terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Guy de Maupassant (O Colar de diamantes)


Era uma dessas moças lindas e encantadoras, nascidas, como por um erro do destino, numa família de funcionários. Não tinha dote nem esperanças, nenhum meio de ser conhecida, compreendida, amada, desposada por um homem rico e distinto; e deixou que a casassem com um amanuense do Ministério da Instrução Pública.

Ela foi singela e modesta, já que não podia entregar-se ao luxo, mas infeliz como uma desclassificada; pois as mulheres não têm casta nem raça, e a sua beleza, a sua graça e o seu encanto é que lhes servem de nascimento e de família. A delicadeza nata, o instinto da elegância, a finura de espírito são a sua única hierarquia, e fazem das filhas do povo rivais das mais altas damas.

Sentindo-se nascida para todas as delicadezas e para todos os luxos, ela sofria continuamente. Sofria com a pobreza da sua casa, a miséria das paredes, com as cadeiras puídas, os estofados de mau gosto. Todas essas coisas, que qualquer outra mulher da sua casta nem mesmo teria notado, a torturavam e indignavam. Avista da pequena bretã que a servia despertava nela profundos pesares e sonhos sem fim. Ela pensava nas antecâmaras silenciosas, forradas de panos orientais, iluminadas por altos candelabros de bronze, e nos dois grandes lacaios de calções curtos que cochilam nas vastas poltronas, com o calor pesado do aquecedor. Pensava nos grandes salões revestidos de seda antiga, nos móveis finos carregados de bibelôs inestimáveis, e nos graciosos salõezinhos perfumados, feitos para a conversa das cinco horas com os amigos mais íntimos, os homens conhecidos e cortejados, cuja atenção todas as mulheres invejam e desejam. Quando, na hora do jantar, sentava-se à mesa redonda coberta de uma toalha de três dias, defronte ao marido que destapava a terrina, declarando com um ar encantado: "Ah! Que lindo cozido! Não há nada melhor que isto...", ela pensava nos jantares finos, na prataria brilhante, nas tapeçarias a povoarem os muros de personagens antigos e de pássaros estranhos em meio a uma floresta de magia; pensava nos pratos esquisitos, servidos em maravilhosas baixelas, nas galanterias ditas num sussurro e escutadas com um sorriso de esfinge, enquanto mordiscava a carne rósea de uma truta ou uma asa de frango.

Não tinha toaletes, nem jóias, nada. E só gostava disso, sentia-se feita para isso. E gostaria tanto de agradar, de ser invejada, sedutora, assediada!

Tinha uma amiga rica, uma colega do colégio, que não queria mais visitar, tanto isto a fazia sofrer. Pois na volta ela chorava durante dias inteiros, de desgosto, de pensar, de desespero e desolação.

Ora, uma tarde o marido chegou com um ar triunfante, trazendo na mão um grande envelope.

— Olhe — disse ele —, eu trouxe uma coisa para você. 

Ela rasgou vivamente o papel e retirou um cartão impresso com os seguintes dizeres:

O ministro da Instrução Pública e Mme. Georges Ramponneau têm a honra de convidar M. e Mme. Loisel para o sarau que se realizará no Palácio do Ministério, no dia 18 de janeiro, segunda-feira.

Em vez de ficar radiante, como esperava o marido, ela atirou com despeito o convite em cima da mesa, murmurando:

— Que quer que eu faça com isso?

— Mas, minha querida, pensei que você ficaria-contente. Você nunca sai, nunca aparece. E esta é uma belíssima ocasião. Não imagina o trabalho que eu tive para conseguir esse convite. Todos querem; é muito procurado; e há muito poucos para distribuir aos funcionários. Você verá lá todo o mundo oficial.

Ela o analisava com um olhar irritado e declarou com impaciência:

— Mas o que você quer que eu vista para ir? 

Ele não tinha pensado nisso, e balbuciou:

— O vestido com que vai ao teatro... Ele me parece muito bem...

Calou-se, estupefato, desorientado, vendo que sua mulher chorava. Duas grossas lágrimas desciam, lentamente, do canto dos olhos para o canto dos lábios; ele gaguejou:

— O que você tem? O que você tem?

Mas, num violento esforço, ela se dominara e respondeu com uma voz calma, enxugando as faces úmidas:

— Nada. Somente que eu não tenho toalete e por conseguinte não posso ir a essa festa. Dê o convite a qualquer colega cuja mulher possa vestir-se melhor do que eu.

Ele estava desolado. Falou-lhe:

— Vejamos, Mathilde. Quanto custaria uma toalete conveniente, que ainda pudesse servir em outras ocasiões, alguma coisa bastante simples?

Ela refletiu alguns segundos, fazendo suas contas e pensando também na soma que poderia pedir sem provocar uma recusa imediata e uma exclamação de horror do econômico amanuense. Enfim, ela respondeu, com hesitação:

— Não sei ao certo, mas me parece que com uns quatrocentos francos eu poderia arranjar a coisa.

Ele empalidecera um pouco, pois tinha reservado justamente aquela soma para comprar um fuzil e fazer caçadas com alguns amigos, aos domingos, no próximo verão, em Nanterre. Mas disse:

— Está bem. Eu te dou quatrocentos francos. Mas trate de arranjar um belo vestido.

