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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Teófilo Braga (O sonho de Esmeralda)

Oh, meu amigo, oh! Meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sai aos vinte anos da sua água furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossíveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguém se conhece, onde todos se igualam e atropelam! Foi quando compreendi aquele terceto de Dante, de uma profundeza noturna, que me abismava, cada vez que o repetia na mente:

No meio do caminho desta vida
dei por mim na amplidão de selva escura,
pois que a vereda certa era perdida.

Não sabes como o ruído de uma cidade imensa, o labirinto das ruas, a estranheza e indiferença dos que passavam, me tornava solitário no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ar, e nenhuma para mim! Tantos braços caídos com desdém, e sem nenhum a me estreitar. Parecia-me o tumulto como um naufrágio em que a anciã do salvamento nos torna egoístas, insensíveis para as agonias dos outros.

Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno, onde me voaram os primeiros anos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser também um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de lutar, de me impor a admiração dos outros.

O que teria sido de mim nas horas monótonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fora a poesia! Até então ela tinha sido um folguedo, um brinquedo infantil, inocente, um vagido tímido e suave da alma, que ansiava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a crisálida noturna. Sem ter quem me falasse, pedi à poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do deserto em que me via. Ela, a irmã dos tristes, a alma dos que sofrem, como veio terna, espontânea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na fantasia. Foi a poesia também que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veio bater às portas de um mosteiro, donde igualmente o repeliam. Foi ela que lhe deu a paz da cela e a serenidade da contemplação.

Oh, santa e divina poesia! Bem hajam os que choraram porque te descobriram e trouxeram à vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, porque te guardam em si, como uma vestal solícita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para sofrerem, porque nos compreenderão sentindo-se aliviados.

Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno comércio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quase sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrível para afrontar o futuro.

Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscrito, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei dele comecei então a dar-lhe o valor que até ali não conhecia. A necessidade, que se aproximava, a cada instante, fazia-me procurar nele todas as esperanças. Pobre manuscrito! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas páginas sem sentido, que a ninguém tocam e que nem ao menos fazem rir? Ademais, estava escrito com uma letra ininteligível, entrelinhado e sublinhado, num papel repassado de tinta amarela, que mal se percebia. Quando me vi quase sem dinheiro, à porta, inferi, voltei a enrolar o manuscrito, meti-o debaixo do braço, e saí. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escárnio, por me verem tão criança e já com pretensões a autor. Guardava sempre para amanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechá-lo na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nulidade; bem conhecia o que tinham a me dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: “O seu manuscrito não tem leitores; não à um romance, nem um conto; tem algumas páginas excelentes, mas não pode dar lucro de maneira alguma.”

Era esta a resposta que eu antecipava, para não me doer tanto depois quando a recebesse. Um dia, o último, sai a tremer com o manuscrito. Oh, meu amigo, para que te hei de falar nestas coisas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometi contar a história dessa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. Nesse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.

Nos primeiros meses que passei naquela cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fora o refúgio do tédio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.

Vi-a! Leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infância, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um desses sorrisos que me levou a alma presa. Que luta obstinada e escura dentro desta pobre alma! O estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente suplantar-se. 

Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Cláudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emurchecida, que rejuvenesce ao sol do misticismo, é a Turris ebúrnea por quem o poeta se apaixona no sublime delírio da arte. Cláudio Frollo! O desgraçado eclesiástico deixou também correr tranquila a mocidade no retiro do estudo; depois, Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual delas triunfará? A fatalidade do impossível? Eu não conhecia o labirinto de ruas da cidade populosa e imensa, ia em busca dela sem saber para onde. Encontrava-a quase sempre, por uma coincidência fatal. 

De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bela do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbúnculo que reflete em si a luz de todos os círios. Via-lhe na expressão lânguida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. 

O povo amontoara-se para ver subir aos ares um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céu. Oh! Se ela sofresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia ao vozerio da gentalha. Desejaria elevar-se também às alturas, e então estava pensando no devaneio desse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem pode contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente à flor das águas? Quando baixou os olhos à terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu. Oh! Como aquele sorriso me faria esquecer todos os pesares, me daria coragem para todas as lutas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ela não sorrisse assim para todos.

Para todos! É este egoísmo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrível das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciúmes de todos, porque ela sorria pródiga de encantos, tanto para os que passavam indiferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um mármore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aqueles espíritos baixos e abjetos que a fitavam desassombrados, preocupados de um desejo faminto e estúpido de sensualidade.

Criança e indiscreta, seria a inocência que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que voa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triunfava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansável no ardor das vigílias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem pudesse viver sempre iludido! Oh! Verdade! Verdade! Para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho dourado?

A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ela habitava. Ia perdido, a distância, sem conhecer as ruas; a pequena, distraída, como por descuido olhava para trás. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vê-la. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. 

Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! Nem já podia vê-lo, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale prepará-lo, consumindo a vida, se me foge antes de o gozar? Viver obscuro! Embora numa trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquela que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina das suas falas?

Sentia-me escorregar lentamente para o precipício; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciência que me acusava de instintos baixos, sem dignidade. Aparecia-me à janela todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizível ao lembrar-me que, de entre todo aquele bulício de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me tímido; queria falar-lhe e não sabia. Pedi então à poesia que falasse por mim.

