terça-feira, 10 de agosto de 2021

Concurso de Trovas "Príncipe da Trova Luiz Otávio"


Atenção trovadores

Breve será lançado o segundo Concurso de Trovas do Blog:

Concurso de Trovas “Príncipe da Trova Luiz Otávio”

O prazo será até 30 de novembro de 2021
 
Âmbitos: 
Nacional/Internacional
Estadual (somente para trovadores do Paraná)
 
(Veteranos e Novos Trovadores)

Realização:

Blog Pavilhão Literário Singrando Horizontes  

(http://singrandohorizontes.blogspot.com)

 

Apoio:

Academia Brasileira de Trova (ABT),

Academia de Letras e Artes de Paranapuã (ALAP)


AGUARDE O REGULAMENTO!!!!!

Milton Sebastião Souza (A fila da morte)

Uma fila de quase mil pessoas. E ele entre os últimos dez. A fila andava pouco. E o pior é que não lembrava o que estava fazendo naquela fila. Bateu no ombro do sujeito da frente e perguntou: “Esta fila é para que?”.

O cara, sem sorrir, respondeu: “Olha, eu não sei muito bem. Mas se está com pressa, pode passar para a frente e ocupar o meu lugar”.

Agradeceu a gentileza, passou para o lugar do outro, e fez a mesma pergunta para a mulher que ficara na sua frente. A resposta foi a mesma e a gentileza também. Em poucos minutos ganhara dois lugares. Que sorte!!! Mas ainda não sabia o que estava fazendo ali. Ainda bem que a fila andou uns quatro passos. Mas ainda não conseguia enxergar o começo dela, pois havia uma espécie de neblina lá na frente.

Neste momento, notou que um rapaz todo vestido de branco caminhava pelo lado da fila, entregando senhas numeradas para todos. Esperou, pacientemente, o rapaz se aproximar. Quando o moço estendeu uma senha, ele perguntou: “Que fila é esta. Não lembro o que estou fazendo aqui”.

O rapaz, com um sorriso, respondeu: “Esta é a fila para o encontro com a morte. Lá no começo, a morte está sentada no seu trono. Quando o senhor chegar na frente dela vai saber se o seu destino é o céu ou o inferno. Eu estou entregando senhas porque algumas pessoas estão trocando de lugar e indo mais para trás. Assim, com estes números, ninguém vai enganar a morte: cada um chegará na frente dela na sua hora marcada”.

Fila da morte. Meus Deus!!! E ele passara dois lugares para a frente. Que trouxa!!! Enganado duplamente. Olhou para trás, mas os dois enganadores já tinham conseguido dar vários passos para trás. Pensou: “Desgraçados. O inferno está esperando por vocês, seus miseráveis”.

Sentiu um empurrão nas costas. A fila havia andado e ele ficara parado, deu quatro passos para a frente, sem muita vontade. Pensou em sair correndo, mas notou que a fila ocupava um longo corredor sem janelas. E alguns seguranças, armados, olhavam ameaçadoramente para quem pensasse em sair da fila. E ninguém queria morrer antes da hora...

Lembrou das muitas filas que havia enfrentado durante a vida. Sempre tivera muita pressa e, muitas vezes, furara filas para não ficar esperando. Ou promovera protestos, gritando: “Esta fila não anda, vamos dar um jeito nisso, vamos botar mais gente para atender...”.

Quantas broncas havia armado!!! A coisa que ele mais odiava era enfrentar filas. Chegara a pagar pessoas para ficar nas filas no seu lugar. E agora estava ali, torcendo para que a fila não andasse ou andasse bem devagar. Ainda bem que a morte atendia pessoalmente cada pessoa. A fila andava lentamente. Mas ele já estava achando rápida demais...

Começou a suar frio. Como se metera nesta? Relembrou os últimos acontecimentos. Estava bebendo com os amigos, numa alegria total. De madrugada, pegara o carro para ir para casa. E depois disso não lembrava de mais nada. Será que havia se metido num acidente de trânsito por dirigir embriagado?

Sentiu alguém batendo no seu ombro. Olhou para trás: era um policial. Falou: “Não adianta empurrar, meu. A fila anda devagar. E eu nem posso te dar o meu lugar porque já tenho a senha numerada. Vai com calma que a tua hora também chega”.

O policial, porém, pegou no seu ombro e sacudiu mais forte. E ele foi abrindo os olhos devagar. Num segundo, a fila da morte desapareceu. E ele notou que havia dormido sobre a direção do carro. Ainda estava no estacionamento do bar onde bebera com os amigos.

Cambaleando, saiu do carro e foi amparado pelo policial. Depois de acordar melhor, mostrou os documentos, e foi aconselhado a pegar um táxi para ir para casa. Uma fila de pessoas aguardava a chegada dos carros de aluguel. E ele, pacientemente, esperou a sua vez, pois aprendera, em sonho, que não era tão mau assim esperar numa fila…

Caldeirão Poético XLVI


Célia de Paula

(Rio Branco/AC)


ENTARDECER

Quanta maravilha o céu enfeita!
Um tom laranja ao final do dia,
Teor magnífico de uma poesia,
Magia que a um artista deleita!

Bailam no céu as aves canoras,
Formando um contraste lindo!
Meus olhos perdidos no infinito...
Esplêndido tema d’alma aflora.