Aproximava-se o dia da festa, e Mme. Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. Contudo, seu vestido estava pronto. O seu marido lhe disse uma noite:

— O que você tem? Há três dias que anda com um jeito esquisito.

E ela respondeu:

— Aborrece-me não ter uma joia, uma pedra, nada para pôr.

Assim, continuarei com um aspecto de miséria. Eu até preferia não ir a essa festa. Ele insistiu:

— Ponha flores naturais. É muito chique nesta estação. Por dez francos, terá duas ou três rosas magníficas.

Ela não estava convencida.

— Não... não há nada mais humilhante do que ter um ar de pobre em meio de mulheres ricas.

Mas o marido exclamou:

— Como você é tola! Vá procurar sua amiga Mme. Forestier e peça-lhe uma joia emprestada. Tem bastante intimidade com ela para isso.

Ela lançou um grito de alegria:

— É verdade. Eu não tinha pensado em tal coisa.

No dia seguinte ela foi à casa da amiga e lhe expôs sua situação. Mme. Forestier foi ao seu armário de espelho, pegou um grande cofre, trouxe-o, abriu-o, e disse a Mme. Loisel:

— Escolha, minha querida.

Ela examinou uns braceletes, depois um colar de pérolas depois uma cruz veneziana, ouro e pedrarias, de um admirável valor. Experimentava as jóias diante do espelho, hesitava, não podia decidir-se a deixá-las, a devolvê-las. Perguntava sempre:

— Não tem mais outra coisa?

— Claro. Procure. Eu não sei o que pode agradá-la. De repente ela descobriu, num estojo de cetim negro, um soberbo colar de diamantes; e o seu coração pôs-se a bater num imoderado desejo. Suas mãos tremiam ao segurá-lo. Ela o atou por cima do peitilho, e ficou em êxtase diante de si mesma.

Depois perguntou, hesitante, cheia de angústia:

— Pode emprestar-me este, somente este?

— Como não? Está às ordens.

Ela saltou no pescoço de sua amiga, beijou-a com frenesi, depois fugiu com o seu tesouro.

Chegou o dia da festa. Mme. Loisel obteve um verdadeiro sucesso. Ela era a mais linda de todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria.Todos os homens a olhavam, perguntavam seu nome, procuravam ser apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam dançar com ela. O ministro notou-a. 

Ela dançava com embriaguez, com êxtase, arrebatada pelo prazer, sem pensar em mais nada, na apoteose da sua beleza, na glória do seu sucesso, em uma espécie de nuvem de felicidade, feita de todas aquelas homenagens, de todas aquelas admirações, de todos aqueles desejos despertados, daquela vitória completa e tão grata ao coração das mulheres. 

Ela partiu pelas quatro da manhã. Seu marido, desde a meia-noite, dormia numa saleta deserta com três outros senhores cujas mulheres se divertiam muito. Ele lançou-lhe sobre os ombros os abrigos que trouxera para a saída, modestos abrigos da vida ordinária, cuja pobreza contrastava com a elegância do vestido de baile. Ela o percebeu e quis fugir, para não ser notada pelas outras mulheres, que se envolviam em luxuosos casacões.

Loisel a segurava:

— Espere. Vai se resfriar assim. Eu vou chamar um fiacre.

Ela, porém, não escutava e descia rapidamente a escadaria. Quando chegaram à rua, não encontraram carro; e puseram-se em busca de um, chamando os cocheiros que viam passar ao longe.

Desciam ambos na direção do Sena, desesperados, tiritantes. Enfim, acharam no cais um desses velhos cupês, noctâmbulos, que só aparecem em Paris ao cair da noite, como se ficassem envergonhados da sua miséria durante o dia.

Ele os levou até sua porta, na rua dos Mártires, e os dois subiram tristemente para os aposentos. Estava acabado para ela. E ele pensava que seria preciso estar no Ministério às dez horas. Ela tirou o abrigo que pusera nos ombros diante do espelho, a fim de verse uma vez mais em toda sua glória. Mas de súbito soltou um grito. O colar não estava mais no seu pescoço.

O marido, já meio despido, perguntou:

— O que você tem?

Ela voltou-se, louca de medo:

— Eu... eu... eu não tenho mais o colar de Mme. Forestier.

Ele ergueu-se desvairado:

— Quê!... Como!... Não é possível!

E procuraram nas pregas do vestido, nas dobras do casacão, nos bolsos, por toda parte. Ele perguntava:

— Tem certeza de que ainda o tinha ao deixar o baile?

— Sim, eu toquei nele no vestíbulo do Ministério.

— Mas se o houvesse perdido na rua, nós o teríamos ouvido cair. Deve estar no fiacre.

— Sim. É provável. Guardou o número?

— Não. E você, não reparou?

— Não.

Eles se contemplavam aterrados. Enfim Loisel tornou a vestir-se.

— Eu vou — disse ele — refazer todo o trajeto que fizemos, a pé, para ver se o encontro.

E ele saiu. Ela ficou de vestido de baile, sem forças para deitar-se, atirada numa cadeira, sem ânimo, sem um pensamento. O marido voltou pelas sete horas. Nada havia encontrado. Ele foi à chefatura de polícia, aos jornais, para prometer uma recompensa, às pequenas companhias de transportes, a toda parte, enfim, aonde uma suspeita de esperança o levava.

Ela esperou todo o dia, no mesmo estado de terror ante aquele medonho desastre. Loisel voltou à noite, desfigurado, pálido, nada descobrira.

— É preciso — disse ele — escrever à sua amiga, contando-lhe que você quebrou o fecho do colar e que mandou consertá-lo. Isto nos fará ganhar tempo.

E ele ditou-lhe a carta.

Ao fim de uma semana, toda esperança estava perdida. E Loisel, envelhecido cinco anos, declarou:

— É preciso substituir o colar.

Tomaram no dia seguinte o estojo que o encerrara, e foram ao joalheiro cujo nome se achava impresso no seu forro. Ele consultou seus livros:

— Não fui eu, madame, quem vendeu o colar. Devo ter fornecido apenas o estojo.

Então foram de joalheiro em joalheiro, procurando um colar igual ao outro, consultando a sua memória, ambos doentes de pena e de angústia. Acharam, numa loja do Palais Royal, um colar de diamantes que lhes pareceu corresponder exatamente ao que procuravam. Custava quarenta mil francos. Mas o deixariam por trinta e seis mil. Pediram então ao joalheiro que não o vendesse antes de três dias. E ficou combinado que o devolveriam por trinta e quatro mil francos, se o primeiro fosse encontrado antes do fim de fevereiro.

Loisel possuía dezoito mil francos, que seu pai lhe havia deixado. Pedira emprestado o resto. Conseguiu mil francos com um, quinhentos com outro, cinco luíses aqui, três luíses acolá. Assinou promissórias, assumiu compromissos ruinosos, houve-se com usurários, com toda casta de agiotas. Comprometeu todo o fim da sua existência, arriscou sua assinatura sem saber se poderia garanti-la, e atemorizado com as angústias do futuro, com a miséria negra que ia abater-se sobre ele, com a perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais, ele foi buscar o colar novo, pousando sobre o balcão do negociante os trinta e seis mil francos.

Quando Mme. Loisel levou o colar a Mme. Forestier, esta disse, com um ar irritado:

— Você deveria tê-lo trazido mais cedo, pois eu poderia precisar dele.

Ela não abriu o estojo, o que mais temia sua amiga. Se ela notasse a substituição, o que não pensaria? O que não diria? Não a teria tomado por uma ladra?

Mme. Loisel conheceu a vida horrível dos necessitados. Ela tomou seu partido, aliás, sem hesitações, heroicamente. Era preciso pagar aquela dívida terrível. Ela pagaria. Despediram a criadinha, mudaram de casa, alugaram uma água-furtada.

Ela conheceu os trabalhos grosseiros da casa, as odiosas tarefas da cozinha. Lavou os pratos, estragou as unhas róseas na louça gordurenta e no fundo das caçarolas. Ela ensaboou a roupa suja, as camisas e os esfregões, que fazia secar numa corda; manhã após manhã, carregou o lixo para a rua e a água para dentro, parando a cada andar para tomar fôlego. E, vestida como uma mulher do povo, foi ao mercadinho, ao vendeiro, ao açougueiro, regateando e recebendo injúrias, defendendo cobre a cobre o seu miserável dinheiro.

Era preciso cada mês pagar letras, renovar outras, conseguir prazo. O marido fazia à tardinha a escrita de um comerciante e, de noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco sous a página. E esta vida durou dez anos.

Ao fim de dez anos, haviam restituído tudo, tudo, com a taxa do ágio e o acúmulo dos juros superpostos.

Mme. Loisel parecia velha agora. Tornara-se a mulher forte, rija e rude, dos lares pobres. Mal penteada, com as saias de viés e as mãos vermelhas, ela falava alto, lavava os soalhos. Mas às vezes, quando seu marido estava na repartição, ela sentava-se junto à janela e pensava naquela festa de outrora, naquele baile em que fora tão bela e tão festejada.

Que teria acontecido, se não houvesse perdido aquele colar? Quem sabe? Quem sabe? Como a vida é estranha, mutável! Basta um quase nada, para nos perder ou para nos salvar!

Ora, um domingo, ao dar uma volta pelos Campos Elíseos, para descansar dos trabalhos da semana, ela avistou de repente uma mulher que passeava com um menino. Era Mme. Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora. Mme. Loisel sentiu-se comovida. Deveria falar-lhe? E, agora que já havia pago, lhe contaria tudo. Por que não?

Aproximou-se.

— Bom-dia, Jeanne.

A outra não a reconhecia, espantando-se por ser chamada de modo tão familiar por aquela mulher do povo. Ela balbuciou:

— Mas... madame!... Eu não compreendo... Deve estar enganada.

— Não. Eu sou Mathilde Loisel. 

A amiga soltou um grito:

— Oh!... minha pobre Mathilde, como estás mudada!...

— Sim, eu tenho atravessado dias bastante duros, desde que a vi pela última vez; e muita miséria... e tudo isto por sua causa!...

— Por minha causa! Como assim?

— Não se lembra daquele colar de diamantes que me emprestou para a festa do Ministério?

— Sim. E daí?

— Pois bem, eu o perdi.

— Mas como? Se o devolveu.

— Eu devolvi um outro igual. E levamos dez anos para pagá-lo. Bem compreende que não era muito fácil para nós, que não tínhamos nada... Enfim, acabou-se, e eu sinto-me contente, afinal.

Mme, Forestier estacou, de súbito.

— Está me dizendo que comprou um colar de diamantes para substituir o meu?

— Sim. Não notou nada, hein? Eles eram idênticos. – E ela sorria com uma alegria orgulhosa e ingênua. Mme. Forestier, muito comovida, lhe tomou as duas mãos.

— Oh! minha pobre Mathilde! M as o meu colar era falso. Valia quando muito uns quinhentos francos!…

Fonte:
Guy de Maupassant. Bola de sebo e outros contos. Rio de Janeiro/RJ: Globo, 1987.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Trova 329 - A. A. de Assis


Caldeirão Poético XVII



“Não Será Sempre Assim”

Não será sempre assim... Quando não for;
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer; fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
"Goza a ventura de que já gozei:"

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.

(Tradução de Manuel Bandeira)


“Os lábios que meus lábios beijaram ”

Os lábios que meus lábios beijaram, onde e quando,
eu esqueci, e os braços que se estenderam
sob minha cabeça até o amanhecer... Mas a chuva
se povoa de espectros esta noite; eles batem à janela
e espiam pelos vidros atrás de uma resposta.
Uma dor silenciosa em minha alma se agita,
rapazes esquecidos que não voltarão mais
a procurar-me entre lágrimas à noite.

Assim também no inverno a árvore solitária
ignora quais os pássaros que se foram um a um
e, no entanto, sente mudos seus galhos, mais que antes;
não sei contar os amores que se foram um a um,
sei apenas que o verão cantou em mim
um curto instante, e já não canta mais...

(Tradução livre de Sérgio Milliet)


“Num Certo Lugar Da Alma”

Num certo lugar da alma, entre muros de olvido
em terra estéril, seca, enterram-se os amores
que nasceram sem vida; em chão sempre querido
de onde, sonho após sonho, a vida se abre em flores;

os que intentavam ter seu ninho, construído
quando os minutos maus, terríveis, caçadores
atingiram-lhes a asa... e os que apenas têm sido
piedoso lenitivo a aplacar nossas dores!

A tais sepulcros, sei, devemos o tributo
que a nossa alma nos cobra o seu denso mistério...
Por mortos tais, porém, eu nunca ponho luto

e ao entrar em mim mesma, - esse lugar esquivo...
Que numa tumba está, desse meu cemitério
um grande amor que tive e que enterraram vivo!

(Tradução de Luis Antonio Pimentel)


Coisas de Pássaros

Quase a romper-se parecia o fino
tecido, ao voo palpitante e belo
dos teus seios que, ansiavam num anhelo,
se transformar num manancial divino

de leite e vida, amor, ternura e mel.
Oh, lindos seios, túmidos arminhos,
que dás aromas de fragrantes vinhos!
-redondezas de pombos pelo céu!

Amo-te as formas e o perfume; canto
perfume e forma do teu duplo encanto.
Oh, nobre encanto que a  atrair, deleitas,

doce mistério da estação mais pura
bendita fonte de vital doçura
frutos que prenunciam mil colheitas!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)

Fonte:
J G de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. 
vol. III (Poesia Universal - Européia e Americana), 1966.

Hans Christian Andersen (A Margarida)


No campo, perto da grande estrada, estava situada uma gentil morada que você já deve ter notado. Na frente dela se encontra um jardim com flores e uma paliçada verde; não longe dali, no meio da erva fresca, floria uma pequena margarida. Graças ao sol que a aquecia com seus raios assim como às grandes e ricas flores do jardim, ela se desenvolvia a cada hora. 

Certa manhã, inteiramente aberta, com suas pequenas pétalas brancas e brilhantes, que se pareciam com um sol em miniatura rodeado de seus raios, quando a percebiam na relva e a fitavam como a uma flor insignificante, ela se inquietava um pouco. Vivia contente, respirava as delícias do calor do sol e ouvia o canto do rouxinol que se elevava nos ares. E assim a pequena margarida estava feliz como num dia de festa, embora fosse apenas segunda- feira. 

Enquanto as crianças, sentadas no banco da escola, aprendiam as suas lições, ela, sustentada por seu caule verde, aprendia sobre a beleza da natureza e sobre a bondade de Deus, e parecia-lhe que tudo o que sentia em silêncio, o pequeno rouxinol exprimia perfeitamente em suas canções felizes. Assim ela olhava com uma espécie de respeito o pássaro feliz que cantava e voava mas não sentia a mínima vontade de fazer outra coisa. 

– “Eu vejo e ouço - pensou ela –  o sol me aquece e o vento me beija. Oh! eu faria mal se me queixasse?”

 Dentro do jardim havia uma quantidade de flores lindas e viçosas; quanto menos perfume tinham mais bonitas eram. As peônias se inflavam afim de parecerem maiores do que as rosas, mas não é o tamanho que faz uma rosa. As tulipas brilhavam pela beleza de suas cores e se pavoneavam com pretensão, não se dignavam lançar um olhar sobre a pequena margarida, enquanto que a pobre as admirava dizendo: 

– “Como são ricas e belas! Sem dúvida o pássaro maravilhoso vai visitá-las. Obrigada, meu Deus, por poder assistir a esse belo espetáculo?” 

E, no mesmo instante, o rouxinol levantava seu voo, não para as peônias e às tulipas, mas para a relva ao lado da pobre margarida que, louca de alegria, não sabia mais o que pensar. O pequeno pássaro começou a saltitar em volta dela cantando: 

– Como a relva é macia! Oh! 

A música encantando a florzinha de coração de ouro e vestido de prata! Não se pode fazer uma ideia da bondade da pequena flor. O pássaro a beijou com seu bico, cantou à sua frente, depois subiu para o azul do céu. 

Durante mais de um quarto de hora, a margarida não pôde se refazer da sua emoção. Um pouco envergonhada, mas orgulhosa no fundo do coração, ela olhou para as outras flores do jardim. Testemunhas da honra de que fora alvo, elas deveriam compreender a sua alegria, mas as tulipas ainda estavam mais rígidas do que antes, sua figura vermelha e pontuda exprimia seu despeito. As peônias levantavam a cabeça com soberba. Que sorte para a margaridinha que elas não pudessem falar! Teriam dito coisas bem desagradáveis. A florzinha apercebeu-se e ficou triste com aquele mau humor. 

Alguns instantes depois, uma menina armada de uma grande faca afiada e brilhante entrou no jardim, aproximou-se das tulipas e cortou-as uma a uma. 

 – “Que infelicidade!”, disse a margaridinha suspirando, “Eis uma coisa pavorosa!” 

E enquanto a menina levava as tulipas, a margarida se alegrava por não ser mais do que uma florzinha no meio da relva. Apreciando a bondade de Deus e cheia de reconhecimento, ela fechou suas folhas no fim do dia, adormeceu e sonhou a noite inteira com o sol e o pequeno pássaro. 

Na manhã seguinte, quando a margarida abriu suas pétalas ao ar e à luz, reconheceu a voz do pássaro, mas seu canto era muito triste. O coitado fora aprisionado dentro de uma gaiola e suspenso na varanda. Cantava a felicidade da liberdade, a beleza dos campos verdejantes e as antigas viagens pelos ares. A pequena margarida bem que quisera ir em seu auxílio, mas que fazer? Era uma coisa difícil. A compaixão que ela sentia pelo pobre pássaro cativo fez com que se esquecesse das belezas que a rodeavam, o doce calor do sol e a brancura extasiante de suas próprias pétalas. 

Logo dois meninos entraram no jardim, o mais velho levava na mão uma faca comprida e afiada como a da menina que cortara as tulipas. Dirigiram-se para a margarida que não podia compreender o que eles queriam. 

– Aqui nós podemos levar um belo pedaço de erva para o rouxinol! - disse um dos meninos, e começou a cortar um quadrado profundo em volta da pequena flor. 

– Arranque a flor! – disse o outro. 

Ao ouvir essas palavras a margarida tremeu de medo. Ser arrancada significava perder a vida, e jamais ela gozara tanto a existência como naquele momento em que esperava entrar com a grama na gaiola do pássaro cativo. 

– Não, deixemo-la aí! - respondeu o maior - Ela está muito bem colocada. 

E assim ela foi poupada e entrou na gaiola do pássaro. O pobre pássaro, lamentando amargamente o seu cativeiro, batia com as asas nos ferros da gaiola. E a pequena margarida não podia, malgrado todo o seu desejo, fazê- lo ouvir uma palavra de consolo. E assim se passou o dia. 

– Não há mais água aqui? - gritava o prisioneiro – Todos saíram sem me deixar uma gota de água. Minha boca está seca e tenho uma sede terrível! Ai de mim! Vou morrer, longe do sol brilhante, longe da fresca erva e de todas as magnificências da criação! 

Mergulhou o bico na erva úmida a fim de refrescar- se um pouco. Seu olhar caiu sobre a pequena margarida. Fez um sinal amistoso e disse ao beijá-la: 

– Você sim, pequena flor, perecerá aqui! Em troca do mundo que eu tinha à minha disposição, deram-me algumas folhas de relva e você como companhia. Cada folha de erva deve ser para mim uma árvore, cada uma de suas pétalas brancas uma flor odorífera. Ah! você me faz lembrar tudo aquilo que eu perdi! 

– “Se eu pudesse consolá-lo!”, pensava a margarida, incapaz de fazer o mínimo movimento. No entanto, o perfume que ela exalava tornava- se cada vez mais forte, o pássaro compreendeu e, enquanto enfraquecia com uma sede devoradora que o fazia arrancar todos os pedaços de relva, tomava cuidado para não tocar na flor. 

