sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Katherine Mansfield (A Vida da Mã Parker)


Quando o senhor escritor, cujo apartamento a velha Mã Parker limpava todas as terças-feiras abriu-Ihe a porta naquela manhã, perguntou de seu neto. Mã Parker ficou no capacho dentro do pequeno vestíbulo escuro e estendeu a mão para ajudar seu patrão a fechar a porta, antes de responder.

- Enterramos ele ontem, senhor - disse em voz baixa.

- Oh, céus! Lamento saber - disse o senhor escritor em tom chocado.

Estava em meio ao desjejum. Usava um robe muito puído e tinha na mão um jornal amarfanhado. Mas se sentiu desconfortável. Não podia voltar à sala de estar agradavelmente aquecida sem dizer alguma coisa - alguma coisa mais. Então, como aquele pessoal dava tanto valor a funerais, disse bondoso:

- Espero que o funeral tenha ido bem.

- Discurpe, senhor? - perguntou Mã Parker em voz rouca.

Pobre velha! Parecia mesmo destroçada.

- Espero que o funeral tenha sido um... um sucesso - disse ele.

Mã Parker não respondeu. Curvou a cabeça e foi mancando para a cozinha, segurando a velha cesta de pescaria que continha seus materiais de limpeza, um avental e um par de chinelos de feltro. O senhor escritor ergueu as sobrancelhas e voltou ao desjejum.

- Acabrunhada, imagino - disse em voz alta, servindo-se de geleia.

Mã Parker tirou os dois grampos e pendurou a touca atrás da porta. Desvencilhou-se do casaco surrado e pendurou-o também. Então amarrou o avental e sentou-se para tirar as botinas. Era um suplício para ela por ou tirar as botinas, mas um suplício que já vinha de muitos anos. De fato estava tão acostumada à dor que, antes mesmo de soltar os cadarços, já contraíra e contorcera o rosto preparando-se para a aguilhoada.

Feito isso, encostou-se na cadeira com um suspiro e esfregou levemente os joelhos…

"Vó! Vó!" O netinho ficou de pé em seu colo, com as botas de abotoar. Acabava de voltar das brincadeiras na rua.

"Veja o estado em que você deixou a saia da sua avó, seu menino malvado!"

Mas ele lhe abraçou o pescoço e esfregou sua bochecha na dela.

"Vó, dá um pence!", pediu agradando a avó.

"Deixe disso, a vó não tem nenhum pence."

"Tem, tem sim."

"Não tenho não."

"Tem, tem sim. Dá um!"

E já estava lá ela apalpando a bolsa velha e amassada de couro preto.
 
"Bom, e o que você vai dar pra sua vó?"

Ele deu um risinho tímido e a abraçou com mais força. Ela sentiu os cílios dele vibrando na sua face.

"Não tenho nada", ele murmurou...

A velha se levantou de um salto, pegou a panela de ferro no fogão a gás e levou até a pia. O barulho da água correndo na panela parecia amortecer a dor. Ela encheu o balde e a tigela de água também.

Seria preciso um livro inteiro para descrever o estado daquela cozinha. Durante a semana, o senhor escritor "se virava" sozinho. Quer dizer, de vez em quando despejava as folhas de chá num pote de geleia vazio que ficava ali para isso e, se acabavam os garfos limpos, ele passava um ou dois no rolo de toalha. Tirando isso, como explicava aos amigos, seu "sistema" era muito simples e não conseguia entender por que as pessoas faziam tanto escarcéu a respeito das tarefas domésticas.

"Você simplesmente usa tudo o que tem, pega uma velha uma vez por semana para limpar, e pronto."

O resultado parecia uma enorme lata de lixo. Até o chão ficava cheio de farelos, envelopes, tocos de cigarro. Mas Mã Parker não levava a mal. Tinha pena do pobre rapaz, o senhor escritor, que não tinha ninguém que cuidasse dele. Pela janela pequena e encardida dava para ver uma enorme faixa de céu tristonho e, quando havia nuvens, pareciam muito gastas, velhas, esgarçadas nas beiradas, cora buracos no meio ou manchas escuras como de chá.

Enquanto a água esquentava, Mã Parker começou a varrer o chão. "E", pensou enquanto batia a vassoura, "entre uma coisa e outra tive meu quinhão. Tive uma vida dura."

Mesmo os vizinhos diziam isso. Muitas vezes, voltando para casa, mancando com sua cesta de pesca, ouvia dizerem entre si, parados na esquina ou debruçados nas grades: "Ela tem uma vida dura, a Mã Parker, se tem". E era tão verdade que não sentia o menor orgulho disso. Era como dizerem que morava nos fundos do subsolo do número 27. Uma vida dura!...

Aos dezesseis anos saíra de Stratford e viera para Londres como ajudante de cozinha. Sim, nascera em Stratford-on-Avon. Shakespeare, senhor? Não, as pessoas sempre lhe perguntavam. Mas nunca tinha ouvido falar nele antes de ver seu nome nos teatros.

Não sobrou nada de Stratford, exceto que, "sentando junto à lareira de noite, dava para ver as estrelas pela chaminé" e "a mãe sempre tinha um pedaço de toucinho, pendendo do forro". E tinha alguma coisa – uma planta, era - na porta da frente que sempre cheirava muito gostoso. Mas a lembrança da planta era muito apagada. Lembrara apenas uma ou duas vezes no hospital, quando caiu doente,

Era um emprego pavoroso - o seu primeiro. Nunca podia sair. Nunca subia a não ser para as rezas da manhã e do final da tarde. Era um porão grande. E a cozinheira era maldosa. Costumava pegar suas cartas de casa antes de ler e jogava no fogão porque ficava sonhadora... E os besouros! Dá para acreditar? - antes de vir para Londres, nunca tinha visto um besouro preto. Aqui Mã sempre dava uma risadinha, pois imagine só: nunca ter visto um besouro preto! Era como dizer que nunca tinha visto o próprio pé.

Quando aquela família foi despejada, ela foi ser "ajudante" na casa de um médico e depois de dois anos lá, na correria de manhã até a noite, casou-se com o marido. Era um padeiro.


– Um padeiro! - disse o senhor escritor. Pois de vez em quando ele deixava seus livros e emprestava um ouvido, pelo menos, a essa coisa chamada Vida. - Devia ser muito bom ser casada com um padeiro.

A sra. Parker não parecia ter tanta certeza.

- Um ofício tão limpo! - disse o senhor.

A sra. Parker não parecia muito convencida.

- E a senhora não gostava de entregar os pães frescos aos fregueses?

- Bem, senhor, eu não ficava muito na loja. Tivemos treze filhos e enterramos sete. Se não era o hospital, era a enfermaria, por assim dizer!

- Pois é, de fato, sra. Parker! - disse o escritor estremecendo e retomando a caneta.

Sim, sete se foram e, quando os seis ainda eram pequenos, o marido adoeceu de tuberculose. Farinha nos pulmões, disse o médico na época... O marido estava sentado na cama com a camisa levantada, e o médico desenhou com o dedo um círculo nas costas.

- Se cortássemos e abríssemos aqui, sra, Parker – disse o médico – a senhora ia ver os pulmões entupidos de pó branco. Respire, meu bom homem!

E a sra. Parker nunca soube com certeza se viu ou se imaginou ver uma grande pazada de poeira branca saindo pela boca do pobre marido morto...

Mas que luta foi criar aqueles seis filhos pequenos e guardar tudo para si! Terrível, foi sim. Então, quando todos alcançaram a idade de ir para a escola, a irmã do marido veio ficar com eles para ajudar, e estava lá não fazia mais de dois meses quando caiu da escada e machucou a coluna. E durante cinco anos a Mã Parker teve de cuidar de mais um bebê - e este, que bebê mais chorão! Então Maudie, mocinha, se desencaminhou e levou a irmã Alice junto com ela; os dois meninos emigraram, o jovem Jim foi para a Índia com o exército, e Ethel, a caçula, se casou com um garçonzinho imprestável que morreu de úlcera no ano em que o pequeno Lennie nasceu. E agora o pequeno Lennie, meu neto...

Os montes de xícaras sujas, de pratos sujos, estavam lavados e enxugados. As facas pretas feito carvão foram esfregadas com uma rodela de batata e polidas com um pedaço de cortiça. A mesa foi escovada, bem como o armário e a pia onde antes nadavam caudas de sardinhas...

Nunca foi um menino forte - nunca, desde o começo. Tinha sido um daqueles bebês bonitos que todo mundo achava que era menina. Lindos cachinhos prateados, olhos azuis, uma pequena pinta que parecia um diamante num dos lados do nariz. Que trabalheira tinham tido para criar aquele bebê, ela e Ethel! As coisas dos jornais que experimentavam com ele! Todo domingo de manhã, Ethel lia em voz alta enquanto a Mã Parker lavava roupa.

"Prezado Senhor: Apenas algumas linhas para informar que minha pequena Myrtil estava à beira da morte... Depois de quatro frascos... ganhou quatro quilos em nove semanas e continua a engordar."

E então o tinteiro saía do anuário, a carta ficava pronta, e a Mã, indo para o trabalho na manhã seguinte, comprava um selo. Mas não adiantava. Nada fazia Lennie ganhar corpo. Nem mesmo levá-lo ao cemitério jamais lhe trazia cores ao rosto; uma bela chacoalhada no ônibus jamais melhorava seu apetite.

Mas era o menino da vó desde o começo...

"De quem é este menino?", perguntava a velha Mã Parker, endireitando-se ao pé do fogão e indo até o vidro encardido da janela. E uma vozinha, tão quente, tão próxima, como que a sufocava - parecia estar dentro do peito, sob o coração - ria e dizia; "Sou o menino da vó!".

Naquele momento ouviram-se passos, e o senhor escritor apareceu, vestido para sair.

– Sra. Parker, estou saindo.

– Sim, senhor.

– Sua meia coroa está na base do tinteiro.

– Obrigada, senhor.

– Oh, aliás, sra, Parker- perguntou rapidamente o senhor escritor a senhora não jogou fora nenhum cacau em pó da última vez que esteve aqui, não é mesmo?

– Não, senhor.
 
– Que estranho. Seria capaz de jurar que deixei uma colherada de cacau em pó na lata.

Interrompeu-se. Falou em tom suave e firme:

– A senhora sempre me avise quando jogar alguma coisa fora, entendido, sra. Parker?

E saiu muito satisfeito consigo mesmo, realmente convencido de que mostrara à sra. Parker que, sob seu aparente desleixo, era tão vigilante quanto uma mulher.

