terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sammis Reachers (As "belgas"* de Claudinho)

* “Belga”: sujeitar à quebra

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Cláudio Pereira, de Claudinho, que é seu carinhoso apelido não tem nada. É um camarada muito sério e com pinta de brabo, embora no fundo daquele coração seja bem tranquilo. Mas não pise no calo dele.

Claudinho começou na Ingá como cobrador. Não queria ser motorista, e após alguns anos, surgiu a oportunidade de ser auxiliar de plataforma, que eram aqueles camaradas que ficavam nas estações (baias ou plataformas) da Alameda São Boaventura, no objetivo de auxiliar a população e o tráfego de ônibus. Dois anos se passaram, e Claudinho se rendeu: Foi para a escolinha (manobra) para se tornar motorista.

Certa feita, após sair da garagem com o ônibus, e já indo em direção ao bairro da Ilha da Conceição, onde trabalhava na linha 60 (Ilha da Conceição x Icaraí), o motorista Alan, amigo de Cláudio, lhe manda um "zap":

- Ô Claudinho meu amigo, você esqueceu a lanterna do seu carro acesa aqui, do lado de fora da garagem da empresa... E o pior; o alarme disparou, e fica tocando de cinco em cinco minutos...

Claudinho pensou rápido e se assustou. Era ainda oito da manhã, e ele só iria largar lá pelas quinze horas. E mais, havia acabado de pagar trezentos reais naquela bateria – que além de descarregar, corria o risco de estragar. Ele precisava fazer alguma coisa, mas como? Belgar o ônibus?

Aí ele se lembrou do validador. O validador, a máquina que fazia a leitura dos cartões eletrônicos dos passageiros (RioCard e as gratuidades) estava bem lento. Não era bem um defeiiiiiiiito, mas... Tinha que servir!

Chegando no ponto final da Ilha, Claudinho foi logo avisando ao despachante:

- Olha aí Paulinho, este validador está muito lento e assim não dá pra trabalhar não. Já me aborreci ontem à beça com essa porcaria, vou levar esse carro pra garagem para eles darem uma olhada.

E lá foi Cláudio. Mas havia um problema: Ao passar a mensagem de áudio pelo Whatsapp para Cláudio, Alan estava próximo ao inspetor da empresa, Gilson, que marotamente ouviu toda a conversa. Mesmo sem saber que Claudinho iria belgar, ele já imaginava que alguma coisa ele iria aprontar só pra vir desligar a lanterna do carro? que era seu xodó, comprado com muito suor e algumas lágrimas.

Ao adentrar com o veículo na garagem, como era de praxe, Cláudio o levou até os fundos, onde fica a oficina, e depois voltou andando para a portaria da empresa, onde se reuniam os funcionários. Lá, antes de Cláudio abrir a boca, Gilson mandou:

- Fala Cláudio! E aí, qual é a belga?

-A belga é o validador, Gilson. Está muito lento...

- Não, não. A belga do ônibus eu sei, eu estou falando da belga do seu carro lá fora, com a lanterna acesa e o alarme tocando...

Claudinho mais uma vez pensou rápido, e pelo sorriso irônico de Gilson, percebeu que ele desconfiava que a belga do ônibus era só pra poder desligar a lanterna de seu querido Corsa. Mas, sincero que era, não se fez de rogado:

- Olha Gilson, a belga de um é o validador, e ele está lento mesmo, a gente pode ir lá e fazer o teste. Agora, a belga do outro eu vou lá ver. Confesso que vim aqui foi mesmo por isso. Gilson, a bateria do meu carro me custou trezentos reais. Mesmo se você me der três dias de suspensão, pra mim sai mais barato do que eu comprar uma nova. Sou sincero, chefia, meu carro é prioridade. Vê o que o senhor vai fazer aí.

Gilson, um chefe sério mas no fundo possuidor de um bom coração, ao invés de repreender e mais, punir Claudinho, disse apenas:

- Eu gosto desse moleque, gosto desse moleque... Moleque sincero, moleque macho.

E assim Claudinho, que não é pilantra, mas de bobo também não tem nada, escapou de uma bela punição - e ainda salvou sua bateria novinha...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Livros de Escritores Indígenas do Brasil) 1


Tiago Hakiy
Awyató-Pót: Histórias indígenas para crianças


Awyató-pót: histórias indígenas para crianças é uma obra que se caracteriza pela bravura do povo Mawé, representada nos contos pela figura mítica que dá título ao livro. São quatro histórias.

A primeira história conta sobre o nascimento do curumim, fruto da união de uma índia metamorfoseada em cobra com um gavião real. Na segunda, é contada a valentia e o caráter de liderança de Awyató-pót que conseguiu negociar com a Surucucu a Noite para levá-la a sua tribo. Na terceira, o índio derrotou o monstro Juma, devorador de seus parentes e na quarta, em que Awyató-pót, já viúvo e dominado pelo ciúme que tinha da filha, é enganado pelo sapo O ók que desposou a moça.

As histórias de Awyató-pót podem ser lidas como as narrativas de aventuras singulares e imprevistas de um mito que sintetiza a cultura de um povo que, ao ser interpretado sob a visão microcósmica, nos ensina que a Humanidade, aqui e acolá, enfrenta os mesmos desafios: garantir a existência. As histórias contadas por Tiago Hakiy dão o recado do povo indígena Mawé: o desejo de aproximar o mundo mítico dos índios ao mundo das crianças da cidade.
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Mauricio Negro (org.)
Nós: Uma antologia de literatura indígena


Nesta belíssima antologia ilustrada, o leitor vai conhecer dez histórias contadas ou recontadas por escritores de diferentes nações indígenas.

A menina Yacy-May era tão especial que fez com que o sol se apaixonasse por ela, deixando a lua enciumada. O peixe-boi surgiu a partir da união de Guaporé, filho do grande chefe dos peixes, com Panãby’piã, filha do governante dos Maraguá, e sinalizou a paz entre os humanos e os peixes. A velha misteriosa Pelenosamo tem um dia a casa invadida por uma garota curiosa, que resolve investigar o que ela fazia com os galhos secos que sempre levava recolhia e não dividia com ninguém.

Essas são algumas prévias das histórias reunidas nesta antologia, contadas ou recontadas por escritores das nações indígenas Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Tratando dos mais diversos temas — dos mitos de origem às histórias de amor impossível —, as narrativas conduzem o leitor por situações e desenlaces muito próprios, sempre acompanhadas por um glossário e um texto informativo sobre o povo indígena de origem de cada autor. Esta é uma chance preciosa para todos aqueles que desejam entrar em contato com as raízes mais profundas de nossa cultura, ainda pouco valorizadas e respeitadas, por puro desconhecimento.
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Daniel Munduruku
A Caveira-Rolante, A Mulher-Lesma e outras histórias indígenas de assustar


“Os caçadores e o Duende Arranca-Olho”, “O doente de olhos postiços”, “Kanoé – A história do morcego”, “A mulher-lesma”, “A caveira rolante”, “As amantes feiticeiras são seis histórias de diferentes povos indígenas – Tukano, Ajuru, Macurap, Tembé, Karajá.

Segundo Daniel Munduruku, este tipo de história é narrado pelos adultos ou pelos mais velhos da aldeia, já que são os guardiões da memória de nossa gente. Não são narrativas apenas para amedrontar as crianças e os jovens, mas também são formas de ensinamento com os quais vão nos lembrando que não estamos sozinhos no mundo e que não podemos querer nos transformar em donos das coisas que criamos. E, embora sejam histórias de assustar, elas nos ajudam a compreender nosso lugar no mundo.

As histórias, permeadas de mistério, prendem a atenção pela maneira como são contadas e, ao mesmo tempo, possibilitam uma reflexão sobre a relação do homem com os outros seres da natureza.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Adega de Versos 58: Rita Mourão

 

Fausto Toloy (A pomba)

"Vai-se a primeira pomba  despertada…"
(Raimundo Correia)

Pássaros entram na casa de pessoas usualmente; por vezes quebram coisas: cristais, lustres, outros objetos  de decoração.

– Querido, entrou uma pombinha na suíte, acho que tá no banheiro, veja lá…

– Pardais entram sempre na copa pela porta…

Ela, a POMBA  esbaforida assenta em chuveiro, box, lustre, parapeito da janelinha…

– Pombinha, amiguinha, não quero te machucar! – trejeitos e tentativas ridículas do marido, que por pouco não  apanha o pássaro na cuba da pia, onde ficam duas penas.

– Viche, quase peguei, e agora querida que faço?

– Abra a porta de vidro do jardim de inverno, ok?

– Isso, boa ideia! - Após outras toalhadas a pomba sem enxovalhar nada com dejetos, limpa...VOA...VOA...VOA para o seu mundo de insofismável liberdade!

– Aqui, no meu mundo dos livros, olho a borda de Fernão Capelo Gaivota e me emociono ao lembrar- me desta leitura há muitos anos no passado.

Fonte:
Texto enviado pelo author.

Lygia Fagundes Telles (A Estrela Branca)

 
Ah, meu Deus, meu Deus, como poderei contar todo esse horror se tenho a boca seca como se tivesse engolido um punhado de areia e se as minhas mãos estão geladas como as mãos dos afogados?! É a realidade ou um pesadelo? Desde quando estou assim rodando desgovernado feito um pião com as palmas das mãos comprimindo com força os meus olhos — espera, eu disse os meus olhos?…

Espera, calma, um pouco de calma e saberás tudo, vamos pelo começo, foi há dois meses que assim tateante e apoiado numa bengala cheguei a esta ponte, um cego mas um cego orgulhoso, nunca quis ter aquele cão-guia que vai indo assim na frente silencioso e triste, ah! querem tanto se libertar e a libertação dos guias e dos cegos só pode ser a morte.

Naquele dia, tomado por uma alegria quase insuportável consegui chegar a esta ponte e fiquei ouvindo as águas tumultuadas do rio correndo lá embaixo e que me chamavam, Vem!… Para não despertar a atenção dos passantes eu pousei a minha bengala no chão, segurei no gradil de ferro e cheguei a sorrir tão feliz como naquela minha última noite em que vi a minha estrela branca pela última vez, palpitando lá no céu, estava tão próxima que se estendesse a mão poderia segurá-la, ah! era linda essa última visão antes de mergulhar nesta treva. Dormi feliz e quando acordei não enxerguei mais nada e então comecei a gritar, Estou cego, estou cego! E as pessoas em redor pensando que eu tinha enlouquecido, antes fosse loucura mas era mesmo a cegueira. Fui levado para o hospital e durante um ano os médicos tão atônitos quanto eu mesmo tratando deste cego sem solução e sem explicação, os dias, os meses correndo e aquele espanto, aquela perplexidade… Então pensei, Não quero isto, não quero! e de repente resolvi fugir. Lembrei-me daquele rio correndo tumultuado e que seria a minha libertação. Fugi do hospital e perguntando e tateando pelas ruas quase gritei de alegria quando a voz do rio foi ficando mais próxima, mais próxima e me chamando, Vem!

Poucos passantes na ponte e assim tentei fazer uma cara tranquila quando pousei a bengala no chão e me agarrei ao corrimão de ferro, Agora, já! Sussurrei crispado como um gato antes de saltar. Foi então que alguém me agarrou pelo braço. Voltei-me enfurecido, e então?!… Quem vinha se intrometer, quem?!… O desconhecido — era um homem — apanhou a bengala no chão e disse com voz tranquila: “Boa tarde!” Crispei a boca, baixei a cabeça. Não respondi e ele ainda me segurando, ah! Mas o que significava isso? Respirei de boca aberta, calma! Fiquei repetindo a mim mesmo. E se ele resolvesse chamar a polícia? Deve ser proibido se matar, hein?! A mão que me segurava era forte, vigorosa. Levantei a cabeça e tentei sorrir: “Quer ter a bondade de me soltar?” – eu pedi. Ele afrouxou a mão e em voz baixa, para não chamar a atenção dos passantes disse que eu adiasse o suicídio, era possível adiar o suicídio? Dilatei as narinas e pensei, ele devia ser um médico, cheirava a hospital.

— Médico?

— Doutor Ormúcio — ele respondeu baixando o tom de voz. — Há quanto tempo está cego?

Ah! meu Deus, meu Deus, quer dizer que ia começar tudo de novo?! Ele tinha aquele mesmo tom obstinado dos médicos lá do hospital, ah, sim, eu conhecia bem essa raça, melhor ir com calma, decidi e devo ter sorrido porque senti que ele sorriu também.

— Faz um ano, doutor. Pela última vez vi no céu uma estrela e depois dormi e quando acordei não vi mais nada. Fui levado para o hospital e lá fiquei internado, especialistas me trataram, me viraram do avesso e nada, nada, continuava cego. Então eu pediria agora que seguisse seu caminho e me deixasse em paz, agradeço a intervenção mas largue do meu braço, por favor, e me deixe. É pedir muito?

— Mas há quanto tempo?…

— Estou cego? Há mais ou menos um ano, está satisfeito? Agora adeus, doutor. Siga o seu caminho e seguirei o meu, gratíssimo e adeus!

Ele aproximou-se mais. Falou com a boca quase encostada ao meu ouvido.

— Acontece que andei fazendo algumas descobertas importantes, está me escutando? Você não tem nada a perder, é jovem ainda, quantos anos?

— Trinta e dois.

— Ótimo! Se o meu tratamento falhar, voltará aqui, as águas esperam, este rio não vai desaparecer… O tratamento não será dolorido, isso eu prometo. E não precisará me pagar, serei belamente recompensado com o sucesso dessa operação… Está claro?

— Claríssimo! — eu sussurrei.

Ele fez uma pausa. Senti seu olhar atento. Tentei relaxar, Calma! pedi a mim mesmo. O intruso parecia bem-intencionado, era melhor relaxar e assim quem sabe ele me deixaria em paz.

— Tem família? — perguntou.

— Não. Sou só, não tenho nada a não ser a solidão e esta treva. Agradeço de coração a sua proposta, vou pensar nela e agora, se me permite eu me despeço muito grato pelo seu interesse doutor…

— Doutor Ormúcio. Moro só com o meu empregado. Venha comigo e conversaremos melhor, não vai se arrepender, a morte pode esperar, concorda?

Deixei-me levar como uma criancinha. “Esta é a minha casa, e este é o meu empregado”, ele disse quando chegamos. O empregado era um homem ainda jovem, de voz mansa. Parecia estar habituado às singularidades do patrão porque não demonstrou nenhuma surpresa quando Ormúcio pediu-lhe que preparasse o quarto para o hóspede.

Foram dias calmos, eu estava indiferente, apático e foi sem nenhuma emoção que ouvi Ormúcio me dizer depois de um prolongado exame que eu estava em condições de ser operado. “Ah, é uma operação?” eu disse. Ormúcio confirmou e daí por diante não estivemos mais juntos, ele passava o tempo todo no consultório ou no hospital e eu já pensava em fugir quando certa manhã ele entrou no meu quarto.

— Hoje vamos para o hospital.

Nesse instante a ideia de enxergar novamente sacudiu-me com violência. Poderei descrever aquele tempo que antecedeu à operação? “Não me faça perguntas!”, Ormúcio ordenava. E eu obedecia, verdadeiro autômato nas mãos daquele homem que ora se me afigurava um deus, ora um demônio, impenetrável como a própria escuridão. Fui um desses bonecos de mola esquecido num canto e que de repente alguém se lembrou de dar corda e a corda foi excessiva, tudo se embaralhou e me descontrolei numa volúpia de movimentos que já era uma alucinação. No meu peito arfante o desespero e a esperança num rodízio enlouquecedor, às vezes eu me sentia rolando no espaço sem direção e sem socorro. Mas de repente um jorro de luz me inundava e eu me preparava para “aquilo” com o entusiasmo de um menino a se aprontar para uma festa. Já nem fazia mais ideia há quanto tempo estava internado à espera quando de repente, numa madrugada — devia ser madrugada — Ormúcio aproximou-se.

— Venha comigo.

Obedeci em silêncio, habituado a fazer o que me ordenavam sem perguntar “por quê”. Conduziu-me por um longo corredor que achei frio e deteve-se diante de uma porta. Segurou no meu braço.

— Ele sabe que vai morrer logo, falência múltipla dos órgãos — sussurrou-me e pela primeira vez notei um leve tremor na sua voz. — Creio que não passa de amanhã… Ele me pediu para falar com você, antes ele quer falar com você.

— Ele quem?

Silêncio. Comecei a tremer porque de repente senti que alguma coisa terrível ia ser revelada e assim todo o meu ser se inteiriçava na expectativa “daquilo” que meus sentidos pressentiam. Estaquei resfolegante como à beira de um abismo.

— Ele quem? — repeti num sopro de voz. — Quem é que quer falar comigo antes de morrer?

— Ele… O homem de quem você vai herdar os olhos.

Encostei-me à porta para não cair. Então era isso, era isso. Meus olhos iam ser arrancados e nos buracos seriam colocados os olhos daquele homem que estava morrendo. O moribundo me fazia presente dos olhos, eu ia herdar um par de olhos!

Desatei a rir e logo o riso se transformou em soluços.

— Vamos, nada de cenas, acalme-se! — Ormúcio ordenou a sacudir-me com força. — É um mendigo, há meses está internado aqui. Naquela tarde em que impedi seu suicídio eu já estava pensando nele, nos olhos dele que são perfeitos e que poderiam servir para alguém. Nem eu nem ele, nós não queremos nada em troca, ele se contenta em lhe ceder os olhos e eu serei pago com o sucesso da operação. Compreendeu agora?

Fiz que sim com a cabeça. Compreendia tudo e estava de acordo com tudo, como não havia de estar de acordo? Eu queria enxergar, não era isso? E para enxergar, usaria de todos os meios, fossem quais fossem. Enxuguei o suor que me empastava os cabelos e entrei no quarto. No silêncio, só se ouvia uma respiração ansiosa. Inclinei-me. Senti um hálito fétido.

— É este? — uma voz áspera perguntou voraz. Era tão asqueroso o bafo que vinha daquelas cobertas e tão desagradável aquela voz que instintivamente recuei.

— Sim, ele é bem jovem! — prosseguia a voz sem esperar pela resposta. Havia nessa voz um tom de insuportável alegria. — Quer dizer que viverei muitos anos ainda! Muitos anos!

Continuei calado, voltando o rosto para não sentir mais o bafo que vinha em lufadas do meu benfeitor. Ah, benfeitor, benfeitor!… Se eu soubesse, meu Deus! Que ridícula soa agora esta palavra, benfeitor! Decerto ele está delirando, pensei e só mais tarde aquelas frases voltaram cheias de sentido, verdadeiras hienas a devorarem a paz do meu coração.

— Se você não fosse tão jovem eu não lhe daria meus olhos — exclamou o moribundo apertando avidamente a minha mão. — Meus cabelos caíram, meus dentes caíram, minha carne murchou, de toda esta ruína, só os olhos se salvaram. Pois fique com eles e bom proveito!

Ormúcio impeliu-me para o corredor e fechou apressadamente a porta do quarto mas ainda pude ouvir atrás a voz triunfante:

— Continuarei em você! Continuarei!

Fomos para o jardim. Ormúcio acendeu um cigarro e colocou-o entre meus dedos.

— Não imaginei que ele começasse a delirar justamente na hora em que você… Enfim, passou — disse Ormúcio secamente.

Deixei cair o cigarro e aspirei o perfume fresco da folhagem orvalhada. A voz medonha, o hálito repugnante, tudo aquilo parecia agora pertencer a um pesadelo.

— A última coisa que meus olhos viram foi uma estrela branca cintilando no céu, a minha estrela! Da cama, eu a via sempre pela janela aberta. Naquela noite ela se apagou. Aceito tudo para vê-la novamente.

Dessa operação e dos dias que se seguiram nada poderei dizer porque minha memória partiu-se em mil pedaços assim como um espelho. Sei que certa manhã ouvi a voz sussurrante de Ormúcio segredar a um colega: Amanhã saberemos!

Um tremor violento sacudiu-me todo. E quando veio a enfermeira da noite avisando que as bandagens seriam retiradas, pedi-lhe que saísse um pouco do quarto, eu queria ficar só para rezar. Ela obedeceu. Então sentei-me na cama e freneticamente fui arrancando as gazes, arrancando tudo… A princípio, ainda o negrume! E eu já ia desabar sobre mim mesmo dilacerando-me quando aos poucos um armário branco, um crucifixo, uma cadeira começaram a emergir das sombras, vagamente, meio dissolvidos como os destroços de um naufrágio. Vieram à tona, à tona… dançaram na minha frente indecisos sob um véu de lágrimas. Depois foram se firmando. E se fixaram.

Sufoquei um grito. E delirando de alegria, saltei do leito e escancarei as janelas, era noite, era noite. E a minha estrela? Quis saber, erguendo a cara para o céu, queria vê-la de novo, branca e cintilante, ela que se tornara cinzenta, onde estará, onde?

Foi nesse instante que o horror começou, ah, mas de que modo explicar a hediondez da minha descoberta? Ergui a face para o céu, ergui a face mas os olhos… os olhos não obedeciam. Quero olhar a estrela, a estrela! Repeti mil vezes num esforço desesperado. E os olhos baixavam obstinados para o jardim como se fios poderosos os dirigissem para o lado oposto daquele que minha vontade ordenava. Como descrever o horror que senti? Como explicar minha cólera ao verificar que fora enganado, miseravelmente enganado porque nunca aqueles olhos seriam meus! Que me adiantava tê-los herdado, ter-lhes dado vida se eram independentes, se não me obedeciam?

Penso que jamais poderei reproduzir as tentativas alucinadas que fiz naquelas horas para arrancá-los da força medonha que os mantinha na direção oposta daquela que eu determinava, insolentes, livres. Tentei fechá-los, mas esbugalhados como se quisessem saltar, eles rodaram nas minhas órbitas como dois piões num rodopio enlouquecedor e agora se divertiam à minha custa, riam-se de mim naquela brincadeira infernal. Corri para o espelho. Na minha cara pálida e encovada, só os olhos do morto pareciam ter vida, tão brilhantes quanto cruéis. E se deliciavam em me examinar com uma expressão triunfante, gozando o contraste que faziam com o meu rosto retorcido pelo horror. Eu continuarei em você! Não foi o que disse o monstro asqueroso?

Cobri a cara com as mãos. Ormúcio triunfara porque a operação fora um sucesso, o morto também triunfara porque continuava vivendo dentro das minhas órbitas, mas e eu?!

Sorrateiramente, antes que o sol raiasse fugi do hospital saltando pela janela. Ormúcio ficaria na dúvida, era esta a minha paga, ele não saberia jamais se fracassara ou não. E do morto, como vingar-me dele?

Aqui estou no mesmo lugar de onde Ormúcio me arrastou para a sua experiência. Agora os olhos ficaram obedientes, me atendem, ah! Eles me obedecem, vejo o que quero, estas águas que são mais escuras e turbulentas do que eu imaginava, vejo as nuvens, vejo uma criança correndo lá longe… Eis que agora os olhos me obedecem apavorados porque descobriram meu plano, sabem por que fugi do hospital e por que vim a esta ponte, eles sabem! E já não zombam de mim, não, não zombam mais, sabem que me sepultarei no negrume das águas, desaparecerei como a minha estrela sepultada no negrume do céu, ela e eu teremos o mesmo destino. Agora não posso deixar de rir, de gargalhar até perder o fôlego porque tudo está sendo muito engraçado! O morto queria viver à minha custa, dono de mim! Só que ele não contava com isso, agora sou eu que me rio dele e ainda estarei rindo até o instante em que os seus olhos monstruosos se dissolverem nas águas como duas miseráveis bolotas de miolo de pão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Um Coração Ardente. Cia das Letras, 2012

Francesco Petrarca (Poesia sem Fronteiras) 2


SONETO LX


Louro gentil que amei por tantos anos,
enquanto o teu desdém não me feria,
minha arte à tua sombra refloria,
débil, crescendo em meio aos desenganos.

Depois, seguro eu já de tais enganos,
de doce a duro lenho passaria,
e para um alvo só se voltaria
minha mente: cantar seus tristes danos.

Que há de dizer quem por amor suspira,
se outra esperança os versos meus renove
ultimamente, e enfim por ti a perde?

Poeta nenhum te colha mais, nem Jove
tenha esse privilégio, e do Sol a ira
seja tal que te seque a rama verde.
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SONETO LXV

Em mim, triste, a lembrança mal se anima
do dia em que a ferir-me veio o Amor,
passo a passo tornando-se o senhor
do meu viver, que comandou de cima.

E não supus, frente ao seu brio e estima,
que falho de firmeza e de valor
fosse o meu peito, esperto já na dor:
e eis o que ocorre a quem o subestima.

Doravante, qualquer defesa é tarda,
senão mesmo provar se muito ou pouco
dói ao Amor o nosso humano rogo.

Não peço já (que tal pedido é louco)
que suportavelmente o peito me arda,
mas que uma parte tenha ela do fogo.
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SONETO XCIII

Escreve — o Amor me disse, imperativo,
tanta vez — o que viste em letras de ouro:
e como a quem me segue descoloro,
deixando-o ao mesmo tempo morto e vivo.

Que o sentiste em ti mesmo, disjuntivo,
dá como exemplo ao amoroso coro;
e que alhures buscaste outro tesouro,
mas te alcancei tão logo, fugitivo.

Se os olhos belos em que me mostrei
e lá onde era o meu gentil reduto,
quando abri do teu peito a fortaleza,

o arco me dão que tudo o mais despreza,
talvez não tenhas sempre o olhar enxuto,
que do pranto me nutro, e o sabes bem.
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SONETO CXXXII

Se amor não é, que é este sentimento?
Mas se é amor, por Deus, que coisa, e qual?
Se boa, por que o efeito é assim mortal?
Se má, por que é tão doce o seu tormento?

Se ardo em querer, por que choro e lamento?
Se não, por que tais queixas, afinal?
É morte viva, ou deleitoso mal?
Como cresce ele em mim, se não o aguento?

E, se o aguento, por que me dói, tão fero,
e entre contrários ventos, frágil barco,
derivo em alto mar, já sem governo?

Pesado de erro, e de sapiência parco,
que eu mesmo já não sei bem o que quero,
e tremo no verão, e ardo no inverno?
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SONETO CCXXVI

De pássaro mais triste e contrafeito
não sei, ou de animal em bosque ameno,
do que eu, se desse belo olhar me alieno,
que é meu sol e meu único sujeito.

Sempre chorar é meu sumo deleito:
dor o riso, e o alimento só veneno,
cuidado a noite, e fosco o céu sereno,
e duro campo de batalha o leito.

Da morte o sono é irmão, como se diz,
de fato, pois subtrai ao coração
esse doce pensar que o aviva e impele.

Torrão no mundo fértil e feliz,
margem florida e plácido rincão
só vós possuís; e eu choro, longe dele.


Fonte:
Francesco Petrarca. O Cancioneiro. Original de cerca de 1370.

Rubem Fonseca (Devaneio)

Os professores me chamavam de estrábico. Mas os meus colegas da escola me chamavam — pelas costas, é claro — de caolho, zarolho, mirolho.

Certa ocasião eu fui falar com uma garota e ela olhou para mim e caiu na gargalhada. Sofri muito com aquilo. E passei a andar à sorrelfa, para que não percebessem o meu defeito. Nunca mais olhei o meu rosto num espelho. Fazia a barba no chuveiro, o que aliás era uma boa ideia, água quente — eu tomo banho com a água fervendo — amacia os pelos do rosto e a raspagem é fácil e perfeita.

Fui ao oftalmologista, o doutor Cobra. O nome dele era Cobra. Não estou inventando. E qual o problema do sujeito se chamar Cobra? Não tem gente que se chama Barata, Leitão, Camarão, Aranha, Carneiro, Café? Eu podia arrolar aqui dezenas de nomes estranhos. Ele me examinou longamente e disse:

“O seu caso é raro, a sua síndrome é dificilmente encontrada em outra pessoa. E não tem cura.”

“E uma cirurgia, doutor?”

“Qualquer cirurgia deixaria você irremediavelmente cego.”

“E o que o senhor me aconselha para diminuir esse meu sofrimento?”

“Usar óculos escuros. Bem escuros. Assim ninguém percebe a sua anomalia ótica.”

Nesta mesma ocasião os meus pais faleceram, num desastre de automóvel. Meu pai, que também era estrábico, estava dirigindo.

“O estrabismo”, o doutor Cobra me disse, “não é genético, você e o seu pai sofrerem do mesmo problema é uma mera coincidência”.

Herdei dos meus pais bens suficientes para uma vida inteira. Comprei os óculos escuros, saí da escola, nunca mais procurei o doutor Cobra.

Eu não tirava os óculos escuros para nada. À noite, quando ia dormir, apagava a luz e colocava os óculos na mesinha de cabeceira. Eu tinha oito pares de óculos, não queria correr o risco de ficar sem um deles. Eu nunca mais, repito, nunca mais olhei o meu rosto no espelho sem os óculos.

Eu gostava de andar pelo parque, próximo da minha casa, e costumava sentar-me num dos bancos para ficar olhando as pessoas passarem. Confesso que os óculos estavam me fazendo bem, eu já não via mais as coisas como antes, de maneira distorcida.

Entre os transeuntes da praça um chamava a minha atenção. Era uma jovem muito bonita, elegante, a quem eu contemplava, sem que ela percebesse, pois os óculos escuros o permitiam.

Chegando em casa ficava pensando nela, principalmente ao deitar. Eu a via com nitidez caminhando pela praça, e quando o sono me dominava eu sonhava com ela.

Um dia eu estava sentado no banco quando vi, feliz, ela se aproximando. Para minha surpresa ela se sentou ao meu lado.

“Nós sempre nos encontramos e nunca nos falamos. O meu nome é Helena.”

Disse isso estendendo a mão para mim. Eu a cumprimentei dizendo:

“O meu é José, mas os meus pais me chamavam de Zé.”

“Então também vou chamá-lo de Zé. Posso?”

“Claro.”

“Felizmente o sol já se pôs. Eu adoro o pôr do sol, você também? E quando vai tirar esses óculos escuros?”

Fiquei trêmulo, escondi as mãos enfiando-as no bolso.

“Tenho que ir embora, lembrei agora que estou atrasado para um encontro importante.”

Saí apressado, creio mesmo que corri esbaforido.

Nunca mais fui passear na praça.

Passaram-se uns meses, e um dia eu estava tomando um cafezinho — confesso que sou um viciado em café, o meu único vício —, quando senti um toque no meu ombro.

Era Helena.

“Você sumiu. Tenho ido todos os dias à praça para ver se o encontro, mas não tenho tido esse prazer. Pensei que você gostasse de mim.”

“Eu gosto... muito...”, gaguejei.

“E por que desapareceu? Isso me deixou muito triste.”

Criei coragem e decidi falar a verdade.

“Por quê? Por quê? Por isso!”

Tirei os óculos e olhei Helena de frente.

“Você tem olhos lindos.”

Ela devia estar escarnecendo, nada se iguala à maldade das mulheres! Havia vários espelhos no botequim. Olhei num deles. O meu estrabismo desaparecera! Se eu fosse uma pessoa religiosa acreditaria num milagre.

Bem, devo confessar que nada disso ocorreu. Foi mais um sonho. Eu encontrar a moça na praça foi um sonho. E qual é o problema?

O sonho, para a ciência, é uma experiência de imaginação do inconsciente durante nosso período de sono. Em diversas tradições culturais e religiosas, o sonho aparece revestido de poderes premonitórios ou até mesmo de uma expansão da consciência.

Aquele sonho era um presságio? Iria ocorrer o que eu sonhei?

Fonte:
Rubem Fonseca. Histórias curtas. RJ: Nova Fronteira, 2015.

domingo, 21 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 535


 

Contos e Lendas do Mundo (O Saci)

Carolina Ramos
(Santos/SP)

SACI-PERERÊ


Saci-Pererê... O moleque atrevido!
Só tendo uma perna, veloz como o vento,
faz mil peraltices sem ser pressentido...
- Transforma a quietude da noite em tormento!

Dispara a boiada... Galopa e extenua
os pobres cavalos... e a crina lhes trança!
Cachimbo na boca... nas noites de lua,
remoinha a poeira na trêfega dança!

Se alguém, de surpresa, um dos gorros vermelhos,
consegue roubar... E, com sorte, reter...
terá como escravo o Saci de joelhos
que, sem o capuz, perde o mago poder!

Não raro, o Saci pode ser caluniado!
Se às vezes o culpam do extremo alvoroço,
nem sempre de tudo, em verdade, é culpado...
Do mal, talvez, seja até pálido esboço...

pois... há muita gente, de pele bem alva,
que tem duas pernas... cachimbo nem vê,
que bole com tudo... nem santo salva!
E é muito pior... que um Saci-Pererê!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O saci, também conhecido como saci-pererê, saci-cererê, matimpererê, matita perê, saci-saçurá e saci-trique, é um personagem bastante conhecido do folclore brasileiro. Tem sua origem presumida entre os indígenas da Região das Missões, no Sul do país, de onde teria se espalhado por todo o território brasileiro.

A figura do saci surge como um ser maléfico, como somente brincalhão ou como gracioso, conforme as versões comuns ao sul.

ETIMOLOGIA
Três termos são importantes: "saci" é oriundo do termo tupi "sa'si". "Matimpererê" é oriundo do termo tupi "matintape're". O termo "pererê" é oriundo do termo tupi "pererek-a", que significa "ir aos saltos".

REPRESENTAÇÃO
O saci é um jovem negro de uma perna só, portador de uma carapuça sobre a cabeça que lhe concede poderes mágicos. Sobre este último caractere, é de notar-se que, já na mitologia romana, registrava Petrônio, no Satíricon, cujo píleo também conferia poderes ao íncubo e recompensas a quem o capturasse.

Considerado uma figura brincalhona, que se diverte com os animais e pessoas, fazendo pequenas travessuras que criam dificuldades domésticas, ou assustando viajantes noturnos com seus assovios – bastante agudos e impossíveis de serem localizados. Assim é que faz tranças nos cabelos dos animais, depois de deixá-los cansados com correrias; atrapalha o trabalho das cozinheiras, fazendo-as queimar as comidas, ou ainda, colocando sal nos recipientes de açúcar ou vice-versa; ou aos viajantes se perderem nas estradas. A ele é atribuída também a capacidade de ser carregado por redemoinhos.

INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS

INDÍGENA
As entidades protetoras da floresta Jaci Jaterê da cosmologia guarani e o Kambaí da cosmologia caingangue são possíveis influências na concepção do Saci.

AFRICANA
Uma lenda iorubá descreve Aroni, um gnomo de uma perna só que ensina a Oçânhim sobre o uso de ervas medicinais pode ter influenciado a concepção do Saci. Outros relatam Oçânhim e Anoni como a mesma entidade.

PORTUGUESA
Da mitologia portuguesa, o saci herdou o píleo, um gorrinho vermelho usado pelo lendário trasgo. Trasgo é um ser encantado do folclore do norte de Portugal, especialmente da região de Trás-os-Montes. Rebeldes, de pequena estatura, os trasgos usam gorros vermelhos e possuem poderes sobrenaturais.

De Portugal para o Brasil veio a crença da explicação sobrenatural sobre redemoinhos, de que seriam guiados por uma "coisa ruim" e que poderiam arremessar pessoas. Foi documentada essa crença no Brasil, paralelamente a crença da ligação entre o Saci e redemoinhos.

NAS MÍDIAS CONTEMPORÂNEAS
O saci se tornou presente nas artes brasileiras a partir de 1917, em publicação por Monteiro Lobato em jornal de pesquisa sobre crenças sobre a figura.

LITERATURA

O primeiro escritor a se voltar para a figura do saci-pererê foi Monteiro Lobato, que realizou uma pesquisa entre os leitores do jornal O Estado de S. Paulo. Com o título de "Mitologia Brasílica – Inquérito sobre o Saci-Pererê", Lobato colheu respostas dos leitores do jornal que narravam as versões do mito, no ano de 1917. O resultado foi a publicação, no ano seguinte, da obra O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, primeiro livro do escritor.

Mais tarde, em 1921, o autor voltaria a recorrer ao personagem, no livro O Saci, seu segundo trabalho dedicado à literatura infantil.

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
O quadrinista Ziraldo criou em 1958 a série de histórias em quadrinhos A Turma do Pererê, em que o Saci contracena com o índio Tininim, a onça-pintada Galileu e outros personagens. As histórias foram originalmente publicadas na revista O Cruzeiro.

Saci aparece em várias histórias da Turma da Mônica de Mauricio de Sousa e em histórias brasileira dos quadrinhos Disney.

CINEMA E TELEVISÃO
O primeiro ator a representar o papel foi Paulo Matozinho, no filme O Saci, adaptado do livro infantil de Lobato. A produção de 1951 da Brasiliense Filmes foi dirigida por Rodolfo Nanni.

Na televisão, as séries que adaptaram a obra de Monteiro Lobato em 1977 e 2007 tiveram Romeu Evaristo e Fabrício Boliveira, respectivamente, interpretando o personagem. O cantor Jorge Benjor também encarnou o saci no especial Pirlimpimpim, de 1982. Em Pirlimpimpim 2, de 1984, foi a vez de Genivaldo dos Santos vestir a carapuça.

Na adaptação para a tevê das histórias de Ziraldo, o papel de Pererê coube a Silvio Guindane.

MÚSICA
Em 1912, o compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos escreveu a marcha "Saci", quinta parte da sua suíte para piano "Petizada" (W048). A composição, assim como as outras da mesma peça, é inspirada no folclore musical brasileiro.

Francisco Mignone também deu o nome de "Saci" à sexta parte dos seus "Estudos Transcendentais" para piano, de 1931.

O maestro Edmundo Villani-Cortes voltou a lhe dar vida em obras como "Primeira folha do diário do saci" (para piano, 1994), "Terceira folha do diário de um saci" (para flauta, 1992) e "Sétima folha do diário de um saci" (para contrabaixo, 1992).

Na música popular, a primeira referência ao personagem data de 1909, ano da composição de "Saci-Pererê", de Chiquinha Gonzaga, gravada pela dupla Os Geraldos. Em 1913, foi a vez de "Saci", uma polca de J.B. Nascimento gravada pelo Sexteto da Casa. Gastão Formenti também gravou duas músicas intituladas "Saci-Pererê": uma toada de Joubert de Carvalho, em 1918 e uma canção de J. Aimberê e Bide, em 1929.

Nas décadas seguintes, outros artistas recorreram ao tema, como "Teu olhar é um Saci", de Cipó Jurandi e Décio Abramo, 1930; "Saci-Pererê", de J.B. Carvalho, 1932; "Saci-Pererê", de Ivani, 1949; "Saci", baião de Antônio Bruno e Ernesto Zwarg, 1956).

No especial "Pirlimpimpim" (1982), a canção para o personagem ficou por conta de Jorge Benjor ("Saci Pererê". A terceira versão do Sítio para a tevê incluiu, na sua trilha, "Pererê Peralta (saci)", de Carlinhos Brown (2001) e "Eu vi o Saci", de Marcos Sacramento e Izak Dahora (2006).

Na música instrumental, as principais referências são o violonista Carlinhos Antunes ("Saci-Pererê", 1996), a banda Terreno Baldio (Saci-Pererê, 1977), Guilherme Lamounier ("Saci-Pererê", 1978) e o Quarteto Pererê ("Polka do Sacy" e "Liberdade Pererê", ambas no álbum "Balaio", 2010) [27]. O Quarteto Pererê já havia apresentado, em 2005, o espetáculo Saci Armorial, em que fundia a lenda com o universo literário do escritor pernambucano Ariano Suassuna [28].

Uso do nome nas ciências
Em 2013, uma nova espécie de anfíbio anuro (Adenomera saci[30]) foi descrita do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no estado de Goiás. O nome dado à espécie faz alusão à vocalização da espécie, que é um assobio curto e intermitente, e pela dificuldade de se observar indivíduos da espécie cantando, que podem ser elusivos, como atribuído ao saci na cultura popular: "...ele assobia para assustar e confundir os viajantes noturnos, a origem dos assobios impossível de ser localizada...".

Em 2001, uma nova espécie de dinossauro ornitísquio foi descoberta em Agudo, no Rio Grande do Sul. Como o fóssil foi encontrado sem o fêmur esquerdo, recebeu o nome de Sacisaurus agudoensis.

DIA DO SACI
Em 2005, foi instituído o Dia do Saci no Estado de São Paulo, a data também é celebrado em Vitória (Espírito Santo); Poços de Caldas e Uberaba (Minas Gerais); Fortaleza e Independência (Ceará) comemorado no dia 31 de outubro, a fim de restaurar as figuras do folclore brasileiro, em contraposição a influências folclóricas estrangeiras, como o Dia das Bruxas.

Fontes:
- Poesia Saci Pererê: Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
- O Saci: Wikipedia

Humberto de Campos (A Santa Casa)

(Paródia a uma sátira de Emílio de Menezes)


As nuvens começavam a tomar uma cor arroxeada, anunciando o fim do crepúsculo e o inicio de uma noite soturna, quando alguém bateu, medroso, à luminosa porta do Céu.

- Quem bate? - gritou, de dentro, São Pedro, arrastando as suas sandálias de couro e tilintando, trêmulo, a sua enorme penca de chaves.

- Sou eu! - respondeu de fora o recém-chegado.

Aberta a portinhola do parlatório, informou o retardatário haver sido despachado da vida naquele dia, com destino à mansão dos justos, onde devia, portanto, ser admitido.

- Aqui? - observou o apóstolo, espantado. - Aqui. não. Todas as pessoas que tinham de entrar hoje, já entraram. Não falta mais nenhuma.

E bondoso:

- Não será engano seu, meu filho? Você não terá sido despachado para o Purgatório?

O peregrino admitiu a hipótese de uma confusão, e, saltando de nuvem em nuvem, como quem salta de rochedo em rochedo, foi ter à porta de fogo do Purgatório, onde bateu.

- Quem vem lá? - trovejou um anjo, escancarando, com um gancho, a rubra fornalha das penitências.

O desventurado deu o seu nome, e, momentos depois, reabria-se o forno.

- Há engano na direção, camarada! - informou o guardião, soprando, severo, a sua vermelha espada de chama. - O seu lugar não será no Inferno? Aqui, é que não é. Não consta nada sobre a sua pessoa!

E, fechando a fornalha, deixou-o na amplidão, tristonho, solitário, abandonado, tendo aberto, apenas, à sua frente, o caminho escuro do Inferno. Resolvido a cumprir o seu destino, tomou o infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à porta da caverna formidável.

- Quem é? - rugiu, de dentro, uma voz que parecia um trovão.

Tremendo de pavor, o mísero deu o seu nome, e esperava, já, o instante de ser precipitado nas enormes caldeiras ferventes, quando o portão monstruoso se abriu, dando passagem aos chavelhos de ferro de Belzebu.

- Quem o mandou para cá? - indagou o bruto, acendendo os olhos.

- A mim? - gemeu o desventurado. - Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me que não era lá. Fui ao Purgatório, e informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui, por força.

O Diabo meditou um instante, consultou umas chapas de ferro incandescente que estavam próximas, e protestou, firme:

- Aqui, também, não é!

- Não?

- Não; absolutamente! - tornou o Capeta. - O seu lugar deve ser mesmo no Céu. O Pedro está muito velho, já, e, com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte lá!

Um momento depois, estava o desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.

- Outra vez? - observou São Pedro, paciente.

- Outra vez, sim, - confirmou, grosso, a vítima. - O meu lugar não é no Purgatório, não é no Inferno; deve ser, forçosamente, aqui. Veja bem!

O apóstolo enforquilhou os óculos no nariz, abriu o livro em que estavam registrados os nomes das almas, folheou, folheou, folheou, e, de repente, voltando-se, indagou:

- Diga-me uma coisa: onde foi que você morreu?

- Eu? Na Santa Casa do Rio de janeiro! - respondeu a vítima.

E o chaveiro, escancarando a porta:

- É aqui mesmo, entre!

E mostrando o livro:

- A culpa não foi minha, filho! Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!

E aborrecido:

- Esta Santa Casa tem me estragado a escrita!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1921.

Minha Estante de Livros (“A Serpente de Bronze”, de Humberto de Campos)


A “Serpente de Bronze” é o primeiro livro de crônicas escrito por Humberto de Campos com o pseudônimo Conselheiro XX, publicado em 1921. É inspirado, no que se refere ao título e às temáticas, em textos bíblicos, assim como a primeira obra do cronista, intitulada “Da seara do Booz”.

O livro assinado com o pseudônimo marca uma mudança no estilo de escrita do autor, que passa da crítica social e política feita de modo direto e formal, para a crítica disfarçada, envolta em ironia. Esse livro contém textos na forma de anedotas, histórias pitorescas e espirituosas, de tom malicioso, que provocam o riso.

Os textos do Conselheiro XX apresentam um narrador onisciente intruso. As crônicas remetem a acontecimentos históricos, e neles o narrador manifesta juízos de valor, além de fazer algumas denúncias. Mitologicamente, a “serpente” remete à maldade e à tentação. Pode representar, também, castigo e punição. Por sua vez, o livro A serpente de bronze parece representar simbolicamente a realidade, o cotidiano, o poder, a corrupção, as doenças, a sexualidade, o dia-a-dia. Se a serpente mitológica castiga, a serpente do Conselheiro XX aplica um castigo aos poderosos e aos políticos.

A serpente, na obra de Humberto de Campos, pretende alertar as pessoas sobre os problemas que ocorrem na sociedade. A “serpente de bronze”, no livro, remete à ideia de denúncia, de renovação dos valores e dos comportamentos. As crônicas, em geral, constituem-se em sátiras do poder.

No livro em questão, o autor emite opiniões que, no Brasil de 1920, são consideradas absurdas pela extrema “falta de decoro”.

O Conselheiro XX – sem o público saber de quem se trata – abusa da imaginação, do ceticismo, da graça e da jovialidade.

De acordo com Macário de Lemos Picanço, o Conselheiro XX só tinha um intuito, que era o de fazer rir aos leitores, mas para o crítico Múcio Leão, citado na obra de Picanço, o Conselheiro XX era a forma de Humberto de Campos se sustentar:

Homem de gosto, de sensibilidade e poesia, não acrediteis que Humberto de Campos deixasse de sentir a atroz tristeza de assumir aquela humilhante caracterização. Mas, se era aquela a sua forma de ganhar a vida?... No íntimo o poeta andaria a percorrer os jardins suaves, onde se apraziam as Armidas dos seus sonhos. Mas, se a sua literatura refletisse apenas a pureza e a doçura, quem lhe pagaria os miseráveis mil réis, que os contos rabellaisianos do Conselheiro XX cada quinzena lhe garantiam?"

Humberto de Campos não nega a autoria das crônicas assinadas pelo Conselheiro XX e assume que seus textos vão contra a moral religiosa e patriarcal das famílias brasileiras, mas acredita que as críticas ao Conselheiro XX são excessivas.

Nas crônicas de “Serpente de Bronze”, a anedota e a metáfora são ainda mais frequentes do que nos demais livros do autor. Assim como em “A bilha” e “O troco”, em “Ninho de Curió”, a anedota é adotada pelo autor para contar uma história que possui um final cômico.

As características desses textos de Humberto de Campos provêm do cômico-sério, como a “fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico”. Outro recurso utilizado por ele é a paródia, que aparece constantemente nas crônicas da obra “Serpente de Bronze”. No livro, o autor constantemente parodia uma obra, seja de modo cômico ou por meio da ironia, com o intuito de ridicularizar uma situação. A Bíblia é o principal livro a ter algumas de suas passagens parodiadas, como pode ser percebido em “A mulata” e “A Santa Casa”.

A crônica “A Santa Casa”, por exemplo, é um texto inspirado numa sátira à Emílio de Menezes. O Conselheiro XX usa a ironia para ampliar e exagerar os detalhes, fazendo uma espécie de caricatura textual. “A santa Casa” apresenta uma linguagem objetiva, com a influência da oralidade. O texto é uma crítica à Santa Casa do Rio de Janeiro, porém escrita na forma de anedota. O cronista conta, com precisão de detalhes, que um homem bateu à porta do céu para entrar. Através dessa crônica, o autor critica as condições de funcionamento da Santa Casa do Rio de Janeiro. No texto, Campos coloca o morto como “vítima”. A crônica traz informações sobre o estado da Santa Casa e, também, faz ironia com o homem que morreu vinte anos antes. Desse modo, é perceptível, em Campos, a “revitalização da linguagem” da crônica.

Portanto, a crônica vai deixando cada vez mais a formalidade, para comentar os fatos que acontecem num tom de humor e, assim, divertir o leitor. É o que se confirma na crônica de Humberto de Campos. A linguagem é leve, descompromissada e une a crítica à ironia.

“A Santa Casa” é um texto que pode ser enquadrado em várias classificações. Pode ser uma “crônica especializada satírico-humorística”, na acepção de Luiz Beltrão, porque tem o objetivo de criticar, ridicularizando e ironizando os fatos e os personagens. E nesse texto, Humberto de Campos critica e, principalmente, ironiza a problemática situação da Santa Casa. A crônica também pode ser considerada uma “crônica-informação”, na definição de Afrânio Coutinho, porque traz as
informações, através da divulgação dos fatos, tecendo comentários ligeiros – e não pessoais –, mais genéricos e que, provavelmente, manifestam uma opinião semelhante à da maioria dos leitores. Em “Santa Casa” o autor fornece informações sobre a precariedade do hospital carioca; e pode ser, ainda, de acordo com a classificação proposta por Antonio Cândido, uma “crônica-diálogo”, porque é uma conversa do cronista com seu interlocutor imaginário, ou uma conversa entre os personagens criados pelo autor. E essa crônica de Humberto de Campos pode-se enquadrar nesta classificação de Cândido em razão dos diálogos entre os personagens criados, exemplificado entre São Pedro e o homem já falecido.

Diferentemente dos outros livros do autor, nesse, como se verifica na crônica recém comentada, estão pequenos detalhes do cotidiano, escritos de modo irônico e cômico. O texto termina de forma satírica; parece piada. Nos textos assinados com o pseudônimo “Conselheiro XX”, o autor vale-se do conhecimento que possui sobre o assunto e aproveita-se disso para revelar seu “outro eu”. Todas as temáticas dos textos são abordadas num tom de sátira, revelando as opiniões que o autor não ousa emitir quando publica as crônicas com o seu próprio nome. Nos textos, evidencia-se, ininterruptamente, o posicionamento pessoal e irônico de Campos.

A ironia e o humor do Conselheiro XX chamam a atenção para a composição dessas crônicas. Os textos são recheados de ideias implícitas, que deixam a opinião do autor aparecer de modo subliminar. O autor subverte a linguagem e torna a leitura um ato de exercitar a inteligência. O cômico aparece justamente quando os assuntos tratados, mesmo sendo sérios, são transformados em caricaturas. O Conselheiro XX provoca o riso, na medida em que recorre à ironia para castigar os personagens que são inspirados na realidade.

Deste modo, torna-se perceptível que em “A serpente de Bronze” a opinião do narrador fica, ora implícita, ora explícita. Quem escreve é o Conselheiro XX, um cronista despreocupado, que tem como objetivo promover a polêmica e não está preocupado com as respostas dos indivíduos atingidos por suas críticas.

Os textos do livro são, todos, “crônicas especializadas satírico-humorísticas”, na definição de Beltrão, porque ridicularizam e satirizam uma situação, embora alguns possam também ser enquadrados em outras categorias.

É importante salientar que o material teórico sobre o autor é quase inexistente.

O artigo completo em pdf (10 páginas) de autoria da Prof. Ms. Roberta Scheibe - Universidade de Passo Fundo, pode ser baixado em http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2007/resumos/R0077-1.pdf

Fonte:
Trechos do artigo da Prof. Ms. Roberta Scheibe, “Sob o véu da imaginação: O humor e a ironia nas crônicas de Humberto de
Campos”, disponível em Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – VIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sul – Passo Fundo – RS, no link acima.

sábado, 20 de novembro de 2021

Versejando 88

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Sibipiruna, a bela

Na Rua Arthur Thomas, entre a Herval e a Piratininga, há uma velha sibipiruna, enorme e bela, que não cessa de crescer. Já está pareando com as janelas do nono andar. Além de tudo, gorda. Deve ter uns 70 anos. Nasceu no tempo em que a rua ainda se chamava Angustura – esse nome esquisito que assustava as crianças. Fica perto de onde moraram por uns bons anos diversos pioneiros ilustres, entre os quais o deputado Haroldo Leon Peres, o advogado Wilson Saenz Surita e o médico Etelvino de Oliveira.

Várias outras árvores, vizinhas dela, já tombaram, vítimas da idade, dos cupins ou de alguma ventania; aquela continua lá vivinha, verdinha, robusta, linda. Decerto suas raízes são de muito boa cepa. Só assim para sustentar tanto vigor.

Quando chega setembro-outubro, ela primavera, cobre-se toda de cachos amarelos e apronta um belíssimo espetáculo. Uma festa para os fotógrafos. Nos dias de chuva e vento ela derrama um montão de pétalas sobre o asfalto, formando um extenso tapete.

É uma árvore nativa da mata atlântica e dizem que pode chegar a 100 anos. Foi espalhada pelas ruas de Maringá no início da urbanização, provavelmente por arte e obra do Dr. Bianchini.

Quando mudaram o nome da rua para Arthur Thomas, a população ficou sabendo que o novo homenageado fora uma pessoa importante – havia sido um dos diretores da Companhia Melhoramentos. Mas da minha parte me deu na telha pesquisar também quem teria sido a tal de Angustura (ou Angostura). Não existia ainda o professor Google, então fui buscar a resposta nos alfarrábios. Fiquei sabendo que a tal de Angustura nem era gente; era o nome de uma fortaleza localizada em território paraguaio e que virara história por haver sido tomada pelas tropas brasileiras na guerra contra Solano Lopez.

A ideia dos diretores da Companhia até que foi bem bolada. Dar às ruas, avenidas e praças de cada zona da cidade nomes de personagens ou de episódios marcantes de cada período da história do Brasil: descobrimento, monarquia, república etc. Em maioria, nomes que de fato merecem ser eternizados, porém alguns nem tanto, como é o caso do Raposo Tavares, um fulano de pouca saudosa memória.

Mas o que eu queria falar mesmo era das nossas árvores. Graças, em grande parte, a elas, Maringá tornou-se uma das cidades mais bonitas e respiráveis do Brasil. São dezenas de diferentes espécies, entre as quais flamboyants, paus-ferro, figueiras, araçás, jacarandás, cabreúvas, cerejeiras, faveiros, guaritás, louros-pardos alecrins, canelinhas cheirosas, palmeiras... e os charmosíssimos ipês.

Que tenham todas vida longa e bela, como a portentosa sibipiruna da Arthur Thomas.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07-10-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Solange Colombara (O lugar onde nasci)

Sentada no banco da praça perto de casa, observo um pedacinho dessa imensa e linda cidade.

Pessoas passam apressadas, talvez atrasadas para um compromisso ou para o trabalho, enquanto outras passeiam tranquilamente com seus cachorros, ou sozinhas.

Há ainda os atletas. Uns correndo, outros caminhando, mas todo mundo se exercitando!

E eu ali, sentada com meu bloquinho, observando e anotando.

Em meio a tantos arranha-céus, vejo o quanto a cidade de São Paulo é contrastante. Edifícios e área verde se misturam. Pela manhã, maritacas barulhentas saem das árvores da praça para pousarem em janelas de apartamentos, acordando as pessoas.

Quanta diversidade, quantas culturas, hábitos e tradições há em um mesmo lugar.

Que coração enorme possui essa metrópole, agregando tantas pessoas diferentes e ao mesmo tempo todos iguais...

Uma coisa é certa: São Paulo é singular e eu não consigo me imaginar vivendo em outro lugar.

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Tiago (António José Barradas Barroso) Poemas Escolhidos 2

DEIXA-ME PARTIR

 
Deixa-me partir,
não procures seguir meus passos
como uma sombra errante.
O calor dos teus abraços,
ou o beijo provocante
que a longa espera
provocava,
já não consigo sentir.
 
Deixa-me partir,
sem lágrimas ou censuras,
que nem mesmo as tuas juras
renovam a primavera
que, então, brilhava
na nossa vida,
sempre a sorrir.
 
Deixa-me partir,
que nosso amor findou.
Por muito que custe admitir,
já não há cumplicidade
entre nós dois, em cada gesto,
de resto,
agora que tudo acabou,
apenas fica a saudade
desse existir.
 
Deixa-me partir,
não agarres a lapela
do meu casaco amarrotado,
como se eu fosse fugir.
Da janela,
podes fazer a tua despedida
com uns acenos finais,
que eu vou seguir a minha vida,
não volto mais.
 
Deixa-me partir…
 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O MOTIVO
 
Se há dentro de nós um santuário
De tantas emoções que nos percorrem,
São esses sentimentos relicário
De que todos os poetas se socorrem.
 
À fantasia e ao sonho imaginário,
Dedico mil poemas que me ocorrem,
A uns dou vida, em forma de diário,
Outros vão passando e, assim, morrem.
 
Queres que te defina o belo, a vida,
O ar que me rodeia, a dor sentida,
A flor que brilha, o sonho que eu abraço!
 
São momentos fugazes que a alma abriga,
Por isso, não me peças que eu te diga
A quem dedico os versos qu’inda faço.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PÉTALAS SECAS
 
A rosa que tu me deste,
secou
sem saber que alguém a abandonou
sem um adeus de despedida,
sem uma palavra de amor.
 
Colhi as pétalas, já sem vida,
daquela formosa flor
que me ofereceste,
meti-as num livro, de que muito gosto,
que guardei no quarto, numa gaveta
onde ponho o que tenho de mais precioso.
 
Tenho lá uma moldura com o teu rosto
e um poema dum poeta
famoso
que fala também duma flor
em toda a sua forma, sempre pura,
como bálsamo ou como cura
 para doenças de amor.
 
Com carinho, folheio-o, por vezes,
e olho as pétalas murchas, descoloridas,
ilusões esmagadas numa folha,
que trazem um mundo de recordações
sem tino, a esmo, sem escolha,
mas que deixam aflorar
lágrimas de incontidas emoções
que logo se cobrem com um sorriso,
ou melhor, com um esgar,
de tristeza.
 
De ti, não espero mais flores,
nem sonho amores
dum coração que já foi jardim,
porque, agora, para mim,
quando chega o relembrar desse passado
de opereta,
subo ao meu quarto e, sossegado,
sento-me, por um momento,
ordeno o pensamento,
e… abro a gaveta.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =   

SUBLIME ADORAÇÃO
 
 Adoro a luz suave do seu meigo olhar
Quais estrelas perdidas no céu infindo,
Vagueando envoltas pelo luar, tão lindo,
Vindo meus olhos, serena e feliz, beijar.
 
Adoro, loucamente, o seu perfume etéreo,
Pedaço de si mesma que em meu corpo rola,
Quebrando, por encanto, o tom altivo e sério,
Mudado em sorrisos e dado como esmola.
 
Adoro a sua boca rubra, quente, dessas
Que a um santo faz gemer em sutil tremor,
Boca sensual que recorda mil promessas
Promessas de ventura, de prazer, de amor.
 
Adoro o seu cabelo flutuando ao vento,
Nas faces rosadas, ansioso, me quedo,
Que os lábios parece pedirem-me, a medo,
Um beijo fugaz em um súplice lamento.
 
