terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Monteiro Lobato (O fígado indiscreto)


Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados está provado — a contrario sensu. Sem eles, como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo sem maiores consequências afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos inoportunos põem termo a duos de sofá em sala momentaneamente deserta?

Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e o borracho parte o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá apanha Romeu e Julieta em flagrante contato de mucosas petrificando-os com o clássico: “Que pouca-vergonha!...”.

Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina. Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro, e isso lhe estragou o casamento com a Sinharinha Lemos, boa menina a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.

Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado. O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para mal seu, o acanhamento — e daí proveio a catástrofe...

Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus um possível futuro parente.

Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo um tanto desmontado com o papel de galã à força que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o sobre coisas do coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha” — tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.

Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: “Quando os doces, seu Inácio?”.

Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. Por dá cá aquela palha o pobre rapaz mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe dona Luísa um bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.

Esquisitice do Inácio: nascera com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar de fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez o seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se, repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal dona Luísa o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo, mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois, três e glug!, engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, imóvel, a revolução intestina.

Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitarem o suplício daquele mártir posto a tormentos de uma nova espécie.

— Você já reparou, Miloca, na “ganja” da Sinharinha? — disse a sirigaita de “beleza” na testa. — Está como quem viu o passarinho verde... — e olhou de soslaio para Inácio.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída: tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento.

Era mister atacá-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e — um, dois, três: glug! — lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.

Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente e seus olhos volveram outra vez às visões habituais.

Estava nessa doce beatitude, quando:

— Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado — disse dona Luísa, vendo-lhe o prato vazio. — Repita a dose.

O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E fora de si outra vez o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

— Não! Não! Muito obrigado!...

— Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se pela por uma isca.

— Iscas são comigo — confirmou o velho. — Lá isso não nego. Com elas ou sem elas, nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.

E não houve salvação. Veio para o prato de Inácio um novo naco — este formidável, dose dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Conrad — ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso de Nora de Ibsen na Casa de bonecas, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.

E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, rebuliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e metê-lo no bolso.

Salvo! Nem dona Luísa nem os vizinhos perceberam o truque — e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.

Antes da dançata lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.

— A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano. Ela... Nem assim? Mauzinho!... Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A Doida de Albano? Conheço, sim, é linda, embora um pouco fora da moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...

Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a Doida de Albano. Pelo meio dessa hecatombe em verso, ali pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembrou-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço vem o fígado, que faz plaf! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras de instinto, salvam o lance.

Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lho pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...

Inácio recitava. Recitou, sem música, o Navio negreiro, As duas ilhas, Vozes da África, O Tejo era sereno.

Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou O corvo de Edgar Poe, traduzido pelo senhor João Kopke; recitou Quisera amar-te, o Acorda donzela; borbotou poemetos, modinhas e quadras.

Num canto da sala Sinharinha estava chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?

Inácio, firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa) e, falto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas.

E declamou As armas e os barões, Estavas linda Inês, Do reino a rédea leve, o Adamastor — tudo!...

E esgotado Camões ia-lhe saindo um “ponto” de Filosofia do Direito — A escola de Bentham —, a coisa última que lhe restava de cor na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má morte...

O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio teve de mudar de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato não se contentava de comer e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia…

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Escrito em 1904, publicado em 1919.

Minha Estante de Livros (Riacho Doce, de José Lins do Rego)


Em Riacho Doce, José Lins une amor e petróleo. Um casal de suecos vem para o Brasil, para Alagoas, e a loura Edna se extasia com a força tropical do Brasil, que ela descobre. Apaixona-se por um mestiço nordestino, Nô, uma das figuras mais empolgantes de toda a ficção numerosa de Zé Lins. O amor de Edna e Nô é o núcleo desse romance que é um dos mais ardentemente humanos do mestre José Lins do Rego, esse contador de histórias inesgotável, impregnado de oralidade.

Como em "Pureza", como em "Água Mãe", estamos aqui fora do Ciclo da Cana-de-Açúcar. Mas ainda estamos em pleno Nordeste. A narrativa é de uma atualidade absoluta, porque os suecos vieram para o Nordeste a serviço da exploração do petróleo. Engenharia, petróleo, amor, o simples amor, o puro amor aqui se associam na prosa extremamente vegetal, espontânea, telúrica, flexível de alguém que soube como raros aliar organicamente literatura e vida.

Seu estilo neste romance é um milagre de naturalidade e de intimidade com a natureza ou integração na própria natureza exterior. E há que se salientar o processo de análise psicológica, que consiste na repetição sistemática de certos dados. A figura da Mãe Aninha é perfeita como observação da psicologia supersticiosa.

José Lins uniu como ninguém memória e imaginação, primitivismo e arte, povo e ficção. Personagens nativas e rústicas se misturam a essa estranha sueca, fascinada pelo mundo bárbaro e poderoso de um Nordeste que é todo a verdade vista e vivida. Mãe Aninha e Nô saltam diante dos nossos olhos como criações exatas, inesquecíveis.

José Lins está preso à tradição dos cantadores nordestinos. A sua prosa, de um coloquialismo gostosíssimo, único, é bem a fala autêntica de uma feira do Nordeste. Como em toda a obra ficcional de Lins do Rego, o Nordeste está presente neste romance, de forma dramática.

A sueca misteriosa vem descobrir sensualmente a força telúrica do Nordeste rústico, o ritmo popular, os sabores e os cheiros, as formas, as cores, a vida intensa de uma região que é o mundo perene desse grande narrador em contato amoroso com a vida.

José Lins do Rego é apaixonadamente povo, é vigorosamente povo nas páginas deste romance forte e ardente, que é um ato de amor à vida sumarenta. Há aqui um fundo lirismo tropical, um instintivismo, um calor humano, um sopro de poesia genuína que faz deste romance de 1939 uma afirmação plena de maturidade artística.
”      (Antonio C. Villaça)

Desde as primeiras páginas, a narrativa de Riacho Doce se apodera de nós, impondo-nos ao seu ritmo. Em todo ciclo da cana-de-açúcar o que é ação não deixa margem para discussões ociosas, uma vez que apresenta com a força dos fatos consumados, independentes do arbítrio do autor, que é como se apenas os tivesse recolhido. Por isso mesmo, não se queira sujeitar às regras habituais da construção do romance e da composição das figuras uma obra nascida diretamente da vida e que, visivelmente, José Lins do Rego não tem, mais do que nós, o poder de alterar. Ele não é tanto um verdadeiro romancista, mas antes um narrador, o recitador admiravelmente vivo de uma realidade que não lhe é possível senão transpor e revivificar.

Essa conclusão ajusta-se perfeitamente às indicações que o estudo da forma pode fornecer. Para alguns, essa forma é a falta de estilo, seria antes um informe literário, o gênero mal-escrito. Juízo apressado, fruto de lamentável confusão. Por não ser literário, no sentido que hoje se empresta à palavra, o estilo de José Lins do Rego não deixa de existir; é, ao contrário, dos mais característicos, dos mais saborosos, que possuímos. Apenas não é o estilo escrito a que estamos habituados, mas os dos recitadores orais, haurido diretamente na fonte da linguagem viva. É isso, precisamente, que lhe dita o ritmo da narrativa.

Dir-se-ia, até, que a própria ação nasce, em grande parte, daí: é o estilo oral que atrai e liga os episódios, que delineia os personagens, que dá unidade à obra e em certo sentido a compõe, não como coisa que escreve, mas como coisa que viveu. É ainda esse estilo que permite ao recitador atingir, como tantas vezes acontece na obra, um plano quase poético, uma interpretação que, no fundo, é lírica, da vida e do mundo das suas criaturas.

A exposição de certos estados subjetivos, tão frequentes e de tais consequências na obra de José Lins do Rego, não é analítica, mas descritiva, e feito nos termos de estilo oral, como que taquigrafado pelo autor, muito mais próximo dos cantadores de todos os tempos que dos romancistas-escritores dos nossos dias.

Em Riacho Doce, José Lins reúne amor e petróleo. Um casal de suecos vem para o Brasil, para Alagoas, e a loura Edna se extasia com a força tropical do Brasil, que ela descobre. Apaixona-se por um mestiço nordestino, Nô, uma das figuras mais empolgantes de toda a ficção numerosa e rica de José Lins. O amor de Edna e Nô é o núcleo desse romance que é um dois mais ardentemente humanos desse contador de histórias inesgotável, impregnado de oralidade.

Personagens nativas e rústicas se misturam a essa estranha sueca, fascinada pelo mundo bárbaro e poderoso de um Nordeste que é todo verdade vista e vivida. Mãe Aninha e Nô saltam diante dos nossos olhos como criações exatas, inesquecíveis.

Sem ser porventura uma das suas obras mais individualmente destacáveis, Riacho Doce conserva o mesmo valor documental, a mesma significação crítica, a mesma força novelística e as mesmas belezas das outras obras do escritor.

Em Riacho Doce, José Lins do Rego nos dá a sua visão possante dos desequilíbrios sociais e dos dramas humanos individuais e coletivos, provocados pelo problema do petróleo em Alagoas. Tudo decorre deste trágico problema da nossa vida contemporânea. As marés sucessivas de entusiasmo, de desapego às tradições, provocadas pelo engodo da riqueza, e das desconfianças supersticiosas e cóleras nascidas das desilusões naquela mansa terra de pescadores, são descrições de psicologia coletiva das mais vivas e reais que o romancista já fez. A psicologia de Edna, a fraqueza supercivilizada do engenheiro sueco, a Mãe Aninha que é a melhor análise de psicologia supersticiosa já feita pelo romancista, são todos seres de vida empolgante. De Nô se dirá a mesma coisa, talvez a figura de mestiço, ou melhor, talvez a figura popular mais delicada, mais impressionantemente exposta em todas as incongruências e males de sua condição, da nossa literatura. Não será mais profunda, mais humana que a do moleque Ricardo, mas é de uma delicadeza incomparável.

E páginas como a descrição dos primeiros tempos de Edna no Riacho Doce, numa linguagem saborosa, ou capítulos como o do estouro da Mãe Aninha, em que a maldição é criada com uma intensidade trágica maravilhosa, são verdadeiramente passos geniais.
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Complemento:
Riacho Doce foi minissérie exibida pela Rede Globo de 31 de julho a 5 de outubro de 1990 com duração de 40 capítulos. Escrita por Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretzsohn, com a colaboração de Márcia Prates e dirigida por Paulo Ubiratan e Reynaldo Boury foi baseada no romance homônimo de José Lins do Rego. Gravada em duas partes de Pernambuco, no arquipélago de Fernando de Noronha e na praia de Carne de vaca, distrito de Goiana (última praia pernambucana, fazendo "fronteira" com o litoral Paraíbano). (wikipedia)

Fonte:
Prof. Jayro Luna. Site Orfeu Spam Apostilas.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Olivaldo Júnior (Três Microcontos sobre Escritor)


A PENA MÁGICA


Nunca pensou que se tornaria um escritor. Muito menos um escritor de sucesso. Mas estava feito. Acumulava, ano após ano, um prêmio após o outro na estante dos troféus.

Convidado para todas as festas literárias possíveis e imaginadas, vivia de uma para outra, com um copo na mão e palavras nos lábios que agradavam a todos. Era o maior.

No entanto, mesmo com todo o sucesso, a cada vez que se sentava para escrever, tomava de sua pena mágica, uma velha caneta BIC, esferográfica mesmo, e começava do zero.
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A MUSA INSPIRADORA

Antônia tinha muitas qualidades, mas, sem dúvida, a maior delas, era ter sido declarada musa inspiradora de um velho amigo escritor, a quem tanto dera motivos para inspirá-lo.

Não, Antônia não era linda, nem possuía atributos intelectuais dignos de qualquer volume da Enciclopédia Britânica (ainda existe isso?). Antônia era musa por ser simples.

Seu cabelo, preto, liso natural, era na altura do ombro. Sua pele era do tom da pele amorenada do País. Altura média, peso idem, nada demais. Mas era única. Era a Antônia.
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O TRISTE ESCRITOR

“Deixe-me ir, preciso andar / Vou por aí a procurar / Sorrir pra não chorar”, cantava Cartola no velho toca-discos do triste escritor de meia-idade que não tinha “dado certo”.

Sob o cabelo que ia raleando, já com uns e outros fios de um cinza pálido, o triste escritor escrevia sempre que dava, mas dava na vista que não era um sucesso. Andava sem paz.

Se alguém por mim perguntar / Diga que eu só vou voltar / Depois que eu me encontrar”... Se tivesse conhecido Cartola!... Fez da noite sua musa. Da lua, sua estrela.
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Olivaldo Júnior, trovador, escritor, músico e cantor, nasceu em Aguaí, São Paulo, mas mora em Mogi Guaçu, cidade vizinha, desde menino. Formou-se em Licenciatura Plena em Letras, Habilitação em Português e Inglês, pelas Faculdades Integradas Maria Imaculada. De vez em quando, participa de concursos literários, obtendo algumas premiações.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) VI


CINZAS


Foi pisando nas cinzas do passado
que entre as cinzas dos sonhos tropecei!
Tantas cinzas de sombras ao meu lado,
que aos encantos das cinzas me abracei!

Sobre as cinzas do chão já castigado,
eu nem sei quantas sombras eu beijei;
mas ao ver, de saudade, o chão bordado,
a tristeza da infância, eu disfarcei!

Ante as cinzas do tempo envelhecendo,
meu passado distante foi morrendo
como quem diz adeus, à primavera...

E eu sozinho, naquela solidão,
vi nas cinzas tristonhas do meu chão,
minha infância, nas cinzas da tapera!
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MÃE

Eu procuro nas línguas pelo mundo,
desde o tempo da escrita cuneiforme,
um só termo, que diga e que me informe,
a grandeza de mãe, num só segundo!

Esse amor que a mãe sente, é tão fecundo,
que em palavras, por mais que se reforme,
há um espaço tão grande e tão enorme,
que na vida, o que eu penso, eu me confundo.

Ninguém diz, eu não sei nem ninguém sabe,
o lugar que se esconde e onde é que cabe,
a grandeza do amor, que é tão sublime...

E que a mãe tem no peito um relicário,
e as três letras são chaves de um sacrário,
onde guarda esse amor, que a dor redime!
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MEMÓRIA

Esta dor que me fere e me magoa
quando lembro da minha mocidade,
pouco me importa que ela tanto doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente eu vou lembrando,
de saudade em saudade eu vou vivendo,
mas não posso esquecer de quando em quando,
que em teus braços, aos poucos vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice,

mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre na lembrança
a saudade feliz da meninice!
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OFENSAS

Eu não quero jamais, que chegue o dia,
dessa triste e cruel desilusão;
em que o povo mantenha a mão vazia,
sem poder apertar mais outra mão.

Eu nem penso na triste covardia,
de outro alguém machucar meu coração;
é que eu vejo, na Luz que me irradia,
a ternura do olhar de um outro irmão.

Por ser justo, ao mal feito, eu não me rendo,
e se alguém me bater, eu não me ofendo
nem procuro as razões dos oprimidos...

Que entre mágoas, ofensas e rancores,
a vergonha maior dos ofensores
é escutar o perdão dos ofendidos!
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SAUDADE

Se a saudade de alguém chega a ferir
e, sem pena, maltrata e faz chorar,
é porque, no silêncio, espera ouvir
o que a voz do silêncio quer falar.

A saudade é um disfarce e, em seu olhar,
traz o brilho da luz que quer pedir;
mas nem pede licença para entrar
nem sequer, permissão para sair.

A saudade é a pior das inquilinas,
mas de todas as sombras femininas,
é irmã gêmea do pranto de quem chora...

E essas cruzes de dor, entre os escombros,
tirarei todas elas nos meus ombros,
se essa velha inquilina for embora!
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SENTIMENTOS

Quando o dia se apressa e vai embora,
num silêncio que fere e que angustia,
a tristeza me invade e me devora,
nas horas sepulcrais, do fim do dia.

Como quem diz adeus e triste chora,
vai-se o sol delirando de agonia,
e a cortina da noite, Deus decora,
com luz tênue, de vã melancolia.

Distante, bem distante, muito além,
a tristeza me acena, como quem
se despede de alguém, que já morreu,

Fontes:
– Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.
– Sonetos “Memória” e “Sentimentos” – obtidos em Ademar Macedo. Mensagens Poéticas 691 e 666.

Truman Capote (Onde o mundo começa)


A senhorita Carter já estava explicando as esquisitices da álgebra há uns vinte minutos. Sally olhou com raiva para as alças em forma de cobra do relógio da classe, restavam apenas 25 minutos, e então, liberdade... a doce e preciosa liberdade.

Olhou para a folha de papel amarelo à sua frente pela centésima vez. Vazia. Ora, ora! Sally deu uma olhada ao redor, contemplando com desprezo os dedicados alunos de matemática. "Droga", pensou, "até parece que vão ter sucesso na vida só por somarem um monte de números, e aqueles xis que não fazem sentido mesmo... Droga, esperem só até cair no mundo!"

Exatamente o que significava cair no mundo ou na vida ela não sabia muito bem, mas os mais velhos a haviam levado a acreditar que era uma terrível provação que teria de enfrentar em algum momento futuro bem definido.

"Ê, ê", resmungou, "lá vem a Robô." Ela chamava a senhorita Carter de "Robô" porque era exatamente o que ela lhe lembrava, uma perfeita máquina, precisa, azeitada e fria como aço. Rapidamente rabiscou um emaranhado de números ilegíveis no papel amarelo.

"Pelo menos" pensou Sally, "ela vai pensar que estou estudando."

A senhorita Carter passou por ela sem nem olhar. Sally deu um profundo suspiro de alívio. Robô!

Sua carteira ficava bem ao lado da janela. A sala de aula ficava no terceiro andar do Colégio e dali ela descortinava uma bela vista. Ela se voltou para fora. Seus olhos se dilataram, ficaram vidrados e cegos...

— Este ano, estamos muito felizes de entregar o Prêmio da Academia de melhor interpretação à senhorita Sally Lamb, por seu inigualável desempenho em Desejo. Senhorita Lamb, queira receber o Oscar em meu nome e no nome de nossos colaboradores.

Uma linda e espetacular mulher estende a mão e toma a estatueta de ouro nos braços.

— Obrigada — diz, numa voz profunda e sonora.

— Acho que quando algo maravilhoso assim acontece com alguém, a pessoa deve fazer um discurso, mas me sinto grata demais para dizer alguma coisa.

Então ela se senta, com os aplausos ressoando nos ouvidos. Bravo, senhorita Lamb. Muito bem! Clap, clap, clap, clap. Champanhe. Vocês realmente gostaram de mim? Um autógrafo? Mas é claro... Como é mesmo o seu nome, meu querido?... John? Oh, em francês, Jean... Muito bem... "Para Jean, amigo querido, Sally Lamb." Um autógrafo, por favor, senhorita Lamb, autógrafo, autógrafo... Estrela, dinheiro, fama, linda, glamourosa... Clark Gable...

— Está ouvindo, Sally?

A senhorita Carter parecia bem zangada. Sally pulou no assento, assustada.

— Sim, senhora.

— Bem, se está prestando tanta atenção assim, talvez possa explicar este último problema que expus no quadro.

O olhar da senhorita Carter percorreu a sala com arrogância.

Sally contemplava o quadro perplexa. Sentia os olhos frios da Robô sobre si e ouvia os risinhos dos fedelhos. Seria capaz de sufocar todos eles até ficarem com a língua de fora. Malditos. Ela estava mesmo perdida, todos aqueles números, os quadrados, os xis malucos, tudo grego!

— Exatamente o que eu achava — declarou a Robô, triunfante. — Sim, exatamente o que eu achava! Estava de novo no mundo da lua. Gostaria de saber o que se passa nessa cabeça... certamente não tem nada a ver com a matéria de classe. Para uma garota tão... tão burra, podia pelo menos fazer o favor de nos dar alguma atenção. Não é só você, Sally, mas você perturba a classe toda.

Sally inclinou a cabeça e começou a traçar pequenos desenhos absurdos na folha de papel. Sabia que seu rosto estava vermelho, mas não era como aqueles retardados que ficavam dando risadinhas e fazendo papel ridículo toda vez que a professora vociferava com eles - nem mesmo a velha Robô.

COLUNA DE FOFOCAS:
Qual debutante número um da temporada que tem como iniciais Sally Lamb foi vista namorando no Stork Club o playboy milionário Stevie Swift?

— Oh, Marie, Marie — chamou a linda jovem deitada na enorme cama de seda. — Traga-me a nova revista Life.

— Sim, senhorita Lamb — respondeu a empertigada criada francesa.

— Rápido, por favor — insistiu a impaciente herdeira. — Quero ver se o fotógrafo fez justiça; minha foto está na capa esta semana, sabia? Oh, e aproveita para me trazer um sal de fruta... dor de cabeça terrível, champanhe demais, provavelmente.

RÁDIO:
Mocinha rica faz sua estreia esta noite. O tão esperado acontecimento social da temporada apresentará Sally Lamb à Sociedade num espetacular Baile de Dez Mil Dólares. Nada mau para começo de conversa! Plumas e paetês...

— Quer fazer o favor de passar suas folhas adiante? Depressa, por favor!

A senhorita Carter batucava impaciente com os dedos em sua mesa.

Sally passou seu dever ilegível sobre o ombro do garoto de rosto rosado que sentava à frente. Crianças. Droga. Pegou seu grande manual encadernado de xadrez escocês, procurou lá dentro e apanhou a caixa de pó de arroz, o batom, o pente e o lenço de papel. Contemplou-se no espelho do pó de arroz enquanto passava o batom nos lábios bem torneados. Framboesa. A mulher alta e provocante admirava a própria imagem num gigantesco espelho de moldura dourada numa das mais espetaculares residências da Alemanha. Ajeitou um fio rebelde de cabelo em seu sofisticado penteado prateado.

Um bem apessoado cavalheiro moreno inclinou-se para beijar seus ombros nus. Ela consentiu um leve sorriso.

— Ah, Lupé, você está adorável esta noite. Você é tão linda, Lupé. Sua pele, tão alva, seus olhos... Ah... você não imagina o que provocam em mim.

— Hum — ronronou a dama —, é aí que você se engana, General.

Aproximou-se de uma mesa de mármore e apanhou duas taças de vinho, jogou três pílulas numa delas e a entregou ao General.

— Lupé, preciso vê-la com mais frequência. Jantaremos toda noite quando eu voltar do front.

— Ohhh, e o meu docinho terá de ir para onde ocorrem os combates?

Seus lábios de framboesa estavam próximos dos dele.

Como você é inteligente, Sally, pensou ela.

— Lupé sabe que eu tenho de executar os planos de manobra do exército no front, não sabe, Lupé?

— E os planos estão aí com você? — perguntou a encantadora quinta-colunista.

— Sim, mas é claro.

Ela percebeu que ele estava desmaiando, com os olhos cada vez mais vidrados e parecendo muito bêbado. Quando afinal a Mata Hari terminou sua versão 1928, o General estava esticado aos seus pés. Ela se agachou e começou a dar uma busca no casaco dele. De repente, ouviu passos de botas lá fora... seu coração saltou...

O sinal disparou, estridente. Os alunos correram em algazarra para a porta. Sally guardou seus artigos de maquiagem na bolsa, juntou os livros e se preparou para sair,

— Um minuto, Sally Lamb — chamou a senhorita Carter. De novo a Robô. — Volte aqui um minuto... quero falar com você.

Quando se aproximou da mesa, a senhorita Carter tinha acabado de preencher um formulário, que lhe entregou.

— É um documento para a sala de castigo, você vai para a sala de castigo até o fim da tarde hoje. Já lhe disse inúmeras vezes que não quero que fique se empetecando na sala de aula. Por acaso quer que todos nós peguemos seus germes?

Sally enrubesceu. Tinha horror a qualquer referência a sua anatomia ou coisas do tipo.

— E outra coisa, mocinha, ainda não entregou seu dever de casa... Bom, como já disse, você é quem decide se quer fazer seu trabalho ou não... E certamente não é nenhuma pedra no meu sapato...

Sally ficou se perguntando vagamente se teria alguma pedra no seu sapato... ou quem sabe um seixo?

— ...     você deve saber que será reprovada na matéria. Não consigo entender como é que alguém pode perder tanto tempo assim... não entendo mesmo... não tem como. Acho que seria melhor se você largasse este curso, pois, para ser franca, não a considero mentalmente capaz. Eu... eu... espere aí... onde é que acha que...

Sally jogou os livros na mesa e saiu correndo da sala. Sabia que ia começar a chorar, e não queria... não na frente da Robô.

Maldita mulher! Que é que ela sabe da vida? Não sabe de nada, só um monte de números... Maldita seja!

E foi abrindo caminho pelos corredores apinhados.

O torpedo caíra cerca de meia hora antes e o navio afundava rápido. Era mesmo uma sorte! Sally Lamb, a mais reputada jornalista da América, exatamente ali no lugar e na hora certos. Tinha tirado sua câmera da cabana inundada. E ali estava ela, tirando fotos dos refugiados que tentavam subir nos botes salva-vidas e dos seus colegas jornalistas, correndo risco de vida no mar revolto.

— Ei, moça — chamou um dos marinheiros. — Você aí, é melhor subir neste bote, acho que é o último.

— Não, obrigada — clamou ela em meio ao ruído das águas e o uivar do vento. — Ficarei aqui até concluir a reportagem.

De repente, Sally riu. A senhorita Carter e os xis e todos aqueles números pareciam muito, muito distantes.

Ela estava muito feliz ali, com o vento soprando seus cabelos e a Morte rondando por perto.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Truman Capote (Truman Streckfus Persons) nasceu nos Estados Unidos, no dia 30 de setembro de 1924. Filho de pais separados viveu parte de sua infância na casa de parentes no Alabama. Foi um escritor, roteirista e dramaturgo norte-americano, o pioneiro do jornalismo literário. Sua obra de maior destaque foi "Bonequinha de Luxo”, levada ao cinema em 1961 e eternizada por Andrey Hepburn. Durante seis anos de minuciosa pesquisa, Capote publicou o célebre romance A Sangue Frio, em 1966, obra que o consagrou como um escritor de fama internacional, no qual reconstitui de forma documental o assassinato de uma família do Kansas. O livro revolucionou a literatura criando o gênero jornalismo literário e tornou-se um best-seller.
Faleceu em Los Angeles, Califórnia, no dia 25 de agosto de 1984.


Fonte:
Truman Capote. Antologia de vinte contos. Publicado em 2004.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 32) Distorções de um Cotidiano


O SUJEITO TOMADO pelos vapores do álcool, quase a ponto de cair de maduro, entrou no ônibus com dificuldade e, a muito custo pagou a passagem. Assim que cruzou a roleta, deu uma parada básica e espiou, como um sentinela sem guarita, para um ponto acima da cabeça dos passageiros que estavam sentados. Avistou, então, depois do reservado aos deficientes, um lugar vazio, ao lado de uma moça de cabelos vermelhos que se entretinha com seu aparelho celular, naturalmente jogando alguma coisa para se distrair até que chegasse seu ponto de destino.

Um flash de luz se acendeu dentro de sua irresponsabilidade travessa. Lento e cambaleando em tropeços deselegantes de seus próprios impasses, segurando aqui e ali, o aventureiro conseguiu chegar até ela. Pediu licença e se instalou, ou melhor, se jogou com tudo, se estabanando pesado, como um Mané, completamente destituído dos modos elegantes de um cavalheiro que se preza e sabe se portar de maneira educada ao lado de uma garota distinta. A jovem, com o seu baque, o mediu de cima em baixo, com um par de olhos verdes e, em seguida, se achegou mais contra o canto da janela e voltou a se preocupar com a tela de seu celular:

— Disculpi, foi maul... —  grunhiu à guisa de explicação.

— Tudo bem, esqueça.

Junto com estas palavras, a beldade lhe endereçou um sorriso sem graça, mais por educação que por simpatia e continuou firme, voltada com os sentidos atentos para o que fazia, sem dar mais confiança ao insolente. A certa altura, todavia, o pinguço, sem o abrigo da sobriedade, puxou conversa:

— Comu é seo nomi?

— Monica.

— O que está jogano?

— Paciência.

— É boum o passatempu?

— Dá pra enganar o tédio das horas.

— Faiz tempu qui si dedica ao gostu apuradu por porcarias?

— Não acho que seja... É bem legal...  

Percebendo que a formosa lhe ignorava dando o maior gelo, não lhe dando brechas, tampouco sustentando a conversa, respondendo apenas com duas ou três palavras, partiu para o ataque:

— ‘Possu lhe fazê otra pregunta?’

— Sem problema...

— Nãum vai mi levá à mal?

— Por que chegaria a tal disparate? Meus pais me ensinaram a ser educada...

— Legaul. Vamu lá. Seguinti... A senhorita é meia esquisita e feia assim mermo, ou é meus olho que está me enganano?

A interpelada corou vigorosamente por trás da sua graciosidade. Todavia, não perdeu a linha, nem a compostura.

Encarou, com toda a seriedade que lhe foi possível juntar naquele momento e se dirigiu, fulminante, para o engraçadinho mandando a resposta, na lata:

— Pior é o senhor. Olhe para isto! Um traste. Além de bêbado e chato, fedendo a carniça e me causando asco. O cheiro da sua pinga nojenta e barata me dá vontade vomitar...

Fez uma breve pausa como para tomar fôlego e prosseguiu, altiva:

—... Sem falar nas suas roupas, que exalam alguma coisa tipo assim azeda, ou podre, sei lá. Amigo, vê se te enxerga e me deixa em paz.

O alcoólatra, no afã da sua insubordinação, e extremamente alterado e fora de si, pelo mutismo da sua companheira de assento, não deixou por menos. Rebateu, à alta voz, num script sem ensaio, chamando a atenção de outros anônimos sentados próximos:

— Minha quirida, olhe beim pra meus cornu e se lembri de uma coisa. Daqui a poco, ou mais tardá amanhã, eu estarei novo em folha e curado. Sem chero algum... Já a senhorita, continuará tão lambisgoia e marmota como agora.

Visivelmente irritada, a bela representante do sexo oposto, se conteve. Ato contínuo, pediu licença, se levantou, puxou a campainha do sinal e desceu. O engraçadinho continuou no mesmo lugar, cantando e rindo alto e falando palavrões a mais não poder, como se nada de anormal tivesse acontecido.

Resolveu, porém, na sua estupidez insensata, sair novamente da gaiola de seus excessos e voar mexendo com outra recém chegada, desta feita, uma estudante aparentemente na faixa dos quinze anos, que entrou um quilômetro ou dois, adiante. Carregava consigo uma mochila pesada e se esparramou ofegante no banco à frente do perturbado. O sem modos não demorou para colocar as unhas de fora. Passou as mãos nos cabelos longos e encaracolados da guria.

Deu BO. Três sujeitos que viajavam em pé, nos degraus da porta de saída dos fundos, resolveram interferir. Compraram a briga. Partiram literalmente para cima do bebum com tudo. Pegaram o insolente de porradas. Distribuíram certeiros tabefes, seguidos de uma dúzia de pernadas e outros tantos de safanões e bordoadas. Logo depois das carícias, numa das paradas, atiraram o biriteiro como um saco vazio para fora do coletivo, a fuça deformada, as roupas em pandarecos.

Seus costados e dissabores se desfizeram esparramados numa poça de sangue e sujeira. Daí para frente, o ‘quarenta janelinhas’ seguiu a sua viagem normal, pegando um aqui, desembarcando outro ali. Quem assistiu a cena e seguiu até o final da linha não se se meteu nem contra, nem a favor do mala sem alça e seus espalhafatos, por conta, caíram no esquecimento.

Manhã seguinte, saiu no jornal, primeira página, em letras garrafais: "FUZUÊ NA VOLTA PRA CASA". A notícia, dava destaque ao fato, informando que... "Um pobre e infeliz trabalhador, se viu molestado e roubado dentro de um transporte público. Seus agressores, não contentes em lhe subtraírem todos os pertences, ainda lhe aplicaram uma tremenda surra e, subsequentemente, lhe jogaram para fora da condução. A vítima foi encaminhada para o hospital por populares que passavam pelo local e acionaram o SAMU. Uma viatura da Polícia Militar seguiu na captura dos meliantes. Ninguém foi preso".

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 476

 


José Eduardo da Costa Batista (O fim do mundo)


Mas é o fim do mundo, professora! Redação? Ninguém merece isso, justo no primeiro dia de aula! Quer coisa mais chata do que escrever sobre as férias? Escrever já não é bacana, ainda mais sobre as férias. Não que elas não tivessem sido maneiras, mas transformar todas as peripécias em sujeitos, verbos e complementos não é muito a minha praia. E como é que dois meses inteirinhos vão caber em vinte linhas? E o causo da velha e o cachorrinho, que foram quase duas semanas para se resolver. Definitivamente, voltar para as aulas não é muito divertido.

Comprei meus materiais logo no início do mês e todos os dias os verificava para ver se estavam em ordem. Fiz aberturas em todas as matérias, desenhos de lápis, livros, pessoas felizes, para chegar ao grande dia e ouvir: “Escrevam como foram suas férias”.

Já nem estou mais com tanta vontade assim de estudar. No final do ano passado estava atolado de exames e recuperações, até nasceram alguns fios brancos de cabelo, mas prometi que agora faria tudo diferente, iria estudar feito camelo. Mas como camelo não estuda, então, não estou fugindo da promessa.

Sempre confundo o dia Independência com o da Proclamação da República e agora soube que vou ter que ler Alencar de Assis, ou seria Machado? E se não bastasse, a professora disse iniciamos o ano com um assassinato, o dos hífens, tremas e alguns acentos. Nem sei mais como vou comprar linguiça no mercado. Não importa, o que eu quero mesmo é me divertir com os amigos, reencontrá-los e colocar todos os boatos em dia.

E vejam, lá se foram quase quinze minutos de aula e eu nem comecei a minha redação. Nem me lembro como se começa uma. Se ao menos eu pudesse copiar de alguém. Mas aí não seriam as minhas férias. Se tem uma coisa que sou é honesto. Honestidade para mim é tudo. A próxima aula é de matemática, logo trocarei o pesadelo da redação pelo emaranhado de fórmulas e gráficos. Tudo graças ao tal do tio Pitágoras, que não tinha nada para fazer e foi inventar a fórmula de Bhaskara. Ou será que foi o Einstein? Não vejo à hora de ter aula de química, até porque a única química que existe é entre mim e a Maria. E falando nela, acho que terminou.

Quase todos já terminaram e eu aqui mostrando a minha indignação, que já devem ter superado vinte linhas. O que me importa agora é acabar de vez com essa tortura.

É por isso, querida professora, que não troco as minhas férias de dois meses (só a velha e o cachorro já valeu a pena), que foram inesquecíveis, por vinte linhas.

Fonte:
BATISTA, José Eduardo da Costa. O fim do mundo. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. Disponível em Universidade Tuiuti do Paraná, Departamento de Letras.  www.utp.br/eletras.

Baú de Trovas XXVII


1

É cidadão do Universo
o poeta e trovador
por consagrar no seu verso
a virtude, a paz e o amor.
Alfredo Barbieri
2
Virtude tem a videira
que, torcida, magra e dura,
extrai vida, a vida inteira,
da mais agreste secura!
Ana Cecília Ferri Soares
3
Temendo a desilusão,
fugi da felicidade
e agora em meu coração,
não encontro nem saudade.
Argemira F. Marcondes
4
Com talento especial
nossos grandes sonhadores
dão vida à obra imortal;
"Meus Irmãos, os Trovadores!"
Ari Santos de Campos
5
Lembro o sertão, seu encanto,
a lua cheia tão minha,
sem nada eu ter, tinha tanto,
naquele nada que eu tinha!
Campos Sales +
6
Sem notar que a vida passa,
esta canção me extasia;
meus netos correm na praça
onde, em criança, eu corria!
Carolina Ramos
7
Pretendo dar-te universos,
dar-te amor de formas novas,
pondo minha alma nos versos
e versos na alma das trovas!
Delcy Canalles
8
Se foi amor... eu não sei.
Sei que, após muitos fracassos,
quando, afinal, regressei
abrimos, juntos, os braços!
Divenei Boseli
9
Levando a vida tão crua,
com a fome pela frente,
qualquer criança da rua
vira adulto sem ser gente.
Domingos Freire Cardoso
10
Na penumbra da noitinha
a estrela, piscando ao léu,
parece abraçar, sozinha,
todo o mistério do céu.
Dorothy Jannson Moretti +
11
Na cidade maltratada,
não há sombra nem abrigo,
e a vida, mal suportada,
não dá prazer, é castigo.
Eduardo Domingos Botallo
12
Alma, parceira perfeita
nos rumos que trilho a esmo,
meu livre arbítrio respeita
e me guarda... de mim mesmo.
Élbea Priscila de Sousa e Silva
13
Perdoa, meu Deus, bendito
a terra que te magoa;
na humanidade, acredito,
ainda existe gente boa!!!
Ercy Maria M. de Faria
14
Não sei bem em que momento
começou a despedida,
mas hoje sinto o tormento
da sua real partida...
Hélio Castro
15
Meu sorriso de criança
perdeu-se na meia-idade.
Se foi "sorriso-esperança",
hoje é "sorriso-saudade".
Ivete Cury
16
Eu vi queimar os encantos
dos sonhos deste menino
e transformá-los em prantos
na fornalha do destino.
José Gilberto Gaspar
17
Unindo-me a ti pensei
"união de eternos laços..."
Hoje eu vivo como um rei
enlaçado em seus abraços!...
José Manoel Veloso Galvão
18
Em silêncio, sem alarde,
nosso amor se fortalece:
trocando beijos à tarde
e abraços, quando anoitece.
José Roberto Pereira da Silva
19
Nenhuma palavra explica,
para acalmar nossa queixa.
0 vazio que nos fica
quando a esperança nos deixa.
José Tavares de Lima
20
Da peraltice em criança,
da canjica e do torresmo,
não há só uma lembrança:
– É muita saudade mesmo!
Jupyra Vasconcelos
21
Nesse exílio a que me exponho,
não senti que era miragem
e dos pedaços do sonho
eu recompus tua imagem.
Luiz Carlos Abritta
22
Se um adeus é dor tamanha,
estilhaça o coração,
regresso é imã que apanha
cada pedaço no chão...
Maria Helena Calazans M. Duarte
23
Não temo a fúria do mar,
nem seus rugidos medonhos!
Ele é incapaz de afundar
minha esperança e meus sonhos!!!
Maria Madalena Ferreira
24
E por medo da saudade
que, ao perdoar teus deslizes,
vou fingindo que é verdade
cada mentira que dizes.
Marta Maria 0. Paes de Barros
25
Muito embora um tanto arisco,
meu azulão, jejuando,
é um perfeito São Francisco
a pão e água... passando!
Maria Nelsi Sales Dias
26
Os amigos são encanto
que enriquecem nossas vidas,
enxugam o nosso pranto
e curam nossas feridas.
Mieko Usuda Miyake
27
Paciência teve Jó,
que tantas dores sofreu,
perdeu tudo, ficou só,
mas sua fé não morreu.
Mifori
28
Teceu com certa maldade
o tempo, grande artesão,
com novelos de saudade
meu manto de solidão.
Rita Marciano Mourão
29
Se tu abrires do amor
a porta mais escondida,
terás a mais linda flor
que há na grinalda da vida.
Roberto Resende Vilela
30
Considere a dor, sem drama,
e carregue a sua cruz,
veja que a vela arde em chama
e morre... ao nos dar a luz!
Vanda Alves

Fonte:
Informativos da UBT Seção São Paulo

Silmar Böhrer (Croniquinha) 16


Amanhecer sinfônico no recinto do " bosco ".

Primeira alva do arrebol quando os dois moradores do local dão início ao concerto que ecoa à distância nos ouvidos mais apurados.

Deleite, inspiração, encantamento. A passarada na galharia acorda ouvindo o pequeno frenesi do casal de sabiás cantadores - mensageiros da primavera.

Momentos de ternura, puro arrebatamento, a vida no seu esplendor - duas criaturas quase silenciosas volitando entre os verdes no dia a dia da florestinha -, nesta hora arrebatando manhãzinhas, diluindo silêncios matinais, borrifando com poesia a aurora entre as árvores.

Misteres graciosos. Magia dos sabiazinhos.

Sacros cantos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

A. A. De Assis (Frater ou irmão?)


Assim cantarolava meu bom mestre de latim: frango, fregi, fractum, frangere / (fracionar, quebrar, partir). / Desde então tenho pedido / licença para pensar / que é de fractum que vem frater / (ou em português “irmão”).

Sendo assim, se for verdade / (e se não for fica sendo), / entendo: fra-ter-ni-da-de / tem de ser com-par-ti-lhar. / De onde também fica bem / concluir que ser irmão / é abrir para o outro a mão, / par-tir, re-par-tir o p-ã-o.


Pelo uso frequente, é fácil associar “frater” e seus derivados à palavra “irmão” – fraterno, fraternal, fraternidade, frade, frei, freira, confraria etc. O problema começa quando se pergunta por que a palavra latina “frater” chegou ao português como “irmão” (e ao espanhol como “hermano”). Em francês é “frère”, em italiano “fratello”.

Vamos lá: em algum momento foi corrente no latim a expressão “frater germanus”, com o significado de “irmão verdadeiro”, ou seja, “irmão carnal”, “filho do mesmo pai e da mesma mãe” (da raiz “ger/gen” – gerar, germinar, gene, genealogia). Daí que de germanus temos hermano > ermano > ermão > irmão.

E “frater” vem de onde? Procurei, procurei, perguntei, perguntei, porém não ouvi nem li resposta alguma muito convincente. Então, na falta de prova em contrário, sigo crendo no parentesco de “frater” com fractum, frangere (fracionar, dividir, partir).

Até porque acho essa uma ideia enobrecedora: “fraternidade” = divisão, compartilhamento; “frater” = aquele que reparte algo com outros.

Irmão também é bonito, mas é pouco. Para dois ou dez serem irmãos basta haverem nascido do mesmo pai e/ou da mesma mãe. Mas todos sabemos que isso nem sempre quer dizer partilhamento. Podem ter o mesmo sangue e as mesmas características físicas, sem no entanto se amarem. Muitos são incapazes de repartir sequer um prato de sopa, alguns cultivam forte ciúme, e há os que chegam aos tapas.

Fraternidade é um sentimento mais completo, mais sublime. Amor fraterno nem precisa de consanguinidade. Amigos e amigas há que demonstram generosidade bem mais verdadeira do que filhos dos mesmos pais. “Fractum” = fracionar, partilhar. Família fraterna = pais, avós, filhos, netos – um grupo de pessoas que se amam e respeitam, comem a mesma comida, choram juntos, brincam juntos, constroem juntos um lar feliz e juntos ajudam outras pessoas a serem felizes também. Partilham a graça da vida.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 21.janeiro.2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Leon Eliachar (O Biquini)


Elza pediu dinheiro ao marido pra comprar um maiô, pois o verão estava chegando. Ele lhe deu cem cruzeiros:

— Com o troco você pode tomar um sorvete.

Ela desafiou-o:

— Cem cruzeiros não dá nem pro sorvete, quanto mais pro maiô.

Ele meteu a mão no bolso, puxou um maço de notas, fechou a cara:

— Então diz, de quanto é que você precisa.

Ela não se afobou:

— No mínimo, uns oitocentos. Depende do modelo.

Ele contou quatro notas de cem, jogou em cima da mesa com má vontade:

— Vê se te ajeitas com isso, agora não tenho mais.

Mostrou a carteira vazia:

— Olha aí, fiquei limpo.

À noite, antes do jantar, ele perguntou:

— Como é, comprou o maiô?

E ela:

— Só uma parte.

Ele não entendeu, pediu pra ver, ela foi buscar.

— Mas é iiiiiiiiiiiiiisso?

Ela exibia nas mãos um biquíni. Procurou esticá–lo ao máximo, não dava jeito. Ele insistiu:

— Cadê o resto?

— “Isto” foi o que seu dinheiro deu pra comprar, o “resto” custa mais quatrocentos.

Ele se enfureceu:

— Depois sou eu o louco. Com oitocentos cruzeiros, compro um biquíni, mas com uma mulher dentro.

Bateu a porta com força, gritou de dentro do quarto:

— Se quiser que vá assim mesmo que o papai aqui não trabalha na Casa da Moeda.

Elza deu uma gargalhada. No dia seguinte, na hora do café, colocou a “peça única” do biquíni, pôs os óculos escuros, pegou a bolsa e a barraca, passou na frente do marido, em direção à porta da rua. Ele engasgou:

— Aonde é que você vai assim?

— À praia, é claro.

Ele meteu a mão no bolso, deu-lhe mais quatrocentos cruzeiros.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

Francisco Elíude Pinheiro Galvão (Poemas Avulsos)

(o poeta faleceu dias atrás (fevereiro) de 2021, em São Vicente/SP)

MENSAGEM OCULTA

Já havia tinta na pena,
mas nada ela escrevia...
E a cada vez que eu tentava,
dela um pingo de tinta caía,
borrando o que
sobre o papel
escrito já estava;
algo que eu, de fato,
mesmo que quisesse ver,
quase não podia!...

Alguém escrevera com lágrimas
sua despedida em dor,
que dizia:

"– Onde quer que você vá
ou seja lá como for,
Se sentir saudades um dia
ou se acaso
se perder do amor,
Não jogue fora as pétalas
da rosa que um dia ornou
as páginas
onde um poema escrito,
Tais pétalas o inspirou!…”
* * * * * * * * * * * * * * * *  

CASINHA PEQUENINA

Era bem pequenina , ainda me lembro:
Uma porta, duas janelas;
pintada toda de azul
e rodeada de flores belas!...
De manhã, logo cedinho,
o sol que batia nela,
ia clareando casa a dentro
e a alegria em toda ela,
era de contagiar quem a via
ou talvez mais ainda diria
-quem sabe.

Uma certa Flor de tranças sorrindo
com o acanhado olhar ainda só dela,
e que também hoje em mim ainda persiste
a saudade da casinha pequenina,
E daquela Flor sorrindo na janela.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

DOCE FEL

Em delírios balbuciam os teus lábios,
no mais profundo flamar da tua alma
E em deleite a se cobrir são os mais sábios
os contorcidos afagos que me acalmam...

E se em segredo tal paixão se devaneia,
como posso suportar real tortura
que me inflama como a chama da candeia,
enquanto a tua face em minh'alma se emoldura?!

Oh! Céus!...Perdoa-me tal desventura!...
Mas é-me tão doce esse amargo fel,
que em delícia é posto em gostosura
O sabor irresistível desse mel!
* * * * * * * * * * * * * * * *  
 
ESQUINA POSTAL

Numa manhã ensolarada
rabisquei calçadas
com meus próprios passos
E pensei:
– Por que me canso de tanto andar,
escrevendo meus pensamentos
remetendo-os pra onde nem sei
ou se nem tenho certeza de sabe-los chegar!

E assim, ousei simplificar:
No fim da rua, uma esquina;
nela envelopei o meu pensar
e calmamente ela se encarregou de postar.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ABRAÇO

E se eu te disser
que todo amor do mundo
cabe dentro de um abraço!

O que me farias
com um abraço teu?!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

MEUS VERSOS TEUS

Quantas vezes te procurei
nas ruas frias do meu nada,
nas vazias madrugadas...
E em cada uma, em ninguém,
em nenhuma daquelas calçadas
te encontrei?!...

Quantas calçadas!...tantas e quantas
a medirem os passos meus,
que entre sombras, perdidos,
jamais encontraram os teu!...

E no decorrer nefasto do tempo,
apenas ânsia, saudades...tormento;
Lembranças guardadas a sós,
escritas a cada pensamento.

Hoje, apenas em poemas me achastes:
Poemas escritos em livros
que não são só meus
Mas, que são ainda só teus
Os versos que me inspirastes.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ÉS...

És o aceno distante
que me impõe limite no olhar...
És como o vento brando
acariciando meu rosto
mesmo sem me tocar...
És o alvorecer iluminando em mim
a mais completa inspiração!...
És como a voz que canta,
Encantando e acalentando
meus sonhos,
E sutilmente ensina-me a lição
de como se deve amar!
És poesia, soneto, sintonia...
És como uma voz sublime
que se faz ouvir num canto,
trazendo-me bonança, alegria,
Num perene bem-estar doce e sereno,
Como se fosse
O misterioso azul do mar
Num aceno,
Convidando-me a navegar!…
* * * * * * * * * * * * * * * *  

A PENA

Inclinou-se a pena
sobre o branco papel inerte
E em compassados movimentos
vai se despindo devagar a cada linha,
Acariciando, em traços, a pálida nudez,
Que irresistivelmente aceita, inconteste,
o seu doce acarinhar,
em solto movimento circular!...
E assim se pondo,em sutil declínio
se deixa envolver por um beijo dado e repetido
sobre aquele macio corpo agora revestido
de tinta a se derramar
em perfeito orgasmo de inspiração,
Que, se também imóvel, agora se faz dormir
num profundo e inaudível ressonar...
E depois...cansada, se reveste,
e outra vez,
Volta a se guardar.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ACALANTO

Bem queria ser o ápice da ternura,
para afagar teus cabelos,
te embalar em poesia;
te abraçar com ventura...

Quisera ser
a água cristalina da fonte;
o raio de sol no horizonte
ou a brisa morna da aurora:
Para acariciar o teu corpo;
te fazer sonhar comigo
e ver-te pensar em mim ao despertar!...

Quisera ser um rouxinol
cantando na tua janela;
ver tuas mãos se entrelaçando
ao bocejar diante de um arrebol...
E no final do dia,
quando todo o céu se cobrisse de luz
sob o luar de morno encanto
a iluminar esse amor
Eu pudesse, sobre ti,
derramar-me em doce e terno acalanto.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *   

Francisco Elíude Pinheiro Galvão, filho de Francisco Lopes Galvão e Antonia Tonita Pinheiro Galvão, nasceu em Currais Novos/RN. Mudou-se para S. Vicente em 1978.

Poeta, autodidata, membro Efetivo da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios e Acadêmico Honorário da Academia Boituvense Letras e Artes na cidade de Boituva (SP), Membro do Grupo Literário "Poetas Vivos" de Santos (SP), Embaixador Universal da Paz pelo Cercle Universel Des Ambassadeures de La Paix -Suisse/France. Participações em diversas Antologias Poéticas no Brasil e Exterior, em diversos Concursos Literários (com premiações), em Revistas Literárias pelo Clube dos Escritores de Piracicaba(SP), Caderno Literário pela Editora Pragmatta(RS).

Faleceu de câncer em fevereiro de 2021.

Lima Barreto (Os Bruzundangas) III – A outra nobreza da Bruzundanga


No artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da nobiliarquia da República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e interessante.

A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito.

Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo governo, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos pensamentos do gentil cavalheiro que se fez doutor.

A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em coisa alguma; não é firmada em lei ou costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.

Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre.

Muda o nome e passa a chamar-se: Ricardo Silva de la Concepción. Publica o anúncio no Jornal do Comércio local e está o homem mais satisfeito da vida. Vai para a Europa e, por lá, encontra por toda a parte príncipes, duques, condes, marqueses da Birmânia, do Afeganistão e do Tibete. Diabo! pensa o homem. Todos são nobres e titulares e eu não sou nada disso.

Começa a pensar muito no problema e acaba lendo em um romance folhetim de A. Carrillo, - nos Cavalheiros do amor, por exemplo – um título espanhol qualquer. Suponhamos que seja: Príncipe de Luna y Ortega.

O homem diz lá consigo: "Eu me chamo Concepción, esse nome é espanhol, não há dúvida que eu sou nobre"; e conclui logo que é descendente do tal Príncipe de Luna y Ortega. Manda fazer cartões com a coroa fechada de príncipe, acaba convencido de que é mesmo príncipe, e convencendo os seus amigos da sua prosápia elevada.

Com um destes que se improvisou príncipe assim de uma hora para outra, aconteceu uma anedota engraçada.

Ele se chamava assim como Ferreira, ou coisa que o valha. Fez uma viagem à Europa e voltou príncipe não sei de quê.

Foi visitar as terras dos pais e dos avós que estavam abandonadas e entregues a antigos servidores.

Um dos mais velhos destes, veio visitá-lo arrimado a um bastão que escorava a sua grande velhice. Falou ao homem, ao filho do seu antigo patrão como falara ao menino a quem ensinara a armar laços e arapucas.

O novel príncipe formalizou-se e disse:

-- Você não sabe, Heduardo, que eu sou príncipe?

-- Quá o quê, nhonhô. Vancê não pode sê príncipe. Vancê não é fio de imperadô, cumo é?

O recente nobre, ci-devant* Ferreira, estomagou-se e não quis mais conversas com aquele velho decrépito que tinha da nobreza ideias tão caducas. Não lhe deu mais trela.

Essa improvisação de títulos se dá pelas formas as mais estranhas.

Um rapaz de certos haveres, cujo pai mourejera* muito para arranjar alguns cobres, foi um dia para o estrangeiro, bem enroupado, com algumas libras no bolso. Fora das vistas paternas e sentindo longe a hipocrisia da Bruzundanga, meteu-se em todas as pândegas que lhe passou pela cabeça.

Uma noite, em que estava cercado de damas alegres, em uma mesa de café cantante, uma delas deu na telha de tratá-lo de marquês. Era senhor marquês, para aqui; senhor marquês para ali.

O rapaz espantou-se a princípio, mas com o calor da conversa e a insistência da dama, ele perguntou ingenuamente:

- Mas eu sou marquês?

- É! - disse a dama galante.

- Como?

- Vou já mostrar ao senhor marquês. Dê-me vinte francos e os nomes de seus pais, que já lhe dou a prova.

Ele assim fez e, dentro de vinte minutos, o rapazola recebia a sua árvore genealógica, donde se concluía que descendia dos marqueses de Libreville.

A vista de tão poderoso documento, o cidadão que partira da Bruzundanga simplesmente chamando-se Carlos Chavantes (E uma hipótese), voltou da estranja com o altissonante título de Marquês de Libreville. O pai continuou a chamar-se Chavantes; ele, porém, era marquês. O' manes de d'Hozier!*

Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra nobreza. São condes ou duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a ser conhecidos por dois nomes - coisa que é quase verificada entre os malfeitores e outros conhecidos da polícia.

Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se fez república, e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo regime monárquico, com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo "nobreza", mas taffetás.

No país, esses titulares de palpite não têm importância alguma na massa popular. Os do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina Sidonia de última hora; a elite, porém, a nata, -- essa sim! -- tem por eles o respeito que se devia aos antigos nobres.

O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá II, d'Africa.

A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos são berrados nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d'Alba, que, por sinal, foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga, que desejava a incorporação do proletário à sociedade moderna.

Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem invectivas de profeta judaico; mas, quase sempre, o riso bonachão de Rabelais.

O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France: com ironia e piedade.
= = = = = = = = = = =
Notas:
Ci-devant =O termo ci-devant, por si mesmo pejorativo, vem do francês, significando "de antes" e aplicado aos membros da nobreza da França do Antigo Regime (i.é, da sociedade francesa pré-revolucionária) após terem perdido seus títulos e privilégios durante a Revolução Francesa.
Mourejera = trabalhara como um mouro.
O' manes de d'Hozier = não consegui localizar significado destas palavras.


Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.
O livro na íntegra pode ser baixado em pdf no site de Domínio Público

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 475

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando 10: Diferenças)


O RAPAZ POBRE FOI BUSCAR os documentos pessoais  que havia esquecido em casa.  De ônibus. Só no ponto, meia hora de espera, pela condução. Voltou ao local onde deveria estar duas horas e vinte minutos depois. Perdeu a entrevista que marcara às dez horas da manhã com a senhorita Érica, secretária do diretor geral da gigantesca empresa que produzia, vendia e exportava chocolates Brasil e mundo afora. Por conta disto, seu emprego foi para o espaço...

O RAPAZ METIDO A RICO foi buscar também os documentos pessoais que havia esquecido em casa. De táxi. Precisou empenhar o relógio com um amigo seu, filho do dono da padaria do bairro onde morava, para pagar a corrida. Voltou ao local onde deveria estar às dez horas da manhã, ou mais precisamente quarenta e cinco minutos depois. Perdeu a entrevista que marcara com a senhorita Érica, secretária do diretor geral da gigantesca empresa que produzia e vendia chocolates e, claro, seu emprego,  também foi para o espaço.

O RAPAZ RICO DE VERDADE foi buscar sua pasta de documentos que havia esquecido em casa. De helicóptero particular. Voltou ao local onde deveria estar dez minutos depois. A sua secretária, a senhorita Érica informou, logo que o viu entrar, que os dois candidatos que haviam marcado as entrevistas para aquele dia, simplesmente chegaram atrasados e ela, em face da urgência do preenchimento da vaga, colocara seu irmão Bebeto no lugar.

MORAL DA HISTÓRIA: Muitas vezes a diferença  não faz a diferença, mas ter a tal diferença ao alcance das mãos, dependendo da urgência, certamente esta simples diferença, fará, claro,  toda a diferença.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lima Barreto (Os Bruzundangas) II – A nobreza de Bruzundanga


Um leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.

O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro.

É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos do Tesouro da República da Bruzundanga.

Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados.

As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os "sebos" as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas de um otimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabe-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos revendedores de livros, por falta de compradores.

Onde o meu leitor poderá encontrá-las, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.

Contudo, a fim de que o meu delicado missivista não fique fazendo mau juízo a meu respeito, vou dar-lhe algumas informações sobre o poderoso e rico país da Bruzundanga.

Hoje lhe falarei das nobrezas da grande Nação; proximamente, em artigos sucessivos, tratarei de outras instituições e costumes.

A nobreza da Bruzundanga se divide em dois grandes ramos. Tal qual como na França de outros tempos, em que havia a nobreza de Toga e a de Espada, na Bruzundanga existe a nobreza doutoral e uma outra que, por falta de nome mais adequado, eu chamarei de palpite.

A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há de parecer que não existe aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtém títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não.

Lá, o cidadão que se asma de um título em uma das escolas citadas, obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda.

As moças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família toda, os colaterais, e os afins. Não é raro ouvir alguém dizer com todo o orgulho:

- Minha prima está casada com o doutor Bacabau.

Ele se julga também um pouco doutor. Joana d'Arc não enobreceu os parentes?

A formatura é dispendiosa e demorada, de modo que os pobres, inteiramente pobres, isto é, sem fortuna e relações, poucas vezes podem alcançá-la.

Coisa curiosa! O que mete medo aos candidatos à nobreza doutoral, não são os exames da escola superior; são os exames preliminares, aqueles das matrículas que constituem o nosso curso secundário...

Em geral, apesar de serem lentos e demorados, os cursos são medíocres e não constituem para os aspirantes senão uma vigília de armas para serem armados cavaleiros.

O título - doutor - anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do dom, em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares. Se só o chama tout court - doutor Kamisão -, ele ficará zangado porque é coronel; se o designa unicamente por coronel, ele julgará que o seu interlocutor não tem em grande consideração o seu título universitário-militar.

Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se devem designar tais senhores por - doutor coronel - ou - coronel doutor.

Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em coisas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.

Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis.

O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo.

Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.

Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.

Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente.

A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem.

A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.

Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores de grego no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios.

Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade.

Como veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus diplomas.

Um empregado público qualquer que não seja graduado, não pode ser eleito deputado; mas a mesma lei eleitoral faz exceção para aqueles funcionários que exercem cargos de natureza técnica, isto é, doutores. Já vimos que espécie de técnica é a tal tão estimada na Bruzundanga. Convém, entretanto, contar um fato elucidativo. Um doutor de lá que era até lente da Escola dos Engenheiros, apesar de ter outros empregos rendosos, quis ser inspetor da carteira cambial do banco da Bruzundanga. Conseguiu e, ao dia seguinte de sua nomeação, quando se tratou de afixar a taxa do câmbio, vendo que, na véspera havia sido de 15 3/16, o sábio doutor mandou que o fizesse no valor de 15 3/32. Um empregado objetou:

- Vossa Excelência quer fazer descer o câmbio?

- Como descer? Faça o que estou mandando! Sou doutor em matemática.

E a coisa foi feita, mas o sábio deixou o lugar, para estudar aritmética.

Continuemos a citar fatos para que esta narração tenha o maior cunho de verdade, apesar de que muita coisa possa parecer absurda aos leitores.

Certo dia li nos atos oficiais do Ministério de Transportes e Comunicações daquele país, o seguinte:

"F., amanuense dos Correios da província dos Cocos, pedindo fazer constar de seus assentamentos o seu título de doutor em medicina. -

Deferido
".

O pedido e o despacho dispensam qualquer comentário; e, por eles, todos podem aquilatar até que ponto chegou, na Bruzundanga, a superstição doutoral. Um amanuense que se quer recomendar por ser médico, é fato que só se vê no interessante país da Bruzundanga.

Outros casos eloquentemente comprobativos do que venho expondo, posso ainda citar.

Vejamos.

Há pouco tempo, no Conselho Municipal daquele longínquo país, votou-se um orçamento, dobrando e triplicando todos os impostos. Sabem os que ele diminuiu? Os impostos sobre os médicos e advogados. Ainda mais.

Quando se tratou de organizar uma espécie de serviço militar obrigatório, o governo da Bruzundanga, não podendo isentar totalmente os aspirantes a doutor, consentiu que eles não residissem e comessem nos quartéis, no intuito piedoso de não lhes interromper os estudos. Entretanto, um caixeiro que fosse sorteado perderia o emprego, como todo e qualquer empregado de casa particular.

Há nessa nobreza doutoral uma hierarquia como em todas as aristocracias. O mandarinato chinês, ao qual muito se assemelha essa nobreza da Bruzundanga, tem os seus mandarins botões de safira, de topázio, de rubi, etc. No país em questão, eles não se distinguem por botões, mas pelos anéis. No intuito de não fatigar os leitores, vou dar-lhes um quadro sintético de tal nobreza da Bruzundanga com a sua respectiva hierarquia colocada em ordem descendente. Guardem-no bem. Ei-lo, com as pedras dos anéis:

Médicos (Esmeralda)
Advogados (Rubi)
Engenheiros (Safira)
Engenheiros militares (Turqueza)
Doutores
Engenheiros geógrafos (Safira e certos sinais no arco do anel)
Farmacêutico (Topázio)
Dentista (Granada)

Em linhas gerais, são estas as características mais notáveis da nobreza doutoral da Bruzundanga. Podia acrescentar outras, sobre todos os seus graus. Lembrarei, porém, ao meu correspondente que os três primeiros graus são mais ou menos equivalentes; mas os três últimos gozam de um abatimento de 50% sobre o conceito que se faz dos primeiros.

Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas Normais, com os seus bonés de  universidade americana, e os bacharéis em letras da Bruzundanga, porque lá não são considerados nobres, Entretanto, as primeiras têm um anel distintivo que parece uma vitrine de joalheria, pela quantidade de pedras que possui; e os últimos anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos esses formados são lá considerados como falsa nobreza.

* * * * * * * * * * * * * * * *

Continua…

Fonte:
Lima Barreto. Os Bruzundangas. Publicado em 1923.
O livro na íntegra pode ser baixado em pdf no site de Domínio Público

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