quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Monteiro Lobato (Gens ennuyeux*)


— QUERES IR? — indagou Lino, espichando-me um convite. Li: A Sociedade Científica, ahn, ahn... convida, ahn... a conferência versará sobre a História da Terra.

— É, A tese é "catitam vais"?

— Está-me apetecendo conhecê-los aos nossos sábios.

— Sábios — rosnei —, gens ennuyeux...

— Nem sempre — contraveio Lino. — O assunto é magnífico — e depois, que diabo!, uma penitenciazinha de vez em quando, por amor à ciência...

— Pois vamos — resolvi com intrepidez.

— Às oito, rua tal.

— Lá estarei sem falta.
••••••••

Ao assomarmos à porta já as cadeiras do grande salão se pintalgavam de graves sobrecasacas científicas, encimadas por carecas luzidias, em cujo espelho punha gangrenas de luz (perdão, Apolo!) a luz violácea do arco voltaico.

Entramos com religiosa compostura, pisando com passos humílimos o augusto piso do Pagode da Ciência.

No rosto do meu amigo vi uma leve expressão de terror sagrado. Os quíchuas, quando davam de chofre com o Eldorado, haviam de ficar assim...

Lino comovia-se deveras e foi balbuciante que cochichou:

— Sábios, hein?

Sentamo-nos devagarinho e pusemo-nos a olhar. Novas sobrecasacas chegavam, aos magotes de três e quatro, compenetradas, meditabundas. Eram novos sábios de variado estilo. Havia o estilo-fiambre: gente vermelha, com sangue à flor da pele em permanente congestão. O estilo-melado: gênero de importação alemã. O estilo-ball: queijos de Palmira com o vermelho substituído por um palor circular de cabelugens* ralas. O estilo-clorose: rapazes de peito cavo e barba a espontar ingenuamente, macilentos de tez, olhos de bezerro disentérico, em cujas meninas — meninas dos olhos — pareciam boiar hipotenusas de braços dados a binômios de Newton.

À nossa destra suava uma rubra apoplexia alemã, enchouriçada em sobrecasaca de debrum contemporânea do iguanodonte, cujas costuras cediam à pressão das enxúndias* comprimidas; sua mão gordita, recoberta de dourados pelinhos, alisava a grelha cor de fogo como quem alisa um gato de luxo.

Mais adiante, um amplo burguês, barbaçudo, verrugoso, bexiguento, fungava a suar. À sua frente, sorrindo com bondade em meio dum grupinho amigo, uma espécie de criatura do sexo neutro, acondicionada em alpaca, sem um só enfeite e cujos cabelos grisalhos se erguiam em ríspido pericote sob a copa acartolada dum chapéu masculino. Discutia Cuvier.

— É a doutora Mariote... — sussurrou-me o Lino. — Uma sábia sapientíssima!...

Mais além, um oculista de nomeada; depois, um pomólogo*; em seguida um filósofo, uma parteira, um charlata, um lente de geometria, um fisiopsicopatologista.

Nós, miserandos intrusos, vexados da nossa espessa ignorância a dois, comentávamos baixinho, com respeitosa deferência, as efígies hirsutas daqueles paredros* que davam de tu* a Minerva. Lino nem falava: ciciava tatibitate.

Aquela face da sociedade nos era de todo desconhecida. Tudo ali cheirava a novidade. O próprio ar nada tinha do ar comum das ruas: pairava nele um cheirinho sutil a raízes cúbicas.

À frente do salão havia uma comprida mesa em cujo centro o presidente da Sociedade — um rolete de homem cor de salame — cofiava os bigodinhos ruivos, bamboleando no ar pés que não alcançavam o chão. Ladeavam-no dois bonitos secretários a remexerem atas. Sobre a mesa, enfileirada, uma récua de bichos pré-históricos em miniatura — estegossauros, plesiossauros, iguanodontes e um mamutezinho que escancarava a goela vermelha num urro mudo.

— Dlin, dlin, dlin!... Está aberta a sessão — rosnou o presidencial salame.

O secretário mascou a ata — tá, tá, tá...

— Tem a palavra o conferencista.

Corre pela sala o bisbilho* da curiosidade. Galga a tribuna um homem. Roliço e pipote, tem a calva resplandecente, traz casaca, óculos e convicção profunda. Prepara os papéis, tosse. Novo psst! desliza pelo salão. Cai nele o silêncio curioso da expectativa.

— Minhas senhoras e meus senhores! Me parece que a outro e não a mim, que sou o mais modesto membro da Sociedade...

Entreolhamo-nos àquele me com piscadelas gramaticais, e entregamos nossos quatro ouvidos às palavras do Sábio. Após o exórdio da praxe, o orador veste o escafandro da observação, apoia-se no pau ferrado da crítica, encavalga na penca os nasóculos* da análise e, sem tir-te*, cai no mergulho do fundo sombrio das idades. Vai aos períodos eos examinar gneiss* e micaxistos*; mostra exemplares ao auditório, descreve-os com minúcia. Narra como vieram os primeiros vegetais — samambaiuçus enormes e molengos — e como à sombra deles foram surgindo bichinhos tontos, sem experiência da vida, admiradíssimos de verem casa tão grande posta a seres tão pequenos. Fala com a segurança de um feto arborescente, testemunha ocular daquilo, transfeito em sábio moderno. Diz e rediz. Vai e volta — porque o gneiss pra aqui, porque o gneiss pra lá, porque o gneiss, o gneiss, o gneiss...

Depois agarra os trilobitas, os amonitas e mói, remói, tremói, pulveriza os pobres bichinhos, digressiona, gesticula, sua: o amonita... porque o trilobita... não obstante o amonita... bita... nita... e nita e bita, lá borbota* ele ciência pura, híspida, hirsuta, inexorável, num fluxo que berra por tampões de percloreto de ferro.

O tempo corre, e da torneira aberta deflui caudaloso o jorro hermafrodita do palavreado greco-latino. O espelho da sua careca tremeluz de inspiração. Seu dedo pontifical coleia riscos explicatórios. E a linfa científica a jorrar, a jorrar durante quinze, trinta minutos, uma hora, hora e meia...

O esgoelado urro do mamutezinho já não é mais urro, sim bocejo formidoloso*. E não o único. Pela sala outros se escancaram, incoercíveis. A doutora reprime os seus com caretas. Algumas sobrecasacas cochilam. O burguês das verrugas resfolega com maior estrépito e mais bagas de suor na testa. E na tribuna a ciência a correr... a farragem* fóssil a desfilar inesgotável numa sarabanda* sem fim: porque o gneiss, o micaxisto... não obstante o bita, o nita... os conglomerados da Westfália, as superposições devonianas, a sedimentação terciária, tá, tá, tá, tá...

Nesse ponto penetrou na sala um delicioso casal, pisando de leve os passinhos de lã preventivos dos pssts. Ele, alto e elegante; ela, mimosa e feminina, tom exótico de teteia cara. Sentam-se. Ele abre os ouvidos. Ela espevita o lorgnon* e corre os olhos vivos de malícia irônica pela assembleia inteira: pousa-os por fim na figura salpiconesca do orador.

Lino segue-os.

— Que graciosos! — diz, furando-me as costelas a cotoveladas — repara na ironia daqueles dois diamantes negros. Pousam na careca do homem... alisam-na com bonomia malandra... agora descem, examinam o nariz... Riem-se os marotos — e da verruga talvez... Tentam arrancá-la... irritam-se... fogem da penca... examinam o feitio da sobrecasaca. Bom, deixaram em paz o homem... passeiam pela sala... dão com o chapéu da doutora Mariote... Como se riem perdidamente os moleques!

Enquanto os olhos do meu amigo estudam os maliciosos olhos da linda criatura, barafustam-se* os meus pela goela do mamutezinho que o dedo do sábio apontava naquele momento.

— ... e apareceu então — dizia ele — um animal de pelos duros e pretos, de presas recurvadas, cujo esqueleto foi encontrado na embocadura do Iena e se chamou mamute...