Para um amor puro, etéreo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta forma, a mais completa das formas líricas. Elevado como a ode, melífluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigrama, é a síntese de todas as formas do lirismo. Como o não desenvolveu o gênio da Itália, nas suas elevações erótico-místicas! Nas duas primeiras estrofes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, oculta-se sob ela como indefinido, intangível; o predomínio da imagem tem a quadra, forma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potências da alma; é o terceto que o traduz, a tríade fatídica, que se imprime misteriosamente em todos os fatos do espírito. Do acordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das formas poéticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caráter didático e descritivo; se o sentimento se sobreleva à imagem e se manifesta na sua subjetividade, eis o lirismo puro. É por isso que o soneto é a forma suprema do lirismo. Santificaram-no Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarca, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Ângelo, esse Proteu que encarna todas as formas do belo, e Vitoria Colona, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguém macularia o seu platonismo radiante. É também nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade da sua alma sensível, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade dos seus malogrados amores. Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridículo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes à janela; tinha ao seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem falava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia ele estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar sôfrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janela este soneto traduzido do espanhol de Lope de Vega. Não há expressões humanas que possam dizer mais:

Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.

Entre rindo, a mãozinha ela estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergôntea se estiola
Sem luz, sua face a palidez tingia):

“Para onde vás? e deixas este ninho
Que de frouxel (penugem) teceu a doce amiga,
Que a brincar com o teu bico se enamora?”

Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as asas para a prisão antiga,
Que tanto pode uma mulher que chora.

O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealizar assim uma lágrima? Compreenderia ela a profundidade deste sentimento? E sorria de cada vez que lhe enviava novas confidências, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta ideia infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lágrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mistério, quando as derramei ao ver-me nu, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me... nem eu sei o que me disseram. Fora a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou à vida e a amamentou com o seu leite, quem a arrojou à perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ar de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma opressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da antropofagia, mas a vida vai continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.
***

Um ano depois encontramo-nos; o pobre rapaz estava possuído novamente da paixão dos livros. Era uma ansiedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gozos da vida. Não me atrevia a falar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estávamos juntos, vi passar à distância uma rapariga, um tipo rafaélico de candura; ia seguida por uma mulher velha e trôpega. Era uma antítese que fazia pensar muito. Ele olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa ansiedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, corou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:

— É ela.

Não compreendi imediatamente; fui bárbaro, pedindo que me explicasse o mistério dessas palavras entrecortadas. Ele apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha sucumbido. Olhou-a, ela já ia longe; depois que a viu desaparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:

— Uma ruína!

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Leon [Liev] Tolstói (O incêndio)

(História real)

Na época de ceifar, os mujiques e as mulheres foram embora trabalhar. Na aldeia, só ficaram os velhos e as crianças. Numa isbá*, ficaram a avó e três netos. A avó acendeu a estufa e deitou-se para descansar. As moscas pousavam em cima da avó e picavam. Ela cobriu a cabeça com uma toalha e pegou no sono. 

Uma das netas, Macha (tinha três anos), jogou brasas num pedaço de louça e foi para a varandinha na entrada da isbá. Ali havia uns feixes de palha no chão. As mulheres amarravam os feixes com atilhos (cavalos pequenos). Macha trouxe as brasas, colocou embaixo dos feixes e começou a soprar.

Quando a palha começou a arder, ela ficou alegre, voltou para dentro da isbá, trouxe pelo braço o irmão, Kiriúchka (tinha um ano e meio e havia acabado de aprender a andar), e disse:

− Olhe, Kiliúska, o que eu tirei da estufa.

Os feixes de palha já estavam ardendo e crepitando. Quando a varanda ficou escura de fumaça, Macha se assustou e correu para trás, para dentro da isbá. 

Kiriúchka caiu na soleira da porta, quebrou o nariz e desatou a chorar; Macha arrastou o irmão para dentro da isbá e os dois se esconderam embaixo de um banco. A vovó não percebeu nada e dormia. 

O menino mais velho, Vánia (tinha oito anos), estava na rua. Quando viu que saía fumaça da varanda, passou correndo pela porta, atravessou a fumaça, entrou na isbá e começou a sacudir a avó; mas a avó, tonta de sono, confusa, esqueceu as crianças, levantou-se com um pulo e saiu correndo para fora, chamando as pessoas. 

Macha, nessa altura, estava sentada embaixo do banco e continuava calada; só o menino pequeno gritava, porque o nariz quebrado estava doendo. Vánia ouviu os gritos dele, olhou embaixo do banco e começou a gritar para Macha:

− Corre para fora, vai se queimar!

Macha correu para a varanda, mas não podia passar, por causa da fumaça e do fogo. Ela voltou para dentro. Então Vánia abriu uma janela e mandou a irmã pular. Quando ela pulou, Vánia agarrou o irmão e o puxou. Mas o menino era pesado e além disso resistia, não deixava o irmão puxar. Empurrava Vánia e chorava. Vánia caiu duas vezes, enquanto puxava o menino para a janela, e a porta da isbá já estava em chamas. Vánia empurrou a cabeça do irmãozinho pela janela e quis jogá-lo para fora; mas o menino (estava muito assustado) se agarrava com as mãozinhas e não soltava. Então Vánia gritou para Macha:

− Puxe a cabeça dele!

E Vánia também empurrava por trás. E assim conseguiram puxar o menino para a rua, através da janela, e eles escaparam também.
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* Isbá = é uma habitação típica camponesa russa. Construída com troncos, era a residência comum de uma tradicional família camponesa russa. Geralmente construídas perto de uma estrada, eram muitas vezes edificadas dentro de um celeiro, jardim ou de um curral, num campo ou perto de uma floresta. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Isb%C3%A1)

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.
 Disponível em Domínio Público

Silmar Bohrer (Croniquinha) 110

Os sons. Ouvir os sons. Vento assobiando, “assobiolando”, pingos batendo nas vidraças, chuva “chuvalhando”. Vozerio na noite. Pernoite. Algum açoite? 

Vozes vívidas, vibrantes, buscando algum intento? Ou só lamento? 

O pio da coruja, quero-queros agitados e vozes esquecem que as formigas trabalham à noite varando madrugadas por carreirinhos longos, mas estreitos sem se importar com as dificuldades. 

Silenciosa, cada criaturinha cumpre seu papel de preparar o ninho e o alimento com a faina, à espera do inverno. E na esteira desta elucubrações a gente vê seres humanos com ares de "vida ganha", sem se importar com o futuro e dificuldades que possam surgir lá adiante. 

A natureza, sem os reflexos racionais, tem os seus lampejos de sapiência. Seria até prazeroso imitá-la. E previdente. E útil. E salutar. 

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Maria Amália Vaz de Carvalho (As Filhas de Victor Hugo)

Há pouco tempo um escritor francês desconhecido entre nós, o sr. Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado Victor Hugo chez lui, no qual pinta o grande poeta francês, surpreendido, por assim dizer, na intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas atitudes mais familiares.

Desce do pedestal onde a nossa fantasia se compraz em o colocar, o poeta da Lenda dos Séculos, e mostram-no com a robe de chambre e as pantufas de qualquer honesto especulador do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantíssima, desnudada diante do nosso olhar corresponde positivamente a tudo que dela esperávamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa Joaninha que a arte deste grande pais imortalizou, não desmente de modo algum o justiceiro implacável dos Châtiments.

Contudo não é o pai de família, que nós vamos hoje estudar em Victor Hugo, como o nosso título um tanto fantasioso parece estar indicando.

As filhas de Victor Hugo, que nós tentaremos apresentar diante dos olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimônio de simples mortal, são as radiosas filhas do seu gênio, as visões iluminadas que ele evocou com palavras de misterioso encantamento desse Olimpo inacessível onde vivem e nascem as criações imortais dos grandes artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com enternecimento apaixonado todas as fases do seu espírito, essas mulheres ideais é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam as outras no fim de contas, se através destas é que ele se revelou tal como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um tipo de mulher, em que consubstanciam e sintetizam todos os sonhos que tiveram, todas as aspirações que tem concebido.

A mulher que eles fazem viver com a pena, se são poetas, com o escopro (cinzel) ou com o pincel, se são escultores ou pintores, não é como alguns querem que seja, a mulher que eles amaram: é mais do que isso, é a mulher que eles queriam amar!

Para essa é que a sua lira tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais aveludadas carícias, a sua paleta cores mais suaves, a sua pena traços mais vivos, análises mais delicadas, intenções mais graciosas e mais finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que nele cabem dois cultos que se não prejudicam mutuamente, quase sempre esses artistas de que falamos tratam com o mesmo primoroso esmero dois tipos de mulher bem diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um deles personifica a virginal criança cujas seduções mais irresistíveis se chamam inocência, pudor, candura ou ignorância; lírios que o orvalho da manhã coroa com um diadema de pérolas, lírios que uma aragem mais quente crestaria, e que o contato de uns dedos brutais lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e embriaga e mata, consciente dos seus malefícios, e gozando do seu fatal poder!

Consoante o espírito do artista se enamora da sombria beleza do mal, ou da imaculada candura do bem, assim ele trata com mais delicada predileção o eterno feminino que representa uma das faces do mesmo problema insolúvel.

Porque o homem grande ou pequeno, inteligente ou medíocre, há de sempre amar a mulher debaixo de qualquer destas duas formas, ou antes debaixo delas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração deles triunfa a porção de domínio que há até mesmo na alma dos anjos, hão de sentir-se atraídos por este mistério luminoso e sombrio, que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na Idade Média foi Melusina*, que na Renascença foi Impéria ou Lucrécia Bórgia, que os modernos enfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o gênio de tantos homens tem revestido de prestígio mágico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só nessas mulheres símbolos do mal, símbolos de todas as seduções insalubres, hão de achar a graça magnética que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que todos os romancistas as tenham descrito, mas na feição peculiar que cada um deles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste a superioridade ou inferioridade do eterno tipo.

Quanto às outras, às boas, às cândidas, às angélicas, poucos as compreendem na sua genuína e original pureza, e os que as souberam compreender têm produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura destas divinas crianças impecáveis.

Umas absortas num sonho de eterna tristeza, envoltas como que num pressentimento de inevitável desdita, como Ofélia ou Desdêmona; outras deixando florir nos lábios frescos a rubra flor da alegria matinal, mas todas lindas, e meigas e inocentes, todas fazendo crer no bem até os mais cínicos.