Adoro o seu corpo de Vênus esculpida,
Ante o colo de garça, respiro bem fundo,
Os seios que espreitam a cobiça do mundo
São pomos maduros duma deusa atrevida.
 
Adoro ver, perplexo, seu perfil d´antanho,
Despi-la, com o olhar, é sublime tortura,
Mas adoro, ainda mais, pela fechadura,
Vê-la, soberba, entrar em copioso banho.

Mia Couto (Ofélia e a eternidade)

Quem amamos nasce antes de haver o tempo. Passou o tempo e Ofélia era ainda a única mulher no mundo. Eu a via passar na rua, afastava os cortinados e o universo ganhava súbita explicação. Ela parava no passeio, sentindo que estava sendo contemplada. Meus olhos a tornavam sagrada. E não havia palavra.

Passou o tempo mas a cintura dela se conservava menininha, convidando as mãos a circunavegarem seu corpo.

—Você é linda, Ofélia.

Mas ela! Não eram essas as palavras que mexiam em sua alma.

—Diga que sou eterna — pedia.

Eu não era capaz de cumprir aquele pedido. Algum senão me desviava a voz. E nunca repeti tão solicitadas palavras.

Afinal, o destino nos separou. Único culpado dessa pequena morte: o tempo, esse animal que defeca memórias. Eu fui para a cidade, ela permaneceu onde sempre existira. No último momento, afastei a cortina e a vi sob a árvore. Saí para me despedir:

—Está apanhando sombra?

—Estou sendo sombra, eu.

Ela se entregava a enigmas, frases desfeitas. Anunciei:

—Vou para o litoral.

—Vai ver o mar?

—Certamente.

Antes de eu desaparecer ela me pediu outra vez. Não queria eu proclamar sua eternidade? Abanei a cabeça. Dessa vez até aceitei um esforço. Mas, debaldemente. Aquelas palavras me pareciam uma heresia, coisa demasiado excessiva. Eternidade é assunto divino. Mais sagrado que a morte.

Saí por anos. Foi mais a ausência que o afastamento. Regressei à pequena vila para a reencontrar. Ofélia já reeditara sua existência. Tivera seis filhos. Dois que já não constavam, vencidos por um correr das águas. Dizem. Naquelas mortes de seus meninos ela morrera também. Ela fora com eles. Para esse inominável lá.

—De lá já voltei ninguém — disse ela, pedindo desculpas de sua tristeza quando nos reencontramos.

Atacada de incorrigível melancolia. Agora, ela se tinha toda convertido em sombra. E nenhuma luz lhe dava alento. O luto em seus olhos me avisou: os cortinados de meu quarto se fechariam sobre todas as ruas onde ela passasse.

Sugeri-lhe que tivessemos encontro. Breve, sem consequência. Marcamos na traseira dos Correios. Cheguei-me e não soube que palavras escolher. O momento pedia-me um idioma que não há. Eu me faltava. Ela me olhou como se eu fosse quem tivesse demorado. Como se eu fosse culpado.

—Vou lhe contar uma história—disse eu apenas para quebrar o silêncio.

Ela reagiu prontamente:

—Nunca, mas nunca me conte histórias.

Era tanta a veemência que eu me atrapalhei com o sem querer da minha ofensa.

—Odeio histórias! — rematou ela.

Deixou uma pausa, esperando em pose e apelo. Aguardava, quem sabe, que eu perguntasse porquê. Como eu me mantivesse mudo, ela somou:

— História é contra a eternidade.

Acenei com a cabeça. Perdera os filhos, não perdera aquela viciada ideia.

— Sou eterna, não lembra?

Depois ela me segurou na mão e me perguntou:

— Me trouxe um mar?

— Sim.

Mentira. Eu só podia mentir perante o pedido. Ela ficou, imóvel, esperando.

Esperava? Que mar lhe havia eu de dar, se nenhum me coubera, nem grão de areia, nem concha, nem búzio. E, no entanto, ela estava frente a mim como se aquele momento resumisse toda nossa existência. Fiquei tão desarmado que uma lágrima aflorou em meus olhos. Depois aconteceu, sem decisão pensada. Aquilo me saiu, à parte de minha vontade. De repente, quase imperceptíveis, as palavras me afluíram:

—Você é eterna, Ofélia.

Ela levantou o rosto e me enfrentou como se me descobrisse em primeira vez. Se aproximou e me beijou. Estendeu os dedos e recolheu esse esboço de água em meus olhos. Depois, com voz sumida:

—Obrigada por este mar.

Desde aquele momento, nunca mais voltaram a morrer seus dois filhos falecidos. Que eu diria: meus dois filhos de lá. Porque sou Ofélia, eu mesmo que desfolho esta estória. Sim, sou a mulher a quem, certa vez, na ponta dos dedos, foi oferecido o mar.

O resto é a minha eternidade contra a história. Pois nunca existiu homem nenhum que me tivesse amado e empreendesse, alguma vez, viagem alguma para além deste lugar.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 17: Lilinha Fernandes

 

Milton Sebastião Souza (O amor em sintonia)

Os italianos não gostam muito de famílias pequenas. Mas aquele casal só teve um filho. E este filho, ainda criança, começou a trabalhar com os pais na lavoura. Fazia de tudo um pouco: ajudava na capina, cuidava do parreiral, colhia uva, ajudava a fazer o vinho e estava sempre ao lado dos pais. Assim foi crescendo. E, aos poucos, aprendeu a gostar de música, como o pai: ficava horas e horas, nos finais de semana, admirando o som que saia da pequena gaitinha que o pai tocava. Muitas vezes ele, a mãe e o pai formavam um coral improvisado, cantando antigas músicas.

Ninguém soube como, mas o rapaz, treinando sozinho no seu quarto, aprendeu a tocar o velho violino que herdara do avô. Foi uma surpresa para os pais quando ele apareceu tocando o instrumento. Passou a acompanhar o pai. Os dois começaram a ser chamados para as festinhas da igreja e para aniversários dos amigos. Gostavam de tocar juntos e sempre recebiam muitos elogios. O amor familiar estava em perfeita sintonia. Mas o destino tem a mania de misturar sofrimento com felicidade...

A felicidade dos três foi interrompida tragicamente. Num tarde de verão, quando pai e filho trabalhavam no parreiral, uma cobra venenosa saiu do meio das pedras e picou o rapaz. O susto foi grande. Mataram o bicho, tentaram alguns remédios caseiros, mas uma febre muito alta mostrou que o caso era sério. A demora na procura de recursos piorou a situação. O rapaz teve poucas horas de vida depois que chegou num hospital. E a tristeza tomou conta daquele lar depois da partida do seu mais jovem morador...

Tudo mudou depois do falecimento do rapaz. O casal continuou trabalhando, cultivando a terra, colhendo uvas e fabricando e vendendo os seus vinhos. Mas um silêncio chocante tomou conta de todas as horas. Dias e noites escorrendo lentamente. Parecia que até os passarinhos haviam deixado de cantar naquela pequena propriedade...

Somente o tempo, mesmo passando devagar, faz o milagre de estancar o sangue que brota das almas e dos corações feridos. Cinco longos anos transcorreram em meio ao silêncio provocado pelo luto. E foi exatamente a mãe, depois de sonhar várias noites com o filho, que resolveu reagir. Estava se aproximando o dia em que completariam 30 anos de casados. E ela, em segredo, quando o esposo ia para a roça, atendeu o pedido que o filho lhe fizera em sonho. E aprendeu a tocar o violino que ele deixara. Naquela noite, um jantar especial esperou o esposo, pois ela dissera que já era hora de deixar a tristeza de lado e pensar um pouco mais neles dois.

Quase tudo o que o marido gostava de comer estava sobre a mesa. Ele sentou. Ela disse que tinha uma surpresa. Foi até o quarto e retornou tocando no violino aquela música que ele mais gostava. O italiano, rude e calejado pelo trabalho e os tantos anos de vida, deixou as lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Depois de abraçar a mulher, foi até o quarto e buscou a sua velha gaitinha, que estava empoeirada pela falta de uso. E o casal tocou junto todas aquelas músicas antigas que tanto gostavam. Choraram algumas vezes, relembrando do filho. Mas tiveram a noite mais feliz das suas vidas. Hoje eles continuam, com a mesma simplicidade e alegria, tocando gratuitamente nas festinhas da igreja e dos amigos. Já estão quase festejando 50 anos de casados. Mas o amor que existe entre os dois continua cada vez mais alegre e mais jovem…

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXIII

Em outro mundo, onde a vontade é lei,
Livremente escolhi aquela vida
Com que primeiro neste mundo entrei.
Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei
Com o preço das vidas subsequentes
De que ela é a causa, o deus; e esses entes,
Por ser quem fui, serão o que serei.

Por que pesa em meu corpo e minha mente
Esta miséria de sofrer ? Não foi
Minha a culpa e a razão do que me dói.

Não tenho hoje memória, neste sonho
Que sou de mim, de quanto quis ser eu.
Nada de nada surge do medonho
Abismo de quem sou em Deus, do meu
Ser anterior a mim, a me dizer
 
Quem sou, esse que fui quando no céu,
Ou o que chamam céu, pude querer.

Sou entre mim e mim o intervalo  _
Eu, o que uso esta forma definida
De onde para outra ulterior resvalo,
Em outro mundo.
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Em plena vida e violência
De desejo e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta
Da noção falsa de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer ?
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Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua inconsistência indefinida.
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Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta: volto a folha
Com desconsolo.
Não ouviste nada.

Os meus poemas, este
E os outros que tenho _
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.

Mas dá-me um certo agrado
Sentir que te os leio
E que ouves sem saber.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E ler é esquecer.
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Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a  brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
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E ou jazigo haja
Ou sótão com pó.
Bebé foi-se embora.
Minha alma está só.
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E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.

Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!
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Epitáfio Desconhecido
 
Quanto mais alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressa, ó Cristo, e dorme
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

I Concurso de Cartrovas da UBT Caxias do Sul/RS (Classificação Final)


Com satisfação registramos abaixo, nominata dos laureados no I Concurso de Cartrovas promovido pela UBT Caxias do Sul, RS, sob o tema: Dante Alighieri nos 700 anos da sua morte.

Âmbito estadual:
 
Ilda Maria Brasil
Porto Alegre - RS

Âmbito nacional:

1º - Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes - PR

2º - Caterina Balsano Gaioski
Irati - PR

3º - Maria Lúcia Spadarotto Neves
Itaperuna - RJ

4º - Luisa Maria Garabazza Andrade
Bom Despacho - MG

5º - Elisabete Rabello Machado Brandão
São Paulo - SP


A premiação ocorrerá, conforme o regulamento.
Um forte abraço!
 
Luiz Damo
Presidente UBT Seção Caxias do Sul (2021/2022)

Estante de Livros (Histórias Completas do Padre Brown, de G. K. Chesterton)


Padre Brown é um sacerdote católico romano fictício e detetive amador que aparece em 53 contos publicados entre 1910 e 1936, escritos pelo romancista inglês G. K. Chesterton. O Padre Brown resolve mistérios e crimes usando sua intuição e profunda compreensão da natureza humana. Chesterton vagamente baseou-o no Rev. Mons. John O'Connor (1870-1952), um pároco em Bradford, que esteve envolvido na conversão de Chesterton ao catolicismo em 1922.

Chesterton descreve o Padre Brown como um padre católico romano curto e atarracado, com roupas disformes, um grande guarda-chuva e uma intrigante percepção do mal humano. Em "A Cabeça de César" ele é "ex-padre de Cobhole em Essex, e agora trabalha em Londres". Ele faz sua primeira aparição na história "A Cruz Azul", publicada em 1910, e continua aparecendo ao longo de cinquenta contos em cinco volumes, com mais duas histórias descobertas e publicadas postumamente, muitas vezes auxiliadas na resolução de crimes pelo reformado criminoso M. Hercule Flambeau .

O Padre Brown também aparece em uma terceira matéria - totalizando cinquenta e três - que não aparece nos cinco volumes publicados na vida de Chesterton, "O Caso Donnington", que tem uma história curiosa. Na edição de outubro de 1914 de uma revista obscura, The Premier, Sir Max Pemberton publicou a primeira parte da história, depois convidou vários escritores de histórias de detetives, incluindo Chesterton, para usar seus talentos para solucionar o mistério do assassinato descrito. A solução de Chesterton e Padre Brown foi seguida na edição de novembro. A história foi reimpressa pela primeira vez no Chesterton Review (Inverno), 1981.

Ao contrário do mais conhecido detetive fictício Sherlock Holmes, os métodos do Padre Brown tendem a ser mais intuitivos do que dedutivos. Ele explica seu método em "O Segredo do Padre Brown": "Você vê, eu mesmo os tinha assassinado.... Eu planejara cada um dos crimes com muito cuidado. Eu tinha pensado exatamente como uma coisa daquelas poderia ser feita, e em que estilo ou estado de espírito um homem poderia realmente fazer isso. E quando eu tinha certeza de que me sentia exatamente como o assassino, é claro que eu sabia quem ele era.”

As habilidades de Brown também são consideravelmente moldadas por sua experiência como padre e confessor. Em "A Cruz Azul", quando perguntado por Flambeau, que tem se disfarçado de padre, como ele sabia de todos os tipos de "horrores" criminosos, o Padre Brown responde: "Nunca lhe ocorreu um homem que faz quase nada? Mas ouvir os pecados reais dos homens não é susceptível de ser totalmente inconsciente do mal humano?" Ele também declara como ele sabia que Flambeau não era realmente um padre: "Você atacou a razão. É uma teologia ruim.

As histórias normalmente contêm uma explicação racional de quem foi o assassino e como Brown trabalhou. Ele sempre enfatiza a racionalidade ; Algumas histórias, como "O Milagre da Lua Crescente", "O Oráculo do Cão", "A Explosão do Livro" e "A Adaga com Asas", zombam de personagens inicialmente céticos que se convencem de uma explicação sobrenatural para alguma ocorrência estranha, mas o Padre Brown vê facilmente a explicação perfeitamente comum e natural. De fato, ele parece representar um ideal de um clérigo devoto mas consideravelmente educado e "civilizado". Isso pode ser atribuído à influência do pensamento católico romano sobre Chesterton. O Padre Brown é caracteristicamente humilde e costuma ser bastante quieto, exceto dizer algo profundo. Embora ele tenda a lidar com crimes com uma abordagem firme e realista, ele acredita no sobrenatural como a maior razão de todas.

Muitas das histórias posteriores do Padre Brown foram produzidas por razões financeiras e em grande velocidade, e Chesterton escreveu em 1920 que "acho justo confessar que escrevi algumas das piores histórias de mistério do mundo".

O Padre Brown era um veículo para transmitir a visão de mundo de Chesterton e, de todos os seus personagens, talvez seja o mais próximo do ponto de vista de Chesterton, ou pelo menos o efeito de seu ponto de vista. O Padre Brown resolve seus crimes através de um processo estrito de raciocínio mais preocupado com verdades espirituais e filosóficas do que com detalhes científicos, fazendo dele um contrapeso quase igual ao de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, cujas histórias Chesterton leu. No entanto, a série do Padre Brown começou antes da própria conversão de Chesterton ao catolicismo romano.

Em suas cartas da prisão, o teórico italiano Antonio Gramsci fez esta declaração partidária de sua preferência: “Padre Brown é um católico que zomba dos processos de pensamento mecânico dos protestantes e o livro é basicamente uma apologia da Igreja Romana contra a Igreja Anglicana. Sherlock Holmes é o detetive "protestante" que encontra o fim da meada criminosa começando do lado de fora, confiando na ciência, no método experimental, na indução. Padre Brown é o padre católico que, através das refinadas experiências psicológicas oferecidas pela confissão e pela atividade persistente da casuística moral dos pais, embora não negligencie a ciência e a experimentação, mas confiando especialmente na dedução e introspecção, derrota totalmente Sherlock Holmes, faz com que ele pareça como um garotinho pretensioso, mostra sua mesquinhez e mesquinhez. Além disso, Chesterton é um grande artista; em Chesterton, há uma lacuna estilística entre o conteúdo, o enredo da história de detetive e a forma e, portanto, uma sutil ironia em relação ao assunto tratado, o que torna essas histórias tão deliciosas.

No romance italiano “O destino de Padre Brown” de Paolo Gulisano, o detetive padre é eleito papa depois de Pio XI com o nome pontifício de Inocêncio XIV.

Filme
Walter Connolly estrelou como o personagem-título do filme de 1934, Padre Brown, Detetive, baseado em "A Cruz Azul". O filme de 1954, Padre Brown (lançado nos EUA como “O Detetive”), apresentava Alec Guinness como o Padre Brown.

Há duas adaptações alemãs das histórias de Chesterton, “A ovelha negra”, 1960 e “Ele não pode parar de fazer isso”, 1962). Nestes filmes, Brown é um padre irlandês. O ator mais tarde apareceu em “Operação São Pedro” (também estrelado por Edward G. Robinson, 1967) como Cardeal Brown, mas o filme não é baseado em qualquer história de Chesterton.

Rádio
Em 1974, para comemorar o centenário do nascimento de Chesterton, cinco histórias do Padre Brown foram transmitidas pela BBC Radio 4, estrelando Leslie French como Padre Brown e Willie Rushton como Chesterton. Esta Radio produziu uma série de histórias do Padre Brown de 1984 a 1986, estrelando Andrew Sachs como o Padre Brown.

Uma série de 16 histórias de Chesterton foi produzida pelo Colonial Radio Theatre em Boston, Massachusetts. Todos os roteiros foram escritos pelo dramaturgo de rádio britânico MJ Elliott.

Televisão
Josef Meinrad interpretou o Padre Brown em uma série de TV austríaca (1966-72), que seguiu os enredos de Chesterton bem de perto.

Em 1974, Kenneth More estrelou em uma série de TV de 13 episódios, cada um adaptado de um dos contos de Chesterton. A Eles foram lançados em DVD no Reino Unido em 2003 pela Acorn Media UK, e nos Estados Unidos quatro anos depois pela Acorn Media.

Um filme norte americano feito para a televisão, Santuário do Medo (1979), estreou Barnard Hughes como um americanizado, modernizado Padre Brown, em Manhattan, New York City. O filme pretendia ser o piloto de uma série, mas a reação crítica e do público era desfavorável, em grande parte devido às mudanças feitas no personagem e à conspiração mundana do thriller .

Uma minissérie de televisão italiana em seis episódios, "Os Contos de Padre Brown”, foi produzido e transmitido pela TV nacional RAI entre dezembro 1970 e fevereiro de 1971 a um grande público (um episódio atingiu o pico de 12 milhões de espectadores).

Em 2012, a BBC encomendou a série de dez episódios Padre Brown, cujas filmagens foram feitas nos arredores de Cotswolds no verão de 2012. A série foi ao ar na BBC One, a partir de janeiro de 2013, de segunda a sexta-feira, durante um período de duas semanas à tarde. A época e a localização foram transferidas para os Cotswolds do início dos anos 50 e usaram adaptações e histórias originais. A série já conta com 8 temporadas, totalizando 90 episódios, e é exibida na televisão aberta brasileira desde 2018 pela TV Cultura.

Audiolivros
A Ignatius Press publicou a versão em áudio do livro “A Inocência do Padre Brown” em 2008. O livro apresenta introduções para cada história escrita. O livro foi um vencedor do 2009 Foreword Audio Book Awards.

Coleções
A maioria das coleções que pretendem ser “Padre Brown completo” reimprime as cinco compilações, mas omite uma ou mais das histórias não coletadas. A Edição 2012 da Penguin Classics é o único verdadeiramente completo, incluindo 'O caso Donnington', 'O Vampiro da Aldeia' e 'A Máscara de Midas'.

 Chesterton também fez 19 ilustrações das histórias de Sherlock Holmes, depois foi publicado e impresso pela primeira vez em 2003.

Fonte:
Wikipedia