Lino arrancou-me de golpe às goelas do monstro e ao caçanje* do sábio.

— Vê como ela boceja com graça.

De fato, a petulante boquinha da moça escondia no leque um bocejo saciado; saciado e contagioso, porque logo em seguida o sociólogo escancarou o seu, o pomólogo lá no fundo abriu outro, e o alemão da nossa direita reprimiu um que prometia levar as lampas ao do mamute.

— Dez horas já! — espantou-se Lino, consultando o relógio. — Há esperanças de fim?

— Qual! — gemi. — Ele ainda está no megatério.

— E é comprido o megatério?

— Enorme. E tem vasta parentela. Só depois de descritos os gliptodontes, os megáceros, os rinoceros e as hienas é que há esperanças de entrarmos na terra do nosso avô pitecantropo. Coragem!

Às dez e mais inda o corrimento paleontológico continuava copioso, sem sintomas de exaustão. Sistemas sobre sistemas amontoavam-se, induções sobre induções, num mascar monótono de realejo elétrico. Nossas nádegas protestavam. Novos bocejos insolentes amiudavam exigências: queriam sair já e já, queriam passagem franca, bocas bem escancaradas — e nós lutávamos por conter-lhes a má-criação.

E o chafariz científico a despejar.

— Há esperanças — sussurrei para o Lino. — Já estamos no Homo sapiens.

— Bendito sejas, ó rei da criação!

Era verdade. O sábio penetrara no homem. Mais cinquenta minutos de seca e pingou o ponto, convidando a assistência a examinar de perto os fósseis amontoados sobre a mesa.

Estrepitaram palmas, e após o uf! de ressurreição encheu o recinto o sussurro do “à vontade”, das cadeiras recuadas, do frufrutar surdo dos capotes enfiados, dos espreguiçamentos risonhos.

— Que gostosura, um fim de seca!

A assistência aflui aos magotes* para junto à mesa a fim de examinar os bichos. Fomos na onda. Todos comentavam, queriam pegar, apalpar os fósseis, cheirá-los, prová-los.

Com um estegossauro de palmo e meio seguro pelo cangote, o sociólogo explicava ao pomólogo “de como pela restauração de Cuvier se tinha ali um elo da vasta cadeia da evolução que Darwin descobrira”.

Ao centro da mesa o conferencista desfazia-se em amabilidades de caixeiro, fragmentando sua ciência e distribuindo-a em pílulas.

— Olhe, doutor — dizia o filólogo —, olhe a baculite de transição de que falei.

E para outro sujeito:

— Já viu, doutor, o magnífico exemplar de hipurite que nos veio de Berlim?

Nisto ouvi ao meu lado um resfôlego adiposo; voltei-me: era o burguês das verrugas, com a toucinhenta consorte pelo braço, a examinar uma lasca de pedra azulega que de mão em mão viera ter às suas. O bicharoco olhava a pedra como quem olha talismã. Não resisti, atirei-lhe a esmo:

— É o gneiss.

O burguês encarou-me com o respeito devido a Quem Sabe e, virando-se para a mulher, repetiu gravemente:

— Este é o gneiss, Maricota.

Dona Maricota tomou-o nos dedos, examinou-o sob todas as faces e em seguida passou-o a uma sua amiga, gaguejando de geológica emoção:

— O gneiss, Nhanhã!

Na rua esfumada pela garoa, um friozinho de tiritar. De golas erguidas estugamos* o passo, enquanto íamos extraindo a moralidade da festa.

Ciência e Arte nasceram para viver juntas, porque Arte é harmonia e Ciência é verdade. Quando se divorciam, a verdade fica desarmônica e a harmonia falsa. Se este senhor sábio trouxesse pela mão direita a Ciência e pela esquerda a Arte, para fundi-las no momento de falar, que coisa esplêndida não faria de um tal tema! Trouxe uma só e por isso maçou-nos, empanturrou-nos a alma de coisas duras, indigeríveis, misturadas com mil pronomes fora dos mancais. Além disso...

Foi-nos impossível prosseguir na filosofia. Um carro passava estalando rumorosamente as pedras da rua. Dentro vinha a nossa diva.

— Ela...

— A Verdade e a Harmonia...

Nossas bocas emudeceram, porque a imaginação, tomando as rédeas nos dentes, nos levava a galope no encalço da teteia de olhos negros.
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Vocabulário (fonte: Dicionário Houaiss)
Barafustam-se – esforçam-se.
Bisbilho – murmúrio, sussurro.
Borbota – jorra.
Cabelugens – cabeleiras.
Caçanje – português errado, mal falado.
Dar de tu - tutear, tratar intimamente, por “tu”.
Enxúndias – gorduras.
Estugamos – caminhamos rapidamente.
Farragem – conjunto de coisas dispostas sem ordem.
Formidoloso – pavoroso, imenso.
Gens ennuyeux – pessoas chatas.
Gneiss – tipo de rocha, de origem metamórfica, resultante da deformação de granitos.
Lorgnon – par de lunetas sobre o nariz, que se prende a um cabo lateral e se compõe de duas lentes adaptadas a uma armação sem hastes.
Magotes – ajuntamento de pessoas.
Micaxistos – rochas de origem metamórfica, onde os elementos essenciais são a mica e o quartzo.
Nasóculos – pincenê; óculos sem haste que se prende ao nariz por meio de uma mola.
Paredros – mentores.
Pomólogo – versado no estudo das árvores frutíferas.
Sarabanda – roda-viva.
Tir-te – tirar-te.


Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas.1901.

66ª Feira do Livro de Porto Alegre TOTALMENTE VIRTUAL (4 a 15 de Novembro)


Criada por iniciativa dos livreiros e editores gaúchos com apoio do jornalista Say Marques, diretor-secretário do Diário de Notícias, a Feira do Livro de Porto Alegre foi inaugurada em 1955. O evento é considerado referência no país por seu caráter democrático e pela consistência do trabalho que desenvolve na área da formação de leitores e de mediadores da leitura, além de programação cultural 100% gratuita.

Ela é realizada desde sua primeira edição na Praça da Alfândega, Centro Histórico da capital gaúcha. A Feira na Praça é dividida em Área Geral, Área Internacional e Área Infantil e Juvenil. Centenas de escritores, ilustradores, contadores de histórias e outros profissionais participam do evento, que conta com sessões de autógrafos, mesas-redondas, oficinas, palestras e programações artísticas, entre outras atividades.

Alguns desses eventos são realizados no Memorial do Rio Grande do Sul, Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, Auditório da Livraria Paulinas, Auditório do Margs e Auditório da Inspetoria da Receita Federal. Em 2020, em função da pandemia, a Feira acontece, excepcionalmente, em ambiente virtual.

Em 2006, a Feira do Livro de Porto Alegre recebeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida pela Presidência da República, que a reconheceu como um dos mais importantes eventos culturais do Brasil.Um ano antes, havia sido declarada bem do Patrimônio Cultural Imaterial do Estado e, em 2010, foi o primeiro bem registrado, pela Prefeitura de Porto Alegre, como integrante do Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial da cidade. 

A 66ª edição ocorre de 30 de outubro a 15 de novembro de 2020, por meio da plataforma on-line, preservando com inovação o maior evento cultural do Estado do Rio Grande do Sul.

As janelas do mundo abertas para a Praça

Em 2020, nossos espaços mudaram. Passamos a acompanhar a vida pelas formas de quadrados e retângulos, de janelas e telas. Criamos distâncias físicas mesmo nos aproximando emocional e coletivamente.

Nesse universo, a arte e o conhecimento ganham destaque em áreas como a música, o teatro, o cinema. E no formato criativo e herdeiro da tradição oral de contar histórias: o livro.

Na sua 66ª edição, a Feira do Livro de Porto Alegre realizará todos os seus eventos com transmissão on-line e gratuita, mantendo o caráter popular que a caracteriza. Da capital gaúcha para o Brasil e todos os lugares. E deseja, a partir de sua curadoria, abrir as janelas do mundo para debatermos alguns temas essenciais.