Victor Hugo tem, como Shakespeare, destas criações risonhas e simpáticas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, têm na alma um pouco da alma das aves.

Têm a ligeireza alada do sonho, têm a graça imponderável das visões.

Não há ninguém que não quisesse ter por filha uma dessas crianças borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E, no entanto, são boas, de uma doce bondade inconsciente que delas se exala como o aroma se exala da flor; mas também as crianças são boas, e contudo ninguém como elas sabe ser engenhosamente cruel.

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxílio, e não precisa de guia, não compreende a mulher como os modernos aspiram a encontrá-la.

Não quer a companheira robusta desse atleta moral, que é o lutador de hoje; não quer a mulher de ânimo refletido, de coragem viril, de consciência iluminada e austera, que na hora do perigo ou na hora do vacilo criminoso, arrasta ao impulso da sua voz o espírito do homem esmorecido ou duvidoso.

Ele, cuja vida tem sido uma ascensão progressiva para o bem, ele, que não precisa de outra bússola que não seja a luz interior que nunca se apaga nem bruxuleia, não teve necessidade de criar ao lado de Marius, ao lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heróis, uma mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande luta do bem!

Oh! Não era de força que eles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir às seduções da criminosa voluptuosidade; Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funerária; Gennaro saberia confessar as suas indignações austeras e os seus ódios inquebrantáveis; Marius saberia amar a honra impoluta como as virgens, brilhante como as espadas, implacável como a eterna justiça.

Do que eles precisavam era de risos, de flores, de carícias e de beijos.

Precisavam de quem os arrancasse à contemplação do seu deslumbramento ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

— Olha! Eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobrepuja: eu sou o amor!

E não são mais nada as mulheres criadas pelo gênio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoísta, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus pudores instintivos, as suas ignorâncias virginais e as suas aspirações insaciadas a fatalidade irresistível da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuído das ideias cavaleirescas do Romanceiro, criou um tipo de mulher que é talvez um dos mais belos da sua formosa e radiante galeria.

Dona Sol sabe amar impetuosamente, ardentemente, e nesse amor que é a nota predominante do seu caráter, encontra força para todas as resistências viris.

Como ela é doce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu senhor, do seu leão das montanhas, do seu príncipe bandido, do seu rebelde e indomável cavaleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, carícias, tudo é de veludo!

Um desejo dele, tem-na escrava! No entanto sabe por instinto, que ele, o herói, o forte não pode lhe pedir coisa alguma que a filha de um paladino das Espanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquela graça pode fazer-se indignada, que aquela flexibilidade ondeante pode transformar-se em revolta implacável?

É que nela há de tudo! Porém esse tudo é simplesmente amor.

Apareça outro que a solicite, outro que ouse amá-la, e a pomba saberá ser leoa, para defender o seu tesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ela domina, a indignação austera que a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome às vezes as perde, se a maldade e a perfídia do homem as arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para elas o amor não é a perdição, é o resgate!

Veja Marion, a cortesã incrédula, a serpente de enganosas carícias, que um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que dele recebe uma nova e misteriosa virgindade! Veja Eponina, a filha das lamas de Paris, a quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrifício, a abnegação e o heroísmo!

Mas — contradição à primeira vista inexplicável e que no fundo tem talvez uma significação sublime — o amor que transfigura e santifica e ilumina as pecadoras, torna egoístas, torna ingratas as puras!

Eponina imola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os paraísos inacessíveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triunfante, levanta-se Magdalena arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um sorriso bom para Quasímodo!

Porque?

Ah! É que umas são a ignorância na sua perfeição mais divina, outras guardam na boca o gosto amargo de todos os frutos vedados que têm devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes intercepta o mundo, outras possuem a medonha ciência que é feita de todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tédios, de todos os remorsos, de todas as náuseas da vergonha e do desprezo próprio!

Umas entram no amor, triunfantes, imaculadas, curiosas, ébrias de harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam antes? Tinham afetos? Prazeres? Distrações?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fora seu.

As outras vão ali à porta daquela região de que hão de ser as eternas exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de esquecimento.

E em troca desse consolo supremo a que se julgam sem direito, são capazes de todos os sacrifícios, de todos as renúncias sublimes que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

Leitora, estás cansada das chatas e incaracterísticas figuras que tens encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os tipos hediondos ou repugnantes da moderna arte?

As Gervásias, as Bovarys, as Fannys, as pecadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile diante de teu olhar pensativo a gloriosa legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! Crê que não aprenderás com elas coisa alguma que rebaixe o teu espírito, que fira o teu coração, que surpreenda cruelmente o teu entendimento.

Todas elas sabem o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triunfo impudico do vício, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a impenitência imoral das que medram no meio do crime.

As pecadoras contar-te-ão a dolorosa história das suas amarguras, as virgens a doçura sonhadora dos seus êxtases!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa, e que o paraíso pode encontrar-se num canto da terra.

Não sabem nada de toaletes, de pequenas intrigas, de namoros, de vícios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com os olhos fitos noutros olhos, com as mãos enlaçadas noutras mãos, com a alma a cantar-lhes um hosanna de místicos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher bonita e garrida, não as procures, mas também lhes não peças que te falem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as alucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras esferas ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu — Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ela cintila ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de batismo; os seus dedos de cigana crestados e finos arrancam ao pandeiro do seu país doidos e estranhos sons! Fascina com um olhar inconsciente dos seus olhos de veludo, com uma nota da sua voz cristalina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ela da vida? Nada; a não ser que a vida é bela, visto que há dois olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! Vive ao pé dela um enigma sombrio! Um espírito sobrehumano! Um lutador destas lutas interiores cujo reflexo se estampa na frente que as encerra.

Ela nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enigma, e nunca sequer compreendeu a existência dessas lutas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adorável ela deve durante quinze anos a ventura mais perfeita que pode gozar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos daquela fada, encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus idílios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava fizeram-na rainha.

Não importa! Marius apareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida, deixa morrer de dor o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que ele vive na posse de uma ventura que nunca até ali conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho lhe mordeu no coração!

Pois é possível ser desgraçado quando eu sou tão feliz? - pergunta tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de ventura que ela atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão cair!

Ai! Cosette, Cosette! Eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! És uma das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! És uma estátua branca que ninguém ousará mutilar e que os séculos verão erguida no teu pedestal de flores! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em vez de seres o Amor fosses o Sacrifício!

Um dia Victor Hugo pediu às neblinas matinais dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que elas coroam a crista das montanhas e... fez Déa (Deusa)!

Que doce, vaporosa e lendária visão!

Não há nela coisa alguma que seja realidade!

Toca na terra de leve; não tanto que pareça filha dela, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguém devotado às dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe na alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que ele a veste!

Abençoada cegueira que faz dois felizes!

Ao lado dela — supremo contraste! — sorri Josiane com o seu sorriso de deusa pagã!

No olho azul da patrícia inglesa cintila em chispas uma diabólica ironia.

Josiane é a amante do impossível! Procura o que nunca ninguém achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titã, ou de um Cíclope, o amor de Apolo ou de Polifemo!

Estranha figura, produto doentio de uma noite de febre!

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponina, Cosette, Déa, quantas figuras radiosas, quantas humanizações esplêndidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga dúvida, nas horas em que as misérias que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais desolado e mais escuro olhemos para elas!

Dir-nos-ão os poetas de hoje que elas não existem, e, o que é pior, que elas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem estéril a arte que só trata de rebaixar o que em nós é de mais elevada essência, e só quer que vejamos a fatalidade brutal do instinto, onde víamos antes a fatalidade mais nobre do sentimento.

Não acreditemos o que eles nos dizem, porque na sua preocupação exagerada do horrível, eles mentem muito mais do que os outros mentiam na sua preocupação exagerada do belo!

Estes, reunindo todos os vícios e sordidez que encontraram dispersos numa só figura, conseguem apenas criar... um monstro, um ser híbrido e infecundo que a ninguém aproveita!

Os outros, sintetizando numa filha do seu gênio as harmonias, as feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza, conseguiram alguma coisa mais!

Criaram o ideal imutável e eterno e ensinaram-nos a fitar nele os olhos da nossa alma, e a invoca-lo como um consolo adorável nas nossas horas de desalento e de agonia.
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Notas
* Melusina = é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Carolina Ramos (Mundo Cão)

O mundo cão, que nomeia a crônica, refere-se ao mundo restrito de um determinado cão vira-latas que, talvez, nem o hábito de virar latas tenha.

Neguinho é o cachorro mais estranho que já vi! Ninguém, por mais amor que lhe dedique, poderá acha-lo bonito.

-Perdão! Ante a veemência dos protestos cá de casa, volto atrás. Há quem o ache bonito, sim... E gosto não se discute! Ponto final!

Carinhosamente chamado por todos de Neguinho é ele qualquer coisa assim como fruto híbrido de cão e javali, caso isto fosse possível.

Pelagem preta e rala, fiapos brancos aqui ali, topete espetado a descer-lhe pelo dorso, dão-lhe por vezes o aspecto de um cavalinho nanico a trotar solitário pelas ruas, crina arrepiada como crista de moicano.

Mistura braba! Por conta daquele topete, é conhecido também, por Punk, Supla, Elvis e até Vovozinho, mas o nome oficial e carinhoso, concedido pela maioria, é mesmo - Neguinho.

Neguinho vive na rua. Não digo qual delas, para não lhe devassar o endereço. Deve ter dono, mas, prefere a liberalidade das calçadas. E se não é de alguém, é porque é de todos.

Certo é não lhe faltarem carinho e alimento, já que de índole mansa e sem ser magro nem gordo, dá provas de não passar fome. A quem lhe estale os dedos, Neguinho acompanha, com gosto, em curtos passeios, voltando sempre ao ponto de partida, ainda que só.

Todos os portões são seus. Guarda-os, sem discriminação, com igual zelo e sem agressividade ou preferências. O brilho úmido dos olhos escuros cativa simpatias e gera defensores, mesmo entre os que lhe negam total ausência de atributos físicos.

Aceita afagos e os retribui com sobriedade. Por outro lado, mostra total indiferença a quem por ele passe sem lhe destinar um simples olhar.

De boa paz, Neguinho não lesa, não trai, não rouba, não agride.

Necessário dizer que nem sempre colabora para o asseio da rua que lhe serve de lar. Mas por que acusar-lhe a displicência, fruto de sua "viralatice" praticamente imposta?! – Cachorrinhos bem nascidos e bem cuidados, frequentadores assíduos de lojas pet, comportam-se da mesma maneira, em seus passeios diários, com direito às mesmas paradinhas sob as mesmas árvores das calçadas, ou frente aos mesmos postes, que, impassíveis, recebem sem protestos a costumeiras regas!

O agravante é que, aqueles cachorrinhos vips, na maioria das vezes, passeiam acompanhados por gente que nem liga para o estrago feito na sola dos sapatos do público passante. E quem reclama gasta seu latim sem encontrar eco, porque as coisas continuam do mesmíssimo jeito, embora com sadias ressalvas. Por isso mesmo, palmas e cumprimentos para quem, civilizadamente, vem munido com aquele discreto saquinho plástico.

Neguinho é cão dócil e inteligente. Não se sabe porque, até bem pouco, era poupado pelo laço cruel da famigerada "carrocinha", hoje motorizada, terror dos cães sem coleira e abominada pela criançada do mundo inteiro, desde tempos remotos.

Mas... a sorte tem os seus dias de cochilo. E, num certo dia, lá se foi o cãozinho em questão dar um passeio até o depósito, exposto ao risco de enfrentar o corredor da morte. E sem culpa alguma! Arrepia imaginar quanta gente muito menos digna, anda solta por aí, aprontando barbaridades! E, o meigo Neguinho, preso!

Na verdade, a rua ficou mais pobre com a ausência dele. Ficou bem mais sem graça, sem a ronda solitária daquele animalzinho meio-cão-meio-javali, com topete moicano e trote de cavalinho nanico.

Contudo... foi por pouco tempo! Logo, a mão caridosa da dona de um daqueles portões vigiados por Neguinho, foi busca-lo, trazendo de volta ao convívio do bairro aquele estranho exemplar, não muito primoroso, do "melhor amigo do homem" para gáudio dos que tanto o estimam – seja ele o Punk, o Supla, o Elvis ou, simplesmente, o Vovozinho!

Resta ainda um receio plenamente justificado: - tudo, depois da primeira vez, parece ficar mais fácil. E não será surpresa se, enquanto estas linhas são escritas, Neguinho, esse cãozinho querido, ande de novo a driblar funcionários da Prefeitura, confundido como cão vadio - o que, na realidade, nunca foi!

E o receio é plenamente justificado! - Afinal, neste mundo cão, em que o mais sagrado direito de viver em paz é profanado pelos próprios homens, mesmo um pacato e inofensivo cachorrinho, fiel e espontâneo guardador de portões, calmo amante da liberdade, bem pode não ter vez, enquanto, paradoxalmente, tantos outros, cujos atos estão bem longe de serem recomendáveis, gozam de plena liberdade para dar curso aos seus mais degradantes instintos.

Mas... o fecho, desta vez é bastante otimista: - Notícias recém-chegadas contam que Neguinho finalmente foi adotado e, há algum tempo, curte sua feliz velhice, junto à bondosa família que o retirou das ruas.

Que assim seja!!!

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo o que é mal começado...)

NESSA MANHÃ ensolarada acordei suando em bicas.  Liguei a televisão no canal que assisto diariamente. O desgranhento do repórter jogou para cima de mim um caminhão de notícias sem eira nem beira. Se não sou esperto, acabava atropelado por um ônibus desgovernado na sua trajetória malfeita. O bruto, quase acabou com os cornos em um poste que morava numa calçada do passeio público. A armação de concreto, safa como um gato, deu um pulo fenomenal, deixando, entretanto, o transformador, lá no topo, com os bugalhos espantados de medo e terror. Sem mais delongas desliguei o aparelho, tomei um banho, me vesti e desci para a padaria onde tomo meu café matinal. A bebida, para início de conversa, estava deliciosa. O pão com gosto de recém-saído do forno, a manteiga sem ranço e a xícara –, novinha como saiu do ventre da caixa onde se abrigava. 

A xicara me encarou com uma tez indescritível. Não parou aí. O pires lavado com esmero, deu a impressão de que o responsável pela lavagem das louças lá nos cafundós da cozinha regurgitava de bom humor. Somente uma coisa não coadunava com o espírito gracioso do dia indubitável. Olhando do recinto para fora, o céu lá em cima me parecia ter esquecido de se vestir com nuvens de boas-vindas. Foi nesse começo de dia (um pouco antes das oito,) eu vi e não só vi, conheci a Bianca. Ela entrou estabanadamente no amplo salão com um guarda-chuva encharcado de calor pingando um amontoado de sorrisos tímidos pelos passos que imprimia sobre o chão de ladrilhos brancos. 

Seus olhos verdes como alfaces prontas para serem colhidas, se faziam inquietos. Num meio que distorcido, encontraram os meus por um breve instante. O sol, num instante fugaz, pareceu ter se infiltrado em sua alma, como um dardo no coração de um pobre coitado deixando-o vulnerável e desajeitado aos cuidados de um amor infinito que se afigurou pronto para leva-lo a um êxtase anunciado. Bianca, apesar da bagagem meio “mala sem alça,” trazia no rosto um enigma indecifrável. Suas palavras ao garçom soaram como notas musicais desafinadas saídas de um piano faltando teclas. Sua risada, uma mistura de nervosismo sem pátria destituído de qualquer tipo conhecido de gentileza. Enquanto esperava pelo pedido, abriu um livro. Percebi que gostava de poesias. O livro, um exemplar de Fernando Pessoa. 

Eu, pelo outro (meu lado,) preferia o silêncio denso e pesado dos romances de escritores dos tempos de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Nossos encontros a partir de então, passaram a ser somente ali na padaria. Esbarrões moldados ao sabor de xicaras e xícaras de café com leite, sob o pretexto de discutirmos literatura. Ele falava sobre Vinícius de Morais, Cora Coralina, Ferreira Gullar e, de roldão, emendava sobre o verdadeiro sentido da vida (qual seria?!), a juventude esquisita, os tempos difíceis, enquanto eu me perdia na textura do açúcar se dissolvendo nas bebidas costumeiras das engraçadas tiradas humorísticas de Luiz Fernando Veríssimo. Às vezes, as nossas mãos se tocavam num lançar quase acidental, e eu sentia um arrepio meio inteiro, um calafrio a percorrer desordenadamente a minha espinha – não só a dorsal. 

Nessa troca de poetas e escritores, entretanto, havia algo errado. Bianca nunca mencionava o futuro como uma coisa gostosa de se ver e sentir. Não falava sobre planos, sonhos ou o que poderia ser construído num vindouro às portas do nosso começo de conhecimento.  Ela vivia num presente envidraçado, como se o passado e o futuro fossem apenas sombras distantes por detrás de espessas coberturas de vidros. Eu, tolo, meio que atordoado, uma besta dos pés à cabeça e vice-versa, me deixei envolver por essa dança tresloucada de passos incertos e toques furtivos de dedinhos bobos em lugares consentidos. Nossos beijos se assemelhavam às chuvas de verão: intensos, efêmeros, e cheios de promessas que em nenhum momento tinham a satisfação de se fazerem verdadeiramente reais. 

Nessa coisa de pega, me larga, me esmaga e me domina, um engraçado detalhe me encafifava os fundilhos do peito. Quando o sol se escondia, Bianca se exauria. Mergulhava numa espécie de buraco sem fundo. De cabeça, a criatura afundava. Mirrava, esvanecia, como éter em recipiente sem tampa. Do nada, evaporava. Em seguida, não atendia minhas ligações, não respondia às mensagens via whatsapp. Passei a me sentir como uma folha seca levada pelo vento (igual aquela canção do Amado Batista). Sem rumo, sem destino, sem porto onde atracar meu jegue –, digo onde amarrar meu barco. Me resguardei. Dessa forma meio que insondada e curiosa –, ou dito de maneira mais abrangente –, alienígena e esquisita nosso relacionamento mal começado se arrastou por seis semanas. 

Eu, no calor da felicidade, esperava por ela, como quem se debruça na folha do próximo capítulo de um livro inédito, cujo final me parecia ser emocionante. Mas Bianca nunca se mostrou como uma personagem de carne e osso, bem escrito e com epílogo que deixasse saudade. A custo penoso, a poder de remédios com bulas de noites passadas às claras, cheguei à conclusão de que aquela pessoinha não ia além de um rascunho, ou de uma história incompleta. Assim foi até que num sábado (mesma mesa onde nos sentamos pela primeira vez) ela apareceu com um olhar de peixe morto, o semblante cheirando a robalo triste e uma carta nas mãos. “Preciso cair fora!” – disse. E emendou: “Ganhar o mundo. Me embrenhar por outros ares ainda não respirados pelo meu nariz.”’ Vomitou assim, na lata, sem rodeios. “Não sou uma excelência em finais felizes.”  

Cabisbaixa, o pranto rolando e fazendo sulcos na pele, Bianca foi-se. Perdão, Bianca se foi. Deixou-me como acompanhamento o gosto do café com leite não doce, mas amargo e a sensação do pão dormido e com manteiga estragada, e pior, a certeza de que o amor é como um texto inacabado: cheio de vírgulas, pontos de interrogação e reticências em lugares errados. Penso, agora, com meus "encafifamentos": talvez tenha sido melhor assim. Afinal, sem final, nem todas as histórias merecem um epílogo radiante, vestido à rigor, com desenlaces impecáveis. Desfechos neste patamar se enquadram mais para Lisa Kleypas, Julia Quinn e Ariano Suassuna. Nesse vácuo vazio, como o daquele dia de manhã ensolarada, me lembro de Bianca e seu guarda-chuva. 

Recordo-me como se fosse hoje, de suas palavras desafinadas, do seu sorriso tímido. E percebo que, às vezes, os relacionamentos iniciados são como crônicas de um autor ao acaso: intensos, efêmeros e eternamente marcados em nossa memória por uma péssima sensação de que fomos esquecidos e ludibriados ou confusos. O mais degradante é que logo ali na próxima esquina, aparecerá um ônibus sem freio, à cata de um poste de luz atrelado a um transformador com a fuça de uma mula paralítica sem canja; de pobre sem picanha na mesa do almoço e fechando o ciclo. Nada além de uma formosura apodrecida em total e profunda caminhada a passos largos para a cidade dos que saboreiam capim pela raiz.    

Fonte> Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Arthur Thomaz (Angel of the Morning – O Azarão)

Nasci nas sofisticadas cocheiras de um famoso Jockey Club. Um garboso potrinho, orgulho de minha mãe. Deram-me um nome lindo em inglês, mas não entendia o porquê todos me chamarem um pouco tempo depois de “Azarão”.

Eu nasci bem cedinho em uma manhã fria, dando trabalho a um veterinário, que chegou mal humorado, então não sei se ironicamente ou não, me colocaram o nome de Angel of the Morning.

Como eu era muito forte e desenvolvido, quando chegou a época do treinamento, fui designado a um aprendiz de jóquei muito levinho e bom cavaleiro, o que me agradou bastante.

Treinávamos todos os dias e ele me deixava correr solto para depois me ensinar a poupar esforços em percursos de longa distância. Sempre após os treinamentos, ele me dava uma pequena cenoura, que furtava da cozinha do Jockey.

Na época em que fiquei apto à primeira corrida, estranhei um fato: não era o meu aprendiz que iria me conduzir, e sim um jóquei profissional. Querendo correr solto para ganhar o páreo, percebi que ele me retinha com as rédeas, não me impulsionando. Estranhei demais aquilo, mas como os leitores podem notar, eu não posso falar com os humanos, portanto, não pude reclamar com ele.

E isso repetiu-se por muitos páreos e eu nunca conseguia chegar à frente.

Quando se aproximou um famoso grande prêmio, eu notei a mudança de comportamento do jóquei, deixando-me correr solto e ganhar dois ou três páreos sem importância. Não podia imaginar que era para eu poder ter um handicap que me habilitasse ser inscrito em Grandes Prêmios, entrando como azarão na prova. Isso, em caso da minha vitória, faria render uma pule altíssima, o que ocasionaria muito lucro para esses desonestos do turfe.

Comecei a entender o que acontecia nos subterrâneos dos Jockeys Clubes.

Exigi ser montado pelo amigo aprendiz, derrubando todos os jóqueis que teimavam em subir em minha sela. 

No dia da grande corrida, acordei já com um plano traçado. Ganhei o páreo por uma cabeça, o que me transformou em celebridade. Meu amigo aprendiz também tornou-se um rico e prestigiado jóquei. Fui transferido para a maior e mais confortável baia do pavilhão das cocheiras.

Comecei a colocar meu plano em ação, decidido a não me prestar a essas falcatruas no mundo das corridas. No primeiro treino, simulei uma lesão na pata dianteira, começando a mancar. Pânico geral, com a imprensa vindo fazer reportagens. Equipes de veterinários, até estrangeiros, a examinar-me. Dezenas de exames radiológicos e ninguém conseguiu descobrir a razão da “patologia”.

Expliquei ao meu amigo que não se preocupasse comigo, pois tudo era parte de meu plano. Rimos muito da situação. Fui, então, retirado das corridas e colocado em um haras especializado em reprodução animal.

Hoje, corro solto pelas pradarias, sem preocupações, e de vez em quando, sou requisitado para a colheita do meu valiosíssimo sêmen. Recebo a visita constante de meu agradecido amigo, que mantém comigo longas conversas, acompanhadas das deliciosas cenouras que ele sempre traz para lembrar os velhos tempos.

Ah! Volto a mancar sempre que aparece por aqui, no haras, um veterinário do Jockey.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Artur de Azevedo (In extremis)

O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos. lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal.

Quero dizer que Gilberta - era este o seu nome - se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem condição certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambujens (pequenos lucros) adventícias.

O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.

- Deixe-a! – opinou o Viegas. – Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...

O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.

O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.

- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...

Gilberta corou e sorriu.

- Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem for que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não me parece que este homem te convenha, não tem posição social definida, não ganha bastante para tomar sobre os ombros quaisquer encargos de família, e - deixa que teu pai seja franco - não é lá muito bem visto no comércio... Não és uma criança nem uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.

Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.

De nada valeram os conselhos paternos.

Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermão, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!

Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Brígido sacrificou-se em pura perda.

Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.

Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento, depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três contos de réis. Já tinha posto alguma coisa de parte e contava mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.

O casamento ficou assentado.
* * *

O Major Brígido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.

Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises (expectoração de sangue) eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.

Nesta situação extrema, o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Brígido, e disse-lhe:

- Meu velho, eu vou morrer...

- Deixa-te de asneiras!

- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...

- Não se lembre agora disso!

- Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para as mãos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este não se oporá, talvez, a uma fortuna da qual participará mais tarde. A situação desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma moça solteira, casar-se-á com uma senhora viúva...

E acrescentou:

- Viúva e virgem.

O Major Brígido recalcitrou; que haviam de dizer? Seriam capazes de inventar até que ele abusara de um agonizante! Mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é
sagrada.

Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso.

A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:

- Meu pai, faça o que entender!
* * *

Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres, testemunhas, escrivãos, tabeliões, sacristãos, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.

As hemoptises tinham cessado.

Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.

Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.

- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.

- Mas as hemoptises...

- Que hemoptises, que nada. Hematêmeses (vômitos de sangue da mucosa gástrica), isso sim!

Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem à Europa com sua mulher. Era preciso por uma barreira entre ela e o Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlântico?
* * *

A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.

Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.

Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.

- Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!

- Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...

Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:

- E creia, Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos Cariocas. Publicado em 1928. Disponível em Domínio Público http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000080.pdf