quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Argentina de Mello e Silva (O Bom Humor nas Trovas)


A criança encanta, enleva,
mas, com seu ar inocente
quando a gente crê que a leva
ela está levando a gente!

A mulher fala a verdade
(sem hesitação nem briga)
se lhe perguntam a idade,
não a sua… mas, da amiga!

A mulher tinha a mania
de achar coisas no abandono,
até que encontrou um dia
um apartamento sem dono.

À pintura antiga e eterna
hoje chamam de caduca.
Mas quem gosta da moderna
deve ser “lelé da cuca”.

“Aqui jaz na lousa fria
o José João da Espinhela”
(Foi ao encontro de Maria
e encontrou o marido dela).

Briga tanto o Zé Noronha
com a esposa – que o filhinho,
por vingança da cegonha
sai a cara do vizinho.

Casa a Maria do Céu…
e que grande trapalhada…
porque segurando o véu
segue toda a filharada!

Coleantes, envolventes,
há mulheres perigosas.
Mas, também, como as serpentes
nem todas são venenosas.

Com seu destino sofrido
nunca a mulher colabora:
chora por não ter marido
e quando tem… também chora!

Curitiba é uma risonha
cidade de muito brio,
porque o amigo da vergonha
é aqui chamado: Frio!

Diz a mulher ao marido
(velho, bem intencionado)
“daqui a meses, querido
vai nasceu teu enteado”.

Era Amélia. Ele quisera
ter mulher assim somente,
até saber que ela era
a Amélia de muita gente.

É triste lembrar (se é!)
e à nossa vaidade ataca:
que o homem foi chimpanzé
e a mulher já foi macaca…

Falam tanto mal de sogra,
muitas vezes sem razão;
pois no paraíso a cobra
não era sogra de Adão.

Hoje a moda, com jeitinho,
tapa apenas de relance.
Se despenca o tal trapinho?
“honi soit qui mal y pense”! *

Homem velho, ainda matreiro,
por qualquer mulher se engraça.
Mas é só cão perdigueiro:
corre atrás, não come a caça.

Mesmo que ele seja “um pão”
quando se torna marido,
ela tem indigestão:
como enjoa o pão dormido!

Moça moderna, a Clarisse,
com seu ar desinibido,
quanto mais cresce em burrice
mais encurta seu vestido.

“Não tem profundeza a trova”
disse alguém – profunda asneira!
Se há muita poesia nova
mais rasa do que peneira!

No enterro de seu Pessoa
há um aviso aos ignotos:
“ Favor não trazer coroa,
só ramos cheios de brotos”.

Nua, a Godiva, coitada!
Causou surpresa incomum;
ver hoje mulher pelada
não causa “suspense” algum.

O casamento é um remanso
início de um doce lar,
onde ele vai pra descanso
e ela pra trabalhar!

O homem pensa, sofisma,
cria problemas, dá murro.
O burro, calmo, nem cisma,
qual é, dos dois, o mais burro?

Paquerador o Andrada
na moto ele tanto ronda,
que até a Maria Quadrada
já está ficando redonda.

Qualquer dia Dona Lua
diz ao ianque que a aporrinha:
“ Fica, bicho, lá na tua
que eu também estou na minha”.

Quem tem mulher monumento
e vizinho por ali…
lembre o antigo testamento:
mate primeiro o Davi.

Se o julgamento ao alheio
se estampasse na fachada,
o mundo estaria cheio
de muita cara quebrada.

– Seu Delegado examine
o que da luta sobrou;
– Qual foi o móvel do crime?
– Isso o morto não falou.

Tanta pílula espalhada…
tanta gente sem-vergonha…
que uma lei foi promulgada
dando férias à cegonha.

Treze pontos, bem contados,
na esportiva, que alegria!
Mas, depois, mil afilhados,
quem deles me livraria?

Vai a Paris, por capricho,
e volta esnobando a dona:
“ Fui ao Louvre. Quanto bicho!
Mas não era “lisa a mona”.
_________________________
Nota:
* Honi soit qui mal y pense é uma expressão em francês que significa Envergonhe-se quem nisto vê malícia, muito usada em meios cultos. Também é o lema da Ordem da Jarreteira, comenda britânica criada pelo rei Eduardo III de Inglaterra, no tempo das Cruzadas. E um dos lemas do Reino Unido, estando estampado em sua bandeira.

Diz a lenda que, em 1347, durante um baile, a Condessa de Salisbury, amante do mesmo Eduardo III, perdeu a sua liga, azul. O Rei mais que depressa recolocou-a, sob o olhar e sorrisos (cúmplice) dos nobres. O Rei grita então (em francês, que era a língua oficial da corte inglesa) "Messieurs, honni soit qui mal y pense! Ceux qui rient en ce moment seront un jour très honorés d'en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement." (Maldito seja quem pense mal disto! Os que riem nesta hora ficarão um dia honradíssimos por usar uma igual, porque esta liga será posta em tal destaque que mesmo os trocistas a procurarão com avidez).

No dia seguinte cria a ordem da Jarreteira, tendo como símbolo uma liga azul sobre fundo dourado, que ainda hoje é a mais prestigiosa ordem do Reino Unido, tendo somente 25 membros e cujo Grão Mestre é o monarca da Inglaterra. (wikipedia)

__________________________
Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

ALTO e IHGM (Noite do Café-com-Letras, 14 de dezembro)


A Academia de Letras de Teófilo Otoni e o Instituto Histórico e Geográfico do Mucuri têm a honra de convidar Vossa Senhoria e família para a sessão especial denominada Noite do Café-com-Letras, com a seguinte programação:

Lançamentos literários:

Somos todos mais de um: Reflexão e Poesia
Luciano José Schirmer de Oliveira

Diário de um menor abandonado
Salvador Araújo

Contestado: Embate fraticida entre Minas Gerais e Espírito Santo
Administração de Recursos Materiais e patrimoniais: um enfoque prático
Wallace Gomes Moraes

Herdeiros das origens: um estudo das relações entre arte erudita e arte popular
Rasgos na Alma: ode ao Vale do Rio Doce
Edileila Portes

Transcenda: superando seus limites
Marcélia Aguiar Ferreira

Revista Literária Café-com-Letras
Tema: Palavra, espelho de emoções

IHGM: 
Lançamento da Coleção Resgate da Memória: Livros Essenciais

Edição digital:
Notas Históricas do Município de Theophilo Ottoni
A Bandeira de João da Silva, o Mestre de Campo, o Todos os Santos e os selvagens do Mucuri
Reinaldo Ottoni Porto

100 anos de colonização alemã em Teófilo Otoni
Max Roth

A Circular aos eleitores mineiros
Theophilo Benedicto Ottoni

Recepção e posse de sócia correspondente do Instituto Histórico
Edileila Maria Leite Portes - Governador Valadares/MG

Entrega de Cestas Literárias
Instituições da área da educação e cultura do município e Região

Homenagens Especiais

Data: 14 de dezembro de 2019 (sábado)
Horário: 19:00 horas
Local: Plenário da Câmara Municipal

Aluísio de Azevedo (Casas de Cômodos)


Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquece; um tipo digno de estudo - é o "dono de casa de cômodos"; mais curioso e mais completo no gênero que o "dono de casa de jogo"; pois este ao menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir à glória, ao passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo, isento da pecha de mal procedido.

Quase sempre forasteiro, exercia dantes um ofício na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas, percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do ofício e de fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casario de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora o verás!

Como na Capital Federal há mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cômodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efêmeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios, limpa-trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa pobre gente, rara quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.

Mas, por entre a aflita farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boêmio.

O poeta boêmio é para o alugador de cômodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta boêmio vive da desgraça e da glória de ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora, kneippeando* pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos coradouros das lavadeiras em fúria.

Esse é o anjo mau da casa, o terror dos vizinhos, o mal querido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta coisas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem.

Esse nunca paga.

Mas que importa o calote de um boêmio, cujo quarto era pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinquenta e os cem mil réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cômodos pagar o aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?

E assim vai vivendo o esperto forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para ele.

Lá um belo dia de fim de mês, um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha, e o lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre um segundo estudante, e um terceiro e um quarto seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo Correia, o voo do companheiro e cá vão ficando no pombal as meias cômodas, as estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior*. E outros, e outros inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto

Não já pela janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como despojo de luta, os trecos que constituíam a sua mobília.

Então, o dono da casa de cômodos começa a anunciar "Quartos mobiliados" e começa a cobrar aos novos hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.

São sempre os inquilinos quem guarnece de móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama "Casa de pensão" só vai um passo, e a coisa faz-se quase sempre do seguinte modo: - Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os aluguéis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.

Entre estes há sempre uma quitandeira de quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.

Assim chega a empresa ao seu completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso, acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um dia, farto de aturar o Brasil, passa com luvas o estabelecimento e retira-se para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a preciosa quitandeira ao seu substituto.

E, quando algum dos inquilinos fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos em "sua casa".

Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma coisa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como verdadeiro dono.

Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da "sua casa", vá, mas nem isso acontece, porque quando os inquilinos são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.

Entrássemos lá agora, neste instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clichês. E, se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos escritórios de todos os gêneros.

Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o locador? O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, a babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez: "Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à caça!"

Todavia, certo é que dentre toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social em nosso meio.

Será justo? Não sei, mas. parece-me que o direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.

Que diabo! não vale a pena fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!
__________________
Glossário
Belchior - brechó.
Kneippeando - palavra derivada do alemão, frequentando tavernas, bares, botequins.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Contos. Biblioteca Virtual.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 138


Carolina Ramos (Pretensão)


Peguei o papel, a caneta e sentei-me ao lado da máquina, disposta a escrever. A hora da compulsão não pode ser desperdiçada, que as coisas que vêm nem sempre voltam.

O Natal aproximava-se. Época em que as mãos femininas, solicitadas em demasia, deixavam-se levar pela absorvência dos afazeres domésticos, a ver escapar por entre os dedos o tempo roubado às repousantes fugas do espírito. Antes que a exaustiva faina do limpar, arrumar, coser, enfeitar e servir, começasse, permitia-me algumas concessões, como se criar e escrever fossem guloseimas antecipadas.

A máquina engoliu a folha de papel, devolvendo-a imaculada do outro lado do rolo, vítima indefesa da agressividade tecnológica a ser acionada pelos meus dedos. O hábito de escrever quase sempre diretamente à maquina, desta vez fora relegado. Decidia-me pelo rascunho. O pretendido conto natalino merecia especial esmero.

Procurava a ponta, o resto viria por si. Teria de ser um conto realmente muito especial, que falasse daquela noite azul, de sublimidade mágica. Única, sem igual! Noite plena, cheirando a incenso, com sussurros de vozes angelicais veladas por emoção indescritível a ser perturbada apenas pelo balido dos cordeiros, pelo coruscar de miríades de estrelas e o ruflar de asas de arminho. Noite em que até as pedras, mudas e frias, pareceriam ter ganho vida, personificadas ao toque do momento redentor. Momento ímpar, profundamente decisivo para o futuro da humanidade! Noite de paz! De paz absoluta!

Ah... eu queria um conto que falasse da chegada do Menino Deus e que o perfume da humildade O apresentasse feliz em Seu leito de palhas, envolto em panos rústicos, acalentado pela insignificância, docilmente assumida, daquele jumento de orelhas longas e pela ruminante meiguice de uma vaquinha mansa.

Mas para isso, eu queria, com urgência, verbo de ouro e pena brilhante para descrever com fidelidade a inocência do sono do Menino-Luz, velado pela ternura da Mãe-Pureza e pela nobre solicitude do Esposo castíssimo, lídimo modelo de bondade e compreensão!

Ah… sim. Eu queria escrever não um conto qualquer, vivenciado por personagens banais do dia-a-dia, mas, algo transcendental, que há muito fervilhava em minha cabeça, sem encontrar fórmula ideal... nem palavras dignas, dentro daquela perfeição que a mim mesma, pretensiosamente, impunha.

E, afinal... a frustração inevitável: — eu queria... sim, eu queria tanto... e tanto exigia de mim que, definitivamente acabei por não escrever coisa alguma!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 2


LÍRICA Nº 13
   
Afinal me surpreendo
de que ainda insista,
ainda tente.
O que? Se nada adianta.
Se tudo se desfigura
nem bem arranco do coração
e exponho em palavras...
__________________________
LÍRICA Nº 14
   
Exatamente neste instante, que farás? Estarei em ti,
envolvendo-te e conduzindo-te, como estás em mim
neste halo de angústia que é a tua falta ao meu redor?
__________________________
LÍRICA Nº 15
   
Ficaste nua em meus sentidos.

Lembro-me que eras friorenta
e sinto frio por ti.

Em vão tento cobrir-te com a saudade,
falta o amor.
__________________________
LÍRICA Nº 17
   
Se não mentes, como não minto
quando te tenho nos braços
- chega! Para que mais "por quês"?

Para que culpar a Deus
se do mesmo barro nos fez?
__________________________
LÍRICA Nº 18

Não. Não te entenderei. E na verdade
já nada mais importa.

A vida para mim é um intérmino solo...

Como poderei te entender, se me trazes agora
morto, nos braços,
o mesmo amor que há pouco, em beijos, embalavas,
e aconchegavas ao colo?
__________________________
LÍRICA Nº 21

I
Difícil compreender
como se acidulou o que era puro mel...
Tu que eras toda amor, ternura e sonho,
num momento te tornaste
fria, cruel.

II
(Em vão tento gritar ao sofrimento
que me suplicia: basta!)

Até hoje me pergunto a razão por que tu, que eras
a crente humilde e fiel,
de repente, te tornaste a iconoclasta?
__________________________
LÍRICA Nº 23
   
E quem diria, amor, que ao amanhecer
não nos reconheceríamos,
nós que até como cegos
antes nos encontrávamos…
__________________________
LÍRICA Nº 26
                                                      
Não te desejo a felicidade.

Resta-me a inútil convicção
de que já a colhemos.
__________________________
LÍRICA Nº 27
   
Mereço tudo. Tinha de acontecer.
curvei-me tanto a este amor

que passaste por cima,
sobranceira,
e acabaste por nem me perceber...
__________________________
LÍRICA Nº 28
   
Desmemoriados, enterramos este amor
em que lugar?

E ainda bem. Era amor que nasceu só para se viver,
não, para se lembrar.
__________________________
LÍRICA Nº 29
   
No fundo, não acredito que nos despedimos.

Apenas nos afastamos um do outro
por algum tempo,
para darmos ao destino a alegria de nos reencontrar.
__________________________
LÍRICA Nº 30
   
Em vão tento vingar em outras
o amor perdido.

Só consigo ir multiplicando
a tua falta.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Nilto Maciel (O Caso de Amo)


Eis que venho sem demora.
Ap. 22.7.

Mitologia

Gordo e corado carro parou no claro da esquina e dele saltou murmúrio suave de sereia, que penetrou as serenas ouças de bela menina. Sai dos escolhos destes velhos becos e vem provar o doce desta vida. Vem ver que eu tenho mais pra dar que pra tirar. O macio deste pássaro de ouro e o voo aventureiro de meu pulso. Vem, flor mimosa, molhar teu cheiro na brisa desta noite.

E tanto o canto sibilou que a pobre flor sorriu e para o carro entrou.

Embriaguez

Num bar qualquer, um magro, pálido e triste obreiro bebia umas e outras doses de aguardente. Falava da vida e da morte e cuspia blasfêmias nas pontas de cigarro, como se as fomes que os seus olhos viam pudessem ser saciadas com sonhos e ausências suas.

Escolhos

Fugindo das luzes e dos olhos, o carro corria feito criança, em busca dos ermos das praias longínquas. E de tanto buscar, vela que a doçura da fala embalava, a lua os iluminou entre o cansaço e a luta. E lhes deu paz pra guerra entre o espinho e a flor. E os derrubou no sujo gozo dos corpos nus.

Viagem

Pelos vapores do copo ido, o pálido obreiro no seu barraco aportou. A porta espancou e o choro fino da mulher ouviu. Nossa virgem sumiu pra rua ou pra lua, encantada por moço galante ou leite galático.

Ato

O velho barco na escuridão penetrava as profundezas do mar, em viagem tão de fúria que os olhos da lua se anuviavam. As águas de frias ardentes se fizeram e de vermelho se tingiram. Um grito mudo o sátiro pançudo espantou e fê-lo correr pra longe das areias.

Procuras

Nas vizinhanças e chefaturas a triste mãe e o magro pai toda a noite consumiram, perguntas fazendo e dúvidas deixando, nada encontrando parecido com uns cabelos longos, olhos castanhos, pernas bonitas, sorriso de flor e vestidinho de organdi.

Vagamundo

Girando no escuro da noite, o carro viu a cidade estertorar de cansada e rasgar os lençóis do sonho. Viu as fugas em fugas ligeiras e as estrelas mudarem de cor. E disse graças a Deus quando o sol piscou o olho entre as brancuras edificadas.

Alerta

Quando os galos suburbanos cantaram, os pais da menina perdida anunciaram aos filhos dormidos que procurassem debaixo das malas a irmãzinha escondida, pois nas ruas não havia nenhuma com ela parecida.

Primeiro

Antes que o porteiro chegasse, Amo abriu as portas do escritório. O vigia experimentou uma sensação de dormência muito mais forte que a sentida no decorrer do noturno serviço. Refestelou-se o patrão no gabinete e ordenou a si mesmo que não pensasse em nada, a não ser em dinheiro.

E se viu rajá, rodeado de moedas. Coroa de rei e cara de mulher. Caras que se alongavam, rindo e chorando a um tempo, rindo do rei rajá amo de todos, chorando do estupor ante o poder daquele que as mirava com avidez.

Último

Muito tarde foi chegar o operário Valdevino, alegando estar vivendo um momento de terrível aflição, por ter sua filha sido raptada ou fugido na noitada passada. Tal desculpa não quis o gerente ouvir, dizendo simplesmente vá-se embora.

Rixa

Revoltado com o dito, Valdevino procurou o gabinete do patrão, pra contar a mesma história e dizer mal do bajulador. Seu Amo não aceitou a desculpa e gritou-lhe vá-se embora. Valdevino, enraivecido, levantou o punho forte e derrubou o patrão.

Prisão

Alertados pela barulheira, guarda-costas de Amo tomaram o gabinete e desancaram o malcriado. E, por ordem patronal, a polícia chegou e levou acorrentado o coitado Valdevino.

Sonho

Na cela pequena, o operário se enroscou e olhou o mais que pôde para dentro de si. E viu sua filha voltando nos braços-silvas dos anjos, pisando a cabeça grande do dragão-amo-patrão, que tombava desfalecido na cadeira confortável.

Fim

No gabinete, Amo pensou uma vez mais na menina morta e sentiu uma agonia apoderar-se de seu corpo. Agarrou-se ao espaldar da cadeira que girava, como se agarrasse a vida, que fugia, fugia.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo escritor.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 137


Sinclair Pozza Casemiro (Cinquenta Rosários)


Um célebre filósofo contemporâneo e ocidental, B. Mondin, em uma de suas obras mais conhecidas, "O Homem, quem é ele? – elementos de antropologia filosófica", discorre da natureza humana. Transcendente, o homem sempre quer mais, idealiza mais para si mesmo: ser mais bonito, mais virtuoso, mais sábio, mais... e por aí vai. Isso é da espécie humana, mesmo, em qualquer lugar do mundo e em qualquer circunstância, sempre aflorará o desejo, a propulsão que faz essa espécie, nunca satisfeita, buscar, buscar, sonhar, sonhar... eternamente buscar e sonhar. Muitas vezes, a gente vê isso ser provado em casos mais bizarros. Essa tal teoria acaba por dizer o mesmo da teoria do "jogo de espelho" que a retórica, desde Aristóteles até agora a nova retórica, de Perelman, por exemplo, apregoa: na busca do "ser mais" o homem se identifica com padrões, modelos idealizados que, consciente ou inconscientemente espelham,

Daí, um passo pra sedução dar vez à manipulação do discurso, da retórica, dos sofismas... e da busca incontrolável de nossos desejos, os mais estranhos, às vezes.

Interessante é notar que em qualquer circunstância, mesmo, isso pode ser flagrado. Ser mais belo pra uns, mais inteligentes pra outros... e até mais "bandido" pra muitos. Um causo me chamou a atenção, verdadeiro, que eu vivi, duma frustração profunda, dum personagem singular, da nossa região - a COMCAM, Este personagem está vendo a vida passar, agora, crente de que não vai mais alcançar o seu desejo, o seu "ideal" de jovem, tão sonhado. E, cá pra nós, ainda bem...

A visão é de romance nordestino, mas acontece é aqui mesmo, no coração do Paraná, lá pelas bandas de Barbosa, Corumbataí. Quem quiser ver, ainda consegue: está vivo e saudável o maior jagunço que resta na redondeza. Cavalga, no seu sempre companheiro Alazão, cavalo manso, prudente, acostumado aos imprevistos que o dono lhe arruma. A gente estava, na caminhonete, procurando pistas do velho trio dos índios, do Peabiru, muito famoso nas redondezas, mais famoso ainda como "o trio dos jisuíta". De repente, avistamos o cavaleiro, num marrom só, o cavalo troteando, sossegado, desvia a passagem, de pronto. O caboclo vestia uma capa suja, suja, não se sabe precisar a verdadeira cor, só prevalecia o encardido da estrada, que é hoje a continuação de seu lar. Na cabeça, o chapéu velho de couro, carcomido, encolhido e cheio de marcas que o tempo foi deixando, como na pele, que parecia continuar do chapéu, enrugada, marrom, tão judiada. A cena é, vista de longe – pelas costas, e bem de perto - de lado, geometricamente, como um losango marrom.

– Bom dia, seu Rufino!

– Ooua... Oi, tudo bom, homi. É seu Gancedo?

– Sou eu, mesmo, tá? Andando um pouco por aí?

- É, pois é. É o que resta, homi. Avivenu os tempu, qui num tem mais nada pra fazê, só trabaiá pra cume, qui é a sina...

– Tá vivendo sozinho?

– Ah, sim. Ali, naquele ranchinho... A muié perfeiru fícá cos fio, si foi. Os fío di hoji, homi, num arrespeita os pai, qué vive dum jeito qui num é certo, di arrespeitu. Falei; si quisé morá cumigo, tem qui mi arrespeitá. Vive nos mordi qui um homi veve, eis num quis sabe. Num arrespeitá pai, mais não. Num tem arrimo... Perferi dexá i. A muié foi tamém, perferiu os fio. Aqui vou vivenu... Vivo bem... Ali tá minha rocinha, minha casinha. O fazendero daqui, gente boa, num mexe cumigu, não. Meu Alazão me acumpanha,

– Pois é... Seu Rufino... Estava aqui falando para as professoras que o senhor já foi jagunço. Elas não acreditam,

Nessa hora o rosto impassível do cavaleiro estremece e um lance de olhar brilhoso desperta na face até então inalterada:

– Eu? Jagunço não. Seu Gancedo.... quisera fosse... Num cheguei a tanto, não, homi... Num tenhu a metade dum rusaru.

Agora é a professora que pergunta. Entendeu logo que o "status" de jagunço, a que o seu Rufino, pelo jeito aspirara, mas não lograra êxito, dependia do tal rusaru:

- Qui é rusaru, sinhora? A sinhora num reza? Num cunhece rusaru?

– Sim... sim... Mas...

– Pois, óie; jagunço mermo, jagunço, seu Gancedo, tem que tê feito cinqüenta rusaru. Eu feis nem deis... A sinhora cunhece cuma é o rusaru: tem o pai-nossso, as treis ave-maria, adispois mais pai-nosso, mais uma porção de ave-maria, num é? Pois, intão: jagunço dus bom, mermo, é qui compretô os pai-nosso e as ave-maria nuns cinqüenta rusaru. Mais eu num cunsegui, não... Uns deis... sifô.

– Mas não dá tempo, ainda de fazer cinquenta rosários, seu Rufino? Afinal, que rosário é esse?

– É rusaru dioreia, sinhora. Oreia di bugre. Bugre, índio, sinhora... Por aqui tinha tantu dus jagunçu, dus bom, qui mi dexaru na mão... Num restô bugre pra mi dá o gosto di sê um jagunço di verdade. O povo mi chama... Mais num sô, não. Farta munto rusaru... I cadê us bugre? Matado bom tinha essas banda, cabaru logu ca bugraiada, arguns abandonam tudu e fugiru, Us que ficava, morria, memo..

No silêncio da tarde, olhando a vastidão dos campos desnudos das matas, lar dos "bugres" desfeito tão selvagemente, pelos civilizados brancos, pensei não ter podido encontrar maior testemunho do que buscava naquelas andanças. E, levada pela imaginação vi o azulão da floresta escondendo as sagas daquela gente indefesa mais uma vez exposta à cobiça e aos sonhos dos novos bandeirantes deste século passado, encobertos pelas regras desse também novo tempo. E entendi bem como é fácil apagar a memória de tantas barbaridades consentidas por inescrupulosos indivíduos dessa nossa espécie (a escolhida?) que quer e sonha sempre mais... mais... não importa o quê.

Mais ... "rusaru"? Creio em Deus Pai, Ave-Maria! Chega de rusaru, Minha Nossa Senhora das Dores! O próprio Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo há de convir! O mais irônico é que muito provavelmente tenham se utilizado, para as suas proezas, os famosos jagunços, de resquícios do remoto Caminho de Peabiru - "o caminho que leva à Terra Sem Mal".

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 2


BALADA DA ESPERANÇA
Vivo caminhando
à procura de algo que não vem
enquanto a noite é alta
o silêncio é profundo
o céu sem estrelas
me diz de outro mundo.
Num triste sussurro
o vento aparece
trazendo uma voz,
lamentos e prece...
Baladas sem ritmo, sem nome, atroz
doces cantigas,
palavras antigas
momentos passados,
destinos traçados,
no coração de alguém
sou apenas ninguém
chorando, amando,
solitário esperando
a Solidão que não vai
o Amor que não vem…
__________________________
MADRUGADA

Madrugada
  instante de sonho
    procuras em vão
      silêncio presente
        palavras ausentes
          que não voltarão...

          Madrugada
        sonho que finda
      restos de saudade
    esperas inúteis
  momentos perdidos
de felicidade...

Madrugada
  porto do dia
    estrela cadente
      vento parado
        música distante
          amor ausente…
__________________________
NADA MAIS...

Não importa
o sofrimento que tortura
Não importa
que o céu
é infinito de amargura...
Quero apenas
ficar em paz
sozinho
a colher  
os espinhos
das flores murchas
do meu caminho...
Não importa...
Nada importa nesta vida
agora que o sonho acabou
e apenas é ilusão perdida...
Antes
entre sonhos e acalantos
havia a ternura do amor
Agora
que nada mais resta
pouco importa
a solidão
a dor
pouco importa
tudo...
e nada mais…
__________________________
OUVI ESTRELAS
                      
Ouvi estrelas
na quietude imensa
sussurros outonais apenas
Senti calor
num sol sem luz
Gerei palavras
nas águas de azul
Ouvi estrelas
na prece do vento
Compus um sonho
no sono dolente
Evoquei serenatas
na sinfonia da lua
Ouvi estrelas
no segredo dos desertos
Cantei no silêncio
das flores colhidas
Ouvi estrelas
dizendo baixinho
palavras de amor…
__________________________
PERGUNTAS PLATÔNICAS

Povoam estrelas
seres estranhos
se sonhos alcançam
o Amor sempre ausente
Parequemas só nascem
no encontro das mãos
Perguntas platônicas
nem sei
se bem sei
pois
enquanto perdure
parélios coloridos
respostas nas trevas
habitarão minh'alma
e espera
que o tempo
me faça
pantólogo imortal
da estrutura
do nada!
__________________________
PRECOCES PALAVRAS

Pioneiros que buscam
sussurros de paz
que em cinzas de guerra
contemplam o silêncio
Parti à procura
da palavra
mais pura
enquanto é tempo
no instante pequeno
Acelerai os ânimos
em precoces palavras
Pioneiros do mundo
em busca de paz!
__________________________
PRIMAVERAS PERFUMADAS

Há em mim
desejos sublimes
ofertando-me esperanças...
Tesouros ocultos de felicidade
à espera que o tempo passe...

Há em mim
saudades peregrinas
ressuscitando fantasmas...
Restos de tardes mortas
esquecidas no meu passado...

Há em mim
procuras vacilantes, temerosas
trazendo-me, no silêncio dos meus passos
primaveras perfumadas
enfeitadas pelas flores que não nasceram…

Fonte:

Arthur de Azevedo (Epaminondas)


Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.

Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável, por tudo quanto não fosse a expressão exata e cristalina da verdade.

Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de esposo, porque o amava. Casaram-se.

Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientíssimo sistema de não encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.

Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.

Esses receios não se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.

Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.

A esposa sobressaltou-se, coitada, - mas o marido tranquilizou-a com estas palavras:

- Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não sinto por essa mulher senão asco.

- Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário, o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio capaz de transformar o teu caráter!

- Não creias.

- Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!...

- Cala-te! Não digas tolices!...

- Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus não me digas nada! Ao menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Vê como estou nervosa!...

- Isso passa.

Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com ele ao dentista.

De repente abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou como um raio.

- Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!...

E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocote (meretriz) abraçou com veemência e beijou repetidas vezes o seu ex-amante, que em vão forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansão.

- Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!

Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado.

Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia.

O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda.

- É minha mulher! Esconda-se!...

A cocote compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou.

Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.

D. Sidônia entrou no consultório, e, vendo o marido com o colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou:

- Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?...

- Ninguém... nada... bem vês, - balbuciou o Dr. Lacerda.

Houve uma pausa.

O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D. Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato.

Ela voltou-se para o filho:

- Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?

- Uma senhora?

- Que senhora?

- Não a conheço.

- Que fez ela?

- Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai!

D. Sidônia fulminou com um olhar terrível o Dr. Lacerda, que, para disfarçar, atava de novo a gravata.

- Que senhora é essa? - interrogou ela com os lábios trêmulos.

O Epaminondas respondeu pelo pai:

- Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito grande!

- Onde está essa mulher?

- Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...

- Onde?

- Naquele quarto.

D. Sidônia empurrou com o pé a porta da alcova, mas não encontrou ninguém lá dentro: a Esmeralda, praça velha que não se apertava nas ocasiões difíceis, abrira outra porta, comunicando com o corredor, e conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor ruído.

Vendo a situação bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia revistava a alcova, disse baixinho ao filho:

- Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!

E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada:

- Ah! Ah! Ah! Ah!...

- Que quer isso dizer? - perguntou ela.

- Quer dizer que caíste como um patinho!

- Hem?

- Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu grande!

- Mas... para quê?

- Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo resultado da pilhéria...

- Isso é verdade, Epaminondas?

- É mamãe, - respondeu o pequeno com um tom de convicção de quem jamais fizera outra coisa, senão mentir.

- E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?

- Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança à coisa.

- Achas então que sou tola? - disse D. Sidônia sorrindo e sentando-se tranquilamente. - Tolo és tu!

- Porquê?

- Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!

- É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!

Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Revista Florilégio de Trovas (n. 34 – dezembro)


Lançado o último número do ano da Revista Florilégio de Trovas.

Em suas 20 páginas:
 
Trovas do Brasil e Portugal,
 
Trovas com o tema: Respeito,
 
Trovadora Destaque: Leonilda Yvonneti Spina, de Londrina/PR,
 
Mini-biografia atualizada de José Feldman.

Faça o download em pdf, no link:
https://drive.google.com/open?id=1zvyLoSrk27KG0p_cvThDtaEdKsYZNYwH


O tema para a revista de fevereiro é: Fantasia/,
enviar a/s trova/s para revistaflorilegiodetrovas@gmail.com

domingo, 8 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 136


Nilsa Alves de Melo (Natal em Trovas)


A prévia do paraíso
terás, com muita emoção,
num "Bom Natal", efusivo,
com anos de duração!

Deixem que os outros insistam,
comam, acendam mil luzes,
cheios de brilho se vistam
sem lamentar suas cruzes.

É como um Natal de sonho,
de luzes, de animação,
felicidade que exponho
com minha alma e coração.

És luminoso cristal,
Maringá, belo torrão
onde em noite de Natal
soa a paz no coração.

Natal é festa propícia
para que demos as mãos,
e conservando a delícia
de sermos todos irmãos.

Ser bom, mas só no Natal,
é coisa muito sem graça!
Que do começo ao final
do ano: - Todo o bem se faça.

Um Natal cheio de luz
só tem sentido se atesta
que o nosso Mestre, Jesus,
é a estrela maior da festa!

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

Isabel Furini (Ele não me ama)


Não fui convidada, mas estou aqui, observando-o.

Ele vai até a janela, apoia-se no parapeito e olha para fora. Os ruídos dos motores dos carros e ônibus que trafegam pela Alameda Cabral invadem a sala (estamos no primeiro andar). A subida força os motores e o ruído é mais intenso. Há também sons incômodos de buzinas. No quarto só ele e eu. Ele continua a olhar pela janela. De repente, levanta o braço esquerdo e acena com sua mão sem a aliança (a mão direita segura o copo). Ele mostra o copo e faz sinal para que o outro suba.

Na calçada, perto do ponto de ônibus, de camisa listrada e barba sem fazer, um amigo está olhando para cima. Solta uma gargalhada e faz um gesto de negação com a mão aberta enquanto grita: Minha namorada me espera...

Ele caminha até a cozinha, abre a porta da geladeira e, com ar de satisfação, enche novamente o copo. Finge que não estou lá perto dele. Esparrama-se na poltrona verde e liga a televisão. Não quer me olhar, continua fingindo que eu não estou do seu lado. Assiste, sem interesse, a uma das tantas séries policiais sem imaginação - programas imbecis, murmura - e eu olho para ele, esperando que desligue a televisão. Mas não, ele muda de canal.

Será que ele sente prazer em me ignorar? Será que gosta de pensar que fui para sempre? Seu tolo! Adeus, falou quando começou o namoro com a loira falsificada que vendia semijoias. Adeus, disse-me novamente quando namorou a enfermeira com excesso de quilos nos quadris e cabelo avermelhado. Adeus, insistiu quando trabalhava no banco e ficava no bar com o grupo de colegas até duas ou três horas da manhã. Adeus, murmurou quando se apaixonou pela psicóloga de olhos azuis. Adeus, sorriu enquanto dava uns amassos numa mulata que conheceu em um baile de carnaval. Adeus, quando namorou a japonesinha meiga da pastelaria da esquina. Adeuses intermináveis. Adeus, falou pela última vez há duas semanas, no balcão, quando começou a namorar a professorinha da escola estadual do bairro. Mas eles brigaram e eu estou aqui outra vez. Mesmo assim ele me ignora, finge que eu não estou. Permanece sentado na poltrona verde. O que ele espera? Ah! Quer me mandar embora! Gosta de fingir, o safado. E não é o único, não! Homens gostam de demonstrar que são populares. Amados pelas mulheres. Vaidade machista. Porém, não adianta me ignorar, eu sou tenaz.

Ele se levanta preguiçosamente, caminha até a geladeira e pega duas latinhas. Bebe e assiste TV. Bebe a segunda. Traga o líquido com mais rapidez. Outra vez se desloca a passos lentos até a geladeira, mais um copo cheio. Muda de canal. Olha o telefone. O telefone não toca. Ah! Ele está esperando uma ligação. É isso. Lentamente se levanta, deixa a latinha sobre a mesa, pega o telefone e liga para alguém... Dá para escutar a secretária eletrônica, mas ele não deixa recado. Finge que eu não estou. Procura outra cervejinha. Seu caminhar é desengonçado (pode ser o efeito da cerveja). Recosta-se no sofá e pega um jornal do chão enquanto muda os canais.

Eu continuo aqui, olhando-o. Por fim, ele não pode mais me ignorar. Desliga a TV e grita: Que droga! A solidão é minha única companheira. Ah! Finalmente falou meu nome. Obrigada! Muito obrigada!

Epílogo

Eu sou a única companheira que fica quando todos o abandonam. Eu não sou um vento que passa, como alguns pensam. Eu sou uma vibração que ecoa no instante do nascimento e o acompanhará na jornada, até a morte. Sou uma vibração bem próxima da tristeza e do abandono. Uma vibração baixa que se estende desde os pés até o ventre, os ombros, os braços, os ouvidos e os olhos. Uma vibração que contrai o tórax e faz descer a cabeça. E não importa se você tem cargos, títulos, honrarias. Eu enfraqueço os homens. Torno-os crianças desamparadas. Nem tentem fugir de mim, porque eu sou persistente. Na rua, na cama, diante do computador, ao fechar o livro, ao sair do cinema, ao dirigir o carro, em algum lugar você vai pronunciar meu nome. Vai, sim... Em algum momento você vai dizer: Solidão!

Fonte:
Literatura de Isabel Furini

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) III


SÓ SE CHORA POR QUEM PARTE
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 20
 

Choremos por quem parte sem voltar
A ser presença viva à nossa mesa
E desse imenso reino da tristeza
Desça à terra num raio de luar.

Ausente, para sempre, em nosso olhar
Terá em nosso peito a fortaleza
Que guarda a delicada vela acesa
Da memória que brilha em seu altar.

De saudade será a sua imagem
Que se esvai como um barco na viagem
No denso nevoeiro, rumo ao norte.

Só quando a sua face tão inteira
Não nos assomar, sem que a gente queira
Só então foi levada pela morte.

DORMIRÁ NAS BERMAS DAS ESTRADAS
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 42

Dormirá pelas bermas das estradas
O sonho a que ninguém abrir o peito
Definhando ao pó sujo e tão desfeito
Onde passam pessoas apressadas.

Bastavam três palavras conversadas
Num olhar de amizade e de respeito
Pão e sopa na mesa e morno leito
Para o salvar de tão frias facadas.

Um sonho é uma riqueza sem dinheiro
Um impulso tão forte e tão inteiro
Que a vida se converte em "quero e posso!"

Num mundo tão ingrato e tão padrasto
Por vezes, quando tudo já foi gasto
O sonho é o sumo bem que ainda é nosso.

E OS TEUS OLHOS FICARAM MAIS DISTANTES
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.

QUE NEM UM RASTO FIQUE NO CAMINHO
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 122

Que nem rasto fique no caminho
Por onde me perdi, errando os passos
E os meus pés possam ter deixado traços
Quando avançavam sós e em desalinho.

Por mim acompanhado andei sozinho
Com glória diminuta e bens escassos
Cingi os grandes nadas com meus braços
Plantei agrura e quis colher carinho.

Em vão tentei encher meu ser de bem
Degustar o melhor que a vida tem
Mas o meu peito a graça não achou.

Fugaz e pouca foi a rainha vida
Uma estrela cadente que, perdida
Riscou o céu e logo se esfumou...

ANTE A VERDADE PURA E SEM DISFARCE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 192

Ante a verdade pura e sem disfarce
Dos teus olhos interrogando os meus
O coração, nesse instante do adeus
Não logrou fazer mais do que entregar-se.

E vieram as lágrimas juntar-se
Nascidas dos meus olhos tão ateus
Ao enlace dos meus braços pigmeus
Onde o teu colo em dor veio aninhar-se.

O amor falou mais alto nessa hora
Em que tu desististe de ir embora
E voltaste a aquecer a nossa cama.

A lua deu lugar à luz do dia
Das trevas despontou uma alegria
E das cinzas nasceu uma outra chama.

E EU FUI TALVEZ FELIZ SEM O SABER
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 193

Eu fui talvez feliz sem o saber
Quando a felicidade eu procurava
E, cego, via em tudo o que encontrava
A negação do bem e do prazer.

Nessa busca ansiosa pelo ter
A minha energia dissipava
E impotente e incapaz não enxergava
Que o principal da vida é sempre o ser.

O Tempo deu-me a doce regalia
De ver agora claro o que eu não via
Que é quase sempre em vão o que sofremos.

Depois de uma procura tão a sós
Sei que a felicidade mora em nós
Se amarmos o que somos e o que temos.

DOS GESTOS COM QUE AMOR SE MANIFESTE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés" p. 206

Dos gestos com que Amor se manifeste
De todos o sorriso é tão primeiro
Que sendo puro, aberto e verdadeiro
Parece a luz que vem do azul celeste.

Se de um sorriso o olhar se enfeita e veste
O nosso coração bate ligeiro
Parece o peito ser quente braseiro
E de rubor o rosto se reveste.

Quando o sorriso nasce nada é feio
E as almas ficam presas nesse enleio
Que tanta coisa diz sem dizer nada.

Ficam palavras presas na garganta
E aquela que de todas mais encanta
É no fundo da alma que é guardada.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

sábado, 7 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 135


Alcântara Machado (O Aventureiro Ulisses)


(Ulisses Serapião Rodrigues)

Ainda tinha duzentos réis. E como eram sua única fortuna meteu a mão no bolso e segurou a moeda. Ficou com ela na mão fechada.

Nesse instante estava na Avenida Celso Garcia. E sentia no peito todo o frio da manhã.

Duzentão. Quer dizer: dois sorvetes de casquinha. Pouco.

Ah! muito sofre quem padece. Muito sofre quem padece? É uma canção de Sorocaba. Não. Não é. Então que é? Mui-to so-fre quem pa-de-ce. Alguém diz ia isto sempre. Etelvina? Seu Cosme? Com certeza Etelvina que vivia amando toda a gente. Até ele. Sujeitinha impossível. Só vendo o jeito de olhar dela.

Bobagens. O melhor é ir andando.

Foi.

Pé no chão é bom só na roça. Na cidade é uma porcaria. Toda a gente estranha. É verdade. Agora é que ele reparava direito: ninguém andava descalço. Sentiu um mal-estar horrível. As mãos a gente ainda escondia nos bolsos. Mas os pés? Coisa horrorosa. Desafogou a cintura. Puxou as calças para baixo. Encolheu os artelhos. Deu dez passos assim. Pipocas. Não dava jeito mesmo. Pipocas. A gente da cidade que vá bugiar no inferno. Ajustou a cintura. Levantou as calças acima dos tornozelos. Acintosamente. E muito vermelho foi jogando os pés na calçada. Andando duro como se estivesse calçado.

- Estado! Comércio! A Folha! Sem querer procurou o vendedor. Olhou de um lado. Olhou de outro.

- Fanfulla! A Folha!

Virou-se.

- Estado! Comércio!

Olhou para cima. Olhou longe. Olhou perto.

Diacho. Parece impossível.

- São Paulo-Jornal!

Quase derrubou o homem na esquina. O italiano perguntou logo:

- Qual é?

Atrapalhou-se todo:

- Eu não sei não senhor.

- Então leva O Estado!

Pegou o jornal. Ficou com ele na mão feito bobo.

- Duzentos!

Quase chorou. O homem arrancou-lhe a moeda dos dedos que tremiam. E ele continuou a andar. Com o jornal debaixo do braço. Mas sua vontade era voltar, chamar o homem, devolver o jornal, readquirir o duzentão. Mas não podia. Por que não podia? Não sabia. Continuou andando. Mas sua vontade era voltar. Mas não podia. Não podia. Não podia. Continuou andando.

Que remédio senão se conformar? Não tomava sorvete. Dois sorvetes. Dois. Mas tinha O Estado.

O Estado de São Paulo. Pois é. O jornal ficava com ele. Mas para quê, meu Espírito Santo? Engoliu um soluço e sentiu vergonha.

Nesse instante já estava em frente do Instituto Disciplinar.

Abaixou-se. Catou uma pedra. Pá! Na árvore. Bem no meio do tronco. Catou outra. Pá! No cachorro. Bem no meio da barriga. Direção assim nem a do Cabo Zulmiro. Ficou muito, mas muito contente consigo mesmo. Cabra bom. E isso não era nada. Há dois anos na Fazenda Sinhá-Moça depois de cinco pedradas certeiras o doutor delegado (o que bebia, coitado) lhe disse: Desse jeito você poderá fazer bonito até no estrangeiro!

Êta topada. A gente vai assim pensando em coisas e nem repara onde mete o pé. É topada na certa. Eh! Eh! Topada certeira também. Puxa. Tudo certeiro.

Agora não é nada mau descansar aqui à sombra do muro.

O automóvel passou com poeira atrás. Diabo. Pegou num pauzinho e desenhou um quadrado no chão vermelho. Depois escreveu dentro do quadrado em diagonal: SAUDADE - 1927. Desmanchou tudo com o pé. Traçou um círculo. Dentro do círculo outro menor. Mais outro. Outro. Ainda outro bem pequenino. Ainda outro: um pontinho só. Não achou mais jeito. Ficou pensando, pensando, pensando. Com a ponta do cavaco furando o pontinho. Deu um risco nervoso cortando os círculos e escreveu fora deles sem levantar a ponta: FIM. Só que escreveu com n. E afundou numa tristeza sem conta.

Cinco minutos banzados.

E abriu o jornal. Pulou de coluna em coluna. Até os olhos da Pola Negri nos anúncios de cinema. Boniteza de olhos. Com o fura-bolos rasgou a boca, rasgou a testa. Ficaram só os olhos. Deu um soco: não ficou nada. Jogou o jornal. Ergueu-o novamente. Abriu na quarta página. E leu logo de cara: ULISSES SERAPIÃO RODRIGUES: No dia 13 do corrente desapareceu do Sítio Capivara, município de Sorocaba, um rapaz de nome Ulisses Serapião Rodrigues tomando rumo ignorado. Tem 22 anos, é baixo, moreno carregado e magro. Pode ser reconhecido facilmente por uma cicatriz que tem no queixo em forma de estrela. Na ocasião de seu desaparecimento estava descalço, sem colarinho e vestia um terno de brim azul-pavão. Quem souber do seu paradeiro tenha a bondade de escrever para a Caixa Postal 170 naquela cidade que será bem gratificado.

Coisas assim a gente lê duas vezes. Leu. Depois arrancou a notícia do jornal. E foi picando, picando, picando até não poder mais. O vento correu com os pedacinhos.

Então ele levou a mão no queixo. Esfregou. Esfregou bastante. Levantou-se. Foi andando devagarzinho. Viu um sujeito a cinquenta metros. Começou a tremer. O sujeito veio vindo. Sempre na sua direção. Quis assobiar. Não pôde. Nunca se viu ninguém assobiar de mão no queixo. O sujeito estava pertinho já. Pensou: Quando ele for se chegando eu cuspo de lado e pronto. Começou a preparar a saliva. Mas cuspir é ofensa. Engoliu a saliva. O sujeito passou com o dedo no nariz. Arre. Tirou a mão do queixo. Endireitou o corpo. Apressou o passo. Foi ficando mais calmo. Até corajoso.

Parou bem juntinho dos Operários da Light.

O mulato segurava no pedaço de ferro. O estoniano descia o malho: pan! pan! pan! E o ferro ia afundando no dormente. Nem o mulato nem o estoniano levantaram os olhos. Ele ficou ali guardando as pancadas nos ouvidos.

O mulato cuspiu o cigarro e começou:

Mulher, a Penha está aí,
Eu lá não posso...

Que é que deu nele de repente?

- Seu moço! Seu moço!

A canção parou.

- Faz favor de dizer onde é que fica a Penha?

O mulato levantou a mão:

- Siga os trilhos do bonde!

Então ele deu um puxão nos músculos. E seguiu firme com os olhos bem abertos e a mão no peito apertando os bentinhos.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Álvaro Posselt (Tercetos e Quartetos)


Boneca de cera
No quartinho de bonecas
todas outras choram
você foi eleita miss!
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Busca

Encontrá-las eu preciso
Ajudar-me acho que topas
Sei que foi no paraíso
que o diabo perdeu as botas
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Coração quebrado
Relógio à prova d'água
passa o tempo
só não passa a mágoa
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Escrever

Escrever é uma gestação
O poema pode nascer
em nove meses, nove dias ou nove segundos
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Espelho

Você diz que sou pentelho
que com setenta eu estou
ou nunca se olhou no espelho
ou do espelho duvidou!
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Fofoca

Boato gera falatório
vira fofoca e assunto
pois se fosse num velório
acordaria até o defunto!
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Fora de casa

Dentro do congelador
Quer viver à sua maneira
Em cima passa até calor
O pinguim de geladeira
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O médico e o monstro
Sou do sol e sou da lua
As mudanças me consomem
Sou do campo e sou da rua
Meio santo e lobisomem
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Oração de um baladeiro

Ai, meu São Jorge
que o dragão daquela noite
não cruze mais meu caminho!
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Sintoma

A toda hora com furor
No meu peito a dor consome
Eu pensava que era amor
Diz o médico que é de fome
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Transitório

O rio vai embora
para nunca mais voltar.
A nascente chora!
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Via láctea
Neste mundo meu
sou um planeta habitado
no universo seu!
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O amor é eterno - Uma história além da vida
Isso é o cúmulo
o defunto só queria ficar
e não levá-la pro túmulo!

Ela queria compromisso sério
Os defuntos se casaram
na cruz do cemitério

Isso que é gostar
o defunto falou pra ela:
Pra sempre eu vou te amar!

Hoje em dia é uma beleza
ela lava os pratos
e ele arruma a mesa!

Precisa ver que bela ceia
tem até flores e vela
em noite de lua cheia!

Reúnem-se às sextas-feiras
Vem caveira de todo lado
e até as macumbeiras!

E assim a vida passou
Seguindo os passos da rotina
tudo se estabilizou

Veio o primeiro filho
Com as contas e as brigas
a relação ficou sem brilho!

Que tremenda desilusão
ela foi embora com o filho
Ele ficou sem chão

O defunto tanto chorou
depois caiu em depressão
e então se suicidou!

No seu reenterro
prometeu com convicção
"Nunca mais cometo esse erro!"

Mas todo defunto tem sentimento
e não demorou muito
para um novo relacionamento!

Conheceu uma moça bela
de olhos esbugalhados
e já meio banguela!

Como sempre se diz
até no mundo dos mortos
a gente só quer ser feliz!

Fonte:
Recanto das Letras

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O Dedalzinho)

Era uma vez um homem pobre que vivia no fértil vale de Aherlow, junto do lúgubre monte Galtee. Como tinha uma enorme corcova nas costas, dava a impressão de que lhe haviam empurrado o corpo para cima, depositando-o nos ombros. A cabeça estava tão oprimida para baixo pelo peso, que, quando se sentava, costumava apoiar o queixo no joelho. Os habitantes da região tinham medo de se cruzar com ele num lugar solitário, embora o pobre homem fosse tão pacífico e inofensivo como uma criança recém-nascida. Mas a sua deformação era tão pronunciada, que quase não parecia uma criatura humana, pelo que pessoas mal-intencionadas tinham posto a circular histórias estranhas a seu respeito. Dizia-se que possuía profundos conhecimentos das ervas e beberagens, mas, de qualquer modo, não subsistia a menor dúvida de que era muito habilidoso e fabricava chapéus e cestos de palha e vime, angariando assim o seu sustento.

Chamavam-lhe Dedalzinho porque usava sempre no seu pequeno chapéu um ramo de erva-dedal, ou capuchinho-dos-duendes. Em troca dos trabalhos que executava, recebia um cêntimo mais que os outros, pelo que as fantasias a seu respeito decerto se deviam à inveja que suscitava.

Como quer que fosse, certa tarde o Dedalzinho dirigiu-se da cidade de Cahir à de Cappagh e, como a pesada corcova só lhe permitia caminhar muito devagar, quando chegou ao antigo monumento megalítico de Knockgrafton, situado à direita do caminho, já anoitecera. Extenuado, e desencorajado ante a evidência de que ainda lhe faltava muito para percorrer, sentou-se junto dos túmulos para descansar e contemplou, apreensivo, a lua cheia que naquele momento despontava sobre o horizonte.

De súbito, chegou-lhe aos ouvidos uma estranha música subterrânea. Prestou atenção e reconheceu que nunca ouvira nada tão belo — era como o som de muitas vozes unindo-se e misturando-se maravilhosamente entre si, de tal modo que lhe parecia ouvir uma única, apesar de, individualmente, terem sons distintos. A letra do cântico era: «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort.» Seguia-se uma breve pausa e a música era reatada de novo desde o princípio.

O Dedalzinho escutava atentamente e quase não se atrevia a respirar para não perder uma única nota. Deu-se claramente conta de que o canto procedia do túmulo e, embora a princípio lhe proporcionasse um prazer profundo, acabou por se cansar de ouvir repetidamente o mesmo refrão sem qualquer variação. Depois de tomarem a cantar «Da Luan, Da Mort» mais três vezes, aproveitou uma breve pausa, entoou a melodia e fê-la seguir das palavras «Augus Da Cadine!», após o que se uniu às vozes do túmulo e cantou «Da Luan, Da Mort», mas, durante a pausa, acrescentou o seu «Augus Da Cadine».

Ao aperceberem-se da adição ao seu canto espiritual, os pequenos seres do túmulo alegraram-se extraordinariamente e decidiram em seguida trazer para junto deles aquele ser humano cuja destreza musical ultrapassava, de longe, a sua. Assim, o Dedalzinho viu-se levado para baixo com a rapidez de um turbilhão.

Que coisas magníficas viram os olhos da pequena criatura ao descer ao interior do túmulo, flutuando e dando voltas sobre si mesmo, mais leve que uma palha! A encantadora música manteve o ritmo como é devido durante a sua viagem, mas prestaram-lhe maior homenagem, quando o colocaram acima de todos os músicos. Tinha criados ao seu serviço, que satisfaziam tudo o que o seu coração desejava, e deu-se conta de como aqueles pequenos seres o estimavam. Numa palavra, não o teriam tratado melhor se fosse o homem mais importante de todo o país.

Depois, descobriu que sussurravam entre si e tomavam deliberações e, embora lhe agradasse a forma elegante como o faziam, começou a sentir medo. Por fim, um dos pequenos seres aproximou-se e proferiu:

Ai, Dedal, Dedal, Dedal!
Recebe um novo valor!
A tua corcova cair verás
E sentir-te-ás melhor,
E muito contente ficarás!
Ai, Dedal, Dedal, Dedal!

Mal acabaram de pronunciar estas palavras, o Dedalzinho sentiu-se tão leve e feliz que poderia alcançar a Lua de um salto, como a vaca do conto do gato e o violino. Viu com a maior alegria do mundo a corcova deslizar dos ombros para o chão. Em seguida, tentou comprovar se podia levantar a cabeça, mas fê-lo com precaução e prudência, por recear que embatesse nas guarnições daquela enorme sala. Depois, olhou em volta com o maior dos assombros, para se recrear em todas as coisas que cada vez lhe pareciam mais belas. Finalmente, ficou tão cansado de observar aquele esplêndido aposento, que sentiu a cabeça a andar à roda, a vista enevoou-se e mergulhou em sono profundo.

Quando acordou, era completamente de dia. Brilhava o sol, os pássaros cantavam e ele encontrava-se deitado junto da colina dos gigantes, enquanto algumas vacas e ovelhas pastavam pacificamente em redor. Depois de rezar as suas orações, a primeira coisa que o Dedalzinho fez foi levar a mão à corcova, mas não havia nem vestígios dela nas suas costas. Observou-se com orgulho, pois convertera-se num jovem garboso e ágil e, o que não lhe pareceu pouco, viu que vestia roupa nova da cabeça aos pés, o que o levou a depreender que se devia aos espíritos.

Pôs-se então a caminho em direção a Cappagh. Movia-se com tanta elegância e saltava tanto em cada passo, que dir-se-ia que, durante toda a sua vida, não fizera outra coisa. Ninguém que se cruzasse com ele reconhecia o Dedalzinho sem a corcova, pelo que teve muito trabalho a convencer as pessoas de que era realmente ele. E, com efeito, o aspecto também não era o mesmo.

Como se costuma dizer, a história da corcova do Dedalzinho tornou-se conhecida em toda a parte e foi acolhida com girândolas de foguetes. Num raio de muitos quilômetros, toda a gente, nobre ou simples, não falava de outra coisa.

Uma manhã, o Dedalzinho estava sentado à porta de casa, particularmente bem-disposto, quando se aproximou uma mulher idosa, que solicitou:

— Indica-me o caminho para Cappagh.

— Não é necessário, pois isto aqui é Cappagh. Mas de onde vens?

— Da região de Decie, no condado de Waterford, à procura de um homem a quem chamam Dedalzinho e, segundo se diz, as fadas suprimiram uma corcova dos ombros. O filho da minha comadre tem uma que o oprime tanto que acabará por matá-lo. Talvez se livrasse dela, se pudesse empregar um feitiço como o do Dedalzinho. Decerto compreendes agora porque venho de tão longe. Gostava, se for possível, de saber alguma coisa sobre esse feitiço.

O Dedalzinho, que sempre tivera bom coração, contou à velha, com todos os pormenores, o que acontecera: o canto das fadas no interior do túmulo, as quais o haviam aliviado da corcova dos ombros, além de que lhe tinham oferecido vestuário novo da cabeça aos pés.

A velha agradeceu-lhe, profundamente reconhecida e, imersa nos seus pensamentos, regressou a casa, satisfeita e muito feliz. Quando chegou junto da comadre, no condado de Waterford, descreveu-lhe exatamente tudo o que Dedalzinho dissera. A seguir, colocou num carro o corpo corcovado, que toda a sua vida tinha sido pérfido e malicioso, e partiu puxando-o. Tinha um longo caminho a percorrer, mas refletia: "É-me indiferente, desde que ele se livre da corcova." Ao anoitecer, chegou à colina dos gigantes e deixou-o aí deitado.

Hans Madden, assim se chamava o corcunda, não havia ainda muito tempo que se encontrava ali, quando começou a ouvir a música na colina, ainda mais agradável que anteriormente, pois as fadas entoavam a sua canção com a que tinham aprendido com o Dedalzinho — «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Augus Da Cadine» -, sem interrupção. Hans, que ansiava por se desfazer da corcova o mais rapidamente possível, não esperou que elas terminassem de cantar, nem que chegasse o momento apropriado para acompanhar a melodia, como o Dedalzinho fizera. Quando havia mais de sete vezes seguidas que a tinham cantado, pôs-se a gritar sem atender ao ritmo, forma ou maneira de lhe ajustar as suas palavras, «Augus Da Dardine, Augus Da Henace», ao mesmo tempo que pensava: "Se uma adição foi boa, duas ainda serão melhores. Se deram ao Dedalzinho um fato novo, a mim talvez deem dois."

Mas, mal acabava de dizer isto, viu-se erguido pelos ares e arrastado com uma força prodigiosa para o interior da colina, onde as fadas, furiosas, gritando e uivando, o rodearam e perguntaram:

— Quem profanou o nosso canto? Quem profanou o nosso canto?

Uma delas adiantou-se e exprimiu-se assim:

Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!
Mal, muito mal, entoaste
o que por nós era cantado!
Agora, estás aqui apanhado!
E que foi que ganhaste?
Ser duas vezes corcunda!
Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!

E vinte das mais fortes arrastaram até ali a corcunda do Dedalzinho e colocaram-na em cima da do infortunado Hans Madden, ficando tão colada como se a tivessem cravado com pregos de doze oitavos do melhor carpinteiro. A seguir, expulsaram-no a pontapés de sua casa.

Na manhã seguinte, quando a mãe dele e a sua comadre chegaram, ao verem aquele desprezível indivíduo estendido junto da colina, meio morto e com uma segunda corcova nas costas, observaram-no com curiosidade e encheram-se de medo de também ficarem assim. Levaram-no para casa, profundamente aflitas, fazendo pena ver duas velhas tão angustiadas. Pouco depois, esgotado pelo peso da segunda corcunda e pela longa viagem, Hans morreu, deixando atrás de si uma grave maldição para todo aquele que quisesse escutar o canto das fadas.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 134


Isabel Furini (Escravidão)

Fonte: Facebook

Rachel de Queiroz (O Caso dos Bem-Te-Vis)

    

Era um casal de bem-te-vis apaixonados. Voavam e pousavam, naquela primeira fase de amor de passarinho; namoro de asa e bico, entre o céu claro e a copa mais alta das árvores, ai, tão parecido com namoro de gente — com a diferença de que gente não pode voar.

Aliás, não seria o namoro desses bem-te-vis passado entre árvores; bem-te-vis urbanos, seu pouso natural são postes e fios elétricos. Esses dois voejavam e curtiam o amor junto à linha-tronco abastecedora da rede aérea da Central do Brasil, a qual serve os trens com 44 mil volts. Era perto de uma subestação, onde os fios de distribuição (em três fases) ficam muito próximos uns dos outros,

Fios juntos, paralelos — haverá poleiro mais lírico para passarinhos em estado de amor? A bem-te-vi donzela pousou no fio à direita, o bem-te-vi mancebo impetuosamente baixou sobre o fio fronteiro. E, naquela confrontação de fio a fio, trocaram o primeiro beijo.

Jamais, na história dos homens e dos bichos, teve um beijo tão tremendas consequências. Porque os inocentes passarinhos, cada um pousado no seu fio condutor de 44 mil volts, naquela rápida carícia de bico a bico, criaram um curto-circuito. Passando pela frágil cadeia dos seus corpos, a terrifica corrente os eletrocutou; mas o curto também atingiu o aparelho automático que desligou a corrente, paralisando instantaneamente todos os trens. O interruptor automático funcionou como um kamikase — conseguiu interromper a corrente, como era da sua obrigação, mas morreu no posto —, quer dizer, incendiou-se. Segundo diz o jornal, “o fogo foi nele mesmo e não chegou a desligar a energia”.

O sacrifício do automático protegeu os transformadores da subestação; assim mesmo houve tanta queima de fios e outros desastres menores que, durante quatro horas, ficou paralisada toda a rede de trens elétricos da Central do Brasil.

Por um beijo de passarinhos, meio milhão de pessoas — que é esse o número de usuários dos trens da Central no período — ficaram durante meio dia sem poder chegar ao trabalho: só o beijo imortal trocado por Helena e o pastor Páris, que desencadeou o lançamento de mil navios e causou a guerra de Troia, pode lhe ser comparado.

E é por fatos assim que a gente verifica a fragilidade da chamada civilização. Como é que dois bem-te-vis — tão pequeninos que os dois juntos não pesarão meio quilo — podem determinar tão gigantesca perturbação na vida da Metrópole, tal confusão e prejuízo a tão imensa quantidade de homens: meio milhão.

Isso acontece para quebrar o orgulho dos técnicos; eles podem muito, mas não podem tudo, e de vez em quando Deus Nosso Senhor suscita um fenômeno — servindo-se das mais pequeninas e frágeis entre as suas criaturas — no caso dois passarinhos — para pôr em xeque a soberba do homem com as suas máquinas.

A gente vê as imensas composições passando, carregadas de gente até do lado de fora, naquele estrépito de trovão que abala as pontes de concreto e aço — e aí vêm dois bem-te-vis — novo Romeu, nova Julieta — e tocam de leve os bicos numa carícia fugitiva — e as dezenas de trens se imobilizam e os automáticos se incendeiam e vai tudo numa confusão de fim de mundo.

Vocês morreram, é certo, pobre casal de bem-te-vis apaixonados; morreram, mas serviram para provar um ponto importantíssimo de filosofia: de que adianta a arrogância dos homens, se um singelo amor de passarinho tem força para reduzi-la a cinza e fumaça?

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.