Num ano de incertezas, a aliança com o digital possibilita novos diálogos e novos modelos para o comércio de livros. Vamos falar e ler sobre literatura e liberdade de expressão, passando por diversidade, pandemia, sustentabilidade e ciência. Janelas, lives e livros: o mundo que está ao alcance do nosso olhar.

A programação da Feira e como acessar os eventos podem ser vistos na página:
https://www.feiradolivropoa.com.br/programacao/

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 427

 


Rubem Braga (Coisas Antigas)


Já tive muitas capas e infinitos guarda-chuvas, mas acabei me cansando de tê-los e perdê-los. Há anos vivo sem nenhum desses abrigos, e também, como toda gente, sem chapéu. Tenho apanhado muita chuva, dado muita corrida, me plantado debaixo de muita marquise, mas resistido. Como geralmente chove à tarde, mais de uma vez me coloquei sob a proteção espiritual dos irmãos Marinho, e fiz de O Globo meu paraguas de emergência.

Ontem, porém, choveu demais, e eu precisava ir a três pontos diferentes de meu bairro. Quando o moço de recados veio apanhar a crônica para o jornal, pedi-lhe que me comprasse um chapéu-de-chuva que não fosse vagabundo demais, mas também não muito caro. Ele me comprou um de pouco mais de trezentos cruzeiros, objeto que me parece bem digno da pequena classe média, a que pertenço (uma vez tive um delírio de grandeza em Roma e adquiri a mais fina e soberba umbrella da Via Condotti, Abandonou-me no primeiro bar em que entramos, não era coisa para mim).

Depois de cumprir meus afazeres voltei para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me pus a contemplá-lo. Senti então uma certa simpatia por ele. Meu velho rancor contra guarda-chuvas cedeu lugar a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de saber qual era a origem desse carinho.

Pensando bem, ele talvez derive do fato, creio que já notado por outras pessoas, de ser o guarda-chuva o objeto do mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou apenas um quarentão, e praticamente nenhum objeto de minha infância existe mais em sua forma primitiva. De máquinas como telefone, automóvel, etc., nem é bom falar. Mil pequenos objetos de uso mudaram de forma, de cor, de material, em alguns casos, é verdade, para melhor, mas mudaram.

O guarda-chuva tem resistido. Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores desregramentos futuristas e tanto abusaram que até caíram de moda. Ele permaneceu austero, negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas. De junco fino ou pinho vulgar, de algodão ou de seda animal, pobre ou rico, ele se tem mantido digno.

Reparem que é um dos engenhos mais curiosos que o homem já inventou. Tem ao mesmo tempo algo de ridículo e algo de fúnebre, essa pequena barraca ambulante.

Já na minha infância era um objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas, e uma de suas características era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse grande acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o costume leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é fiel a seus amigos cem por cento, que com ele saem todo dia, faça chuva ou faça sol, apesar dos motejos alheios, A estes, respeita. O freguês vulgar e ocasional, este o irrita, e ele se aproveita da primeira distração para fugir.

Nada disso, entretanto, lhe tira o ar honrado. Ali está ele, meio aberto, ainda molhado, choroso. Descansa com uma espécie de humildade ou paciência humana, Se tivesse liberdade de movimentos não duvido que iria para cima do telhado quentar sol, como fazem os urubus.

Entrou calmamente pela era atômica, e olha com ironia a arquitetura e os móveis chamados funcionais: ele já era funcional muito antes de se usar esse adjetivo, e tanto que a fantasia, a inquietação e a ânsia de variedade do homem não conseguiram modificá-lo em coisa alguma.

Não sei há quantos anos existe a Casa Loubet, na Rua Sete de Setembro. Também não sei se seus guarda-chuvas são melhores ou piores que os outros. São bons, meu pai os comprava lá, sempre que vinha ao Rio, herdei esse hábito.

Há um certo conforto íntimo em seguir um hábito paterno, uma certa segurança e uma certa doçura. Estou pensando agora se quando ficar um pouco mais velho não comprarei uma cadeira de balanço austríaca. É outra coisa antiga que tem resistido, embora muito discretamente. Os mobiliadores e decoradores modernos a ignoram, já se inventaram dela mil versões modificadas, mas ela ainda existe na sua graça e leveza original. É respeitável como um guarda-chuva me convém para resguardo da cabeça encanecida, e talvez o embalo de uma cadeira de balanço dê uma cadência mais sossegada aos meus pensamentos, e uma velha doçura familiar aos sonhos de senhor só.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas) 3


Ao homem, por Deus foi dado,
astúcia e simplicidade
e por isso, abençoado
com o dom da piedade.
- - - - - -
A paz que trago comigo
é fruto dos atos meus.
- O bem-estar que eu abrigo,
é coisa própria de Deus!
- - - - - -
A vida é uma promissória,
que tem Deus como avalista.
Porem, não tem moratória,
seu pagamento é à vista!
- - - - - -
Canta, canta, ó menestrel,
ante a lua a te acolher,
mais um tango de Gardel
que nos faz enternecer...
- - - - - -
Confirmando as suas lendas,
por capricho, o velho mar,
cobre as areias de rendas,
quando a praia vem beijar...
- - - - - -
É certo e pura verdade,
que se diz do casamento:
Que só se tem liberdade,
com um mal comportamento!
- - - - - -
É destino a um trovador,
ao ver seu amor disperso,
compartilhar toda dor,
com a pureza do seu verso!
- - - - - -
É quase que indescritível,
os sentimentos, o ardor,
de uma noite inesquecível,
num terno ninho de amor...
- - - - - -
Fim de tarde, um albatroz
faz de volta o seu caminho.
A penumbra o faz veloz;
urge o encontro com seu ninho...
- - - - - -
Nada detém tanto encanto,
nem tanta essência de amor,
qual o feito sacrossanto,
do desabrochar da flor!
- - - - - -
Natureza é ecologia,
é o éden dos passarinhos,
que levam toda a magia
para o abrigo dos seus ninhos.
- - - - - -
No campo, depois da lida,
ao plantar e ao ver crescer,
desponta um sonho de vida:
— A certeza de colher!
- - - - - –
No grande palco da vida,
desse enredo tão atroz,
em cada cena exibida,
há sempre um pouco de nós.
- - - - - -
No Manacá, por vaidade,
há um aroma em cada flor:
— Do roxo, exala a saudade,
do branco, essência de amor...
- - - - - -
Nos enche de dignidade,
ver o obreiro com seu malho,
revelar prosperidade,
com suor do seu trabalho!
- - - - - -
O beijo nos diz as lendas,
surgiu entre os querubins;
que, engalanados de rendas,
osculavam em seus festins...
- - - - - -
Onde houver desigualdade,
a injustiça se mantém,
dando ao rico a impunidade
e a sentença ao joão-ninguém!
- - - - - -
O pão representa a vida,
alimenta a humanidade;
seus sustento consolida
a paz para a eternidade!
- - - - - -
Para a grande caminhada,
obra e graça do Divino,
cada qual tem sua estrada,
o seu rumo, seu destino!
- - - - - -
Para aumentar meu desejo
de sentir uma ânsia louca,
por sentença, por um beijo,
faz-me escravo em tua boca...
- - - - - -
Quando à penumbra, acontece,
entre afagos meus e teus,
nosso amor nos enternece,
nos eleva diante a Deus!
- - - - - -
Quando a tarde prenuncia,
revoam os passarinhos
e levam toda a magia,
para o abrigo de seus ninhos.
- - - - - –
Quando o céu, na lua cheia,
expõe os encantos seus,
a serra se galhardeia,
por estar mais junto a Deus.
- - - - - -
Quem casa, soma os afetos,
diminui a liberdade,
divide bens e objetos,
multiplica a honestidade!
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Salve! ó Mãe! Virgem Maria,
abençoada por Deus.
Bendita luz, que me guia,
a que aclara os dias meus.
- - - - - -
Saudade é dor que se sente,
por quem, por qual, ou razão.
Um vazio que há na gente:
— Mistério de um coração!…
- - - - - -
Traz ao poeta, a magia,
a gaivota na amplidão...
Em seu canto: A poesia!
E no encanto: A inspiração!
- - - - - -
Varanda, és templo de amor,
palco de fiéis confissões.
Secretas todo o clamor,
das mais ardentes paixões!
- - - - - –
Vem, ó Trova! E faz seu ninho.
Traze em verso, essa emoção.
Faz do poeta um doce aninho
e lhe inspira o coração

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Contos e Lendas do Mundo (O Conto das Areias)


Num reino, distante das altas montanhas, nasceu um rio claro, transparente.