A porta bateu. Ela levou seus panos e escovas para o quarto de dormir. Mas, quando começou a fazer a cama, alisando, esticando, afofando, a lembrança do pequeno Lennie foi insuportável. Por que ele tinha de sofrer tanto? Era isso que ela não conseguia entender. Por que um anjinho como aquele tinha de arfar e lutar para respirar? Não fazia nenhum sentido uma criança sofrer daquela maneira,

...Do pequeno peito de Lennie saía um som que parecia alguma coisa fervendo. Havia uma grande massa de alguma coisa borbotando no peito da qual ele não conseguia se livrar. Quando tossia, o suor lhe molhava a testa, os olhos saltavam, as mãos se agitavam e a grande massa borbotava como uma batata numa panela fervendo. Mas o mais horrível de tudo era que, quando não tossia, ficava sentado apoiado ao travesseiro, sem falar nem responder ou sequer mostrar que ouvia. Parecia apenas ofendido.

- Não é culpa da sua pobre e velha vovó, meu querido - dizia a velha Mã Parker, afastando o cabelo úmido de suor de suas orelhinhas rubras. Mas Lennie afastava a cabeça de repelão. Extremamente ofendido com ela, parecia - e solene. Curvava a cabeça e olhava a avó de soslaio, como se não conseguisse acreditar que ela era capaz de uma coisa dessas.

Mas no fim... A Mã Parker estendeu a colcha na cama. Não, simplesmente não conseguia pensar naquilo. Era demais - a vida dela já tinha sido pesada demais. Aguentara até agora, guardara para si e nunca ninguém a vira chorar, Nunca, ninguém. Nem mesmo seus filhos jamais viram a Mã ceder. Sempre se mantivera firme. Mas agora! Lennie se fora - o que ela tinha?

Não tinha nada. Ele era tudo o que ela tinha na vida, e agora lhe fora tirado também.

– Por que tudo isso tinha que acontecer comigo? -perguntou-se – O que eu fiz? - disse a velha Mã Parker. – O que eu fiz?

Ao dizer estas palavras, soltou de repente a escova. Viu-se na cozinha. Era tão grande sua infelicidade que prendeu a touca, pôs o casaco e saiu do apartamento como se sonhasse. Não sabia o que estava fazendo. Parecia uma pessoa tão atordoada pelo horror dos acontecimentos que simplesmente vai embora para qualquer lugar, como se, andando, conseguisse escapar...

Fazia frio na rua. O vento estava gelado. As pessoas passavam rápido, muito depressa; os homens andavam como tesouras, as mulheres, como gatos. E ninguém sabia - ninguém se importava. Mesmo que ela cedesse, que finalmente, depois de todos esses anos, chorasse, a prisão seria a mesma.

Mas, à ideia de chorar, foi como se o pequeno Lennie saltasse para os braços da avó. Ah, é isso o que ela quer fazer, meu querido. A vó quer chorar. Se pelo menos pudesse chorar agora, chorar por muito tempo, chorar por todas as coisas, começando pelo primeiro emprego e a cozinheira maldosa, passando para a casa do médico, e então para a perda dos sete pequeninos, a morte do marido, os filhos indo embora e todos os anos de infelicidade, até Lennie. Mas chorar devidamente por todas essas coisas tomaria muito tempo. Mesmo assim, chegara a hora. Precisava. Não podia guardar mais; não podia esperar mais... Aonde podia ir?

"Ela tem uma vida dura, a Mã Parker, tem sim."

Sim, uma vida dura, de fato! Seu queixo começou a tremer; não havia tempo a perder, Mas onde? Onde? Não podia ir para casa; Ethel estava lá. Ethel morreria de susto, Não podia se sentar num banco qualquer; as pessoas viriam fazer perguntas, Não podia voltar ao apartamento do senhor escritor; não tinha o direito de chorar na casa dos outros. Se sentasse em algum degrau, algum policial viria falar com ela.

Oh, não havia nenhum lugar onde pudesse se esconder, estar sozinha, ficar o quanto quisesse, sem perturbar ninguém, sem ninguém a incomodá-la? Não havia nenhum lugar no mundo onde pudesse chorar finalmente?

A Mã Parker ficou ali parada, olhando um lado e outro. O vento gelado empinou seu avental como um balão. E então começou a chover. Não havia nenhum lugar.

Fonte:
Os melhores contos de Katherine Mansfield. Porto Alegre/RS: LP&M, 2016.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Arquivo Spina 25 (Solange Colombara)

 
O SPINA é um poema de duas estrofes. 
 
A primeira de três versos com três palavras, obrigatoriamente, iniciada por uma acepção trissílaba.
Ex: beleza.

A última palavra desta estrofe rimará sempre com a última do terceiro e quinto versos, da segunda estrofe.

A segunda estrofe é composta por cinco versos com cinco palavras em cada verso.

 
Para se inteirar mais sobre o assunto e participar do grupo SPINA – nova forma poética, acesse:
https://www.facebook.com/groups/623841465028682/

Humberto de Campos (A Chácara)


Nestes tempos, em que, embora com dinheiro no cofre, no Banco ou no bolso, não se encontra no Rio uma casa, mesmo de segunda ordem, para alugar ou adquirir, é de meter inveja a felicidade do comendador Severiano Braga de Souza, com a sua chácara monumental, situada, como numa floresta, em pleno coração do bairro de Botafogo.

A propriedade do comendador Severiano constitui, realmente, um dos orgulhos do Rio de janeiro. O prédio, que pertenceu ao saudoso visconde de Coroatá e, mais tarde, à baronesa de Itapirú, é depois das reformas a que foi submetido um verdadeiro palácio. O que porém, valoriza ainda mais tudo aquilo, é o terreno beneficiado pela mão dos seus antigos proprietários e conservado com um zelo religioso pelo opulentíssimo capitalista que atualmente o possui.

Informado da existência dessa preciosidade, eu próprio me fiz, um destes dias, convidado, e atirei-me a visitar o comendador. E foi para mim um deslumbramento aquele conjunto de maravilhas em que se casam, numa suave harmonia que embala os sentidos, a inteligência da Arte e a graça inocente da Natureza.

- Quer, então, ver esta sua casa?... - observou, satisfeito, o antigo presidente do Banco Popular Carioca.

E, tomando-me pelo braço, levou-me a percorrer, um a um, os pontos encantadores da chácara.

- Isto aqui, - observou-me, apontando-me um enorme viveiro em que pipilavam toda a sorte de passarinhos nacionais ou exóticos, - isto aqui é o meu encanto de todas as manhãs. Temos aqui o melro, o corrupião, o rouxinol, o periquito, a cambachirra, o curió, enfim, duzentas ou trezentas aves diferentes.

E, como se eu não soubesse, explicou-me, com ênfase:

- É o aviário!

Mais alguns passos, e, ao fundo de uma gruta iluminada, onde peixinhos de mil espécies rabeavam como joias vivas, em pequenos depósitos de água límpida, esclareceu-me, com a mesma erudição:

- É o aquário!

Examinados os recantos da caverna encantada que me transportava como num sonho, ao fundo maravilhoso do oceano passamos adiante. Era uma espécie de clareira, de várzea chã, onde se estendia; cheirando e florindo, um tapete macio, úmido, multicor, de ervas aromáticas.

- É o herbário! - ensinou-me o comendador.

Nesse momento, porém, chamaram a minha atenção umas latadas enormes, artisticamente dispostas, formando caminhos ensombrados. Endireitei os óculos para examinar melhor e vi: tratava-se de uma admirável plantação de parreiras abertas em frutos, em que os cachos, amarelos uns, roxos outros, pendiam sumarentos, brilhantes e numerosos, como bolhas de ouro ou de vinho suspensas miraculosamente das folhas.

- Magnífico! - exclamei, deslumbrado.

O comendador inflou a barriga, sorriu, desvanecido e, estendendo o dedo no rumo do parreiral, explicou, com orgulho:

- É o "uvário"!

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Gumercindo Saraiva ( O Cão na Literatura Popular) - 1 -

Maya e Mel (mãe e filha), arte por José Feldman

O cão, esse mamífero carnívoro, andando geralmente nas pontas das dedos compreendendo as espécies chacal e lobo, é um animal inteligente, hábil, quando domesticado. É o irracional que tem mais afeição ao homem, conciliando com o afeto, a gratidão e o reconhecimento, dentro do reino dos animais. Evidentemente que nos referimos ao cão familiar, servidor, uma espécie de sentinela, vigiando dia e noite o patrimônio do seu dono.

Na Zoologia, parte da história natural que se ocupa dos animais, encontramos o cão doméstico por natureza carniceiro, mai podendo tornar-se também onívoro, dependendo da educação recebida dos seus donos. Natural, que ele com fome chega a comer imundícies, por uma questão que está às nossas vistas. Mesmo nessas condições, o cão recusa terminantemente frutas e legumes, chegando a morrer esfomeado.

A prenhez da fêmea, dura sessenta e cinco dias, chegando a partir até dez filhos, de acordo com a raça, e estes, nascem completamente cegos, abrindo os olhos somente aos noves dias de nascido. È notável a memória, a fidelidade e a inteligência do cão e em todos os tempos, ele tornou-se companheiro do homem.

Não obstante ser o animal reverenciado no velho mundo até com estátuas em praça pública, existem povos que antigamente não domesticaram o cão, e os indianos chegaram a repudiá-lo. Limitando-se esperar a viverem uns quinze anos, o cão como o gato, estão sujeitos a uma grande contaminação de doenças conseguidas facilmente. Ainda hoje na Índia, se odeia o cão e dizem que sua sombra é capaz de manchar a dignidade de um brâmane. Em certa região, entretanto, uma pequena minoria chega a adorar o cão, juntamente com o dono.

Já no Egito, o cão possui cemitério apropriado sendo tratado como pessoa humana. Na Zooética egipciana, lemos que “Veem-se” representadas as diversas raças nos seus monumentos, assim como nos cemitérios de cães sagrados se tem encontrado os esqueletos ou múmias de todas as variedades. Empregavam-no na caça havendo-os que não temiam atacar o leão. O cão, encarnava dois gênios secundários que também eram representados pelo chacal. As múmias são, em geral, enroladas em cilindro, a cabeça metida numa máscara de cartão que dá a fisionomia do animal”.

O cão na literatura brasileira

A personalidade do cão no Brasil, foi trazida pelos africanos, daí, temos o animal como sinônimo de Diabo, Belzebu, Lúcifer, Satanás, e outros termos popularizados pelo nosso povo. Como um anjo das trevas, o cão vem atravessando séculos no praguejar de determinada classe, aproveita de sua vivência na maldição injustificável, advinda de uma lenda oriental.

No Rio Grande do Norte, vários poetas e escritores personificaram o cão, e vale lembrar no fomento, um livro primoroso do escritor José Pinto Júnior, Cão de luxo, cujo conteúdo é o reflexo não somente de uma expressividade literária, como grandiosa realização na cultura ficcionista do nosso estado, tão bem representada numa obra de estilo, pureza e perfeição. O escritor José Melquíades , bacharel, conferencista aprimorado, escreveu uma de suas melhores obras, “Os Estados Unidos, A mulher e o cachorro”.

História de um cão

Luis Guimarães, escritor, poeta e diplomata brasileiro, nasceu no Rio de Janeiro em 1847, falecendo em Lisboa no ano de 1898. Sua obra fabulosa é quase desconhecida pela nova geração que chegou a empastelar os versos, os dramas, os contos, as poesias soltas, envolvendo-as na cultura de seu filho, Luis Guimarães, também escritor, poeta, diplomata e uma das figuras mais representativas do movimento cultural brasileiro. Luis Guimarães Filho nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1878 e como diplomata esteve representando o Brasil até no Japão, onde colheu subsídios para um de seus melhores livros, intitulado Samurais e mandarins (1911).

Por este motivo o poema História de um cão, encontra-se como sendo para uns, de Luis Guimarães (1847) e para outros, assim como nós, de Luis Guimarães Filho (1878). Por mais que ouvíssemos grande número de intelectuais norte-riograndenses, estes não souberam identificar o autor, o que é uma pena. Pela beleza dos versos, pela tragédia enfocada na história, pela sensibilidade que o poeta envolve a figura de um simples cão, demonstrando a lealdade, fidelidade, meiguice, carinho, indulgência que procurou dar-lhe fim, é que publicamos essa jóia primorosa da poesia brasileira.

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos de um camarada,
Na hora da partida. O cão gemendo
Enfim — mau grado seu — o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo mudo
Olhava-o… o sol nas ondas se abismava…
“Adeus” — me disse — e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verá que o rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida
Sua rugosa pálpebra sentida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Chorava o amigo que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A sua cauda — caminhava errante
À luz da lua — tristemente uivando.

Toussenel Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda trouxe o correio
Cinco meses depois do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Era uma artigo.

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Prata.
Falava em rios, árvores gigantes.

Gabava o steamer que o levou: dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e beleza.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bem do melhor cursivo
Recomendava o pobre cão Veludo
Pedindo que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplou e — creia que é verdade.
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejaram de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente
Estendeu-se aos meus pés atencioso
Movendo a cauda — e adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada, Veludo me servia
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.

E respirei: Graças a Deus já posso
Dizia eu “viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Uma alazão inglês, de sela ou tiro.
Ou uma gata branca cinzadora.

Mas respirei porém: Quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver que era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo.
Farejou toda a casa satisfeito;
E — de cansado — foi rolar dormindo,
Como uma pedra junto do meu leito.

Praguejei furisco. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos…
De instante a instante o tufão crescendo.

Chamei veludo: ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto.
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vagamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo — e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui o nos meus braços,
E arremessei-o às ondas de repente…
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte! Era pungente!

Voltei à terra — entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas, ao despir dos ombros meus, o manto
Notei — oh grande dor! Haver perdido
Uma relíquia que eu rezava tanto!
Era um cordão de prata: eu tinha-o unido.

Contra o meu coração constantemente.
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além do mar profundo
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera — duas vidas
Eu arrancara aquela besta morta,
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, abri… Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se aos meus pés — e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.

Fora incrível, oh Deus! — Ajoelhado
Junto ao cão — estupefato absorto,
Palpei-lhe o corpo, estava enregelado
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.

Fonte:
Gumercindo Saraiva. O cão na literatura popular. Tribuna do Norte. Natal/RN, 29/09/1974.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 4, final


Até 1877, a fisionomia do carnaval era mais expansiva, mais popular. Todos os teatros davam bailes; as ruas e praças decoravam-se com amplitude e profusão; carros de máscaras percorriam as ruas; os grupos fantasiados eram inúmeros; e os máscaras isolados faziam rir pela originalidade das ideias, destacando-se pelo espírito.

Enquanto um préstito desfilava e um ou outro grupo mais avultado exibia-se vistoso pela ruas principais, os máscaras de todas as categorias entretinham, em quantidade prodigiosa, todas as atenções.

Sentia-se que a cidade saía fora de sua vida habitual, e que seu aspecto exterior era um reflexo pálido da alegria pública.

Os teatros embandeirados, o comércio das vestimentas, coretos, músicas e rumores generalizados, constituíam o clima do domingo, que, desde as duas horas, transmitia o contágio da loucura à população inteira.

Durante os três dias havia o carnaval das ruas, dos teatros, do Clube, dos salões. Muitos grupos organizaram-se, cada qual com mais elegância e acentuada característica.

A Boêmia, precedendo os Cromáticos, apresentou-se nos teatros com estranho luzimento. O vestuário era o seguinte: blusa de seda, de mangas curtas, franjada de ouro, manoplas de verniz, calção de camurça e justo, botas à Fernando, faixa de cores vivas, argolões de metal nas orelhas, cabeleira crespa, distinguindo-se pelos capacetes encima dos porpássaros, lanternas, quimeras, etc., cujo efeito era admirável.

Recordamo-nos de um desses chicards, que sobre o capacete de couraceiro prussiano ostentava um penacho escarlate e branco, de mais de um metro de altura.

Esses boêmios anunciavam-se pelo grito especial, de que fala Henri Murger. O Clube X, do qual ainda se fala com saudades, compunha-se igualmente de riquíssimos e espirituosos chicards, iniciadores dos carros de ideias, que com tanta vantagem foram apropriados pelas sociedades ulteriores. As damas do Clube X fantasiavam-se com esmero e primavam pelo conjunto das formas. Da passeata que fez o clube, acompanhado de camelos, há muito quem se lembre. O distintivo dos sócios era um C e um X no alto do capacete e nos escudos.

Não nos preocupando de grupos vulgares, falemos de uma antiga sociedade, que retirou-se das folias carnavalescas, porque já não tinha mais louros a colher – os Estudantes de Heidelberg.

E quem eram estes estudantes?

Na primitiva, rapazes do curso médico, alguns empregados públicos, e poucos, mas de boa colocação, do comércio. Esta sociedade não fazia passeatas: dava seus bailes, ou concorria aos do Lírico, Ginásio e S. Pedro.

Pelo pessoal escolhido, percebe-se o sucesso de sua existência. Quando os Estudantes de Heidelberg transpunham os salões, a fina crítica, a intriga espirituosa, a pilhéria inofensiva, entravam em contribuição. As famílias nos camarotes e os máscaras que flanavam nos intervalos da dança, punham-se em guarda para o riso e para o desapontamento. O seu trajar era especial, segundo o estilo universitário. Eis o uniforme: sobrecasaca curta abotoada, calção-camurça, botas de montar, faixa, espada, boné sem aba, mas circulado por larga fita, em que realçavam as cores da bandeira do país ao qual cada um aparentava pertencer. O rei destoava, porque substituía o boné pelo chapéu armado e vestia irrepreensível casaca.

Todos traziam porta-voz, com que atroavam céu e terra. As mulheres que os seguiam, vestidas a capricho e interessantes, ajudavam-lhes a atravessar a noite, no meio das danças e das gargalhadas argentinas. Em qualquer das tardes, máscaras avulsos faziam-se célebres pela originalidade das lembranças.

Um vez apareceu um galo bastante vistoso, que cantava, abrindo as asas, junto a um figurão, que sobre o abdômen deixava ler o seguinte letreiro: Aqui dentro há alguma cousa.

No S. Pedro, no Provisório, depois de ter debicado nas ruas a todo o mundo, apresentou-se um indivíduo, corretamente trajado, vestido à corte, como vulgarmente se diz, de óculos, cabeleira e nariz postiços, de um espírito surpreendente, falando francês, inglês, alemão, italiano e português.

Não houve quem não o admirasse, já pelo chiste, já pela pureza da pronúncia nas línguas em que se exprimia.

Por baixo dos arcos pintados e de luzes; ao açoite das bandeiras suspensas, abalroando-se nos coretos; e, à noite, ao fogo dos archotes, os zés-pereiras, a Morte, de campainha e foice, os princeses de máscara de arame e de papelão, os ranchos com tocatas e os diabinhos de rabos e chifres, agitavam-se, moviam-se, dando a esses quadros um aspecto verdadeiramente encantado.

De súbito, uma banda de música assomava, precedida de fogos de bengala e da multidão dando vivas. Eram as Sumidades, a União Veneziana, os Zuavos, ou qualquer outra sociedade, conforme os tempos, que na terça-feira enterrava o carnaval...

Nos esquifes, com rodelas de limão, ouriçados de palitos, guarnecidos de archotes, carregados ao ombro, os leitões assados, os perus, as galinhas e o fiambre para as ceias no teatro.

O féretro parava em determinados lugares, entoava-se um De profundis, tocavam-se marchas fúnebres, recitavam-se discursos cômicos, poesias disparatadas, em honra do carnaval e da comezaina.

Estas festas foram mais ou menos assim até o ano de sessenta e tantos, em que a Pauliceia Vagabunda compareceu nos festejos.

Foi este o último carnaval clássico, estrondoso. O Imperador desceu, na última tarde, ao paço da cidade.

À exceção do Congresso e da União Veneziana, as mais sociedades existiam: parte da população mascarava-se, e os teatros e clubes eram paraísos artificiais.

Sem podermos firmar as datas da fundação das sociedades de hoje, recordamo-nos de um fato que determinou o renascimento do carnaval, que ia em decadência: o incêndio de uma farmácia ou drogaria da Rua Direita, no ano de 1861. Os teatros estavam cheios e a notícia espalhou-se. Os Zuavos, supondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos sócios, para lá correram, e, com o seu uniforme carnavalesco, auxiliando o corpo de bombeiros, portaram-se com a maior valentia. Extinto o incêndio, levantaram-se para eles as labaredas do prestígio. Novos sócios entraram; o entusiasmo aviventou-se, e não longe desse batismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no crisma de Momo o de Tenentes do Diabo.

Nos carnavais posteriores a 1869, uma outra geração, trazendo consigo novas ideias, veio ocupar o cenário pouco povoado do passado e assistir à agonia das derradeiras associações que faleciam.

Da altura de suas aspirações, recolheu o que lhe pareceu útil, acumulando os cabedais de que presentemente dispõe.

Os Fenianos, grupo dissidente dos Tenentes do Diabo, exemplificam o que dizemos.

A partir de 1870, o carnaval concentrou-se nas grande sociedades, absorvendo os máscaras. Pequenos ranchos, foliões dispersos e de pontos distantes, para verem o desfilar de um préstito suntuoso, afluíam aos lugares indicados no itinerário, abandonando assim seus passeios, seus centros, seu meio; mas como tanto gozavam fantasiados como sem disfarce, opinaram pela conveniência, e o máscara de ontem tornou-se o curioso de hoje.

Não sabemos se com isso ganhou ou perdeu o carnaval; como regozijo popular, não é mais o que era. Os teatros, ficando vazios, porque as cavernas e as casas próprias locupletavam-se, apagaram seus lustres, fecharam suas portas; e os curiosos, depois que as sociedades passam, voltam aos seus lares, como nos dias comuns.

Entretanto, cumpre confessar que os Democráticos, Fenianos e Tenentes são justamente dignos da gloriosa reputação que lhes dispensa o público, reputação adquirida pelo espírito sutil de suas ideias, pelo aparato grandioso de seus préstitos.

Margeando as correntes modernas, substituíram as cavalgadas numerosas, os carros de máscaras, os personagens disfarçados, a mascarada geral, pelas suas custosas bandas de música, pelas alegorias do porta-estandarte, pelos carros de ideias, cada qual mais espirituoso e original, ou mais rico.

Debaixo das rodas destes carros, entretanto, ficaram esmagados os  arlequins, os polichinelos e outros tipos, que outrora tanto nos divertiram. E a alusão deixou de ser pessoal para abranger um círculo, um fato, uma ação. Aplaudidas muitas das suas críticas pela felicidade das reproduções, os acontecimentos mais ridículos e frisantes do ano são transportados para aqueles cenários ambulantes como para um baixo-relevo executado por mestre. O povo ri-se a bom rir, porque, conhecendo o assunto, pode dar aos personagens os nomes autênticos. Depois das ruidosas Alegorias em que todas as sociedades se empenham por exceder-se, seguem-se os carros de ideias, em que os Fenianos, Democráticos e Tenentes têm-se coroado de lauréis, na realidade deslumbrantes. A passagem de Vênus, em que aparecia um célebre astrônomo armado de telescópio; A mancha de Júpiter, alusão magnífica à escravidão; Braços à lavoura, As barraquinhas, a Questão dos bispos, etc., conquistaram tão vivas manifestações que a impressão produzida restou inapagável na memória pública.

Os Fenianos, os Tenentes e os Democráticos, empunhando o cetro da tradição, representam atualmente o carnaval do Rio de Janeiro.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 481

 


Marcelo Spalding (Cédula viva)


Faltavam seis dias para o fim do mês, quinze para a chegada do bebê, doze prestações para sair do cheque especial e dez minutos para fechar o banco. Ele corre em meio à multidão, tropeça, levanta. Entra na agência exausto. O gerente demora vinte minutos para o receber e dois para lhe negar o empréstimo: primeiro precisava quitar o cheque especial. Chega em casa cabisbaixo, evita o olhar da esposa. No quarto do bebê, o pintor o espera. Suado, cansado, um curativo no polegar. O serviço está pronto, diz, cabeça baixa. Custava cento e cinco mas só recebeu cinquenta.

O trabalhador entra no primeiro ônibus. Por sorte, não estava cheio. Senta-se ao lado de uma senhora e tira do bolso a cédula. O curativo parece ceder, suja a nota com um pouco de sangue. Repara pela primeira vez naquela figura feminina sorrindo para ele e é como se todo o seu dia passasse num segundo: acordar, beijar a esposa, lavar o rosto, escovar os dentes, tomar um café frio, chegar na firma, ver se tem pedidos, lamentar a falta de trabalho, jogar sinuca, atender o celular, ir correndo comprar as tintas, pintar o quarto do bebê, machucar o dedão arrastando o berço, pintar o berço, o armário, receber cinqüenta reais. Seria muito ou pouco? Ouve gritos, o ônibus trava: é um assalto.

Oitocentos e dez, oitocentos e quinze, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oitocentos e vinte e dois!, conta o bandido em voz baixa. Põe as carteiras e os documentos todos num saco de lixo preto e ateia fogo. Junta as notas por cor, dobra num bolo só e enfia no bolso do casaco. No caminho para casa, tem vontade de uma bebida, um vinho especial para ele e a esposa naquela noite quente. Separa uma nota de cinquenta, entra num mercado vazio. A moça do caixa acompanha seus movimentos com angústia. Chama o segurança, que se posta ao lado dela. O bandido escolhe o tinto mais caro e se dirige ao caixa. A moça e o segurança o observam, desconfiados. Ele quer ser simpático, pergunta porque nunca tinha visto mulher tão bonita pela vila. A moça não responde, pega a nota com nojo, verifica com atenção. Encontra uma pequena mancha de sangue. Olha para o sorriso nervoso do outro, as mãos sempre no bolso. Chama o segurança e acusa a nota de ser falsa. O bandido poderia ter sacado o revólver e descarregado raiva e cartucho ali mesmo. Preferiu a tristeza. Jogou a cédula no chão e cuspiu sobre ela.

A cédula amanheceu quase no mesmo lugar onde o bandido a jogou. O cuspe fora absorvido mas a mancha de sangue ainda resistia no seu cantinho. Ali perto, mãe e filho saíam de mãos dadas para a escola. Ela, passo apressado, teria deixado a nota para trás não fosse o menino gritar. Voltaram e recolheram o dinheiro. O menino disse que deveriam achar o dono da nota, mas ela respondeu que se a nota estava ali é porque não tinha dono. O menino desconfiou, insistiu, e ela comprou a anuência da criança lhe prometendo um presente. Os olhinhos dele brilharam. Nem foram à escola: ele escolheu uma miniatura de Ferrari com fricção e ela sorriu quando a moça do caixa lhe deu trinta reais de troco. A corrupção do filho lhe custara vinte.

A moça não sonhava em ser caixa de loja quando tinha a idade do menino. Lembrava disso enquanto via ele se afastar, mãos grudadas na Ferrari. Queria ser atriz de televisão ou professora, mas cresceu demais e engordou além da conta para uma atriz. Professora os pais não deixaram ser. Acabou espremida entre o fim do colégio e o não passar no vestibular. Sua maior alegria era ser caixa de uma loja de brinquedos, odiou ter trabalhado em banco, chegava em casa com as mãos doendo e os dedos sujos de tanto contar essas malditas cédulas. O menino já ia longe e ela ainda segurava os cinquenta reais, os manchados e sujos reais, pensando no dia em que teria um filho e uma nota dessas para comprar um presente.

Uma bicicleta. Um homem comprava uma bicicleta. A moça que queria ser atriz e não pôde porque engordou muito e queria ser professora e não pôde porque os pais não deixaram sorriu para o homem que comprava uma bicicleta. Ele perguntou se aceitavam cartão de crédito. Ela sorriu novamente mas disse que infelizmente a loja não trabalhava com aquela bandeira. Ele ironizou e tirou da bolsa uma carteira de couro escuro. Pôs quatrocentos reais em notas de cem diante da moça. Ela, perdida na lembrança do tempo em que pela última vez andou de bicicleta, demorou para pegar as notas. Impaciente, o homem perguntou: nunca viu, né? A moça ficou sem graça, registrou a compra e deu o troco: cinquenta e três. Ele saiu sem agradecer.

O celular toca num ritmo frenético. O jovem atende aos gritos, enche a casa de gírias. Beleza, combinado, tô indo praí. Sobe as escadas de dois em dois degraus e encontra o pai fazendo a barba. Tô precisando de grana, ele diz. O homem se concentra na gilete, termina aquele movimento e pergunta o que o filho fez com a mesada. Qual é, meu velho, vai dar uma de durão pra cima de mim? Pro pirralho tu compra bicicletinha... Bate a espuma da gilete na pia, olha para o filho e pede que abra sua carteira e pegue o que tiver ali. O jovem vai e volta reclamando: pô, meu velho, só isso? Cinquenta e três pila? O pai não responde, ocupado com um novo movimento da gilete. O garoto insiste: então pelo menos empresta o carro, velho.

Não há esquina em que ele não desacelere para ver as meninas. Buzina, fica imaginando o que vai fazer se uma delas entrar no carro e lembra que não tem dinheiro nem para um bom restaurante nem para um motel. Reclama do pai, onde já se viu só andar com cinquenta pila na carteira. Para na sinaleira e aproveita pra conferir de novo. Pega a cédula levemente manchada de sangue, amassada, pegajosa. Pensa, pensa e, como se achasse a solução, sorri para a figura feminina. Quando o sinal abre, sai cantando pneu. Engata a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Abre os vidros, aumenta o volume do rádio, acelera. Buzina para um grupo de prostitutas. Desvia de um ônibus, troca de faixa, ultrapassa o amarelo. A cédula, viva, é a primeira a voar do carro quando ele capota em frente a um banco.

Fonte:
Site do autor.

Chico Anysio (Sábado de Aleluia)


Tomava dois banhos por ano, na fonte da praça.

— Sapucaia! — os garotos gritavam, quando ele passava, exalando um mau cheiro desagradabilíssimo.

Não respondia mal aos meninos. Limitava-se a sorrir, quando lhe gritavam o apelido. Talvez por isso os gritos se repetissem pela rua inteira, à sua passagem malcheirosa.

— Sapucaia!

Não era velho. Poderia ter 35 anos, calculando-se por cima. Os cabelos crescidos, sebosos, caíam-lhe pelos ombros, misturavam-se com a barba nunca cortada; o bigode, jamais aparado, entrando pela boca. A roupa, um amontoado de molambos, rasgões nas calças, sapatos furados.

Aqui e ali alguém se apiedava e lhe dava um prato de comida, que ele devorava como bicho. Não usava a colher que lhe estendiam. Comia com a mão, fazendo bocados disformes.

No sábado de Aleluia os meninos fizeram um Judas que era um réplica dele. De barba e bigode, além da cabeleira onde nunca um pente deslizara, supunha-se.

De longe, viu-se malhado. Os garotos corriam e davam pauladas no boneco de pano que era ele. Furavam os olhos do Judas, rasgavam-lhe a roupa, deixando a palha saindo. De longe, ele via a malhação do Judas, quase sofrendo na carne o que acontecia com o bruxo pregado no poste. Doeu-lhe muito quando atearam fogo ao boneco. Os gritos da garotada saudando a queimação do Judas feriram-lhe os tímpanos. Com as mãos nos ouvidos, correu. Escondeu-se debaixo da ponte, canto onde morava, e chorou.

Um cachorro velho, cego de um olho, aproximou-se. Lambeu-lhe a mão, e isto lhe deu conforto. Puxou o cachorro, estreitando-o nos braços. O cachorro deixou-se ficar ali, esquecido, livre do frio que vinha do rio. Dormiram.

À noite saiu, na cata de comida. Não. Não passaria pela rua onde lhe tinham feito aquela maldade. Andou pela praça, estendendo a mão, no pedido da esmola.

— Vai trabalhar.

— Sai, fedor!

O cachorro o acompanhava. Ele quis enxotá-lo, não conse­guiu. Por mais que tentasse, o cachorro não se afastava. Quando o espezinhava, o cão retirava-se alguns metros e depois voltava a segui-lo. Deixou de o expulsar. Admitiu-o como amigo. Como companheiro, pelo menos. Temeu a presença do cachorro.

— Outra boca pra alimentar...

Mas o cão, fiel como um velho amigo, seguia-o, manso e cativo.

No bar ganhou um pão. Com esforço, dividiu ao meio. Sentou no meio-fio, dando metade do pão ao cachorro. Comeram com sofreguidão. Negaram-lhe a água que pediu.

— Depois eu tinha que quebrar o copo... — comentou o dono do botequim, explicando a negativa.

Todos ficaram de acordo.

Tinha sede. O portão da casa estava aberto e ele viu a torneira, no jardim. Ninguém por perto. O cachorro entrou primeiro. Ele abriu a bica e esperou que o cachorro bebesse. Depois, com a mão em concha, serviu-se da água, quase gelada, reconfortante.

— Um ladrão!

O grito do menino assustou o cachorro. O pulo do animal foi tão rápido que ele não pôde evitar. Cravou os dentes na perna do menino que, aos gritos, correu para casa. Ele fugiu para debaixo da ponte. O cachorro já estava lá.

— Você fez muito mal. Então, é certo morder uma criança? O que foi que o menino lhe fez, pra você dar aquela mordida nele? Eu devia bater em você.

O cachorro parecia entender. Abria e fechava os olhos, boca escancarada, língua de fora, arfando.

Pensava no menino. O que estaria sofrendo, coitadinho, àquela hora?

O menino escondeu dos pais a mordida. Tratou, ele próprio, de passar mercúrio cromo na ferida da perna. Estava com medo de ser castigado. A vizinha vira o molambento no jardim. Imaginou que fosse roubar.

— Vou avisar a polícia — disse o dono da casa.

Considerou um abuso aquele mendigo entrar na sua casa, mesmo não tendo passado do jardim. Não sabia o que fazer ali. Talvez roubar, como a vizinha supunha. Era preciso que tomasse uma providência.

Recebeu adesões. Todos, na rua, de acordo. Tinham raiva dele, do cheiro dele, do aspecto dele, do perigo enorme que ele representava para a sociedade. Aquele bicho!

— Lincha! — berrou uma voz, menos humana.

Apanharam lanternas e saíram na busca do monstro.

— Eu sei onde ele mora! — ofereceu-se uma mulher.

Cercaram a ponte. O mendigo quis falar, tentou correr.

Fecharam as saídas possíveis. Tinha gente com achas de lenha e barras de ferro. Não lhe davam tempo para explicações, nem jeito de fuga. Tentou alcançar o alto da ponte. Bateram-lhe nos dedos. Ele caiu na terra onde antes dormia. Fizeram um cerco em volta dele. Eram mais de quarenta, ninguém poderia ser culpado. Deram e espancaram como de manhã tinham feito com o Judas.

Foram atirados no rio os dois: o cachorro e ele. A correnteza os levou. O cachorro morreu, certamente, sem sentir. O mendigo sofreu muito antes de morrer. Queria ter tido tempo de avisar que o cão estava hidrófobo.

Quando o pai chegou de volta, satisfeito com o que fizera, tinha tanta alegria que nem notou que o filho estava com febre.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 3


Uma vez Laurindo Rabelo estava na porta. Um mascarado, vestido de capim, aproxima-se. O poeta fá-lo parar e diz-lhe, torcendo o bigode:

– Meu amigo: o senhor, depois de divertir-se, come a roupa, não é assim?

Ao que o interlocutor nada respondeu, perturbado, por certo.

O imperador, a imperatriz, e as princesas observavam do passadiço do palácio a animação dos festejos, esperando um pouco retirados pelas Sumidades, cuja tardança os impacientava.

Por volta das 5 horas da tarde, a turba tomava as saídas de onde o clangor dos clarins e o tropel dos cavalos avizinhavam-se. O povo abria-se em fileiras defronte do paço; ao redor da multidão os velhos cabeçudos, de cajado e luneta, suspendiam no ar as enormes máscaras de papelão, saracoteando; os diabinhos barbudos reviravam a máscara, enrolando à cinta a cauda vermelha... A expectativa era inexcedível! E os sons se escutavam de perto, de muito perto...

A família imperial chegava às sacadas, e os vivas e urras, como uma pirâmide sonora, que enfiasse a grimpa na imensidade, tinham por base ondulante o pasmo de toda aquela população.

Logo após, transpunha o Largo do Paço a banda marcial do Congresso das Sumidades Carnavalescas, vestida com o pitoresco costume dos cossacos da Ucrânia.

Os clarins escoceses do regimento dos highlanders formavam-lhe a retaguarda, antecedendo ao carro de D. Quixote, o cavaleiro da Mancha, que fazia tremular, com a galhardia de um herói de Cervantes, o pendão admiravelmente trabalhado das Sumidades.

Todos os caleches – e deviam ser mais de doze – eram puxados a duas parelhas lindíssimas, ajaezadas com grandeza. Sobre cada carro desenrolava-se rica colcha de damasco coberta de rendas alvíssimas; e, em cima das almofadas, ou aos pés dos personagens, cestas com pequenos buquês, caixinhas com estalos fulminantes, grãos-de-bico e feijões confeitados, que cada um atirava aos espectadores das janelas e à gente aglomerada nas ruas.

No meio de bravos e flores, o primeiro grupo de cavaleiros foi de um sucesso maravilhoso. Era um grupo histórico, reproduzido com tanta propriedade e luxo no trajar, que não há quem o tivesse visto que dele não se recorde deslumbrado. Esses cavaleiros eram Nicolau I, Imperador de todas as Rússias, Abdul-Metjid, o senhor de Istambul, um grego, o Almirante Duguay-Trouin, Marco Spada e um dragão prussiano da Morte.

Parando a instantes, refreando os ginetes ariscos, jogavam às senhoras, durante o trajeto, ramos de flores, dentro dos quais metiam um cartão de visita, que tinha por fim declarar o nome dos personagens que representavam. Por exemplo:

Nicolau I cumprimenta a V. Exª, por quem morre de amores.”

Caleches com bayaderas, mandarins, nobres do Cáucaso, Benvenuto Cellini, Fernando o Católico, o Duque de Guise; grupos a cavalo, caracterizados como o Duque d’Alba, Carlos V, o Conde de Provença, Tadeu Kosciusco; faetones em que se repimpavam o Dr. Dulcamara, pregoeiros, etc., constituíam o pomposo préstito do Congresso que, em sua marcha triunfal por uma estrada de folhas verdes e aromáticas, ao dardejar das luzes que assemelhavam-se a abóbadas de fogo, às aclamações populares e às catadupas de flores e harmonias, entrava vitoriosamente no grande carnaval.

Impossível fora descrever o entusiasmo das multidões! Para caminhar no passado, só a imaginação esclarece a treva!

Na noite antecedente, o baile das Sumidades marcava notável acontecimento, por isso que, como baile à fantasia, ainda nenhum outro
enlaçou com tanto brilho e formosura, a nobreza e o talento.

O Clube Fluminense, adornado com o maior esplendor, era o palácio das representações fidalgas. As moças mais belas, membros do Ministério, do Senado, do corpo diplomático, generais, poetas, literatos, jornalistas, funcionários públicos, etc., aí se achavam dando mais realce à grandiosa festa.

Sem roteiro determinado, a passeata daquele ano realizou-se ao acaso; e depois de percorrerem o Catete, voltaram à chácara da Floresta, de onde saíram, dispersando-se afinal.

Na terça-feira fizeram o enterro do carnaval. As pompas funerárias do deus Momo não podiam ser mais solenes. O préstito seguiu a pé: carregado por dominós, o féretro simbólico foi deposto num cadafalso erguido debaixo das arcadas iluminadas da Rua das Violas. A banda militar tocou a marcha fúnebre, um membro da comissão dos festejos recitou um discurso, terminado o quê, foi transportado o ataúde, escoltado pelo Congresso, ao teatro Provisório.

Durante o trajeto, as estrondosas demonstrações excediam do entusiasmo. Vivas, poesias, alocuções burlescas na Petalógica, iluminação das ruas e do edifício do clube, bandeiras e músicas, assinalavam-lhe os triunfos.

À entrada do Lírico, as saudações da plateia e dos camarotes não foram menos significativas. Quando o Congresso das Sumidades Carnavalescas banqueteava-se nos salões, as polcas, os galopes, as quadrilhas e as valsas respiravam apenas, sufocados pelos sons dos guizos e das trompas, dos gritos estrídulos, da vozeria confusa e do bater dos pés de um louco em delírio – o Baile Mascarado!

Destarte inaugurada a festa, fora debalde querer detê-la nas suas celebrações anuais.

As Sumidades, erguendo arcos triunfais, preparavam o caminho até hoje trilhado pelo carnaval do Rio de Janeiro, em busca do templo do deus Momo, uma das mais palpitantes individualizações das bizarrices do espírito humano. E a União Veneziana, que aparecera mais tarde, chama o Congresso de irmão, e disputam-se a primazia. Ambos têm nas mãos a taça dos três dias, que ferve de risos e de esquecimento.

Com a fronte engrinaldada das rosas pálidas da folia, como as mulheres da Babilônia, o Congresso e a União antecipam-se no requinte do prazer.

A Euterpe Comercial, sociedade de música, transforma-se em Zuavos e, ano por ano, o carnaval adianta-se nas suas jornadas ruidosas. Entretanto, o Congresso, durante o seu reinado, campeou absoluto. Os seus bailes e os seus préstitos ficaram únicos.
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Continua… parte final.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Pergaminhos da Saudade – 1 –

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 17


Há males que vêm para o bem, diz a expressão que anda na boca e nas ideias de muita gente. Dobra esquinas, passa nas encruzilhadas, invade sentimentos, navega em muitas águas, resiste ao tempo porque o dizer é sempre lembrado muitos dias e noites tantas.

Começando o ano terminei a leitura do livro com título sugestivo, " É HORA DE MUDARMOS DE VIA ", do pensador Edgar Morin, que festeja cem anos em julho próximo.

Nele o escriba faz um apanhado das vicissitudes dos últimos cem anos - da época em que nasceu até nossos dias. Abre o volume falando da gripe espanhola, passando pelas várias crises mundiais - econômicas, sociais, intelectuais, ecológicas, chegando à pandemia atual (que chamei desde o começo de pandemônio).

O ser humano é gregário por natureza, mas nos perdemos ao longo do tempo com o corre-corre que gera individualismo e chega ao egoísmo. A sede de querer e ter mais nos fez esquecer as lições do TAO, por exemplo, que nos ensina que somos unidades a partir de nós mesmos, como também somos unos nos envolvendo com todos os seres. Devemos então viver em harmonia e cuidar do nosso mundo sendo unidades em pensares e ações.

Nos capítulos finais do livro Morin nos põe a refletir nas lições da pandemia e nos desafios que temos pela frente - existenciais, econômicos, sociais, incertezas de toda ordem para o futuro. O livro é pertinente, oportuno, elucidante.

Fazemos reformas na casa, no carro, no jardim. Que tal uma mexida nos hábitos, costumes e pensares ?

"MUDAR DE VIA . . ." ! Recomendo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas XXIX


Santo Antônio, que lição
de política nos dás,
mostrando ao partir o pão,
que havendo justiça, há Paz!
A. A. de Assis
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Começou pensando em ouro,
escavou, e agora aceita
que a terra guarda um tesouro
em cada grão de colheita.
Alba Christina Campos Netto
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Despedida, a liberdade,
te esqueci, ponto final.
Mas me mandaste a saudade
no perfume de um postal!...
Ana Cristina de Souza
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No cantinho que era nosso,
que em nosso adeus se desfez,
eu volto sempre que posso,
e choro tudo outra vez!
Campos Sales
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Sentimos tanta alegria
quando estamos abraçados,
que, para nós, qualquer dia,
é dia dos namorados!
Divenei Boseli
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Hoje o mistério desvendo,
ao sentir a alma ferida:
só o tempo põe remendo
nos estragos desta vida!...
Domitilla Borges Beltrame
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Olhando o triste cenário,
com tanta virtude à venda,
não vou dizer o contrário:
um honesto vira lenda.
Eduardo Domingos Bottallo
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Amo ler, e bem escolho
no livro a mensagem certa.
0 conteúdo eu recolho,
não deixo a mente deserta!
Elisa Alderani
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Tanta anedota contou
o Olímpio na churrascada,
que ele até troféu ganhou:
"Campeão da Olim... piada".
Héron Patrício
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Vem surgindo o sol nascente
nos braços da madrugada,
e as estrelas, lentamente
deixam rastros pela estrada!
leda Marini de S. Oliveira
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Quem doa os olhos percebe
a paz maior prometida,
por toda luz que recebe
do outro lado da vida.
José Gilberto Gaspar
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Dois corações, duas vidas,
e um só destino traçado;
duas almas envolvidas,
caminhando lado a lado!
José Roberto Pereira de Souza
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Lusitana alma que um dia
enfrentando tempestades,
navegou com galhardia
para ensinar as "saudades".
José Xavier Borges Jr.
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Mal ganho pro meu sustento...
a coisa tá feia, irmão!
Mas no Natal, como aumento,
faço ceia de feijão!
Josué Vargas Ferreira
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Creio que a felicidade
tem cor. E posso afirmar.
Teus olhos são, na verdade,
dois talismãs cor do mar.
Jupyra Vasconcelos
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Pelas vias pedregosas,
com sacrifício eu subia...
Mas, ao descer, colhi rosas
que me encheram de alegria!
Lourdes Borelli
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Exuberante ou singela,
há na grinalda a magia
que me faz ser Cinderela
pelo menos por um dia!
Luzia Brisolla Fuim
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A morte, que tudo alcança,
não vence, nem intimida
quem guarda acesa a esperança
de renascer noutra vida.
Maria Helena Calazans Duarte
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Quem quiser ter livre acesso
ao peito de um sonhador,
basta trazer como ingresso...
um bilhetinho de amor.
Maria Madalena Ferreira
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A grande, a maior virtude
é de quem pode mostrar
que sendo apenas açude
tem a grandeza do mar.
Marta Maria 0. Paes de Barros
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Que os rumos de meus Irmãos
não se percam nas estradas,
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!
Renata Paccola
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Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia,
saudade dói outro tanto
do tanto que já doía.
Professor Garcia
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Não lhe dou o meu perdão
porque, mais que insensatez,
é achar que ainda tem razão
depois do que você fez…
Ruth Farah
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Gera corrida e surpresas
notícia mal pontuada:
"A mulata Globeleza
visita a Serra, Pelada!...
Therezinha Dieguez Brisolia
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Graças á mão da lembrança
que lhes reacende o estopinn,
meus buscapés de criança
correm sempre atrás de mim.
Waldir Neves
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De um amor que é só miragem
finjo agora ter o assédio,
para escapar da engrenagem
dessa moenda que é o tédio.
Wanda de Paulo Mourthé

Fonte:
Informativos da UBT Seção São Paulo

Aparecido Raimundo de Souza (Para todas as horas)


ANINHA LIGOU para a amiga Eloísa e disse que precisava se avistar o mais rapidamente possível com ela. Uma dúvida cruel a atormentava e lhe chegara, por conta, ao incômodo de lhe afetar o sossego e tirar o sono:

— Venha aqui em casa. Vou lhe esperar com um café reforçado. Pegue um Uber. Eu pago...

— OK. Estou indo.

— Vou providenciar nosso café.

Aninha passou a mão na bolsa, pediu um carro de aplicativo e, vinte minutos depois, estava sentada à farta mesa do café no apartamento da sua melhor e única amiga, confidente íntima a quem contava todos os seus segredos, mesmo os mais inadmissíveis e cabeludos:

— E então, Aninha, o que foi desta vez?

— Encontrei um bilhete no bolso do paletó de meu marido! Acho que o Leopoldo está me traindo. Aquele safado tem uma amante, uma amante, Eloísa.

— Um bilhete, amiga?

— Na verdade, o terceiro, só esta semana. Se eu pego a vagabunda, eu mato, juro que mato...

— E o que ele diz?

— Ele quem, meu marido?

— Não, Aninha, os tais bilhetes...

— Estou tão furiosa, tão irritada, que dei para me atrapalhar. Pra você ter uma ideia, já me peguei falando sozinha com a geladeira.

Eloisa caiu numa estrondosa gargalhada:

— E ela respondeu?

— Amiga, você está me tirando? Fazendo hora com a minha cara?

— Claro que não, amiga. Só estou tentando descontrair a sua irritação. Continue, o que diziam os bilhetes?

— No primeiro, a sem vergonha escreveu: ‘Amor, eu te amo. Vamos nos ver no lugar de sempre?’. O segundo, esclarece pouca coisa: ‘meu gato, nosso encontro de ontem foi legal. Vamos repetir a façanha? Me liga. O terceiro, dá conta de que sou ‘otária’. A maldita me chamou de otária. E assinou assim: ‘Sua gatinha, E...’.

— E...?!

— É. A infeliz assinou com um ‘E’ e um coraçãozinho. A desnaturada deve se chamar Elisa, Eliane, Érica, Esther...

— Meu Deus, amiga, que safada! Acaso você desconfia de alguém?

— Sim e não. Para dizer a verdade, sim.

— De quem?

— Olhe você mesma os bilhetinhos. Salvo melhor juízo, me parece, com a caligrafia da secretária dele, a Efigênia.

Aninha abre a bolsa e, de dentro, tira os bilhetinhos encontrados no bolso do paletó do marido:

— Pode ser. Você não deixa de ter razão.

— Eloísa, você ainda tem aquele caderninho cheio de páginas com folhinhas coloridas iguais aos destas mensagens?

— Sim, amiga... Quero dizer, tinha...

— Ué! Que fim levou?

— Joguei fora. Depois que arranjei um problema com a minha mão direita... Ela deu para ficar dormente, assim sem mais nem menos e pior, a doer terrivelmente. Peguei a droga do caderninho e joguei no lixo. Veja você mesma. Nem segurar a caneta estou conseguindo. Se você soubesse como esta coisa dói... Minha vizinha aqui do lado, me disse que é artrite, ou artrose, sei lá.

— Credo, amiga! Não sabia. Que situação! Quanto aos bilhetinhos, o que acha que devo fazer?

— Deixa todos aqui comigo. Vou tentar apurar se as letras de uma de nossas amigas (as que costumam frequentar aqui em casa, nos encontros que nossos maridos e os delas, lógico promovem), batem, ou se assemelham com a caligrafia destes papeizinhos.

— Que legal, minha amiga. Bem pensado. Você me faria este favor?

— Com certeza. Lembra que somos unha e carne e a nossa amizade, nestas horas, serve para ajudar no que for preciso. Asseguro a você que juntas vamos desmascarar rapidinho quem poderá estar se encontrando com o Leopoldo. Deixa estar, ou não me chamo Eloísa.

— Mas nenhuma das esposas tem o nome começado com a letra ‘E’.

— Pode ser um despiste, amiga. Pra não dar na pinta, entende? Juro a você que pego essa periguete seja lá quem for, com a boca na botija.

— E como fará isto?

— Minha ideia, a princípio é comparar as letras. E como farei isto? Pedindo a cada uma das esposas que escrevam alguma coisa para mim.

— Para mim?

— Para eu. Inclusive, até você entrará no jogo. A partir de agora, não fale nada pra ninguém. Bico calado. Te juro que mais cedo do que você pensa, pegarei o sem noção do Leopoldo. Ele que me aguarde.

— Ele?

— Sim amiga, ele...

— Não estou conseguindo acompanhar a sua cabeça. Desenhe.

— Eles, amiga, os bilhetinhos, os bilhetinhos...

Fonte:
Texto integrante do livro 'Comédias da Vida na Privada'. Editora AMC-Guedes Rio de Janeiro 2021.
Texto enviado pelo autor.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 2


É fácil de cogitar: em pequenos grupos de máscaras errantes, um princez desgarrado, e assim por diante.

Em 1854, já alguns carros com máscaras apareceram e das janelas atiraram-lhes flores. O Jornal do Comércio, noticiando o fato, aconselhou que para o ano futuro se reunissem, o que daria mais relevo ao festejo.

Até então a loucura descobria o prazer ao som da música escolhida, inundava-se da luz dos lustres e candelabros, mitigava a sede provocada pelas danças ardentes nas taças de champanha, e requintava de gozo naqueles abrigos resguardados e ideais como as cismas voluptuosas dos crentes.

Era à noite que naquelas Lupercais esplêndidas as mulheres coroavam-se de fascinações, que os moços de qualificação distinta dissipavam-se atraídos.

No Clube, especialmente, quanta perdição no langor morno da beleza aristocrata, no roçar de um corpo de neve, num cismar vago, ao terraço ou à janela, tendo por testemunhas o olhar pestanejante das estrelas e o céu profundo e escuro como as marés incertas do destino!...

Mas a luz do dia tivera inveja da luz dos candelabros; a voz do jornalista é o flat das sociedades; e a Loucura, no seu despertar de Festas e Tradições Populares do Brasil sonâmbula, emboca as fanfarras no meio das praças, com o seu séquito de cem escravas e de milhares de cativos.

Em janeiro de 1855 já as folhas diárias anunciavam que o carnaval seria magnífico: as famílias mais consideradas, a mocidade mais dinheirosa e ilustre, associavam-se à empresa do dia. Jurisconsultos, médicos, jornalistas, militares, altos funcionários públicos, negociantes, fazendeiros, tudo quanto a sociedade fluminense possuía de seleto absorvia-se numa só ideia, num só pensamento.

No Largo do Rocio e em muitíssimas ruas, as casas de vender e alugar vestimentas multiplicavam-se. Nas casas particulares viam-se o veludo e a seda, as espiguilhas e os bordados a ouro; nos alfaiates, os costumes especiais; nos ourives, adereços finíssimos.

Decoravam-se suntuosamente os teatros. Nos cenários, subindo até as bambolinas, os espelhos cintilavam como vagas descendo de fantásticas muralhas: palmeiras à entrada de grutas, cascatas artificiais, flores e perfumes, faziam supor que naqueles salões enormes se iriam asilar as fadas dos contos das Mil e Uma Noites.

Cá fora o comércio abria pesada bolsa ao artista mais hábil no enfeite das ruas, ao jardineiro mais zeloso no cultivo das palmeiras e arbustos de ornamentação, a quem mais deslumbrantes erguesse as arcadas iluminadas, ao pintor de mais imaginação e espírito no acabado dos escudos implanta dos de troféus, onde se liam epigramas e quadras chistosas.

Nos coretos em profusão pregavam-se bancos para a música e colocavam-se figuras que simbolizavam personagens e acontecimentos ridículos.

Nos primitivos carnavais a influência era tamanha, que poderia dizer-se que um terço da população mascarava-se.

E tanto é verdade, que os diretores de teatros advertiam ao público que seria vedado o ingresso nos bailes a quem não se apresentasse fantasiado.

Em 1855 fazia a sua primeira passeata o Congresso das Sumidades Carnavalescas.

Antes do dia 23 de fevereiro, em que caíra o Entrudo, uma comissão composta do Dr. Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, Coronel Polidoro da Fonseca Quintanilha Jordão e do Dr. José Martiniano de Alencar, dirigiu-se a S. Cristóvão, pedindo a S. M. o Imperador que viesse com as princesas ao paço da cidade honrar com a sua presença o carnaval do ano e assistir à passagem do Congresso.

Desta sociedade tiveram a iniciativa notáveis homens de letras e jovens escritores, cujo talento impunha-se pelo brilho progressivo. Estes leais companheiros de tantas glórias, que resplandecem do passado, faziam parte da redação do Correio Mercantil e chamavam-se Henrique César Muzzio, Pinheiro Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, J. de Alencar, Augusto de Castro, Ramon de Azevedo e outros, que saudavam o futuro entre um artigo de fundo, uma poesia, um folhetim, e o desabrochar das esperanças nas alamedas sempre encantadoras da primeira mocidade.

Felizes tempos aqueles em que Alves Branco, F. Otaviano, Firmino Rodrigues Silva e Paranhos regiam os moços, porque eles viam a pena de ouro na mão do mestre e do amigo!

Afastados desse grupo, mas conhecidos de bonito nome, a eles reuniam-se Joaquim de Melo, Francisco Augusto de Sá, os dois Faros, Palhares, Cristiano Stockmeyer, Horácio Urpia e mais, que fortaleceram o empreendimento como forma e como ideia.

Nas tardes do domingo as bandas marciais tocavam; os chicards, os titis, os flambarás, os pierrots, os débardeurs, os dominós, os zés-perei ras, os D. Nunos e os cavaleiros de capa e espada percorriam a cidade. Os carros de mascarados não tinham conta. Dos sobrados desdobravam colchas de damasco e entornavam flores; os estalos fulminantes imitavam as crepitações das fogueiras e a multidão acudia a vários lugares, curiosa e festiva.

No ano a que nos referimos, os máscaras de espírito tornaram-se salientes. Um francês houve que, no Provisório, intrigou a toda a gente. Este máscara envergava um costume metade preto e metade branco.

Muitas pessoas ainda se recordam de um indivíduo que, trepado numa saia-balão de proporções colossais, distribuía pelas janelas poesias, trocando pilhérias.

Consecutivo este carnaval à iluminação a gás desta capital, junto a um mineiro que montava num boi, conquistou gostosas gargalhadas um sujeito enfezadinho, escanchado numa jumenta branca, tendo em toda a exótica vestimenta escadas e lampiões de pano, recortados e cozidos.  Pisava-se sobre folhas de canela e mangueira, sacudia-se do chapéu rosas e jasmins, corava-se à indiscrição de um máscara que segredava (em voz alta) o que vira e o que não vira.

Na Petalógica do Largo do Rocio, Paulo Brito, Teixeira e Sousa, Constantino Gomes de Sousa, Laurindo Rabelo, Zaluar, o bacharel Gonçalves, Castro Lopes, José Antônio, Bracarense e Machado de Assis, atropelavam os princeses que entravam e os desenxabidos que passavam.

Quanta lembrança original, quanto desapontamento engraçado, quanta corrida de vencido!
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Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 480

 


Paulo Mendes Campos (A arte de ser infeliz)


O homem perfeitamente infeliz tem saúde de ferro; check-up e estação de águas todos os anos; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (não toma comprimido porque ataca o coração) e azia (não toma bicarbonato porque vicia o organismo).

O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos - e ele o diz frequentemente.

Banho frio por princípio, mesmo no inverno, e meia hora de ginástica diária.

O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda do cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes.

Não empresta dinheiro; não deve nada a ninguém; toma notas minuciosas de todas as despesas; nunca pagou nada para os outros; não avaliza nota promissória nem para o próprio filho; tem manifesto orgulho disso tudo.

Não tomou conhecimento de qualquer revolução artística ou literária depois de 22: gênio é o Rui; brasileiro é o Rui; saber português é o Rui*.

Iniciar oração com o pronome oblíquo é para ele um crime contra o idioma pátrio, embora seja esta toda a sua ciência a respeito de gramática.

Em sua sala de jantar, um quadro a óleo: o ipê florido, moldura dourada, assinatura de Josimar ou Asdrúbal.

A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: deixou de fumar há onze anos, três meses, cinco dias. Se não deixou, poderá deixar a qualquer momento.

Racista, embora só o confesse aos mais íntimos; admite vagamente todas as religiões; não pratica nenhum culto, mas considera o catolicismo um freio. Sem simpatia política em aparência, vota por instinto nos candidatos mais reacionários.

Antigamente, para ele, era muito melhor que hoje: um dos erros fatais do Brasil foi derrubar Dom Pedro II.

Acha-se (e infelizmente é verdade) insubstituível em seu trabalho; sem ele, o escritório não anda.

Sempre o primeiro a chegar a enterros de parentes, amigos, conhecidos, colegas; também o primeiro a saber e divulgar que abriram e fecharam Fulano, não há nada a fazer.

Ver televisão é o seu recreio mental mais importante; resolver problemas de palavras cruzadas desenvolve o raciocínio e enriquece o vocabulário - uma de suas teses preferidas.

O homem perfeitamente infeliz sabe o que é enfiteuse** e pignoratício***.

Conhece os preços de todos os gêneros e de todos os objetos usuais; está sempre de olho em qualquer transação imobiliária lucrativa; se possui imóveis alugados (quase sempre os possui), é mestre em fabricar um contrato desvantajoso para o inquilino; mestre ainda em sonegar imposto de renda; dá aula sobre a maneira mais efetiva de se proceder a uma ação de despejo.

Sua psicologia: todo homem tem seu preço.

Economia: poupar os tostões.

Sociologia: o povo não sabe o que quer.

Filosofia: o seguro morreu de velho.

O homem perfeitamente infeliz ama os seus de um amor incômodo ou francamente insuportável.

Considera-se dono de excelente bom humor; em família, porta-se com severidade, falta de graça e convencionalismo; cita provérbios edificantes e ditos históricos; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: "Bem que te avisei!"

Arrola o futebol, o samba e a cachaça entre as vergonhas nacionais.

Não diz "minha mulher", mas "minha esposa"; a esposa do homem perfeitamente infeliz é muito mais perfeitamente infeliz do que ele, que nada percebe.

O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz.
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Notas do Blog:
* Rui: Rui Barbosa (1849-1923).
** Enfiteuse: A enfiteuse é instituto do Direito Civil e o mais amplo de todos os direitos reais, pois consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre a coisa de tal forma que o terceiro que recebeu (enfiteuta) passe a ter o domínio útil da coisa mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. Assim, pela enfiteuse o foreiro ou enfiteuta tem sobre a coisa alheia o direito de posse, uso, gozo e inclusive poderá alienar ou transmitir por herança, contudo com a eterna obrigação de pagar a pensão ao senhorio direto. (fonte: JusBrasil)
*** Pignoratício: pertinente ao contrato do penhor.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Homenzinho na Ventania. Publicado em 1962.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) – 6 –


Abraça-me como se teu mar eu fosse
Brinca com minhas cores
Na morenice do teu ser
Descansa na esteira dos meus versos
E a ansiedade numa rede preguiçosa faça adormecer
À sombra das nuvens
Refresca o teu olhar no horizonte
De mãos dadas com o agora, sem promessas, sem depois
Silencia meus desejos em tua boca
Que a voz rouca em teus ouvidos seja uma inspiração
Deixa o nosso cheiro ir com o vento
E que nossos corpos se tornem em um só templo
Ao som do sino entre canções
Acredita que eu sou o teu amor pra vida inteira
E não somente uma paixão passageira
Ou quem sabe um simples deslize de verão.
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Ela
Entregou o seu coração
Mas ele
Não tinha onde guardar.
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… E tem umas horas boas
Na vida da gente,
Que dá vontade de pausar o tempo
Com muitas vírgulas,
Saboreando gole a gole,
Sem pressa alguma
De que chegue o ponto final.
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Havia tanta doçura em seu olhar
Que até os beija-flores
Faziam fila.
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Muitos caminhos a seguir
Mas meus pés viciados e desobedientes,
Até nos sonhos,
Só sabem percorrer o teu.
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Na escuridão
Estrelas brilham
Nos olhos do gato.
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Na sua trilha
Sempre parto
Na chegada
Me reparto
Pra caber em mim
Mais um pouquinho de você.
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Na tempestade dela
Fui amor
Fui calmaria
Mas quem diria
Na minha tempestade
Foi-se até a amizade
E ela foi dor
Foi furacão.
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O apito longínquo no passado
Ainda estremece o peito.
Fecho os olhos
E o trem estacionado na memória
Parte devagarinho
Carregado de lembranças.
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Platônico

Ela dizia
Que gostava do mar
Porque o mar era tanto, imenso...
Mal sabia ela
Que o meu amor por ela
Era ainda muito mais.
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Quando nasci
Um anjo me disse:
Vá! Seja feliz.
E foi o que fiz
Não fiquei juntando pedras
Corri atrás do vento.
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Sou abelha
Borboleta
Beija-flor.
Comigo
Levo de ti um pouco
Mas te deixo
Todo o meu amor.

Fonte:
Facebook do poeta.

Figueiredo Pimentel (A Onça e o Cabrito)


No tempo em que os animais falavam, nesse mesmo tempo chamado do Onça, em que se amarravam os cachorros com linguiça, achava-se uma onça dormindo a sesta, enganchada num galho de árvore, quando exclamou:

– Qual! isto assim não tem jeito! Estou há longo tempo a procurar cômodo neste pau, e nada de poder dormir! Vou fazer uma casa para morar.

Foi a um lugar da floresta, e depois de procurar bem, disse:

– É aqui mesmo; melhor lugar não poderia encontrar.

Roçou o mato que ali havia, capinou tudo muito bem.

Mestre Cabrito também andava com vontade de fazer casa de moradia. Saindo, uma vez, em busca de local apropriado, deu com o roçado que dona Onça tinha feito horas antes, e disse:

– Bravo! Que belo sítio este aqui! Parece feito de propósito para uma casinha!

Dizendo isso, pôs-se logo a cortar grossos paus para servirem de esteios à casa; fincou no chão, e foi descansar.

No dia seguinte chegou dona Onça, e vendo os esteios já fincados, exclamou:

– Com certeza é Deus quem me está ajudando. Ontem, apenas limpei o mato, e hoje já venho encontrar os esteios da casa!...

Cortou mais paus; fez a cumeeira; pôs as travessas e retirou-se.

Quando o sr. Cabrito chegou, e viu aquele progresso na construção, exclamou:

– “Qual! Decididamente Deus Nosso Jesus Cristo está me ajudando! Estou encantado de graça... Não pode ser outra coisa. Por isso, mãos à obra, sr. Cabrito, quanto mais depressa melhor.

Então colocou caibros* na casa, e nesse dia deu por findo o serviço, achando que havia trabalhado muito.

Quando dona Onça veio, ainda mais admirada ficou. Nada disse, todavia. Pregou as ripas e os enchimentos, e foi-se embora.

O cabrito pôs as varas, os portais e as janelas, e saiu.

A onça cobriu a casa de telhas.

O cabrito assoalhou, e fez o teto.

Um dia, um, outro dia, outro, trabalharam sucessivamente os dois animais, sem no entanto jamais se encontrarem, cada um pensando que era Deus que o protegia.

Ficando pronta a casa, dona Onça fez a cama e deitou-se.

Ainda não tinha ferrado no sono, quando chegou também o cabrito, que, vendo a onça, disse:

– Não, comadre onça; esta casa é minha. Fui eu que finquei os esteios, pus os caibros, os portais, as janelas, etc.

Depois de muita discussão, a onça, que já estava com vontade de comer o cabrito falou:

– Bem, compadre, não é preciso fazer questão; vivamos juntos, como bons amigos.

O cabrito, embora com muito medo, aceitou a proposta da onça, mas, por precaução, armou a cama longe, perto da janela, para poder escapulir ao primeiro sinal de perigo.

Achava-se ainda na cama, aos primeiros albores da madrugada, quando a onça se virou para ele, e lhe disse:

– Vou dizer-lhe uma coisa, compadre Cabrito: quando estou zangada, começo a franzir o couro da testa. Tome cuidado.

– E eu, comadre Onça, – respondeu o outro, fazendo-se forte, mas, com verdadeiro pavor, – quando estou com raiva, começo a sacudir as minhas barbinhas, e se der algum espirro, então fuja, porque não estou para brincadeiras.

Vendo que o outro não fugia, a onça saiu, dizendo que ia buscar alguma coisa para comerem.

Meteu-se atrás de uma moita, num mato muito cerrado, pertinho de um regato, onde os outros bichos costumavam ir beber água.

Apareceram diversos animais, mas a onça não se mexeu. Quando, porém, chegou um cabrito grande, muito gordo, de um salto caiu-lhe ela em cima e matou-o.

Arrastou-o até a casa e, de fora, já vinha gritando;

– Abra a porta compadre Cabrito, para eu poder passar com a minha caça!

Mestre Cabrito, já desconfiado daquele barulho, imaginando ser alguma cilada que lhe armava ela, respondeu no mesmo tom:

– Está aberta, comadre; basta empurrá-la.

Quando o cabrito viu o seu companheiro teve muito medo, e disse consigo mesmo:

– Se ela matou este, que é maior e mais que eu, como não procederá para comigo?

E protestou ficar cada vez mais alerta.

Ofereceu-lhe a onça um bocado de carne, mas o cabrito não aceitou, dizendo já ter almoçado.

No outro dia foi ele quem disse à onça:

– Agora, comadre, sou eu quem vai à caça. Vou arranjar alguma coisa para comermos.

Embrenhou-se pela floresta adentro, quando viu uma onça muito grande e gorda. Disfarçou, e começou a cortar cipós fortes.

A onça, chegando perto, indagou:

– Amigo cabrito, para que é que está você cortando tanto cipó?

– Oh! Amiga onça, não sabe do caso? Então não sabe que o mundo está para vir abaixo, que um grande dilúvio e grande ventania vem cá para a terra? Trate de si, que é o que deve fazer. Eu vou-me amarrar com estes cipós, porque não quero morrer já.

A onça, com medo, escolheu um pau bem grosso, e pediu ao cabrito por tudo quanto havia que a amarrasse.

O cabrito amarrou-a perfeitamente, com uma porção de cipós, e, quando a viu bem segura, matou-a.

Desatou o cipó que a prendia, e começou arrastá-la até à casinha. Quando chegou, disse à sua comadre, que ficara em casa:

– Comadre onça, trago comida para dois dias, venha ver, e vamos esfolar o bicho, que está gordo que faz gosto.

A onça, quando viu uma companheira sua morta pelo cabrito, teve muito medo, mas nada disse.
***

Começaram os dois a ter medo um do outro.

Um dia, o cabrito estava perto da janela tomando fresco, quando viu a onça com o couro da testa todo enrugado, o que nela era sinal raiva.

Teve receio. Começou a sacudir as barbinhas e deu um grande espirro.
A onça ouvindo-o e lembrando-se que era sinal da zanga do cabrito, pulou de cima da cama e começou a correr como uma desesperada, por este mundo afora.

O cabrito, por seu lado, fugiu também, em direção oposta, com medo da onça.

E os dois ainda hoje se evitam.
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Nota:
* Caibros
– Estrutura de madeira de um telhado, sobre o qual se colocam as telhas.


Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 1


Não é de hoje a história das vesânias humanas.

O carnaval, que é uma frenopatia, filia-se às mais altas civilizações, exibindo-se rudimentário entre os povos selvagens. As sanhas (vontade incontrolável) dos Querubins egípcios, das Saturnais romanas, das Bacanais gregas, da festa dos Inocentes e dos Loucos, de que falam as crônicas da Idade Média, é a mesma do carnaval de Veneza, de Roma, de Paris, do Rio de Janeiro e das tribos amazônicas.

Entre todos os povos encontram-se as mascaradas – desde o Indo – que, como pensa Volney, desfigurava o céu, o metamorfoseava, até os nossos tucanos, que tomavam máscaras de folhas e de cascas de árvores, de terra e de cabeça de animais, para as festas do Buianté. S. João Crisóstomo condenava os deboches e as mascaradas nas igrejas; e o Papa Inocêncio III as verberava por meio de uma decreto:

– “Dão-se algumas vezes nas igrejas espetáculos e divertimentos de teatro, e não somente introduzem nesses espetáculos e nesses divertimentos monstros mascarados, mas ainda em certas festas os diáconos, os padres e subdiáconos permitem-se a liberdade de fazer toda a casta de loucuras e palhaçadas...

“Eu vos conjuro a exterminar este costume...”

O carnaval implica o uso da máscara e dos disfarces; e a máscara era usada pelos trágicos gregos e romanos. Nos Bacanais e nos espetáculos haviam máscaras que exprimiam o ódio, a lubricidade, a sátira...

Em França, desde o século XIV, diz o bibliófilo Jacó, as máscaras foram adotadas: Filipe o Belo tinha o carnaval como o folguedo de sua predileção.

Segundo o redator do Journal de Paris, citado pelo romancista dos Nouveaux romans de Paris, “uma singular mascarada teve lugar no reinado de Carlos VI, no cemitério dos Inocentes. Em uma ação fantástica, chamada Dança Macabra, indivíduos de ambos os sexos, disfarçados em gente de todas as condições, desfilavam ante a Morte, que impassível lhes ouvia as queixas. Pediam-lhe a prolongação da vida; uns para realizarem projetos de ambição, outros para gozarem de sua nova fortuna, todos para alguma quimera. A Morte, depois de chasquear em verso com os suplicantes, descarregava-lhes a foice”.

A mascarada da Dança Macabra esteve muito em voga na Alemanha e na Suíça.

Henrique III dispensava calorosa animação a esse regozijo público. À semelhança dos validos do rei, os nobres e as senhoras do tom mascaravam-se.

Acrescenta o historiador Lestoile que aquele soberano gostava tanto de fantasiar-se, que deitava-se de máscara, interiormente untuosa e pintada.

No Beppo de Lorde Byron, o poeta encarece o carnaval de Veneza: Goethe no Fausto é menos entusiasta pelo carnaval de Roma.

No tempo de Luís XIV as cortesãs e as mulheres da moda tatuavam-se exageradamente, e usavam de sinais pretos no rosto para fazerem-se mais lindas; muitas havia que sobre a alvura da face assentavam estrelas e meias-luas de tafetá, que concorriam para transformá-las.

A revolução acabou com as mascaradas em França, reaparecendo elas mais tarde nas ruas e teatros.

Uma coincidência: o carnaval francês agonizava, quando nascia o carnaval brasileiro.

O carnaval do Rio de Janeiro começou após a proibição do jogo do entrudo pelo desembargador Siqueira, único dos nossos chefes de polícia de quem a tradição repete o nome com segurança e respeito.

Muito antes, inauguraram-se os bailes mascarados, devido os primeiros à iniciativa da cantora Delmastro, que para aqui viera com a companhia lírica de Mme. Lagrange.

Estes bailes tiveram lugar onde é hoje o teatro da Fênix Dramática, que compreendia a grande chácara da Floresta.

Sucederam-se a estes os do Ângelo, na chácara da Rua do Conde, na Cidade Nova, e os do Nicola, no Largo do Rócio.

Ao crescente e inesperado favor do público corresponderam os teatros de S. Januário, Lírico Fluminense, S. Pedro e Ginásio, que para o mesmo fim abriram as suas portas, acompanhando-os o Clube Fluminense, que só admitia os sócios, e o Paraíso que aceitava a todos.

Em que consistia o nosso primitivo carnaval ao ar livre?
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Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.