Um espetáculo de endoidecer!
No horizonte o Sol a se esconder,
Dar asas a minha imaginação...

Nosso Senhor usou de inspiração…
Lapidou a natureza, adubou o chão…
Pôs brilho e encanto no entardecer!
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Júnior Bonfim
(Fortaleza/CE)

EU SOU


Um pássaro - que tem o sol como meta
um apaixonado barco - em mares de aventura
um homem sério - com o coração de poeta
uma sonhadora abelha - que só busca doçura!

Nos olhos tristes - a infinita alegria
no peito uma estrela - de invisível brilho
namorado da paz - torcedor da rebeldia
amante das pétalas - do sorriso filho.

Bandeira de incêndio - horizontal canção
um monte calmo - com tendências de vulcão
um marinheiro - que distribui beijos de adeus.

Uma árvore - perfumada de emoção
um grande ateu - que tem muita fé em Deus
e que por tranquilidade - só tem a agitação!
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Lucineide Souto
(Fortaleza/CE)

ENTÃO


Então vamos florir com rosas e palmas a nossa estrada longa,
Exposta nua, sem pudor, ao matutino sol incandescente,
Qual desenhista, a nossa silhueta negra ao chão alonga
Inconformado, talvez, com a nossa esplendorosa luz fulgente?

Então, vamos cantar o nosso amor febril em prosa e verso
Quando a tarde por sobre o mar azul desmaia lânguida?
E o vermelho crepuscular veste de púrpura o Universo
E a Ave Maria se difunde, no vácuo, bela e cândida?

Então, no sol de espelhos, por sobre as águas, certo dia
Em que morreram, talvez, nossas quimeras e a esperança
A Rainha do Mar revestiu de luares a mais doce fantasia

E, se fez prata o tempo da nossa florida e longa estrada.
Nossas mãos inutilmente perseguem as estrelas cadentes -
Serenos beijos da noite nos lábios radiantes da alvorada.
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Pedro Francisco Alves
(Tanguá/RJ)

FORÇA DO EQUILÍBRIO


Coração limpo e cabeça fria
oxigenam a alma com primores,
exterminam mazelas e rancores
e disseminam paz e harmonia;

extinguem procederes agressivos,
inibem as carências amorosas
e dão beleza de lírios e rosas
às relações e tratos tempestivos.

Interligam o Norte com o Sul,
colorem os perfumes de azul,
perdoam as sequelas da desdita,

acalmam o pavor que precipita
e aumentam as chances de vencer:
angústias, sofrimentos, padecer...
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Totonho Laprovitera
(Fortaleza/CE)

FELIZ E SATISFEITO


Entre a pintura de Adão e Eva,
num pára-choque li pela avenida:
"O que se leva mesmo dessa vida
é a vidinha que aqui se leva".

No prato o pobre quase nada tem,
seu salário mal chega ao dia seis,
o aluguel sempre atrasa mais de mês,
e ainda acha que passa muito bem.

Aí pergunto com todo o respeito:
Será defeito a falta de dinheiro
pra quem vive feliz e satisfeito?

Mas como diz a expressão tão nobre:
Nessa vida o rico verdadeiro
é aquele que bem sabe ser pobre!


Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas. 
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.
Livro enviado pelo organizador.

Stanislaw Ponte Preta (O suicídio de Rosamundo)

Rosa se meteu com uma dessas mulheres para as quais o sentimento de fidelidade vale tanto quanto um par de patins para um perneta. Rosamundo, no começo, não percebeu.

Aquela sua vaguidão. Mas os amigos acharam demais. A deslumbrada passava o coitado para trás de uma maneira que eu vou te contar. Aí os amigos se queimaram na parada, chamaram o Rosa num canto e deram o serviço. Eu não me meti porque acho que ninguém tem o direito de impedir os amigos de amarem errado. Sou como Tia Zulmira, que considera a experiência pessoal a única coisa intransferível desta vida, tirante, é claro, a ida dos ministérios para Brasília.

Se o cara nunca amou errado, tem que amar uma vez, para aprender. Mas — sinceramente — eu que conheço Rosamundo tão bem, até hoje não sei dizer o que ele é mais: se distraído ou emotivo. Ao reparar que a moça não era merecedora, ficou numa melancolia de pinguim no Ceará. Não comia, não dormia e acabou apelando para a mais amena das ignorâncias, ou seja, o gargalo. Ficou mais de uma semana enchendo a cara. De "Correinha" a "House of Lords", Rosamundo bebeu de tudo.

Como diz aquele sambinha do João Roberto Kelly, "mulher que se afoga em boteco, é chaveco". Em vez de esquecer a infiel, Rosa foi se tornando um escravo dela. Fez até um tango, que começava assim: "Yo sé que tu eres una vaca..." e terminava como terminam todos os tangos, isto é, plam-plam...

Ontem, ele estava no máximo da fossa. Mais triste que juriti piando em fim de tarde. Sua depressão chegara ao ponto culminante, se é que depressão culmina. Desolado, foi para casa, tomou mais umas e outras e sentou-se na escrivaninha para escrever um bilhete de suicida. O bilhete de Rosamundo não diferia muito dos bilhetes de todos os suicidas. Despedia-se da vida, pedia para não culparem ninguém e pedia desculpas aos que lhe queriam bem, pelo tresloucado gesto.

Em seguida foi para o banheiro, forrou o chão com uma toalha, calafetou a porta e a janela, abriu o bico do aquecedor e deitou-se para morrer. Mas Rosamundo é distraído demais.

Acordou de manhã com o corpo todo doído de ter dormido no ladrilho. Como, minha senhora, por que foi que ele não morreu? Era greve do gás, madama.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Adega de Versos 40: Daniel Maurício

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 32 e 33


A VEZ DOS FERREIROS


Dentro do Partido Antissituação surgiu a ideia de se criar outro partido, que seria, digamos, o Partido dos Ferreiros, por serem os ferreiros, como se sabe, classe até agora sem representação política.

— Os ferreiros são o sustentáculo da nação. Sem eles não haveria o ferro trabalhado e convertido em inúmeros objetos da maior serventia, inclusive as ferraduras para cavalos, esses animais de que não podemos prescindir para as corridas de obstáculos e outras. Vamos fundar o Partido Ferreiral Copaibano — propôs um orador.

— Partido Ferreirista Copaibano é que deve ser — aparteou outro prócer, e saiu na disparada para registrar a sigla PFC, comum aos dois projetos.

O partidário do Ferreiral saiu-lhe na cola, e os dois chegaram ao local desejado com cinco minutos de diferença entre um e outro. O oficial de registros partidários, vendo ambos bem vestidos e com as mãos primorosamente limpas, indagou:

— Qual dos senhores é ferreiro?

Ao que responderam a una voce:

— E precisa?
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BINÓCULOS

No apartamento fronteiro instalou-se há dias novo morador. Ele assesta o binóculo em minha direção. Percebendo que estava sendo observado, tirei da gaveta o meu binóculo e por minha vez pus-me a observá-lo.

Nossos olhares se cruzaram. Imóveis, cada um lia no rosto do outro alguma coisa que lhe interessava saber. Ou tentava lê-la, mas, sentindo ambos que eram objeto de curiosidade mútua, ele procurava disfarçar o que tivesse de revelável no rosto, e eu fazia o mesmo, de sorte que, quanto mais nos inspecionávamos pelo olhar, mais realmente nos desconhecíamos.

A contemplação simultânea durou não sei quantos minutos. Era ostensiva e ao mesmo tempo astuciosa, enganadora e denunciadora.

Seríamos talvez (ou nos tornaríamos) dois inimigos, dois companheiros, dois irmãos, dois críticos implacáveis. Ele necessitava de mim, e eu dele, nessa procura do que nos faltava a ambos. Cheguei a pensar que fôssemos uma só pessoa, desdobrada e reunificada pelos binóculos.

Nesse caso, estaria eu procurando ver no rosto alheio o meu verdadeiro rosto e, quem sabe, aquilo que meu rosto esconde de si mesmo. E, do outro lado da rua, meu rosto desdobrado fazia a mesma coisa.

Nisso caiu uma chuva forte, que embaciou as vidraças atrás das quais nos protegemos, e nossos binóculos e rostos tornaram-se praticamente liquefeitos, cessando a pesquisa.

Não tenho visto mais o novo morador, e não sei onde botei esse binóculo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas) = 2

A saudade é traiçoeira,
volta e meia nos invade,
e a gente, só de bobeira,
vira refém da saudade.
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A saudade é um passarinho
que volta e meia atordoa,
e depois que sai do ninho,
só se vê quando ela voa…
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A saudade me belisca
toda vez que o coração
quer entrar, e até se arrisca,
nos arquivos da emoção.
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A vida passou-me a perna,
deixando só desenganos,
e o nosso amor - ânsia eterna -
ficou somente nos planos!
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Driblando a força do malho
dos impulsos da ilusão,
encontro o melhor atalho
nos trilhos do coração.
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É uma deusa a minha amada,
mesmo sem manto e sem véu,
pois me conduz pela estrada
que dá nas portas do céu!
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Finda a jornada que cansa,
o jangadeiro, olho em brasa,
iça a vela da esperança
pra chegar mais cedo em casa.
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Fiz minha casa com garra,
mantendo a fé que não cansa,
pondo amor em cada amarra,
com tijolos de esperança!
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Identifico-me a Deus
no momento em que meu braço,
entrelaçando-se aos teus,
toma a forma de um abraço.
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Madrugada... a minha mão
tem vida própria e refaz
os caminhos da união
em teu corpo... achando a paz!
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Mal começa a amanhecer,
na angústia desenfreada,
abro olhos pra entender
os sonhos da madrugada.
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Minha esperança é virar
o jogo do mundo e a dor
enquanto ainda restar
uma fagulha de amor!
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Na armadilha da saudade,
me prendeu a noite inteira,
e eu pude ver pela grade,
que a saudade é traiçoeira....
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Na ausêncía que nos poupa,
saudade é formiga arisca,
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
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Na madrugada silente
nossos lençóis retorcidos
dão a ideia permanente
dos mil amores vividos.
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Não havendo outra saída,
melhor o mundo seria
se abraçássemos a vida
com os braços da poesia.
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Nas minhas novas andanças,
carregando ideias novas,
eu volto "abanando as tranças",
com um balaio de trovas!
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Na sua lida diária,
vindo a chuva no horizonte,
para a formiga operária
qualquer graveto é uma ponte.
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Na tempestade, em apuro,
faltando força nos braços,
só encontro cais seguro
no porto dos teus abraços.
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Na travessia das horas,
nosso amor se distancia,
e quanto mais tu demoras
mais longa é a travessia.
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No pomar de amenidade
do teu rosto inspirador
colho um cesto de saudade;
na saudade... o teu sabor.
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Porque foi todinho escrito
pela mão de Deus, um dia,
o nosso amor é infinito,
pleno de paz e magia.
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Quando a lua abre o sorriso,
pondo à mostra o seu clarão,
parece que o paraíso
se estampa na imensidão.
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Reinventando a bondade
dos tempos do velho poço,
puxo o balde da saudade
para saciar o alvoroço.
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Reinventando o prazer
de viver o amor a dois,
vamos tratar de viver,
que o resto se faz depois!...
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Se a vida é um mar de ansiedade,
que te joga, que te cansa,
prende o barco da saudade
no velho cais da esperança!
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Sorte, a minha, que depois
de encontrar-te, por acaso,
todo encontro de nós dois
não se trata mais de um caso.
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Teu beijo tem mais sabor
quando, à noite, com carinho,
colocas lençóis de amor
para cobrir nosso ninho.
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Uma fagulha de amor
na fogueira esmaecida
enche as taças de vigor
e acende a chama da vida.
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Um sonho é sonho, mais nada,
mas, às vezes, na emoção,
deixa marcas na calçada
das ruas do coração.

Fonte:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças e outros poemas.
Cachoeirinha/RS: AgênciaTexto Certo, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Lima Barreto (Despesa filantrópica)

Quando ele me chegou à porteira de casa, acompanhado de outro sujeito mal-encarado, não o reconheci. Ele entrou a meu convite para a sala; sentou-se mais o companheiro e mandei servir-lhes café. Enquanto o café era esperado, ele se deu a conhecer. Aí é que foi a minha surpresa.

— Por quê? acudiu o amigo que ouvia o fazendeiro.

— Por quê?... Porque era um dos mais famosos assassinos do lugar.

— Diabo! Que visitante recebias tu com tanta distinção!

— Foi mesmo o diabo! E fiquei contrariado em recebê-lo em casa. Se soubesse quem era, teria dado “pouso” em qualquer dependência da fazenda e evitado que ele me entrasse em casa; mas... o que estava feito, estava feito, tanto mais...

— Sim; porque se fizesse qualquer jeito de contrariedade, ele talvez te desfeiteasse.

— Com toda a certeza! E, conquanto já estivesse habituado à vida daqueles lugares bravios, onde a coragem pessoal, mesmo com certa jactância, é indispensável, não me convinha absolutamente ter questão com semelhante sujeito que era o tipo acabado do interior do Brasil.

— Há esse tipo?

— Há, pois não.

— Qual é o traço característico?

— É a futilidade dos móveis do crime e a capacidade de matar a mandado de outrem. No interior, a mais simples rixa por causa de uma questão de compra e venda leva um sujeito ao assassinato. Uma frase assim, assim, que o Fagundes ouvia da boca do Antônio, como tendo, sobre ele, sido proferida por seu inimigo Orestes, determina que o Fagundes mate Orestes. Conto-te um caso: o Madruga se havia separado da mulher que se prostituíra e fora morar numa cidade distante. Passam-se anos e Madruga vai prosperando com o seu negócio no vilarejo. Parecia esquecido de sua infelicidade conjugal, quando lhe chega aos ouvidos que a sua mulher tresmalhada, no auge daquelas grosseiras orgias sertanejas, o injuriava com frases pesadas. Ele que faz? Arma-se, monta a cavalo e vai procurar a mulher na sua triste residência. Engabela-a e a mata. Consegue escapar, volta ao vilarejo, onde tinha negócio; espalha a “boa-nova” do que fizera; publica, no jornal local, o seu retrato e o da mulher, a peso de dinheiro; e espera tranquilamente a ação da justiça.

— É incrível!

— Pois é, meu caro Felício. O caipira, o matuto, o Jeca, como se diz atualmente depois de Monteiro Lobato, mata mais por vaidade do que mesmo por vingança, crueldade ou por tara. De forma que ser valentão, matador, é lá um título de honra e os assassinatos cometidos são como condecorações de ordens reais e imperiais. Sendo assim, nada mais fácil do que achar quem aceite encomendas de “mortes”.

— O teu visitante quantas já tinha?

— Três; e era bem moço, de mais ou menos vinte e cinco anos.

— Como te livraste dele?

— Vou te contar. Estivemos conversando e ele me narrava proezas, expondo, ao mesmo tempo, a maldade de seus inimigos e a vingança que havia de tirar deles. Hás de supor que falava com raiva.

— Não?

— Qual! Falava com a calma mais natural deste mundo, empregando os mais lindos modismos do dialeto caipira. Num dado momento sacou da cinta uma imensa pistola parabélum e disse: “esta bicha tá virge, mas ela corre que nem veado”. Era uma magnífica arma de treze tiros, com alcance de mais de mil metros. Pedi-lhe que me deixasse ver. Examinei-a, pensando tristemente no esforço da inteligência que representava aquele aparelho, e que, entretanto, estava destinado a tão má aplicação. De repente perguntei ao assassino: “Aluísio, você quer vender esta arma? Dou trezentos mil-réis”.

Ele não pensou — porque Jeca está sempre disposto a fazer negócio, barganha e rifas — e disse: “Dotô, nós faz negoço”. Dei-lhe o dinheiro, fiquei com a arma; e ele se foi, para voltar mais tarde. Voltou, de fato; mas, sabes o que ele trazia quando voltou?

— Não.

— Um rifle Winchester que comprara por duzentos mil-réis. Eis em que deu minha despesa filantrópica.

Fonte:
Lima Barreto. Contos completos. Conto publicado em 1951.

domingo, 8 de agosto de 2021

Arquivo Spina 44: Artur José Carreira

 

Inglês de Souza (Acauã)

O Capitão Jerônimo Ferreira, morador da antiga vila de São João Batista de Faro, voltava de uma caçada a que fora para distrair-se do profundo pesar causado pela morte da mulher, que o deixara subitamente só com uma filhinha de dois anos de idade.

Perdida a calma habitual de velho caçador, Jerônimo Ferreira transviou-se e só conseguiu chegar às vizinhanças da vila quando já era noite fechada.

Felizmente, a sua habitação era a primeira, ao entrar na povoação pelo lado de cima, por onde vinha caminhando, e por isso não o impressionaram muito o silêncio e a solidão que a modo se tornavam mais profundos à medida que se aproximava da vila. Ele já estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos povoados do vale do Amazonas, posto que se mire nas águas do Nhamundá, o mais belo curso d’água de toda a região.

Faro é sempre deserta. A menos que não seja algum dia de festa, em que a gente das vizinhas fazendas venha ao povoado, quase não se encontra viva alma nas ruas. Mas se isso acontece à luz do sol, às horas de trabalho e de passeio, à noite a solidão aumenta. As ruas, quando não sai a lua, são de uma escuridão pavorosa. Desde as sete horas da tarde, só se ouve na povoação o pio agoureiro do murucututu ou o lúgubre uivar de algum cão vagabundo, apostando queixumes com as águas murmurantes do rio.

Fecham-se todas as portas. Recolhem-se todos, com um terror vago e incerto que procuram esconjurar, invocando: — Jesus, Maria, José!

Vinha, pois, caminhando o capitão Jerônimo a solitária estrada, pensando no bom agasalho da sua fresca rede de algodão trançado e lastimando-se de não chegar a tempo de encontrar o sorriso encantador da filha, que já estaria dormindo. Da caçada nada trazia, fora um dia infeliz, nada pudera encontrar, nem ave nem bicho, e ainda em cima perdera-se e chegava tarde, faminto e cansado.

Também quem lhe mandara sair à caça na sexta-feira? Sim, era uma sexta-feira, e quando depois de uma noite de insônia se resolvera a tomar a espingarda e a partir para a caça, não se lembrara que estava num dia por todos conhecido como aziago, e especialmente temido em Faro, sobre o que pesa o fado de terríveis malefícios.

Com esses pensamentos, o capitão começou a achar o caminho muito comprido, por lhe parecer que já havia muito passado o marco da jurisdição da vila. Levantou os olhos para o céu para ver se orientava pelas estrelas sobre o tempo decorrido. Mas não viu estrelas. Tendo andado muito tempo por baixo de um arvoredo, não notara que o tempo se transtornava e achou-se de repente numa dessas terríveis noites do Amazonas, em que o céu parece ameaçar a terra com todo o furor da sua cólera divina.

Súbito, o clarão vivo de um relâmpago, rasgando o céu, mostrou ao caçador que se achava a pequena distância da vila, cujas casas, caiadas de branco, lhe apareceram numa visão efêmera. Mas pareceu-lhe que errara de novo o caminho, pois não vira a sua casinha abençoada, que devia ser a primeira a avistar. Com poucos passos mais, achou-se numa rua, mas não era a sua. Parou e pôs o ouvido à escuta, abrindo também os olhos para não perder a orientação de um novo relâmpago.

Nenhuma voz humana se fazia ouvir em toda a vila, nenhuma luz se via, nada que indicasse a existência de um ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia morta.

Trovões furibundos começaram a atroar os ares. Relâmpagos amiudavam-se, inundando de luz rápida e viva as matas e os grupos de habitações, que logo depois ficavam mais sombrios.

Raios caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes, velhos, centenários. O capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem mais sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo Nhamundá, levantava-se um ruído que foi crescendo, crescendo e se tornou um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final.

Os cabelos do capitão Ferreira puseram-se de pé e duros como estacas. Ele bem sabia o que aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em laborioso parto.

O capitão levou a mão à testa para benzer-se, mas os dedos trêmulos de medo não conseguiram fazer o sinal-da-cruz. Invocando o santo do seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr na direção em que supunha estar a sua desejada casa. Mas a voz, a terrível voz aumentava de volume. Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os ouvidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe as pernas e caiu no limiar de uma porta.

Com a queda, espantou um grande pássaro escuro que ali parecia pousado, e que voou cantando:

— Acauã, acauã!

Muito tempo esteve o capitão caído sem sentidos. Quando tornou a si, a noite estava ainda escura, mas a tempestade cessara. Um silêncio tumular reinava. Jerônimo, procurando orientar-se, olhou para a lagoa e viu que a superfície das águas tinha um brilho estranho como se a tivessem untado de fósforo. Deixou errar o olhar sobre a toalha do rio, e um objeto estranho, afetando a forma de uma canoa, chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido por uma força desconhecida em direção à praia para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o estranho objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e no fundo dela estava uma criança que parecia dormir. O capitão tomou-a nos braços.

Nesse momento, rompeu o sol por entre os animais de uma ilha vizinha, cantaram os galos da vila, ladraram os cães, correu rápido o rio perdendo o brilho desusado. Abriram-se algumas portas.

À luz da manhã, o capitão Jerônimo Ferreira reconheceu que caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa. No dia seguinte, toda a vila de Faro dizia que o capitão adotara uma linda criança, achada à beira do rio, e que se dispunha a criá-la, como própria, juntamente com a sua legítima Aninha.

Tratada efetivamente como filha da casa, cresceu a estranha criança, que foi batizada com o nome de Vitória.

Educada da mesma forma que Aninha, participava da mesa, dos carinhos e afagos do capitão, esquecido do modo que a recebera. Eram ambas moças bonitas aos 14 anos, mas tinham tipo diferente. Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos castanhos caíam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre contraída, numa constante vontade de chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa, um tanto cavada. Sem que nunca a tivessem visto verter uma lágrima, Aninha tinha um ar tristonho, que a todos impressionava, e se ia tornando cada dia mais visível.

Na vila dizia toda a gente:

— Como está magra e abatida a Aninha Ferreira que prometia ser robusta e alegre.

Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas, o queixo fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes, tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os olhos.

As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca, mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra ao passo que esta a não deixava.

A filha de Jerônimo era meiga para com a companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros.

Nas relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória, áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora.

Tudo, porém, correu sem novidade, até o dia em que completaram 15 anos, pois se dizia que eram da mesma idade. Desse dia em diante, Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer por onde andava. Ao mesmo tempo que isso sucedia, Aninha ficava mais fraca e abatida. Não falava, não sorria, dois círculos arroxeados salientavam-lhe a morbidez dos grandes olhos pardos. Uma espécie de cansaço geral dos órgãos parecia que lhe ia tirando pouco a pouco a energia da vida.

Quando o pai chegava-se a ela e lhe perguntava carinhosamente:

— Que tens, Aninha?

A menina, olhando assustada para os cantos, respondia em voz cortada de soluços:

— Nada, papai.

A outra, quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com altivez e pronunciado desdém:

— E que tem vosmecê com isso?

Em julho desse mesmo ano, o filho de um fazendeiro do Salé, que viera passar o São João em Faro, enamorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a em casamento. O rapaz era bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu e gozava de reputação de sério. Pai e filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos preparativos do noivado.

Um vago sorriso iluminava as feições delicadas de Aninha. Mas um dia em que o capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro de tauari à porta da rua, olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha veio se aproximando dele a passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se cedesse a uma ordem irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais casar.

— Por quê? — foi a palavra que veio naturalmente aos lábios do pai tomado de surpresa.

Por nada, porque não queria. E, juntando as mãos, a pobre menina pediu com tal expressão de sentimento, que o pai enleado, confuso, dolorosamente agitado por um pressentimento negro, aquiesceu, vivamente contrariado.

— Pois não falemos mais nisso.

Em Faro, não se falou em outra coisa durante muito tempo, senão na inconstância da Aninha Ferreira. Somente Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para as suas terras, prometendo vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.

E a desconhecida moléstia da Aninha se agravava a ponto de impressionar seriamente o capitão Jerônimo e toda a gente da vila. Aquilo é paixão recalcada, diziam alguns. Mas a opinião mais aceita era que a filha do Ferreira estava enfeitiçada.

No ano seguinte, o coletor apresentou-se pretendente à filha do abastado Jerônimo Ferreira.

— Olhe, seu Ribeirinho, disse-lhe o capitão, é se ela muito bem quiser, porque não a quero obrigar. Mas eu já lhe dou uma resposta nesta meia hora.

Foi ter com a filha e achou-a nas melhores disposições para o casamento. Mandou chamar o coletor, que se retirara discretamente, e disse-lhe muito contente:

— Toque lá, seu Ribeirinho, é negócio arranjado.

Mas, daí alguns dias, Aninha foi dizer ao pai que não queria casar com o Ribeirinho.

O pai deu um pulo da rede em que se deitara havia minutos para dormir a sesta.

— Temos tolice?

E como a moça dissesse que nada era, nada tinha, mas não queria casar, terminou em voz de quem manda:

— Pois agora há de casar que o quero eu.

Aninha foi para o seu quarto e lá ficou encerrada até ao dia do casamento, sem que nem pedidos nem ameaças a obrigassem a sair.

Entretanto, a agitação de Vitória era extrema. Entrava a todo o momento no quarto da companheira e saía logo depois com as feições contraídas pela ira.

Ausentava-se da casa durante muitas horas, metia-se pelos matos, dando gargalhadas que assustavam os passarinhos. Já não dirigia a palavra a seu protetor nem a pessoa alguma da casa.

Chegou, porém, o dia da celebração do casamento. Os noivos, acompanhados pelo capitão, pelos padrinhos e por quase toda a população da vila, dirigiram-se para a matriz. Notava-se com espanto a ausência da irmã adotiva da noiva. Desaparecera, e, por maiores que fossem os esforços tentados para a encontrar, não lhe puderam descobrir o paradeiro. Toda a gente indagava, surpresa:

— Onde estará Vitória?

— Como não vem assistir ao casamento da Aninha?

O capitão franzia o sobrolho, mas a filha parecia aliviada e contente. Afinal como ia ficando tarde, o cortejo penetrou na matriz, e deu-se começo a cerimônia.

Mas eis que na ocasião em que o vigário lhe perguntava se casava por seu gosto, a noiva põe-se a tremer como varas verdes, com o olhar fixo na porta lateral da sacristia. O pai, ansioso, acompanhou a direção daquele olhar e ficou com o coração do tamanho de um grão de milho.

De pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca, e ia subindo até ao teto da igreja. Era um espetáculo sem nome!

Aninha soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do altar. Uma confusão fez-se entre os assistentes. Todos queriam acudir-lhe, mas não sabiam o que fazer. Só o capitão Jerônimo, em cuja memória aparecia de súbito a lembrança da noite em que encontrara a estranha criança, não podia despregar os olhos da pessoa de Vitória, até que esta, dando um horrível brado, desapareceu, sem se saber como.

Voltou-se então para a filha e uma comoção profunda abalou-lhe o coração. A pobre noiva, toda vestida de branco, deitada sobre os degraus do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois grandes fios de lágrimas, como contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela face. E ela nunca chorara, nunca desde que nascera se lhe vira uma lágrima nos olhos!

— Lágrimas! — exclamou o capitão, ajoelhando ao pé da filha.

— Lágrimas! — clamou a multidão tomada de espanto.

Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava com as mãos o lindo cabelo. Os pés batiam no assoalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética, uivando dolorosamente.

Todos os que assistiam a esta cena estavam comovidos. O pai, debruçado sobre o corpo da filha, chorava como uma criança.

De repente, a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi senão o princípio de uma nova crise. Inteiriçou-se. Ficou imóvel. Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro, bateu-o por vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca, deixou sair um longo grito que nada tinha de humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:

— Acauã!

— Jesus! — bradaram todos caindo de joelhos.

E a moça, cerrando os olhos como em êxtase, com o corpo imóvel, à exceção dos braços, continuou aquele canto lúgubre:

— Acauã! Acauã!

Por cima do telhado, uma voz respondeu à de Aninha:

— Acauã! Acauã!

Um silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!
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Sobre a lenda do Acauã, veja em
https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/folclore-supersticao-lendas-e-historias.html


Fonte:
Inglês de Souza. Contos amazônicos. Publicado em 1892.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVI

“BEM, HOJE QUE ESTOU SÓ E POSSO VER”

 
Bem, hoje que estou só e posso ver
      Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
      Quanto se o for, serei em vão,

Hoje, vou confessar, quero sentir-me
      Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
      Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
     Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
     A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
     Em qualquer coisa, se procurar bem,  
A grande indiferença com que fico.
     Escrevo-o para o lembrar bem.
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“BRINCAVA A CRIANÇA”
 
Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois!

Há um brincar  
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou atrás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu qu'ria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.  

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
'Stá a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer.
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“CAI CHUVA DO CÉU CINZENTO”
 
Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero me a dizer, mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.
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“CAI CHUVA. É NOITE. UMA PEQUENA BRISA”
 
Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
      Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
      Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.
      Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
      E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
     Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
     A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
     Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
     Final do inútil bem.

Que, se quer, e, se veio, se desconhece
    Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
    Na noite agora fria.

Manuel de Oliveira Paiva (A melhor cartada)

Estava uma coisa insípida aquele dia. Uma hora da tarde. Muito mormaço. Nem uma gargalhada. Triste realmente.

Os hóspedes que jejuavam alegravam-se agora no seu jantar, servindo-se grandes pratos de peixe, hortaliças, camarões, frutos, vinhos, requeijão e bolos. Com tanto que os outros, almoçados por cerca das doze, tinham era tédio por aquela petisqueira. Na rua não havia o que fazer, e pior, em casa. A leitura nem para todos era divertimento, e acabava por cansar miseravelmente a um sujeito farto.

O Pedro Antônio ardia por um joguinho, mas esperava que outro lembrasse. Sousa Pinheiro, com a cabeça elevada sobre o coxim de lã, estirava-se ao longo do sofá, a ler Les Folies Amoureuses. E todos estavam com a cara contrafeita de quem recebe uma visita enfadonha. Correia e José Teles ofereciam o raro espetáculo de entreter-se apuradamente ao lado de suas consortes: um casal namorando-se em cadeiras de balanço, fronteiras; e o outro, aplicadíssimo em uma partida de dominó.

 A pequena palmeira colocada em um jarro na sacada, nem dava sinal de vento. A sala de bilhar, contígua, era um quartel sem tropa. Os bilhares encobertos por grandes panos de riscado, e os tacos descansando nos cabides.

 A do botequim, muito boa para rir e fumar, tinha de vivo os quadros suspensos na parede, — bonancheiras pinturas, frades lambões de figura roliça no aconchego das pipas, empunhando copos ditirâmbicos, num riso e recato edênicos. Em moldura tosca, num claro, surgia o meio corpo de um marinheiro, em camisa de bordo, com o chapéu cambaleado para a nuca e feições crispadas por um choro pândego.

 O Pedro Antônio distraía-se passeando por aí, de mãos para trás, com maneiras de quem visita um museu.

 Alguns ruídos sucessivos e ascendentes chamaram-lhe a atenção para a escada, em cujo patamar assomava o vulto amarelo e inchado do capitão Dionísio.

 — Vamos jogar — disse este, quebrando para o salão.

 Pedro Antônio queria era isso. É o que o divertia. Ter o prazerzinho de chorar uma carta e ver o cobre cirandar de mão em mão. Sentir a forte impressão do prejuízo ou do lucro. O dinheiro no jogo é que ostentava toda a fartura, e vagava como um alimento.

 — Chame lá uns parceiros.

 E pedia ao moço do hotel uns baralhos. A mesa estava a um canto. Era oitavada, com uma gavetinha em cada face forrada com pano verde.

 Malgrado a insipidez do dia, ninguém aceitou jogar.

Como? — dizia um — eu não jogo em sexta-feira maior! Temos o ano inteiro para pecar. E daí, se fizeram esquerdos. Este por praxe, aquele por delicadeza, aquele por fé.

 Mas, ninguém morre à falta de outro. Apareceram logo dois, um protestante que por acinte à religião estipendiada faria até milagres, e um tipo insulso, desses que não têm mel nem fel. Jogariam até não sei que horas, se não fosse a morte de um dos jogadores.

Foi o caso assim:

 Pelas sete da noite sentiu-se na rua um alvoroço, um sussurro, e as janelas iluminavam-se. Os hóspedes do hotel vieram para as sacadas.

Era a procissão do Senhor Morto. Havia um morno luar incinerando o ambiente. Ao longe avistou-se como uma brasa vermelha muito embaixo, e mais outra, e mais outra. Ouviram-se as pancadas secas da matraca. As brasas multiplicavam-se em número e intensidade, e enfileiravam-se umas por trás das outras formando um corpo comprido, para cada cordão de casaria. Eram duas serpentes de elos de fogo esses grandes bagos de luz amarela e coada. Os focos tinham movimento oscilatório, manquejando e avançando imperceptivelmente, com a mansidão de um enterro. Mais para longe, como pulsações de um coração gigante, palpitava o compasso do bombo, no funeral, como subindo de um subterrâneo.

 As vozes do cantochão vinham um pouco para cá, e soavam monotonamente parvas. Um clarão amortecido e alto acompanhava o extenso préstito, batendo na frente das casas. Apareciam coloramentos de encarnado e de roxo, das opas, por baixo, entre o povo que se movia como sombras. A rua estava cheia, de lado a lado. E no meio alongava-se um vácuo entre confrarias. Adiante, via-se constantemente a massa de espectadores abaixando-se para ajoelhar. A matraca estralejava seca e constantemente, e, de espaço, a voz aguda e terna de uma criança partia não sei de onde, como seta, modulando: O vos omnes qui transitis per viam, attendite et vide te se est dolor sicut dolor meus*.

 Passava no alto, suspenso, um vulto de mulher, em transes de agonia, conduzida em andor. Via-se-lhe as dobras do vestido roxo, e lantejoulas douradas.

 Depois, debaixo de um pálio de sedas macias, estirava-se em cadáver o retrato de Jesus, nu, velado por um crepe de luto. Era levado por homens embuçados.

Depois, vinha o clero, reconhecível pela alvura da sobrepeliz. E o bispo, com a cabeça coberta. E, enfim, a massa bruta do povo, como o tonel de um líquido onde pululam cabeças a perder de vista.

O funeral agora dominava tudo.

 Um som de flauta aguçava um grito infinito e doloroso, pairando por cima como a voz de um serafim, daqueles que aparecem nas nuvens sagradas. Uns sons de metal soaram refreados, barbaria humana. E gemiam grossamente os baixos.

O cortejo mergulhava cada vez mais no silêncio. Os cordões de luzes que oscilavam como fogos fátuos iam outra vez parecendo-se com brasas vermelhas. Pelo meio pompeavam os lampiões das cruzes...

 Porém, os quatro jogadores, tão entretidos que estavam, não se deram à curiosidade de ir lá. E a mulher do capitão Dionísio, que desde quarta-feira de treva não o vira, entrou açuladamente pelo hotel adentro atirando-lhe excomunhões:

— Desgraçado! Qu'é da tua mulher e dos teus filhos?!...

O capitão só atentava para o que estava fazendo. Ia puxar a melhor cartada de sua vida.

— Que jogo esplêndido! — berrou ele, com alegria diabólica...

E bateu na mesa com a mão cerrada. A carta saltou lá. Era o coringa. E ele emborcou de bruços como se o tivessem quebrado pelo meio. Os parceiros recuaram horrorizados, vendo aquele homem cair de repente para diante.

E o Teles, que voltava da varanda, namorando sua esposa, correu para o grupo. Apalpou com a esquerda o coração do Dionísio e com a destra consultou o pulso, e concluiu com a frieza de perito:

 — Não há dúvida. Bateu o trinta e um!
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*Ó vós todos que passais pelo caminho/ Vinde e vede se existe dor tão grande quanto a minha dor.

Fonte:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. 
Publicado em 1976 pela Academia Cearense de Letras.