Fez uma longa viagem e, no decorrer de sua existência, percorreu países diferentes, sulcados por vales extensos e férteis.

Por fim, chegou diante das areias de um deserto imenso.

Ele tinha encontrado muitas dificuldades que sempre soubera ultrapassar.

Da rocha mais dura fizera seixos lisos e doces que cantavam com ele em sua rota.

Tentou atravessar este último obstáculo do seu jeito habitual. Grande foi sua surpresa quando percebeu que toda a arte e toda a ciência que possuía não tinham agora qualquer utilidade para ele.

Suas águas desapareciam nas areias tão rapidamente como ele as lançava.

Recomeçou, e recomeçou, durante tanto tempo que o desespero o invadiu. Mas ele continuava a lançar suas águas sobre a areia, no imenso silêncio do deserto.

Foi então que, do fundo da areia, se elevou o murmúrio de uma voz que segredou:

- O vento atravessa o deserto, e o rio pode fazer o mesmo.

O rio respondeu que era exatamente aquilo que se esforçava por fazer, e que estava exausto:

- Tudo o que consegui foi me perder um pouco mais a cada tentativa. E estou apenas na borda deste deserto.

E acrescentou:

- O vento pode voar, por isso pode atravessar o deserto.

- Continue a lançar-se com violência, como estava fazendo - disseram-lhe as areias - e não conseguirá atravessar. Desaparecerá ou se transformará em charco estagnado. Deve permitir que o vento o leve ao seu destino.

- Mas como posso fazer isso? - perguntou o rio.

- Aceite ser absorvido pelo vento - respondeu o murmúrio.

Esta ideia não lhe agradou nem um pouco. Além do mais, ele jamais tinha sido absorvido. Tinha medo de perder sua individualidade.

- E uma vez que tiver desaparecido, como recuperar minha identidade? Quando serei novamente um rio?

- O vento, o vento - murmuraram as areias - ele cumprirá sua função. Ele levanta as águas, as transporta por sobre o deserto, e as faz descer como chuva, e esta forma de novo um rio.

- Mas - foi o grito do rio - como saber se você diz a verdade?

- É assim - recomeçou a voz, do fundo das areias. - E se você não acredita, se transformará em lodaçal. Isso levará alguns anos. Mas, você sabe, um charco é muito diferente de um rio.

- Mas não posso continuar tal como sou agora? - implorou o rio.

- Não, é impossível - murmuraram as areias - você não pode conservar sua forma atual. Mas se o seu ser (sua parte essencial) for transportado, ele voltará a ser um rio.

- Mas - lamentou-se o rio - nem mesmo sei qual é a minha parte essencial.

Não vinha mais nenhuma voz do deserto, que tornou a fechar-se no horizonte.

Então, a voz das areias começou a ressoar na memória do rio.

Estranhas lembranças lhe faziam eco. Como se já alguma parte dele (mas qual?) tivesse sido levada pelo vento.

Parecia que se lembrava de que tudo aquilo devia acontecer-lhe, e que devia cumprir seu destino, mesmo que não tivesse a mínima vontade.

E o rio parou de resistir. Suas águas se elevaram em vapor nos braços acolhedores do vento, que aspirou delicadamente sua parte essencial. Ele as levou muito depressa, muito longe, e as ergueu muito alto, sobre os cimos, até o longínquo reino das montanhas, muito além do deserto.

Então, o rio tomou consciência de seu ser, onde ressoava o eco de uma voz, vinda das areias:

- Nós, as areias, conhecemos o caminho que se estende, dia após dia, desde o fim dos rios até o longínquo reino das montanhas.

Eis por que se diz: o rio da vida tem um caminho, e seu destino está inscrito nas areias.

Fonte:
Cuentos de Oriente para Niños de Occidente. Buenos Aires/Argentina: Editiones Dervish International, A. H. D. Halka, 1986.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 426

 


Carolina Ramos (Noite Inesquecível!)


Para a meia noite faltava apenas um quase. Até Papai Noel já marcava presença, para alegria da criançada e dos adultos, também.

A ceia, quentinha, completava a mesa que, arrumada com requinte, encantava olhos e despertava sentidos, fazendo crescer água à boca.

À espera dos retardatários, a porta permanecia entreaberta, prova temerária de que as mais sumárias normas de segurança eram esquecidas.

O troco da imprudência não se fez esperar. Um pontapé brusco (pode um pontapé deixar de ser brusco?!) escancarou-a.

Eram cinco. Cinco malfeitores armados até os dentes!

— Ninguém se mexa... é um assalto!

E ninguém se mexeu mesmo! O grupo assustado foi confinado num canto. Mulheres à beira do chilique. Crianças choramingando, corações batendo a mil.

Dois dos bandidos permaneceram na guarda, arma na mão. Os outros três apressaram-se em tirar a barriga da miséria.

Apetitoso, o peru, pele dourada e reluzente, logo ficou sem uma das coxas. A outra também logo se foi... assim como o peito branco, úmido e macio. Saboroso! A farofa, sequinha, esparramou-se, farta, sobre a toalha decorada com motivos natalinos.

Consumidas, em sequência rápida e desordenada, as iguarias desapareciam ante os olhos perplexos e os estômagos vazios da família ultrajada.

Não demorou muito e a impaciência se fez presente entre os dois larápios que empunhavam as armas. Daí os protestos;

— Ei... chega, né?... Agora é a nossa vez! Também somos gente!

Mas, o apetite dos três gulosos não estava saciado, ainda. Da gula, nascia a sede, E as garrafas de vinho passaram a ser abertas com entusiasmo crescente. Libações e brindes não tinham mais fim! O tim-tim das garrafas, emborcadas diretamente nas bocas ávidas, dispensando taças e copos, levaram ao desespero os que estavam no aguardo. Na hora do basta, a dupla faminta mudou a mira das armas para as cabeças dos comilões.

— Agora chega! Chega mesmo!!! Todo mundo pra trás... ou vai sobrar chumbo como sobremesa!

Aos trambolhões, os três gulosos foram passados para retaguarda, cedendo espaço aos dois companheiros, cujo apetite a espera aguçara.

Quando afinal, o champanhe assumiu o comando da situação, a guarda foi abrandada e a família, vítima do assalto, que observava sem interferências sentiu, numa troca furtiva de olhares, que a hora propícia era chegada. O mais valentão deu um salto, tomando a arma do bandido mais próximo.

— Agora sou eu quem diz chega! Todo o mundo de mãos para cima e a cara virada para a parede.

A ordem foi seguida, sem protestos. Quem falava era um Papai Noel, agora com jeito de cowboy, que esquecia as banhas artificiais e engrossava a voz num repente autoritário que não admitia desobediências.

Ninguém reagiu! Na verdade, os bandidos, já fartos, a custo mantinham-se a prumo, empunhando as armas que lhes pesavam nas mãos! Fácil dominá-los! Como também aos outros três, ainda de boca cheia, mais preocupados em encher os bandulhos, do que propriamente em se defenderem.

Algum tempo depois, um camburão carregou, sem reações, cinco figurões eufóricos, de línguas enroladas e pernas mais enroladas, ainda.

Tio Homero, sempre o mais calado da família, despiu as vestes noelinas, livrando-se da barba e dos enchimentos que lhe davam mais uns quilos. Foi aplaudido com veemência!!! Era agora outra pessoa! Digno da maior admiração! Mesmo sem os enchimentos, crescera aos olhos de todos, virou herói... para sempre!

A ceia de Natal, naquela inesquecível e quase trágica noite, aconteceu, sem mais problemas, lá na Pizzaria da esquina.

Isso mesmo: "acabou em pizza…" Aliás... como tanta coisa, por aí!.. .

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) V


Clausura

Poemas sem voz
trancados nas gavetas,
Pedaços de mim,
aprisionados
em gritos
sufocados.
Cada poema
sem ar, trancafiado,
é o meu próprio
assassinato!
****************************************

Confusão

Meus caminhos confundidos
em múltiplas encruzilhadas
foram todos roubados ou perdidos.
Fico parada sem ter para onde ir
com rainhas lembranças requentadas
e saudades não sei de quê.
****************************************

Explicação

Procurando motivos
para explicar a vida
não entendo as justificativas.
Não acho explicações adequadas
aos sofrimentos e dissabores
que atingem os homens
em seu estágio terreno.
A caminhada é árdua.
Valerá a pena?
****************************************

Naufrágio

O meu navio
não encontra porto
e, jogado ao léu pela corrente,
vai se perdendo
no meio da intempérie.
Sem destino vagueia
e de encontro à rocha indiferente
acaba destroçado
até que, à deriva,
fica perdido no fundo do oceano.
****************************************

Silêncio

O silêncio, pleno de sentidos,
ressoa eloquente.
Protesto, acusação,
completam o diálogo
ou representam a omissão.
O silêncio é resposta, é resistência
ou será renúncia?
É desafio,
com múltiplos significados?
O silêncio imposto
pela sociedade,
pela subalternidade,
pela desigualdade,
deixa marcas,
traumatismos delirantes,
vivências constantes.
****************************************

Tempo

O olhar embaçado
pela névoa do tempo
oculta as tristezas
que se tornam menores,
pouco a pouco
amenizadas.
As alegrias também esmaecem
e transformam-se
em situações corriqueiras.
É a vida que se esvai,
gota a gota,
devagarinho.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Três) Morcego Cego


O TELEFONE TOCOU e Glorinha, a empregada, atarefada passando o café, gritou lá da cozinha para  que o Chico, motorista de seu patrão, o magnata das saborosas sardinhas Tuti, sentado  na sala,  fizesse a gentileza de ver quem era. Obediente, e  prestativo, o Chico foi:  

—  Alô, bom dia!

— Bom dia.

— Com quem falo?

— Quer falar com quem?

— Com o Tuti.

— O senhor Tuti não está.

— Sabe a que horas posso encontrá-lo?

— Glorinha me passou a informação que só depois das oito da noite.

— Quem é a Glorinha?

— A Glorinha é a empregada dele.

— E o  senhor, quem é?

— Não sou o senhor Tuti.

— Ok. Qual seu nome, por obséquio?

— Prefiro não me identificar. Não vejo necessidade.

— Estou propensa a acreditar que o senhor é o Tuti e está tentando me enganar. Acertei?

— Asseguro-lhe que não. Conhece o senhor Tuti?

— Não tive ainda o prazer.

— Acaso falou com ele alguma vez?

— Na verdade nunca tivemos nenhum contato. Esta é a primeira vez que ligo para a sua casa.

— Minha não,  a casa é dele. Se nunca falou com o senhor Tuti, como ousa afirmar que eu sou ele, se jamais conversou comigo?

— Tá vendo só? Na mosca. O senhor é o Tuti.

— Não, não sou.

—  Claro que é.

— Prove que sou o senhor Tuti.

— Repetirei o que o senhor acabou de dizer: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— E daí...?

— Se o senhor não fosse o Tuti  diria: “Como ousa afirmar que sou ele, se nunca conversou com o cara, ou com o sujeito?”. Ao contrário, o senhor foi categórico. O senhor disse com todas as letras: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— Basta. Não precisa repetir.

— E para completar ficou nervoso. Aliás, está nervoso. Uma prova insofismável de que é o próprio.

— Que próprio?

— O Tuti em carne e osso.

— Senhora, o senhor Tuti realmente saiu. Só depois das oito da noite...

— A que horas ele saiu?

— Não sei ao certo.

— Sabe dizer onde foi?

— A Glorinha  não me disse. Afinal de contas, a senhora é de onde? Deixe o nome e o número do telefone que farei o favor de anotar e repassar para a moça que trabalha aqui na residência dele.

— Vamos esclarecer uma coisinha?

—  Que coisinha?

— Não sou casada.

— E o que eu tenho a ver com o fato  da senhora não ser casada?

— Às pessoas casadas o senhor se dirige usando a tal da senhora. Às solteiras...

— Por acaso tenho bola de cristal?  

— Senhor...

— Também não sou senhor.  

— O tratamento diferenciado faz parte da educação, cavalheiro.  

— Não quero saber.  

— Seu Tuti, preste atenção. Eu...

— Senhora, quero dizer... Moça, não sou o senhor Tuti, por gentileza, não insista. Está começando a me tirar do sério.

— Sabia que é feio mentir?

— Quem está mentindo aqui?

— Só vejo uma pessoa berrando no meu ouvido.

— Berrando? Quem está berrando?

— O Tuti. Só pode ser o senhor. Pois bem, seu Tuti. Vamos ao que realmente nos interessa, ou seja, ao real motivo que ensejou o presente telefonema para a sua residência. O Senhor é o Tuti. Tuti de quê?

— Dona, não sou Tuti de nada.

— O senhor não tem sobrenome?

— Não vou responder. Aliás, não quero mais prolongar esta lenga-lenga. Passe bem.

— Pretende continuar insistindo na brincadeira? Fale sério!

— Por que não desliga e vai  até a esquina fumar um cigarro ou tomar um refrigerante bem geladinho no canudinho?

— Não fumo mais. Parei  faz  exatamente dois anos.  Refrigerante dá estrias. E o canudinho... Bem o canudinho...

— Esquece o canudinho. Tenha um bom dia.

— Calma, seu Tuti. Só confirme para mim o seu nome completo e seu endereço.

— Simpática, não sou o senhor Tuti. Ele saiu...

— Vamos supor que realmente o seu Tuti esteja ausente . O senhor, quem é?

— Um colega e um amigo.

— E esse colega e amigo não tem nome?

— Senhora, eu...

— Senhorita. Lembre-se: não sou casada.

— Que seja. Atendi ao telefone para fazer uma gentileza à Glorinha que está passando o café. Tenho mais o que fazer. Pela última e derradeira, tenha um bom dia.  

— Calma, calma. Percebo, por sua voz, que o senhor está muito nervoso.

— E não é para estar com você torrando meu saco?

— São quase dez horas da manhã. Estamos no horário comercial. Apenas tento fazer meu trabalho.

— Vamos colocar um ponto final nesta parlenda. Não sou o senhor Tuti. Ligue depois das oito da noite e se entenda com ele diretamente. Ou deixe seu nome e número. Ele lhe retornará a ligação.

— Insisto: quem é o senhor?

— Um colega e amigo do senhor Tuti.

— Colega e amigo do senhor Tuti em sua casa, assim tão cedo?

— Vim resolver um problema. Passei para pegar os documentos do carro dele. Coincidentemente, como a Glorinha está preparando um café, estou esperando pela bebida. Meu Deus, o que estou fazendo? Não tenho que lhe dar satisfações.

— Ora, seu Tuti, fique à vontade.

— Tuti é a sua mãe.

— Não me ofenda. Minha mãe se chama Umbelina. Umbelina sem o agá. E não tem Tuti.

— Vá para o inferno.

— Irei. Antes de me pôr a caminho, me diga seu nome todo. Tuti de quê?

— Querida, vá para o raio que a parta.

— Cavalheiro, colabore. Quero seu nome para constar aqui na minha ficha de atendimento ao cliente. Tenho que anotar o nome da pessoa com quem falei neste número.

—  Se lhe der meu nome me deixará em paz?

— Juro por tudo quanto é mais sagrado.

— Pois bem. Sou o Chico. Chico Média. Satisfeita?

Risos:

— O que foi agora? Qual a graça?

As hilaridades continuaram:

— Vou desligar...

— Então o senhor é o famoso Chico Média?

— Sou. Contudo, não tenho nada de famoso. Por que continua  gargalhando? Tenho cara de palhaço?

— Me lembrei de um fato curioso. Mamãe fala todo mês no senhor...

— Sua mãe? Ela não me conhece! Que patranha é essa agora?

— Se minha mãe não lhe conhecesse, não teria motivos para ficar uma arara. Uma arara. Principalmente quando o senhor chega...

— Deve haver algum engano neste falatório todo. Sua mãe nunca me viu nem mais gordo, nem mais magro. E eu... Eu nunca cheguei...

— Agora que declinou seu nome, tenho cá minhas dúvidas...

— Que dúvidas? Como sua mãe poderia me conhecer?

— Vou provar que o senhor a conhece. E a incomoda, literalmente, todos os meses.

— Eu a incomodo? Como? De que forma? Não sei quem é você, moça, que dirá a sua mãe, esta tal de dona Umbelina.

— Lembrando, para que não esqueça: sem o agá.

— Que diferença isto faz, com ou sem o agá?

— Seu Tuti —, quero dizer —, seu Chico, o senhor me faria um imenso favor?

— Favor, que favor?!

— Saia de uma vez por todas da vida da minha mãe. Quero dizer, desgarre da minha querida genitora. Todo mês o senhor a incomoda. Mamãe fica uma fera com a sua presença. Que droga, que coisa feia, seu Média... Digo, seu Chico...

Chico Média ia retrucar mas a engraçadinha se abriu novamente numa estrondosa chalaceação desligando o aparelho na cara dele.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

domingo, 1 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 425

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) JP, Granado e Schiavone


Se a gente juntasse alguns dos muitos casos engraçados ocorridos na história desta cidade, daria um livro delicioso. Outro dia, num papo com um pessoal meio da saudade, conversa-vai, conversa-vem, veio à lembrança um fato que vou recontar pra vocês, pedindo desculpas antecipadas aos três ilustres personagens da cena, dois deles em memória.

João Paulino estava mais ou menos na metade do seu primeiro mandato de prefeito – 1962, se me não engano. Na época, Ademar Schiavone era diretor administrativo e colunista social do “O Jornal de Maringá”, então comandado pelo velho e bom jornalista Ivens Lagoano Pacheco. Mas Schiavone era um colunista social guerreiro: além de fofoquear a vida dos clubes e as festas da cidade, gostava de falar também de política. Arrumou brigas históricas com os vereadores e muitas vezes irritou João Paulino com críticas azedas. Além disso, o “O Jornal” era costumeiramente provocador.

A prefeitura era onde depois funcionou a biblioteca pública, na esquina da Getúlio Vargas com a 15 de Novembro. De repente um funcionário entrou no gabinete do prefeito informando que “um jornalista desaforado havia subido com o carro no jardim em frente ao correio”, portanto a poucos metros do paço municipal. JP quis saber quem era o tal jornalista. Responderam que era um colunista social. O prefeito pensou logo no Schiavone, enrubesceu o rosto e ordenou: “Mandem prender o carro dele... agora”.

Deu o maior auê na praça. “Não foi por querer, foi um acidente, foi a direção que quebrou... Que negócio é esse de prender o carro?” – protestou o jornalista. Mas os guardas não quiseram saber de desculpas e levaram o Gordini para o Trânsito, com ameaça de levar também o dono, se ele não sossegasse.

Gordini?... Mas o Schiavone não tem Gordini; o carro dele é um fusquinha. Então deve ter havido um baita engano. João Paulino, já de bom humor, disse que queria apenas dar um susto no Schiavone, que vivia pegando no pé dele com artigos irreverentes. Mas... e se o dono fosse outro? Que jornalista tinha Gordini em Maringá?

Era o Pedro Granado, também na época prestigiado colunista social, da “Tribuna de Maringá” (do saudoso Manoel Tavares). Granado não tinha nada a ver com as broncas do Schiavone; ele aliás nem falava de política, estava pagando o pato inocentemente. Dera um problema na direção do veículo e ele realmente subiu no jardim, mas sem querer. E agora?

Agora quem estava mais chateado com o engano era o prefeito. Telefonou para o Trânsito e pediu que liberassem o Gordini. Em seguida telefonou para o Granado, explicou o mal-entendido e ambos acabaram dando boas risadas.

E o Schiavone? Deu também uma gargalhada. Anos depois virou amigão do João Paulino, que até o convocou para trabalhar na administração municipal como secretário.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Arquivo Spina 24 (Artur José Carreira)

 

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 3

 

Agostinho da Cruz
 
(Ponte da Barca, 1540 – 1619, Setúbal)

À COROA DE ESPINHOS


A que vindes, Senhor do Céu à terra,
Terra que sendo vossa vos enjeita,
E que tanto vos honra e vos respeita,
Que em não vos receber insiste e emperra?

Ah! Quanta ingratidão nela s’encerra!
Quão mal de vossa vinda se aproveita!
Pois se põe a tomar-vos conta estreita,
Mais brada contra vós, quanto mais erra.

E vós de vosso amor puro forçado
Os malditos espinhos lhe pisais,
Dos quais ainda sendo coroado,

A maldição antiga lhe trocais
Na bênção, que lhe dais crucificado,
Quando morto d’amor, d’amor matais.
****************************************

Padre Baltasar Estaço
 
(Évora, 1570 - 16??)

A CRISTO NA CRUZ


O bem que a tantos bens me convidava,
O qual desmereci, vós merecestes
Que a vida que por meu amor perdestes,
A vida me alcançou que eu desejava.

O mal que a tantos males me obrigava,
O qual não satisfiz, satisfizestes,
Que a morte que por meu amor sofrestes,
Da morte me livrou, que eu receava.

A vós Deus amoroso, a vós só amo,
De vós pratico, só, de vós escrevo,
Por vós a vida dou, e a morte quero,

Em vós fogo de amor, em vós me inflamo,
Pois que pago por vós o mal que devo,
E mereço por vós, o bem que espero
****************************************

D. Francisco Manoel de Melo
 
(Lisboa, 1608 – 1666)

SONETO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando.

Se cuidando, Senhor, falando, obrando
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza
Donde vou, donde venho, donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus, não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito, e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota a ser medida
Co’ largo mar de tua Graça imensa?
****************************************

Jerónimo Baía
 
(Coimbra, 1620/30-1688, Neiva)

FALANDO COM DEUS


Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
****************************************

Frei António das Chagas
 
(Vidigueira, 1631-1682, Torres Vedras)

SONETO

Deus pede hoje estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo, fazer conta.
Hoje quero fazer conta e não há tempo.

Oh! Vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo em fazer conta.

Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, se não der tempo.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

Carla Rejane Silva (Tristes lembranças)


Sentada nesse balanço, olhando para a imensidão...

Com meus pensamentos voando ao longe, sentindo uma brisa leve tocar minha face, sinto as lágrimas escorrerem molhando meu rosto.

As recordações vêm como num filme triste...

Me lembro: ao receber sua mensagem como fiquei feliz. Dizia que queria me ver naquela noite, me esperaria na praça onde trocamos nosso primeiro beijo.

Como uma criança, que acabara de ganhar o presente tão sonhado...

Saltitante me arrumo pra você. Coloco minha calça preferida, que fica coladinha em meu corpo, a blusa vermelha, batom quase do mesmo tom, meu perfume suave com cheirinho adocicado.

Prendo meus cabelos vermelhos...  

Me olho no espelho; estou pronta pra você. Vou ao encontro do meu amor. Uma felicidade contagiante invade meu ser, transbordando através dos meus olhos.

De longe vejo você e me aproximo...

Você pega minhas mãos entre as suas e me pede pra sentar. Tinha algo a me comunicar… meu coração dispara, quase saindo boca afora. Sinto suas mãos suadas, observo que você evita olhar pra mim.

Nesse momento antecipando...

Prevendo o que estava por vir, pressinto algo. Uma dor se forma em meu peito, penetra minha alma, meu coração como uma faca afiada. Então pedi que me dissesse o que estava acontecendo: - Fale por favor.

Com uma certa relutância...

Diz que ama outra pessoa. Que não sente mais nada por mim. Apenas uma imensa gratidão, quer apenas ser meu amigo. Por alguns instantes me sinto perdida, sem chão.

Mas com uma coragem assustadora...

Com aquele  nó na garganta. As lágrimas teimando em querer cair, ouço minha própria voz dizer seja feliz! Muito  feliz! Me levantei daquele banco da praça virei as costas pra você e disse adeus e fui embora.

Fui embora chorando...

Caminhando como um fantasma sem rumo. Uma vontade louca de gritar, minha alma naquele instante estava dilacerada, esmagada. Não por ter perdido você. Mas pela dor das promessas não cumpridas, pelas mentiras, e por ter sido covardemente traída.

Hoje sentada nesse balanço...

Olhando,  mas sem perceber a beleza  ao meu redor. Ainda um pouco machucada, ferida, mas com uma decisão tomada: – Eu vou esquecer você. Tirar você de vez da minha vida. Enterrar esse amor que sonhei, um sonho sonhado a dois, mas que terminou em enorme pesadelo.

Preciso te esquecer, preciso.

Fonte:
Carla Sonhadora

sábado, 31 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 424

 



Arthur de Azevedo (O Lencinho)


O Juvêncio, explicador de matemáticas, era um homem lúgubre.

Nunca ninguém o viu rir, nunca ninguém lhe apanhou a expressão do olhar através dos óculos escuros.

Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida.

Trajava sempre de preto e usava chapéu alto.

Era distraído e parecia estar sempre vagando pelos intermúndios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos.

Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vão assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas toilettes, o explicador Juvêncio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicação no Catete. Era à hora de mais afluência. Os lugares eram conquistados à força de agilidade e destreza.

O explicador Juvêncio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvêncio, que era um viúvo positivista, não tinha olhos para a porção mais bela da humanidade.

No banco em que ele se sentou estavam três cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porção de capitosos perfumes.

O banco da frente estava ocupado por uma família: três elegantes senhoritas, acompanhadas pela mãe, que poderia passar pela irmã mais velha.

As três senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio.

Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se.

No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mão, foi cair - vejam que fatal casualidade! - foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvêncio.

Este, que ia entretido a ler um livro de matemáticas, não deu absolutamente pela coisa.

As cocottes riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caíra para entregá-lo à dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvêncio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atenção para o lenço.

O que se passou então foi extraordinário. O explicador Juvêncio disse consigo: - Quando me hei de corrigir das minhas distrações? Pois não é que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha.

Depois, tirou o chapéu à cocotte, dizendo:

- Muito obrigado, minha senhora - e continuou a ler imperturbavelmente.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 12


Aquela fronte sofrida,
que na cruz, tanto sofreu,..
Por ser a essência da vida
está viva e não morreu!
- - - - - -
As rendas da cor de neve,
na areia branca a brilhar...
São versos que o vento escreve
das ladainhas do mar!
- - - - - -
A todo instante eu tropeço,
ergo-me e fico sem jeito;
na dor da queda é que eu meço
a fé que existe em meu peito!
- - - - - -
Canta, velho sino, e espanta,
a dor que canta em teu peito,
que a dor que em meu peito canta
espanto do mesmo jeito!
- - - - - -
De que valem nossos laços,
arranjos lindos, perfeitos...
Se esses nós de teus abraços
ao por do sol, são desfeitos?
- - - - - -
Desde minha tenra infância,
seguem-me por onde eu for...
Os gritos da mendicância,
por meus pedidos de amor!
- - - - - -
Do amor, eu não me desfaço,
nele, a vida se agasalha...
Pois para o amor, sobra espaço
no meu casebre de palha!
- - - - - -
Esquece as mágoas pequenas,
e as grandes, torna a esquecer;
diante de Deus, nossas penas,
são dons do nosso viver!
- - - - - -
Eu vi num pobre andarilho,
a paz no rosto de alguém!
Honra e pobreza, meu filho,
é o que pouca gente tem!
- - - - - -
Mãos dadas! sempre juntinhos
curtindo os dias risonhos...
Quando formos dois velhinhos,
quem curtirá nossos sonhos?
- - - - - -
Meus poetas pirilampos,
um contraste nos conduz;
Uns, são luzes pelos campos;
o outro, sem campo e sem luz!
- - - - - -
Minha casa é uma surpresa;
é simples, do teto ao chão...
Se faltar pão sobre a mesa,
sobra amor no coração!
- - - - - -
Na infância, mamãe rezava,
à tarde, por devoção,
enquanto a gente jogava
bola de gude e pião!
- - - - - -
O homem deixa cicatrizes
por todo canto que passa,
trocando as horas felizes
por minutos de desgraça!
- - - - - -
O ocaso, que me seduz,
é o mesmo que me entristece,
quando a tarde apaga a luz,
puxa a cortina e adormece!
- - - - - -
O pai, que aconselha o filho,
ante a dor que fere o peito...
Mostra que o amor tem mais brilho,
depois de um sonho desfeito!
- - - - - -
Percebo em tuas retinas,
minha eterna flor de lís...
O olhar de duas meninas,
num ser que me faz feliz!
- - - - - -
Pondo em meus pés, teus espinhos,
e a tua cruz sobre as costas...
Rasguei velhos pergaminhos
com perguntas sem respostas!
- - - - - -
Por ironia ou por terdes
falso orgulho, é que, no entanto,
Há nos vossos olhos verdes
perpétuas gotas de pranto!
- - - - - -
Preso ao lar que não é dele,
canta o poeta passarinho
a dor, do pranto daquele,
que canta longe do ninho!
- - - - - -
Saudade - que me incendeia,
toda noite, que surpresa!...
Se apago a luz da candeia
sua chama fica acesa!
- - - - - -
Se amar é o gesto mais nobre
que a vida ensina e nos diz,
no amor, é que se descobre
um jeito de ser feliz!
- - - - - -
Se o tempo, desgovernado,
apaga tudo que alcança...
Por que poupar o passado
que apagou minha esperança?
- - - - - -
Sigo-te amor, fielmente,
e aprisionado aos teus laços,
como é leve esta corrente
quando estou preso em teus braços!
- - - - - –
Só depois que a idade avança,
o homem, já curvo e cansado...
Enxerga a luz da esperança
no olhar de um crucificado!
- - - - - -
Velho andarilho, na estrada,
tangendo o passo miúdo;
na mochila, quase nada,
no coração, quase tudo!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Miopia)


Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma bênção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.

Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.

Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da linguiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um dia, me contou.

Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios famintos!

Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.

- Sr. visconde, que é isso? - exclamou, rubra, a esposa do ministro.

A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:

- Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que estava aqui, a meu lado?

E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos o pince-nez, lamentou batendo na testa, com a mão espalmada:

- Maldita miopia!... Maldita miopia!...

E escanchou a bicicleta no nariz.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 423

 


Folhetim de Trovas “Copaíba” n. 1 outubro 2020 (Baixe grátis)

 
Em seu conteúdo:
 
O que é Copaíba.
 
Um breve resumo sobre Campo Mourão.
 
Trovas de trovadores de Campo Mourão, do Paraná e de outros rincões.
 
Concursos de trovas com inscrições abertas (atenção, que  um se encerra hoje, dia 30, outro amanhã e dois dia 5 de novembro)

Para ler o Folhetim, baixe para seu computador em pdf, no link
https://drive.google.com/file/d/16bXF4fHyZBTaqNq_k4w2VdFMmsWvNuTg/view?usp=sharing

Leon Eliachar (Um Nome Qualquer)


Encontraram-se depois de mais de dez anos:

— Afonso!

— Hermenegildo!

Abraçaram-se três vezes seguidas, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Lembra-se do Rogério?

— Lembro.

— Morreu a semana passada.

— Coitado.

Conversaram a mesma conversa que conversam os que não se veem há muito tempo:

— Que tens feito?

— Lutando. E você?

— Levando a vida.

Quando deram por si, estavam tomando cafezinho em pé, como fazem sempre os que não se veem há muito tempo:

— Você está mais gordo.

— E você, mais magro.

Foram andando, parando, relembrando incidentes pitorescos, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— E aquele mergulho no rio, atrás do internato, lembra-se?

— Se me lembro, quase você morre afogado.

— E foi você quem me salvou, nunca esqueci.

Pararam num ponto de ônibus pra se despedir, ficaram batendo papo mais de meia hora, como fazem todos os que não se veem há muito tempo:

— Você casou?

— Casei. E você?

— Mais ou menos. Estou com uma zinha aí mas ela é casada.

— Você nunca quis nada com o casamento, hein, malandro?

— Com essa até que eu casava.

— Como ela é?

— Baixotinha, gordota, tem um sinalzinho no rosto, mas eu gosto dela assim mesmo.

Afonso ficou apreensivo:

— Como é o nome dela?

— Cláudia.

Afonso ficou mais curioso:

— Ela tem filhos?

— Dois. Um menino de quatro e uma menina de três.

Afonso só faltou pedir o retrato pra ver, mas não teve coragem. Apressou a despedida:

— Bem, tenho de ir andando, estou atrasadíssimo.

Tomou o ônibus, foi direto para casa. No caminho, foi pensando: “Cláudia… dois filhos… um menino de quatro… uma menina de três… baixotinha… gordota… um sinalzinho no rosto…” era muita coincidência. Quando entrou em casa, só faltou arrancar a porta. Lá estava a mulher no meio da sala, com os dois filhos, baixotinha, gordota, com um sorriso na cara deste tamanho:

— Chegou cedo hoje, hein, Afonso?

Ele estava tremendo de ponta a ponta, quando perguntou:

— Diz depressa o nome de um homem.

— Como?

— Depressa, diz um nome de homem. Um nome qualquer.

Ela nem teve tempo de pensar:

— Hermenegildo.

Ele chegou a cambalear, foi preciso segurar no vão da porta:

— Quem diria, hein?

Sua mulher não entendia nada:

— Mas o que foi, Afonso? Está sentindo alguma coisa?

Ele foi categórico:

— Estou sim.

— Está sentindo o quê?

Ele arreganhou os dentes:

— Estou sentindo ódio de mim mesmo, por ter salvo aquele desgraçado. Devia ter deixado ele morrer afogado.

Cláudia caiu de bruços e como caiu, ficou, inteiramente desacordada.

O médico disse que era normal.

Estava esperando o terceiro filho.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Baú de Trovas XIX


 Meu lar, embora modesto,
é um ninho de beija-flor,
com dois filhotes travessos,
pelos quais morro de amor!
ADAÍS COSTA CARVALHO
- - - - - -
Solidão, indiferença...
tudo é ontem para mim!
Só a saudade é presença,
presença que não tem fim!...
ANGELA SARMET
- - - - - -
Ouve a súplica serena
de minha alma que te diz:
- num simples beijo, morena,
tu me farias feliz!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Peço a Deus que teus encantos
se conservem sempre assim,
mas rogo a todos os santos
que não te esqueças de mim.
FRANCISCO PIMENTEL
- - - - - -
Beijo tantas, tantas vezes,
teu retrato, meu amor,
que o tenho há bem poucos meses
e já vai perdendo a cor...
FRANKLIN COUTINHO
- - - - - -
Como a estrela matutina
de uma aurora colorida,
tens sido a luz peregrina
nas noites de minha vida.
GAMALIEL BORGES PINHEIRO
- - - - - -
Tua carta colorida,
que eu guardo, perdeu a cor...
Mesmo assim, teve mais vida
que as tuas juras de amor.
GERALDO GUIMARÃES
- - - - - -
Você me olhou, nos olhamos,
e nós dois então sorrimos.
Nada mais, nem nos falamos,
mas, no peito, o que sentimos!
GODOFREDO CARDOSO
- - - - - -
Que ideia maravilhosa:
— transformar Nosso Senhor
cada mulher numa rosa,
e fazer-me beija-flor!
GUIMARÃES BARRETO
- - - - - -
A tua alma quanto é bela
só Deus sabe, além de mim:
— eu porque hoje vivo dela,
Deus por tê-la feito assim!
HEITOR BELTRÃO
- - - - - -
Riquezas, tenho-as sem conta,
pois, crê, de nada preciso.
Basta-me o sol que desponta
nas manhãs do teu sorriso...
HELENY DE MORAES SIQUEIRA
- - - - - -
Este bem consolador
é minha felicidade:
ter presente o teu amor
no milagre da saudade.
HÉLIO C. TEIXEIRA
- - - - - -
Em minhas longas viagens,
dispenso livros, porque
gosto de ler, nas paisagens,
a saudade de você.
HÉLIO GARCIA DE MATTOS
- - - - - -
Nossa Senhora das Dores,
aos meus amores, fazei
que se convertam em flores
os dissabores que dei.
HÉLIO NOGUEIRA
- - - - - -
Na vida há céus constelados
e cardos pelos caminhos...
— E há poetas deslumbrados,
pondo estrelas nos espinhos!...
IRACI DO NASCIMENTO E SILVA
- - - - - -
Por mais humilde que for,
de viver jamais se cansa
quem tem no peito um amor
e, na vida, uma esperança!
IRENE DE ARAÚJO MONZON ABRIL
- - - - - -
Saudade de um ser amado,
que foi e não voltou mais,
cura-se com o beijo dado
nos lábios de outro rapaz!...
IVANISE LOBO TRINDADE
- - - - - –
Se os olhos teus eu tivesse,
sempre os traria cerrados,
— que olhares ninguém merece
dos teus olhos encantados.
IVO DOS SANTOS CASTRO
- - - - - -
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam!...
J. G. DE ARAÚJO JORGE
- - - - - -
Tu podes me desprezar
com teu orgulho medonho,
mas não podes evitar
que sejas minha no sonho!
J. MONTE LOPES
- - - - - -
Vai, barqueiro, na bonança,
sem temores da procela,
que Deus solta uma esperança
quando desliza uma vela!
JACINTO DE CAMPOS
- - - - - -
Este silêncio que instala
esta quietude entre nós
é a voz de tudo que fala,
sem ser preciso de voz.
JEFFERSON LEÃO DE ALMEIDA
- - - - - -
Quanto mais teu corpo enlaço,
mais padeço o meu tormento,
por saber que meu abraço
não prende o teu pensamento.
JESY BARBOSA
- - - - - -
"Bom dia", morena linda,
minha doce Ave-Maria!
O meu dia é noite ainda,
até que eu te dê "Bom dia"!
JOÃO FELÍCIO DOS SANTOS
- - - - - -
Numa alegria incontida,
sou bem feliz, porque ponho,
na taça escura da vida,
o claro vinho do sonho!
JOÃO RANGEL COELHO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Figueiredo Pimentel (O Peixe Encantado)


Roberto era muito trabalhador e serviçal. Sempre que alguém precisava dos seus serviços, prestava-os de boa vontade, sendo por esse motivo estimadíssimo toda a gente que o conhecia.

Tinha ele três filhas, cada qual mais bonita, principalmente a mais moça, de beleza extraordinária, chamada Marocas.

A pobre família vivia da pesca que o homem fazia todas as madrugadas, indo, durante o dia, vender o peixe pelas ruas da cidade próxima. O seu único sustento e de toda a sua numerosa família era a pesca. Parte da noite, até romper a manhã, