sexta-feira, 19 de abril de 2024

Contos Tradicionais Portugueses (A lenda da Pedra Cavalar)

Onde se conta como Deus “abrigou” um cavaleiro atrapalhado pelo tempo que de repente se fez, lá para os lados de Ribeira de Pena.

Em tempos que já lá vão, seguia um cavaleiro por montes e vales da zona de Viela, no Concelho de Ribeira de Pena.

Cavalgava sereno e tranquilo por caminhos mal marcados, sem destino aparente. Solitário na paisagem, apreciava o panorama agreste e rústico que caracteriza as cercanias do Rio Tâmega. Mesmo na noite escura, era-lhe impossível ignorar os cheiros das plantas, o movimento que a brisa causava nas copas das árvores e as sonoridades cantantes das aves noturnas e dos cursos de água circundantes.

De súbito, o tempo mudou. Num instante, o que era paz transformou-se numa violenta tormenta, obrigando o cavaleiro a encostar a sua montaria a uma grande rocha que se erguia junto ao trilho estreito que seguia. Do outro lado, o precipício descia abrupto, fazendo ouvir o rugido das correntes, engrossadas pela chuva fortíssima.

A lama aumentava, o caminho escorregava cada vez mais. A queda de cavalo e cavaleiro parecia eminente.

O homem, aterrorizado, tentou esporear o cavalo para sair daquele inferno, mas o animal aterrado nem se mexia, patas profundamente enterradas na lama do caminho.

Então, o desgraçado começou a rezar fervorosamente, mal se ouvindo as suas preces na violenta intempérie.

Mas Deus ouvia-o e, apiedado, transformou a pedra rija num refúgio para o infeliz e sua montaria.

Agradecendo a ajuda, logo ali se abrigaram, deixando de ouvir a barulhenta borrasca.

O povo diz que esta misteriosa personagem não mais foi vista, mas que a sua história ficou marcada na pedra, sob a forma de uma estátua equestre, a que se começou a chamar a Pedra Cavalar.

Recordando Velhas Canções (Imagine)


Composição: John Lennon 

Imagine que não exista paraíso
Imagine there's no heaven
É fácil se você tentar
It's easy if you try
Nenhum inferno sob nós
No hell below us
Acima de nós apenas o céu
Above us only sky
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Vivendo o presente
Living for today

Imagine que não há países
Imagine there's no countries
Não é difícil
It isn't hard to do
Nenhum motivo para matar ou morrer
Nothing to kill or die for
E nenhuma religião também
And no religion too
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Vivendo a vida em paz
Living life in peace

Você pode dizer que sou um sonhador
You may say I'm a dreamer
Mas eu não sou o único
But I'm not the only one
Eu espero que algum dia você se junte a nós
I hope someday you'll join us
E o mundo será um só
And the world will be as one

Imagine que não existam posses
Imagine no possessions
Eu me pergunto se você consegue
I wonder if you can
Sem necessidade de ganância ou fome
No need for greed or hunger
Uma irmandade de homens
A brotherhood of man
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Compartilhando o mundo inteiro
Sharing all the world

Você pode dizer que sou um sonhador
You may say I'm a dreamer
Mas eu não sou o único
But I'm not the only one
Eu espero que algum dia você se junte a nós
I hope someday you'll join us
E o mundo viverá como um só
And the world will live as one 
= = = = = = = = = 

Imagine: Um Hino de Esperança e União de John Lennon
A canção 'Imagine', composta e interpretada por John Lennon, é um dos hinos mais emblemáticos da música contemporânea, transcendendo gerações com sua mensagem de paz e união. Lançada em 1971, a música propõe uma reflexão profunda sobre um mundo sem divisões e conflitos, onde a humanidade poderia viver em harmonia. A letra convida o ouvinte a imaginar um lugar sem as barreiras que frequentemente nos separam, como fronteiras nacionais, religiões e posses materiais.

Através de uma linguagem poética e de fácil compreensão, Lennon descreve um cenário utópico onde 'não há céu' e 'nenhum inferno abaixo de nós', sugerindo a eliminação da ideia de recompensa ou punição após a morte, o que poderia levar as pessoas a viverem mais pelo presente ('Living for today'). Ao imaginar 'nenhum país' e 'nenhuma religião também', a música aborda a possibilidade de um mundo sem guerras ou conflitos ideológicos, onde 'todas as pessoas' poderiam 'viver a vida em paz'.

