instante. In petto não aprova talvez este casamento, mas não se atreveria nunca a dizê-lo. É uma alma extremamente elevada! D. Lucinda apareceu perto das quatro horas. Ia luxuosamente vestida, graças a algumas dívidas feitas à conta dos futuros cabedais. A vantagem daquilo era não parecer que João Barbosa a tirava do nada.

Passou-se o jantar sem incidente nenhum; pouco depois de oito horas, D. Lucinda retirou-se deixando encantado o noivo. D. Joana, se não fossem as circunstâncias apontadas, devia ficar igualmente namorada da viúva, que a tratou com uma bondade, uma distinção verdadeiramente adoráveis. Era talvez cálculo; D. Lucinda queria ter por si todos os votos, e sabia que o da boa velha tinha alguma consideração.

Entretanto, o sobrinho de João Barbosa, que também ali jantara, apenas a noiva do tio se retirou para casa foi ter com ele.

— Meu tio, disse José, reparei hoje uma coisa.

— Que foi? — Reparei que se o senhor não tiver conta em si é capaz de ser embaçado.

— Embaçado? — Nada menos.

— Explica-te.

— Dou-lhe notícia de que a senhora que hoje aqui esteve tem ideias a seu respeito.

— Ideias? Explica-te mais claramente.

— Pretende desposá-lo.

— E então? — Então, é que o senhor é o quinto ricaço, a quem ela lança, a rede. Os primeiros quatro perceberam a tempo o sentimento de especulação pura, e não caíram. Eu previno-o disso, para que não se deixar levar pelo conto da sereia, e se ela lhe falar em alguma coisa...

João Barbosa que já estava vermelho de cólera, não se pôde conter; cortou-lhe a palavra intimando-o a que saísse. O rapaz disse que obedecia, mas não interrompeu as reflexões: inventou o que pôde, deitou cores sombrias ao quadro, de maneira que saiu deixando o veneno no coração do pobre velho.

Era difícil que algumas palavras tivessem o condão de desviar o namorado do plano que assentara; mas é certo que foi esse o ponto de partida de uma longa hesitação. João Barbosa vociferou contra o sobrinho, mas, passado o primeiro acesso, refletiu um pouco no que lhe acabava de ouvir e concluiu que seria realmente triste, se ele tivesse razão.

— Felizmente, é um caluniador! concluiu ele.

D. Joana soube da conversa havida entre João Barbosa e o sobrinho, e aprovou a ideia deste; era necessário voltar à carga; e José não se descuidou disso.

João Barbosa confiou à caseira as perplexidades que o sobrinho buscava lançar em seu coração, — Acho que ele tem razão, disse ela.

— Também tu? — Também eu, e se o digo é porque o posso dizer, visto que desde hoje estou desligada desta casa.

D. Joana disse isto levando o lenço aos olhos, o que partiu o coração de João Barbosa em mil pedaços; tratou de a consolar e inquiriu a causa de semelhante resolução. D. Joana recusou explicar; afinal estas palavras saíram de sua boca trêmula e comovida: — É que... também eu tenho coração! Dizer isto e fugir foi a mesma coisa. João Barbosa ficou a olhar para o ar, depois dirigiu os olhos a um espelho, perguntando-lhe se efetivamente não era explicável aquela declaração.

Era.

João Barbosa mandou-a chamar. Veio D. Joana e arrependida de ter ido tão longe, tratou de explicar o que acabava de dizer. A explicação era fácil; repetiu que tinha coração, como o sobrinho de João Barbosa, e não podia, como o outro, vê-lo entregar-se a uma aventureira.

— Era isso? — É duro de o dizer, mas cumpri o que devia; compreendo porém que não posso continuar nesta casa.

João Barbosa procurou apaziguar-lhe os escrúpulos; e D. Joana deixou-se vencer, ficando.

Entretanto, o noivo sentia-se um tanto perplexo e triste. Cogitou, murmurou, vestiu-se e saiu.

Na primeira ocasião em que se encontrou com D. Lucinda, esta, vendo-o triste, perguntou-lhe se eram incômodos domésticos.

— Talvez, resmungou ele.

— Adivinho.

— Sim? — Alguma que lhe fez a caseira que o senhor lá tem? — Por que supõe isso? D. Lucinda não respondeu logo; João Barbosa insistiu.

— Não simpatizo com aquela cara.

— Pois não é má mulher.

— De aparência, talvez.

— Parece-lhe então...

— Nada; digo que bem pode ser alguma intrigante...

— Oh! — Mera suposição.

— Se a conhecesse havia de lhe fazer justiça.

João Barbosa não recebeu impunemente esta alfinetada. Se efetivamente D. Joana não passasse de uma intrigante? Era difícil supô-lo ao ver a cara com que ela o recebeu na volta. Não a podia haver mais afetuosa. Contudo, João Barbosa pôs-se em guarda; convém dizer, em honra de seus afetos domésticos, que não o fez sem tristeza e amargura.

— Que tem o senhor que está tão macambúzio? perguntou D. Joana com a mais doce voz que possuía.

— Nada, D. Joana.

E daí a pouco: — Diga-me; seja franca. Alguém a incumbiu de me dizer aquilo a respeito da senhora que...

D. Joana tremeu de indignação.

— Pois imagina que eu seria capaz de fazer-me instrumento... Oh! é demais! O lenço correu aos olhos e provavelmente encheu-se de lágrimas. João Barbosa não podia ver chorar uma mulher que o servia tão bem há tanto tempo. Consolou-a como pôde, mas o golpe (dizia ela) fora profundo. Isto foi dito tão de dentro, e com tão amarga voz, que João Barbosa não pôde esquivar-se a esta reflexão.

— Esta mulher ama-me! Desde que, pela segunda vez, se lhe metia esta suspeita pelos olhos, seus sentimentos em relação a D. Joana eram de compaixão e simpatia. Ninguém pode odiar a pessoa que o ama silenciosamente e sem esperança. O bom velho sentia-se lisonjeado da vegetação amorosa que seus olhos faziam brotar dos corações.

Daí em diante começou uma luta entre as duas mulheres de que eram campo e objeto o coração de João Barbosa. Uma tratava de demolir a influência da outra; os dois interesses esgrimiam com todas as armas que tinham à mão.

João Barbosa era um joguete entre ambas — uma espécie de bola de borracha que uma atirava às mãos da outra, e que esta de novo lançava às da primeira. Quando estava com Lucinda suspeitava de Joana; quando com Joana suspeitava de Lucinda. Seu espírito, debilitado pelos anos, não tinha consistência nem direção; uma palavra o dirigia ao sul, outra o encaminhava ao norte.

A esta situação, já de si complicada, vieram juntar-se algumas circunstâncias desfavoráveis a D. Lucinda. O sobrinho José não cessava as suas insinuações; ao mesmo tempo os parentes da interessante viúva entraram a rodear o velho, com tal sofreguidão, que, apesar de sua boa vontade, este desconfiou seriamente das intenções da noiva. Nisto sobreveio um ataque de reumatismo. Obrigado a não sair de casa, era a D. Joana que cabia desta vez exclusivamente a direção do espírito de João Barbosa. D.

Lucinda foi visitá-lo algumas vezes; mas o papel principal não era seu.

A caseira não se poupou a esforços para readquirir a antiga influência; o velho ricaço saboreou de novo as delícias da dedicação de outro tempo. Ela o tratava, amimava e conversava; lia-lhe os jornais, contava-lhe a vida dos vizinhos entremeada de velhas anedotas adequadas à narração. A distância e a ausência eram dois dissolventes poderosos do amor decrépito de João Barbosa.

Logo que ele melhorou um pouco foi à casa de D. Lucinda. A viúva o recebeu com polidez, mas sem a solicitude a que o acostumara. Sucedendo a mesma coisa outra vez, João Barbosa sentiu que, pela sua parte, também o primitivo afeto esfriara um pouco.

D. Lucinda contava aguçar-lhe o afeto e o desejo mostrando-se fria e reservada; sucedeu o contrário. Quando quis resgatar o que perdera, era um pouco tarde; contudo não desanimou.

Entretanto, João Barbosa voltara à casa, onde a figura de D. Joana lhe pareceu a mais ideal de todas as esposas.

— Como é que não me lembrei há mais tempo de casar com esta mulher? pensou ele.

Não fez a pergunta em voz alta; mas D. Joana pressentiu num olhar de João Barbosa que aquela ideia alvorecia em seu generoso espírito.

João Barbosa voltou a concentrar-se em casa. D. Lucinda, após os primeiros dias, derramou o coração em longas cartas que eram pontualmente entregues em casa de João Barbosa, e que este lia em presença de D. Joana, posto fosse em voz baixa. João Barbosa, logo à segunda, quis ir reatar o vínculo roto; mas o outro vínculo que o prendia à caseira era já forte e a ideia foi posta de lado. D. Joana achou enfim meio de subtrair as cartas.

Um dia, João Barbosa chamou D. Joana a uma conferência particular.

— D. Joana, chamei-a para lhe dizer uma coisa grave.

— Diga.

— Quero fazer a sua felicidade.

— Já não a faz há tanto tempo? — Quero fazê-la de modo mais positivo e duradouro.

— Como? — A sociedade não crê, talvez, na pureza de nossa afeição; confirmemos a suspeita da sociedade.

— Senhor! exclamou D. Joana com um gesto de indignação tão nobre quão simulado.

— Não me entendeu, D. Joana, ofereço-lhe a minha mão...

Um acesso de asma, porque ele também padecia de asma, veio interromper a conversa no ponto mais interessante. João Barbosa gastou alguns minutos sem falar nem ouvir.

Quando o acesso passou, sua felicidade, ou antes a de ambos, estava prometida de parte a parte. Ficava assentado um novo casamento.

D. Joana não contava com semelhante desenlace, e abençoou a viúva que, pretendendo casar com o velho, sugeriu-lhe a ideia de fazer o mesmo e a encaminhou àquele resultado. O sobrinho José é que estava longe de crer que havia trabalhado simplesmente para a caseira; tentou ainda impedir a realização do plano do tio, mas este às primeiras palavras fê-lo desanimar.

— Desta vez, não cedo! respondeu ele; conheço as virtudes de D. Joana, e sei que pratico um ato digno de louvor.

— Mas...

— Se continuas, pagas-me! José recuou e não teve outro remédio mais que aceitar os fato consumados. O pobre septuagenário treslia evidentemente.

D. Joana tratou de apressar o casamento, receosa de que, ou algumas das várias moléstias de João Barbosa, ou a própria velhice desse cabo dele, antes de arranjadas as coisas. Um tabelião foi chamado, e tratou, por ordem do noivo, de preparar o futuro de D.

Joana.

Dizia o noivo: — Se eu não tiver filhos, desejo...

— Descanse, descanse, respondeu o tabelião.

A notícia desta resolução e dos atos subsequentes chegou aos ouvidos de D. Lucinda, que mal pôde crer neles.

— Compreendo que me fugisse; eram intrigas daquela... daquela criada! exclamou ela.

Depois ficou desesperada; interpelou o destino, deu ao diabo todos os seus infortúnios.

— Tudo perdido! tudo perdido! dizia ela com uma voz arrancada às entranhas.

Nem D. Joana nem João Barbosa a podiam ouvir. Eles viviam como dois namorados jovens, embebidos no futuro. João Barbosa planeava mandar construir uma casa monumental em algum dos arrabaldes onde passaria o resto de seus dias. Conversavam das divisões que a casa devia ter, da mobília que lhe convinha, da chácara, e do jantar com que deviam inaugurar a residência nova.

— Quero também um baile! dizia João Barbosa.

— Para quê? Um jantar basta.

— Nada! Há de haver grande jantar e grande baile; é mais estrondoso. Demais, quero apresentar-te à sociedade como minha mulher, e fazer-te dançar com algum adido de legação. Sabes dançar? — Sei.

— Pois então! Jantar e baile.

Marcou-se o dia de ano bom para celebração do casamento.

— Começaremos um ano feliz, disseram ambos.

Faltavam ainda dez dias, e D. Joana estava impaciente. O sobrinho José, alguns dias arrufado, fez as pazes com a futura tia. O outro aproveitou o ensejo de vir pedir o perdão do tio; deu-lhe os parabéns e recebeu a bênção. Já agora não havia remédio senão aceitar de boa cara o mal inevitável.

Os dias aproximaram-se com uma lentidão mortal; nunca D. Joana os vira mais compridos. Os ponteiros do relógio pareciam padecer de reumatismo; o sol devia ter por força as pernas inchadas. As noites pareciam-se com as da eternidade.

Durante a última semana João Barbosa não saiu de casa; todo ele era pouco para contemplar a próxima companheira de seus destinos. Enfim raiou a aurora cobiçada.

D. Joana não dormia um minuto sequer, tanto lhe trabalhava o espírito.

O casamento devia ser feito sem estrondo, e foi uma das vitórias de D. Joana, porque o noivo falava em um grande jantar e meio mundo de convidados. A noiva teve prudência; não queria expor-se e expô-lo a comentários. Conseguira mais; o casamento devia ser celebrado em casa, num oratório preparado de propósito. Pessoas de fora, além dos sobrinhos, havia duas senhoras (uma das quais era madrinha) e três cavalheiros, todos eles e elas maiores de cinquenta.

D. Joana fez sua aparição na sala alguns minutos antes da hora marcada para celebração do matrimônio. Vestia com severidade e simplicidade.

Tardando o noivo, ela mesma o foi buscar.

João Barbosa estava no gabinete já pronto, sentado ao pé de uma mesa, com uma das mãos calçadas.

Quando D. Joana entrou deu com os olhos no grande espelho que ficava defronte e que reproduzia a figura de João Barbosa; este estava de costas para ela. João Barbosa fitavaa rindo, um riso de bem-aventurança.

— Então! disse D. Joana.

Ele continuava a sorrir e a fitá-la; ela aproximou-se, rodeou a mesa, olhou-o de frente.

— Vamos ou não? João Barbosa continuava a sorrir e a fitá-la. Ela aproximou-se e recuou espavorida.

A morte o tomara; era a melhor das noivas.

Fonte: 
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