A noite chegou, ninguém estava lá para levar uma gota de água para o pobre pássaro. Então ele abriu suas belas asas sacudindo-as convulsivamente e fez ouvir uma pequena canção melancólica. Sua cabecinha se inclinou para a flor e seu coração ferido de desejo e de dor cessou de bater. A esse triste espetáculo, a margaridinha não pôde, como na véspera, fechar suas pétalas para dormir, traspassada pela tristeza, caiu ao solo. 

Os meninos não chegaram senão no dia seguinte. Ao verem o pássaro morto, choraram muito e abriram uma sepultura. 0 corpo encerrado numa linda caixa vermelha foi enterrado realmente, e sobre seu túmulo semearam pétalas de rosa. Pobre pássaro! enquanto ele vivia e cantava, haviam-no esquecido em sua gaiola e deixaram-no morrer de sede. Depois de sua morte, choravam-no e enchiam-no de honrarias. A relva e a margarida foram jogadas no pó da estrada, e ninguém nem pensou que algum dia ela tivesse podido amar tão ternamente o pequeno pássaro.

Fonte:

domingo, 2 de dezembro de 2018

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira (Poemas Diversos)



ARAUCÁRIA I

Tanta beleza... 
Na imponente Araucária
Majestosa no papel de realeza.
- Esplêndida e cheia de vida.

Resistente às tempestades
Aos ventos e aos granizos.
Galhos formando copas
- Um brinde ao infinito.

Araucária - Madeira de lei
Como contestar? não há.
É o Pinheiro de grande valor
- Símbolo do Paraná.

A Gralha azul, em voos livres, 
O pinhão vai plantar 
Carregando no bico as sementes
- Para o pinheiro nunca acabar.
_______________________
ARCO-ÍRIS

Olho para o céu e vejo o arco-íris
Cheio de encantamento e beleza
Em dias de chuvas de verão
Enfeitando a vida e a natureza.

Arco-íris de sete cores:
O vermelho da paixão, o laranja de lindeza mil 
O amarelo que reflete luz,
O verde da esperança, o azul e o azul de anil. 

Ver o arco-íris é sensacional ...
Imagens e cores iluminam e ofuscam
Emanam sentimentos de amor e saudade
De magia e vida.
- e que vida!
_____________________________
ENCRUZILHADAS

A trajetória
dos caminhantes
e errantes da vida
já vem traçada?

Não!
É uma incógnita constante.
Encontram-se nas encruzilhadas da vida.
Na ternura do seu viver.

Campeia-se a melhor estrada
para seguir em frente.
Dentro do baú está o mapa
a mostrar todos os caminhos.

O mapa da ciência indica dedicação
ao estudo e ao trabalho.
O mapa da sabedoria
inclui também silêncio e reflexão.

O mapa da solidariedade
revela união, aconchego, verdade.
Encruzilhadas muitas:
como escolher sem se perder?

Onde encontrar a felicidade
e suas flores de todas as cores?
Estará ela no trotear da vida
em suas encruzilhadas?
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FELICIDADE

Felicidade
é coração seguro.
Mel e doçura
agora e no futuro.

Felicidade
é olhar de amor,
sorriso de luz.
É cantiga de ninar,
aconchego e paz.

Felicidade
é amor-volúpia,
estado de graça,
escolha da vida.
não importa a idade,
lugar ou cidade.

Felicidade
mora na mente,
na sabedoria do mestre,
na imensidão do cosmo,
nos deleites do coração.

Felicidade
encontra-se no amigo,
no afago do bem-querer,
na emoção da arte,
na estesia poética,
na vida a escorrer.
__________________
NATUREZA

Trovões de sons musicais
distantes!
Relâmpagos de efeitos especiais!
É a chuva que cai generosa.

A chuva passa, o Rei aparece
gigantesco: o Sol.
Depois, estrelas brilham,
surge a Lua,
a Rainha da noite
de esplendor sem fim.

Doce é sentir o calor do Sol
e tudo que reluz em torno a mim.
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ROSAS

Será
que as rosas vermelhas
simbolizam o amor?

Pois...
no dia dos namorados o presente predileto
são os botões de rosas vermelhas.

Dádiva...
É receber rosas em qualquer data,
é alegria duradoura, é gratificante, é sinal de carinho.

Pensei...
quantas rosas já ganhei em minha vida?
Não sei.

Sei
que todas as vezes que as recebi
senti gratidão, respeito, doçura e muito mais.

Senti
o abraço apertado do eterno enamorado,
apaixonado, com juras de amor eterno.
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VIVER

Viver é respirar ao vento,
contemplar o orvalho da manhã.
No horizonte... brilho e raios de sol.

Viver é sentir o aroma das flores
multicores que enfeitam nossos dias.
É percorrer os jardins na primavera.

Viver é cantar e encantar
ao romper da aurora,
encher o mundo de paz, arte e poesia.
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Fontes:

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira (Cadeira n. 10 da AVIPAF)

PATRONO: CASTRO ALVES
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Maria Antonieta Gonzaga Teixeira nasceu em Jataí, sudoeste de Goias, cursou Licenciatura em Pedagogia na Universidade do Oeste Paulista, em Presidente Prudente/SP e no Rio de Janeiro formou-se em Educação Familiar na PUC. Pós-Graduação em Didática em Jaboticabal/SP e Pós-Graduação em Psicopedagogia, em Tupi/SC.

Em Castro/PR dedicou-se à educação e a pintura, especialmente da natureza, retratando paisagens belíssimas, algumas das quais ilustram o livro Dos Pequizeiros às Araucárias.

Participou de diversos Congressos Internacionais de Educação em diversas cidades do Brasil.

Palestrante nas escolas da cidade de Castro, Carambeí, Tibagi e distrito de Socavão: palestras de prevenção às drogas, orientação e formação para jovens, por mais de 20 anos.

-Título na Câmara Municipal de Castro - Cidadã Castrense - 2015.

Realizou exposições coletivas de poesia, em Curitiba/PR, Buenos Aires/Argentina, Viana do Castelo, Lisboa e Castelo Branco/os 3 em Portugal.

- Associada da Yapó Arte – Associação dos Artistas Plásticos de Castro desde sua fundação.
- Lions Clube de Castro.
- Membro Correspondente da Academia letras de Araraquara - ALUBRA. E da Academia de Letras de Teófilo Otoni.

PUBLICAÇÕES:
- “Dos Pequizeiros às Araucárias” (poemas), 2014.
- "Instituto Cristão: Arte e Vida”, (história), 2015.
- "Encruzilhadas”, (poemas), 2016.
- "Uma VIDA: Affonso e Marieta" (biografia), 2018.

- Participação em diversos livros e em revistas digitais. 

Fontes:

Malba Tahan (O Mercador de Sonhos)




Entrei. No meio da sala, mal iluminada e forrada de tapetes amarelos, avistei um homem alto, pálido, de barbas grisalhas, que se dirigiu para mim vagarosamente. Ostentava largo turbante de seda branca, onde cintilava uma pedra que não pude classificar. No seu semblante havia cansaço e esse não sei quê de misterioso notado em todos quantos mercadejavam com a magia. Era o famoso feiticeiro hindu. Os marroquinos do bairro, com aquela precisão com que o vulgo geralmente apelida os tipos populares, haviam-no denominado “o mercador de sonhos”.

— Que desejais, ó jovem? — perguntou, fitando em mim os seus olhos negros e perspicazes.

— Afirmaram-me — respondi — que o senhor possui, graças a certos fluidos mágicos, o estranho poder oculto de fazer com que uma pessoa tenha o sonho que quiser. Sou curioso. Quero experimentar os encantos de sua magia, a força de seus fluidos maravilhosos. Quero sonhar.

— É verdade, ó muçulmano! É verdade — confirmou o mago indiano. — Tenho, realmente, esse dom raro e precioso de poder proporcionar às pessoas que me procuram todas as alegrias e todos os prazeres de um sonho desejado.

E, apontando para uma larga poltrona escura que estava a um canto, disse-me com gentileza:

— Senta-te e dize-me: com quem desejas sonhar? Que espécie de sonho mais te agrada, ó maometano?

Contei-lhe então o motivo único da minha visita àquele antro misterioso da magia-negra.

— Antes de tudo — comecei — devo dizer-lhe que sou um indivíduo excessivamente romântico e idealista. Sempre senti a forte atração das fantasias. Ultimamente, durante uma festa militar em Marraqueche, conheci certa jovem cristã, filha de um francês de alta linhagem, que exerce funções diplomáticas na corte do sultão. Apaixonei-me loucamente pela rumie (apelido que os árabes dão aos cristãos franceses), mas não sei ainda se sou correspondido. Não obstante, desejo sonhar uma vez ao menos com a minha amada, um sonho claro e perfeito! Nesse sentido já fiz o possível, mas os meus sonhos povoam-se de imagens quase sempre desconexas, em meio das quais nunca vislumbrei a dona dos meus enlevos, a inspiradora do meu grande amor!

— E qual é o nome dessa jovem ideal? — perguntou-me o feiticeiro.

— Susana de Plassy.

— Curioso — observou o famoso ocultista, passando vagarosamente a mão larga pela testa bronzeada — muito curioso! Ontem, ao cair da tarde,  fui  procurado  por  uma  jovem cristã que aqui apareceu acompanhada por uma escrava moura: a minha formosa visitante pediu-me que a fizesse sonhar com um dos oficiais da guarda do sultão, Omar Ben-Riduan! Indaguei do seu nome e soube que a jovem se chamava Susana de Plassy!

Ao ouvir semelhante revelação, um frêmito me percorreu o corpo todo e levantei-me como se fosse impelido por alguma possante mola de aço.

— Omar Ben-Riduan? Omar Ben-Riduan é o meu nome! Omar Ben-Riduan sou eu! Se ela pediu que a fizesse sonhar comigo, é certo que me ama também.

— Felicito-o, ó jovem — replicou o indiano, batendo-me, carinhoso, no ombro. — É muito raro ver-se uma formosa cristã apaixonada por um muçulmano. Bem sabes o imenso abismo que separa os adeptos de Mafoma daqueles que professam a religião de Jesus!

Louco de alegria, atirei um punhado de ouro ao velho feiticeiro e corri para casa. Sentia-me alucinado como se estivesse sob a ação perturbadora de forte dose de haxixe.

Reuni alguns de meus mais íntimos, contei-lhes o que havia ocorrido e pedi-lhes que me ajudassem a encontrar uma solução para o meu caso sentimental.

El Hadj (1) Ben Cherak, homem sensato e muito relacionado na alta-sociedade marroquina, disse-me, sem hesitar:

— Conheço muito bem o pai de tua apaixonada. É um cristão mau como um emir e mais orgulhoso do que um paxá. Detesta os árabes e jamais consentirá que sua filha se case com um muçulmano! Só vejo, portanto, uma solução: terás de raptar a jovem Susana! E isso só conseguirás com a sua cumplicidade!

Seguindo o conselho do prudente Ben-Cherak, fiz, naquela mesma tarde, os preparativos para a minha fuga com a linha rumie. Passei a fil-leile (2) a conversar com os amigos sobre a minha singular aventura.

Já tarde da noite, chegou à minha casa, de volta, o portador que eu enviara ao rico palacete do nobre francês. Fui então informado de que Susana oito dias antes havia partido para a Europa, a fim de lá se casar com um fidalgo escocês.

Percebi, no mesmo instante, que fora vítima de vergonhosa mistificação do indiano.

Revoltado e furioso por causa do papel ridículo que havia feito, voltei novamente ao antro do intrujão, resolvido a tirar tremenda desforra.

O velho hindu — depois de atender a vários clientes que o esperavam — recebeu-me calmo, cínico, o semblante plácido de quem nunca praticara ação censurável.

Gritei-lhe, ameaçando-o com o punho fechado:

— Miserável! Por que mentiu? Susana nunca veio aqui a este antro nojento!

— Vamos devagar, meu jovem amigo — replicou o charlatão, imperturbável, segurando-me pela mão que o ameaçava. — Não fiz senão o que tu me pediste. Vi, casualmente, o teu nome gravado no cabo do rico punhal que trazes à cinta. Jogando facilmente com o teu nome, pude proporcionar-te o encanto de uma ilusão efêmera. Menti para que pudesses não somente sonhar com um amor impossível como também acreditar nele!

E concluiu, sardônico, terrível:

— Afinal, o que vieste buscar aqui? Não foi um sonho? Não foi uma ilusão? Pois bem, eis, precisamente, o que te vendi: Um sonho... uma ilusão...
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Notas:
(1) El-Hadj — titulo honroso que precede sempre o nome de todo muçulmano que já fez a peregrinação à Meca.

(2) Fil-leile — expressão intraduzível. Significa, mais ou menos, a parte da noite que se segue ao pôr-do-sol.

Fonte:
Malba Tahan. Minha vida querida.

Isabel Furini (Lançamento de nova edição de "Os Corvos de Van Gogh")


Em 9 de dezembro (domingo) das 11 horas às 12h30m, na Feira do Poeta de Curitiba (R. Cel. Enéas, 30 , Largo da Ordem), será o lançamento da segunda edição do livro de poemas Os Corvos de Van Gogh, da poetisa Isabel Furini. O livro foi inspirado nos quadros de Van Gogh, especialmente no quadro Campo de Trigo com Corvos.  Os poemas trabalham símbolos e emoções que esse quadro desperta nos observadores.

Dois poemas que fazem parte do livro foram premiados em concursos literários. O poema "Quarto sem sombra" ganhou o 1° Lugar Prêmio de Poesia O Pensador, da Academia de Letras Itapemense, SC, em 2010; e o poema "Perspectiva" recebeu Menção Honrosa no Concurso de Poesia Prêmio Moutonnée de Poesia, Salto/SP, em 2010. 

Abaixo os poemas premiados de Isabel, que constam do livro:

QUARTO SEM SOMBRA

(O quarto -Outubro de 1888;
Museu Van Gogh, Amsterdã)

Esquecido do mundo, Vincent pinta
(cartografia de subterrâneos anseios
tatuados no corpo e nas mãos).

O eu instintivo
(adolescente)
extravasa emoções,
extasia-se nas cores dos trigais,
na luz das estrelas,
nas expressões dos rostos operários,
nas luzes de Arles.

Pinta em um ritmo alucinante;
pinceladas justapostas
ganham vida. Ele retrata seu quarto,
obsessivamente.

O quarto não tem sombras.
Ignora-as (elas o aterrorizam
com suas histórias).

Mas as sombras
tentam entrar pela janela entreaberta.
Espreitam
    (invisíveis)
desde as paredes do quarto do quadro do artista.

A loucura perambula pela casa amarela.
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PERSPECTIVA

Uma fileira de velas
sobre a aba do chapéu de Van Gogh
queimando sonhos na noite turbulenta.

As cores vibram
(quase fogo incandescente)
de perto ofuscam a lógica
- perdem-se no mundo subterrâneo
os contornos que falam à razão.

De longe - formas e cores
poetizam o mundo.

Fontes: 
Lançamento do livro, pela poetisa
Isabel Furini. Os Corvos de  Van Gogh. 1. ed. Pará de Minas/MG: Virtual Books, 2012.