A repetição do verso 'You may say I'm a dreamer' (Você pode dizer que sou um sonhador) é um reconhecimento de que essas ideias podem parecer idealistas ou inatingíveis, mas Lennon reforça que ele 'não é o único' a ter tais sonhos. Ele expressa esperança de que um dia mais pessoas se unirão a essa visão, resultando em um mundo unificado. 'Imagine' não é apenas uma canção, mas um chamado à ação para a humanidade repensar seus valores e aspirar a um futuro onde prevaleça a 'fraternidade do homem' e o compartilhamento coletivo dos recursos do mundo ('Sharing all the world').

Teófilo Braga (O sonho de Esmeralda)

Oh, meu amigo, oh! Meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sai aos vinte anos da sua água furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossíveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguém se conhece, onde todos se igualam e atropelam! Foi quando compreendi aquele terceto de Dante, de uma profundeza noturna, que me abismava, cada vez que o repetia na mente:

No meio do caminho desta vida
dei por mim na amplidão de selva escura,
pois que a vereda certa era perdida.

Não sabes como o ruído de uma cidade imensa, o labirinto das ruas, a estranheza e indiferença dos que passavam, me tornava solitário no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ar, e nenhuma para mim! Tantos braços caídos com desdém, e sem nenhum a me estreitar. Parecia-me o tumulto como um naufrágio em que a anciã do salvamento nos torna egoístas, insensíveis para as agonias dos outros.

Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno, onde me voaram os primeiros anos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser também um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de lutar, de me impor a admiração dos outros.

O que teria sido de mim nas horas monótonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fora a poesia! Até então ela tinha sido um folguedo, um brinquedo infantil, inocente, um vagido tímido e suave da alma, que ansiava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a crisálida noturna. Sem ter quem me falasse, pedi à poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do deserto em que me via. Ela, a irmã dos tristes, a alma dos que sofrem, como veio terna, espontânea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na fantasia. Foi a poesia também que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veio bater às portas de um mosteiro, donde igualmente o repeliam. Foi ela que lhe deu a paz da cela e a serenidade da contemplação.

Oh, santa e divina poesia! Bem hajam os que choraram porque te descobriram e trouxeram à vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, porque te guardam em si, como uma vestal solícita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para sofrerem, porque nos compreenderão sentindo-se aliviados.

Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno comércio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quase sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrível para afrontar o futuro.

Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscrito, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei dele comecei então a dar-lhe o valor que até ali não conhecia. A necessidade, que se aproximava, a cada instante, fazia-me procurar nele todas as esperanças. Pobre manuscrito! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas páginas sem sentido, que a ninguém tocam e que nem ao menos fazem rir? Ademais, estava escrito com uma letra ininteligível, entrelinhado e sublinhado, num papel repassado de tinta amarela, que mal se percebia. Quando me vi quase sem dinheiro, à porta, inferi, voltei a enrolar o manuscrito, meti-o debaixo do braço, e saí. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escárnio, por me verem tão criança e já com pretensões a autor. Guardava sempre para amanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechá-lo na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nulidade; bem conhecia o que tinham a me dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: “O seu manuscrito não tem leitores; não à um romance, nem um conto; tem algumas páginas excelentes, mas não pode dar lucro de maneira alguma.”

Era esta a resposta que eu antecipava, para não me doer tanto depois quando a recebesse. Um dia, o último, sai a tremer com o manuscrito. Oh, meu amigo, para que te hei de falar nestas coisas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometi contar a história dessa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. Nesse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.

Nos primeiros meses que passei naquela cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fora o refúgio do tédio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.

Vi-a! Leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infância, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um desses sorrisos que me levou a alma presa. Que luta obstinada e escura dentro desta pobre alma! O estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente suplantar-se. 

Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Cláudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emurchecida, que rejuvenesce ao sol do misticismo, é a Turris ebúrnea por quem o poeta se apaixona no sublime delírio da arte. Cláudio Frollo! O desgraçado eclesiástico deixou também correr tranquila a mocidade no retiro do estudo; depois, Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual delas triunfará? A fatalidade do impossível? Eu não conhecia o labirinto de ruas da cidade populosa e imensa, ia em busca dela sem saber para onde. Encontrava-a quase sempre, por uma coincidência fatal. 

De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bela do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbúnculo que reflete em si a luz de todos os círios. Via-lhe na expressão lânguida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. 

O povo amontoara-se para ver subir aos ares um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céu. Oh! Se ela sofresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia ao vozerio da gentalha. Desejaria elevar-se também às alturas, e então estava pensando no devaneio desse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem pode contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente à flor das águas? Quando baixou os olhos à terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu. Oh! Como aquele sorriso me faria esquecer todos os pesares, me daria coragem para todas as lutas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ela não sorrisse assim para todos.

Para todos! É este egoísmo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrível das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciúmes de todos, porque ela sorria pródiga de encantos, tanto para os que passavam indiferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um mármore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aqueles espíritos baixos e abjetos que a fitavam desassombrados, preocupados de um desejo faminto e estúpido de sensualidade.

Criança e indiscreta, seria a inocência que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que voa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triunfava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansável no ardor das vigílias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem pudesse viver sempre iludido! Oh! Verdade! Verdade! Para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho dourado?

A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ela habitava. Ia perdido, a distância, sem conhecer as ruas; a pequena, distraída, como por descuido olhava para trás. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vê-la. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. 

Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! Nem já podia vê-lo, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale prepará-lo, consumindo a vida, se me foge antes de o gozar? Viver obscuro! Embora numa trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquela que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina das suas falas?

Sentia-me escorregar lentamente para o precipício; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciência que me acusava de instintos baixos, sem dignidade. Aparecia-me à janela todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizível ao lembrar-me que, de entre todo aquele bulício de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me tímido; queria falar-lhe e não sabia. Pedi então à poesia que falasse por mim.

Para um amor puro, etéreo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta forma, a mais completa das formas líricas. Elevado como a ode, melífluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigrama, é a síntese de todas as formas do lirismo. Como o não desenvolveu o gênio da Itália, nas suas elevações erótico-místicas! Nas duas primeiras estrofes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, oculta-se sob ela como indefinido, intangível; o predomínio da imagem tem a quadra, forma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potências da alma; é o terceto que o traduz, a tríade fatídica, que se imprime misteriosamente em todos os fatos do espírito. Do acordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das formas poéticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caráter didático e descritivo; se o sentimento se sobreleva à imagem e se manifesta na sua subjetividade, eis o lirismo puro. É por isso que o soneto é a forma suprema do lirismo. Santificaram-no Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarca, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Ângelo, esse Proteu que encarna todas as formas do belo, e Vitoria Colona, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguém macularia o seu platonismo radiante. É também nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade da sua alma sensível, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade dos seus malogrados amores. Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridículo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes à janela; tinha ao seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem falava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia ele estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar sôfrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janela este soneto traduzido do espanhol de Lope de Vega. Não há expressões humanas que possam dizer mais:

Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.

Entre rindo, a mãozinha ela estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergôntea se estiola
Sem luz, sua face a palidez tingia):

“Para onde vás? e deixas este ninho
Que de frouxel (penugem) teceu a doce amiga,
Que a brincar com o teu bico se enamora?”

Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as asas para a prisão antiga,
Que tanto pode uma mulher que chora.

O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealizar assim uma lágrima? Compreenderia ela a profundidade deste sentimento? E sorria de cada vez que lhe enviava novas confidências, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta ideia infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lágrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mistério, quando as derramei ao ver-me nu, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me... nem eu sei o que me disseram. Fora a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou à vida e a amamentou com o seu leite, quem a arrojou à perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ar de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma opressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da antropofagia, mas a vida vai continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.
***

Um ano depois encontramo-nos; o pobre rapaz estava possuído novamente da paixão dos livros. Era uma ansiedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gozos da vida. Não me atrevia a falar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estávamos juntos, vi passar à distância uma rapariga, um tipo rafaélico de candura; ia seguida por uma mulher velha e trôpega. Era uma antítese que fazia pensar muito. Ele olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa ansiedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, corou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:

— É ela.

Não compreendi imediatamente; fui bárbaro, pedindo que me explicasse o mistério dessas palavras entrecortadas. Ele apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha sucumbido. Olhou-a, ela já ia longe; depois que a viu desaparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:

— Uma ruína!

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 26

 

Leon [Liev] Tolstói (O incêndio)

(História real)

Na época de ceifar, os mujiques e as mulheres foram embora trabalhar. Na aldeia, só ficaram os velhos e as crianças. Numa isbá*, ficaram a avó e três netos. A avó acendeu a estufa e deitou-se para descansar. As moscas pousavam em cima da avó e picavam. Ela cobriu a cabeça com uma toalha e pegou no sono. 

Uma das netas, Macha (tinha três anos), jogou brasas num pedaço de louça e foi para a varandinha na entrada da isbá. Ali havia uns feixes de palha no chão. As mulheres amarravam os feixes com atilhos (cavalos pequenos). Macha trouxe as brasas, colocou embaixo dos feixes e começou a soprar.

Quando a palha começou a arder, ela ficou alegre, voltou para dentro da isbá, trouxe pelo braço o irmão, Kiriúchka (tinha um ano e meio e havia acabado de aprender a andar), e disse:

− Olhe, Kiliúska, o que eu tirei da estufa.

Os feixes de palha já estavam ardendo e crepitando. Quando a varanda ficou escura de fumaça, Macha se assustou e correu para trás, para dentro da isbá. 

Kiriúchka caiu na soleira da porta, quebrou o nariz e desatou a chorar; Macha arrastou o irmão para dentro da isbá e os dois se esconderam embaixo de um banco. A vovó não percebeu nada e dormia. 

O menino mais velho, Vánia (tinha oito anos), estava na rua. Quando viu que saía fumaça da varanda, passou correndo pela porta, atravessou a fumaça, entrou na isbá e começou a sacudir a avó; mas a avó, tonta de sono, confusa, esqueceu as crianças, levantou-se com um pulo e saiu correndo para fora, chamando as pessoas. 

Macha, nessa altura, estava sentada embaixo do banco e continuava calada; só o menino pequeno gritava, porque o nariz quebrado estava doendo. Vánia ouviu os gritos dele, olhou embaixo do banco e começou a gritar para Macha:

− Corre para fora, vai se queimar!

Macha correu para a varanda, mas não podia passar, por causa da fumaça e do fogo. Ela voltou para dentro. Então Vánia abriu uma janela e mandou a irmã pular. Quando ela pulou, Vánia agarrou o irmão e o puxou. Mas o menino era pesado e além disso resistia, não deixava o irmão puxar. Empurrava Vánia e chorava. Vánia caiu duas vezes, enquanto puxava o menino para a janela, e a porta da isbá já estava em chamas. Vánia empurrou a cabeça do irmãozinho pela janela e quis jogá-lo para fora; mas o menino (estava muito assustado) se agarrava com as mãozinhas e não soltava. Então Vánia gritou para Macha:

− Puxe a cabeça dele!

E Vánia também empurrava por trás. E assim conseguiram puxar o menino para a rua, através da janela, e eles escaparam também.
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* Isbá = é uma habitação típica camponesa russa. Construída com troncos, era a residência comum de uma tradicional família camponesa russa. Geralmente construídas perto de uma estrada, eram muitas vezes edificadas dentro de um celeiro, jardim ou de um curral, num campo ou perto de uma floresta. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Isb%C3%A1)

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.
 Disponível em Domínio Público

Silmar Bohrer (Croniquinha) 110

Os sons. Ouvir os sons. Vento assobiando, “assobiolando”, pingos batendo nas vidraças, chuva “chuvalhando”. Vozerio na noite. Pernoite. Algum açoite? 

Vozes vívidas, vibrantes, buscando algum intento? Ou só lamento? 

O pio da coruja, quero-queros agitados e vozes esquecem que as formigas trabalham à noite varando madrugadas por carreirinhos longos, mas estreitos sem se importar com as dificuldades. 

Silenciosa, cada criaturinha cumpre seu papel de preparar o ninho e o alimento com a faina, à espera do inverno. E na esteira desta elucubrações a gente vê seres humanos com ares de "vida ganha", sem se importar com o futuro e dificuldades que possam surgir lá adiante. 

A natureza, sem os reflexos racionais, tem os seus lampejos de sapiência. Seria até prazeroso imitá-la. E previdente. E útil. E salutar. 

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Professor Garcia (Trovas do meu cantar) 2


À cruz do amor, eu me entrego,
é a força que me conduz!...
O amor à cruz que carrego,
retira o peso da cruz!
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Amargurada, partiste,
e eu, na minha desventura,
nem sei se o peito resiste
ao pranto dessa amargura!
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As aves, com seus arranjos,
cantam canções tão singelas,
que eu penso que são os anjos
que, às vezes, cantam com elas!
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Chega a velhice e me alcança,
de uma forma tão singela...
Plantando paz e esperança
na vida, que é minha e dela!
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Como quem consola o pranto,
cego e preso na gaiola,
o sabiá solta um canto
e o canto triste o consola!
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Desfeitas as nossas metas,
a vida me faz supor...
Que fomos falsos profetas,
em nossas metas de amor!
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Disse-me, antigo eremita,
no altar de uma velha ermida:
Busco a verdade infinita
que há no silêncio da vida!
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Em seu traje, uma andorinha,
meditando, até parece;
A humilde e pobre freirinha,
pedindo paz numa prece!
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Esta aliança, que um dia,
já guardou nossos segredos...
Hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!
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É tarde... E, na velha praça,
há um vulto que, na verdade,
é uma saudade que passa,
nos braços de outra saudade!
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Eu te esperei tanto, amor,
e de tanto meditar...
A vida me fez supor,
que vale a pena esperar!
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Eu vejo ó, linda criança,
neste teu gesto tão lindo...
a mais feliz esperança,
das esperanças dormindo!
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Há uma voz triste e sonora,
nela, suspiros, lamentos!..,
E a cachoeira que chora
seu pranto, na voz dos ventos!
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Mastro erguido, vela içada,
na noite da cor de breu...
Avança a velha jangada,
num mar que nunca foi seu!
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Mesmo sem terço entre os dedos,
nem cruzes, no peito, expostas,
Deus escuta os teus segredos
e aceita as justas respostas!
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Não faças do amor desfeito,
o teu orgulho e o teu canto...
Pois, o amor, sempre acha um jeito
de transformar riso em pranto!
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Na vida, a gente descobre,
seguindo o que a Bíblia diz...
Que não há pobre tão pobre
que não possa ser feliz!
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Num pesadelo medonho,
alguém me pede, apressado,
que eu jogue a cinza do sonho
nas cinzas do meu passado!
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O antigo sorriso franco,
na vida, só se refaz...
Quando, em seu cabelo branco,
Deus pinta o branco da paz!
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O cego que aceita a cruz
das trevas dos olhos seus,
será estrela de luz
à luz dos olhos de Deus!
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O sol, quando dobra a esquina,
deixa o ocaso tão bonito,
que a esperança é mais divina,
no entardecer do infinito!
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O tempo atrevido, ingrato,
sem perguntar se eu aceito,
rasgou o nosso contrato
e agasalhou-se em meu peito!
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O velho trem, fiquei vendo,
quando partiste... Aos apitos...
Meu sonho aos poucos morrendo,
na distância dos teus gritos!
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Quando um sonho me seduz,
ao fim do ocaso, suponho...
Que o sol, quando apaga a luz,
vai acender outro sonho!
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Sempre sozinha!... Aos farrapos,
mas de rosário na mão!
A fé, tecida entre os trapos,
remendava a solidão!
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Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Primavera)


Composição: Carlos Lyra / Vinicius de Moraes

O meu amor sozinho
É assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela
Como é triste se sentir saudade

É que eu gosto tanto dela
Que é capaz dela gostar de mim
Acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde

Estrela, eu lhe diria
Desce à terra, o amor existe
E a poesia só espera ver nascer a primavera
Para não morrer

Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho
Eu queria ter felicidade

É que o meu amor é tanto
É um encanto que não tem mais fim
E, no entanto, ela não sabe que isso existe
É tão triste se sentir saudade

Amor, eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei
Ah! Quem me dera que eu pudesse ser
A tua primavera e depois morrer
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A Saudade e a Esperança na Canção 'Primavera'
A música 'Primavera', composta por Carlos Lyra, é uma delicada expressão de sentimentos de amor e saudade, entrelaçados com a esperança de um encontro amoroso. A letra utiliza a metáfora de um jardim sem flor para ilustrar a solidão do eu lírico, que se encontra distante de sua amada, comparando essa distância à que separa a Terra de uma estrela distante. A imagem do jardim sem flor simboliza um estado de incompletude e anseio, onde o amor existe, mas não se manifesta plenamente pela ausência da pessoa amada.

A referência à primavera como um renascimento e um florescer do amor é central na canção. A estação é personificada e aguardada como o momento em que a poesia e o amor ganham vida, sugerindo que o eu lírico espera que o amor que sente seja correspondido com a chegada da primavera, trazendo consigo a possibilidade de um novo começo e a realização do desejo de estar junto à pessoa amada. A primavera, portanto, é mais do que uma estação; é uma metáfora para a transformação e a esperança de que o amor solitário se torne um amor compartilhado.

A música também aborda a ideia de que o amor não é algo que se vive isoladamente. A letra enfatiza que o amor é 'juntinho que ele fica bom', ressaltando a importância da reciprocidade e da partilha de sentimentos para que o amor floresça verdadeiramente. O eu lírico expressa um desejo profundo de dar carinho e alcançar a felicidade através do amor correspondido, revelando a natureza humana de buscar conexão e completude através das relações amorosas.

Maria Amália Vaz de Carvalho (As Filhas de Victor Hugo)

Há pouco tempo um escritor francês desconhecido entre nós, o sr. Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado Victor Hugo chez lui, no qual pinta o grande poeta francês, surpreendido, por assim dizer, na intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas atitudes mais familiares.

Desce do pedestal onde a nossa fantasia se compraz em o colocar, o poeta da Lenda dos Séculos, e mostram-no com a robe de chambre e as pantufas de qualquer honesto especulador do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantíssima, desnudada diante do nosso olhar corresponde positivamente a tudo que dela esperávamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa Joaninha que a arte deste grande pais imortalizou, não desmente de modo algum o justiceiro implacável dos Châtiments.

Contudo não é o pai de família, que nós vamos hoje estudar em Victor Hugo, como o nosso título um tanto fantasioso parece estar indicando.

As filhas de Victor Hugo, que nós tentaremos apresentar diante dos olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimônio de simples mortal, são as radiosas filhas do seu gênio, as visões iluminadas que ele evocou com palavras de misterioso encantamento desse Olimpo inacessível onde vivem e nascem as criações imortais dos grandes artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com enternecimento apaixonado todas as fases do seu espírito, essas mulheres ideais é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam as outras no fim de contas, se através destas é que ele se revelou tal como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um tipo de mulher, em que consubstanciam e sintetizam todos os sonhos que tiveram, todas as aspirações que tem concebido.

A mulher que eles fazem viver com a pena, se são poetas, com o escopro (cinzel) ou com o pincel, se são escultores ou pintores, não é como alguns querem que seja, a mulher que eles amaram: é mais do que isso, é a mulher que eles queriam amar!

Para essa é que a sua lira tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais aveludadas carícias, a sua paleta cores mais suaves, a sua pena traços mais vivos, análises mais delicadas, intenções mais graciosas e mais finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que nele cabem dois cultos que se não prejudicam mutuamente, quase sempre esses artistas de que falamos tratam com o mesmo primoroso esmero dois tipos de mulher bem diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um deles personifica a virginal criança cujas seduções mais irresistíveis se chamam inocência, pudor, candura ou ignorância; lírios que o orvalho da manhã coroa com um diadema de pérolas, lírios que uma aragem mais quente crestaria, e que o contato de uns dedos brutais lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e embriaga e mata, consciente dos seus malefícios, e gozando do seu fatal poder!

Consoante o espírito do artista se enamora da sombria beleza do mal, ou da imaculada candura do bem, assim ele trata com mais delicada predileção o eterno feminino que representa uma das faces do mesmo problema insolúvel.

Porque o homem grande ou pequeno, inteligente ou medíocre, há de sempre amar a mulher debaixo de qualquer destas duas formas, ou antes debaixo delas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração deles triunfa a porção de domínio que há até mesmo na alma dos anjos, hão de sentir-se atraídos por este mistério luminoso e sombrio, que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na Idade Média foi Melusina*, que na Renascença foi Impéria ou Lucrécia Bórgia, que os modernos enfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o gênio de tantos homens tem revestido de prestígio mágico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só nessas mulheres símbolos do mal, símbolos de todas as seduções insalubres, hão de achar a graça magnética que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que todos os romancistas as tenham descrito, mas na feição peculiar que cada um deles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste a superioridade ou inferioridade do eterno tipo.

Quanto às outras, às boas, às cândidas, às angélicas, poucos as compreendem na sua genuína e original pureza, e os que as souberam compreender têm produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura destas divinas crianças impecáveis.

Umas absortas num sonho de eterna tristeza, envoltas como que num pressentimento de inevitável desdita, como Ofélia ou Desdêmona; outras deixando florir nos lábios frescos a rubra flor da alegria matinal, mas todas lindas, e meigas e inocentes, todas fazendo crer no bem até os mais cínicos.

Victor Hugo tem, como Shakespeare, destas criações risonhas e simpáticas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, têm na alma um pouco da alma das aves.

Têm a ligeireza alada do sonho, têm a graça imponderável das visões.

Não há ninguém que não quisesse ter por filha uma dessas crianças borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E, no entanto, são boas, de uma doce bondade inconsciente que delas se exala como o aroma se exala da flor; mas também as crianças são boas, e contudo ninguém como elas sabe ser engenhosamente cruel.

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxílio, e não precisa de guia, não compreende a mulher como os modernos aspiram a encontrá-la.

Não quer a companheira robusta desse atleta moral, que é o lutador de hoje; não quer a mulher de ânimo refletido, de coragem viril, de consciência iluminada e austera, que na hora do perigo ou na hora do vacilo criminoso, arrasta ao impulso da sua voz o espírito do homem esmorecido ou duvidoso.

Ele, cuja vida tem sido uma ascensão progressiva para o bem, ele, que não precisa de outra bússola que não seja a luz interior que nunca se apaga nem bruxuleia, não teve necessidade de criar ao lado de Marius, ao lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heróis, uma mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande luta do bem!

Oh! Não era de força que eles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir às seduções da criminosa voluptuosidade; Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funerária; Gennaro saberia confessar as suas indignações austeras e os seus ódios inquebrantáveis; Marius saberia amar a honra impoluta como as virgens, brilhante como as espadas, implacável como a eterna justiça.

Do que eles precisavam era de risos, de flores, de carícias e de beijos.

Precisavam de quem os arrancasse à contemplação do seu deslumbramento ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

— Olha! Eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobrepuja: eu sou o amor!

E não são mais nada as mulheres criadas pelo gênio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoísta, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus pudores instintivos, as suas ignorâncias virginais e as suas aspirações insaciadas a fatalidade irresistível da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuído das ideias cavaleirescas do Romanceiro, criou um tipo de mulher que é talvez um dos mais belos da sua formosa e radiante galeria.

Dona Sol sabe amar impetuosamente, ardentemente, e nesse amor que é a nota predominante do seu caráter, encontra força para todas as resistências viris.

Como ela é doce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu senhor, do seu leão das montanhas, do seu príncipe bandido, do seu rebelde e indomável cavaleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, carícias, tudo é de veludo!

Um desejo dele, tem-na escrava! No entanto sabe por instinto, que ele, o herói, o forte não pode lhe pedir coisa alguma que a filha de um paladino das Espanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquela graça pode fazer-se indignada, que aquela flexibilidade ondeante pode transformar-se em revolta implacável?

É que nela há de tudo! Porém esse tudo é simplesmente amor.

Apareça outro que a solicite, outro que ouse amá-la, e a pomba saberá ser leoa, para defender o seu tesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ela domina, a indignação austera que a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome às vezes as perde, se a maldade e a perfídia do homem as arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para elas o amor não é a perdição, é o resgate!

Veja Marion, a cortesã incrédula, a serpente de enganosas carícias, que um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que dele recebe uma nova e misteriosa virgindade! Veja Eponina, a filha das lamas de Paris, a quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrifício, a abnegação e o heroísmo!

Mas — contradição à primeira vista inexplicável e que no fundo tem talvez uma significação sublime — o amor que transfigura e santifica e ilumina as pecadoras, torna egoístas, torna ingratas as puras!

Eponina imola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os paraísos inacessíveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triunfante, levanta-se Magdalena arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um sorriso bom para Quasímodo!

Porque?

Ah! É que umas são a ignorância na sua perfeição mais divina, outras guardam na boca o gosto amargo de todos os frutos vedados que têm devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes intercepta o mundo, outras possuem a medonha ciência que é feita de todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tédios, de todos os remorsos, de todas as náuseas da vergonha e do desprezo próprio!

Umas entram no amor, triunfantes, imaculadas, curiosas, ébrias de harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam antes? Tinham afetos? Prazeres? Distrações?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fora seu.

As outras vão ali à porta daquela região de que hão de ser as eternas exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de esquecimento.

E em troca desse consolo supremo a que se julgam sem direito, são capazes de todos os sacrifícios, de todos as renúncias sublimes que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

Leitora, estás cansada das chatas e incaracterísticas figuras que tens encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os tipos hediondos ou repugnantes da moderna arte?

As Gervásias, as Bovarys, as Fannys, as pecadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile diante de teu olhar pensativo a gloriosa legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! Crê que não aprenderás com elas coisa alguma que rebaixe o teu espírito, que fira o teu coração, que surpreenda cruelmente o teu entendimento.

Todas elas sabem o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triunfo impudico do vício, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a impenitência imoral das que medram no meio do crime.

As pecadoras contar-te-ão a dolorosa história das suas amarguras, as virgens a doçura sonhadora dos seus êxtases!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa, e que o paraíso pode encontrar-se num canto da terra.

Não sabem nada de toaletes, de pequenas intrigas, de namoros, de vícios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com os olhos fitos noutros olhos, com as mãos enlaçadas noutras mãos, com a alma a cantar-lhes um hosanna de místicos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher bonita e garrida, não as procures, mas também lhes não peças que te falem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as alucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras esferas ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu — Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ela cintila ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de batismo; os seus dedos de cigana crestados e finos arrancam ao pandeiro do seu país doidos e estranhos sons! Fascina com um olhar inconsciente dos seus olhos de veludo, com uma nota da sua voz cristalina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ela da vida? Nada; a não ser que a vida é bela, visto que há dois olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! Vive ao pé dela um enigma sombrio! Um espírito sobrehumano! Um lutador destas lutas interiores cujo reflexo se estampa na frente que as encerra.

Ela nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enigma, e nunca sequer compreendeu a existência dessas lutas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adorável ela deve durante quinze anos a ventura mais perfeita que pode gozar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos daquela fada, encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus idílios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava fizeram-na rainha.

Não importa! Marius apareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida, deixa morrer de dor o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que ele vive na posse de uma ventura que nunca até ali conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho lhe mordeu no coração!

Pois é possível ser desgraçado quando eu sou tão feliz? - pergunta tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de ventura que ela atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão cair!

Ai! Cosette, Cosette! Eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! És uma das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! És uma estátua branca que ninguém ousará mutilar e que os séculos verão erguida no teu pedestal de flores! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em vez de seres o Amor fosses o Sacrifício!

Um dia Victor Hugo pediu às neblinas matinais dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que elas coroam a crista das montanhas e... fez Déa (Deusa)!

Que doce, vaporosa e lendária visão!

Não há nela coisa alguma que seja realidade!

Toca na terra de leve; não tanto que pareça filha dela, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguém devotado às dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe na alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que ele a veste!

Abençoada cegueira que faz dois felizes!

Ao lado dela — supremo contraste! — sorri Josiane com o seu sorriso de deusa pagã!

No olho azul da patrícia inglesa cintila em chispas uma diabólica ironia.

Josiane é a amante do impossível! Procura o que nunca ninguém achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titã, ou de um Cíclope, o amor de Apolo ou de Polifemo!

Estranha figura, produto doentio de uma noite de febre!

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponina, Cosette, Déa, quantas figuras radiosas, quantas humanizações esplêndidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga dúvida, nas horas em que as misérias que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais desolado e mais escuro olhemos para elas!

Dir-nos-ão os poetas de hoje que elas não existem, e, o que é pior, que elas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem estéril a arte que só trata de rebaixar o que em nós é de mais elevada essência, e só quer que vejamos a fatalidade brutal do instinto, onde víamos antes a fatalidade mais nobre do sentimento.

Não acreditemos o que eles nos dizem, porque na sua preocupação exagerada do horrível, eles mentem muito mais do que os outros mentiam na sua preocupação exagerada do belo!

Estes, reunindo todos os vícios e sordidez que encontraram dispersos numa só figura, conseguem apenas criar... um monstro, um ser híbrido e infecundo que a ninguém aproveita!

Os outros, sintetizando numa filha do seu gênio as harmonias, as feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza, conseguiram alguma coisa mais!

Criaram o ideal imutável e eterno e ensinaram-nos a fitar nele os olhos da nossa alma, e a invoca-lo como um consolo adorável nas nossas horas de desalento e de agonia.
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Notas
* Melusina = é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.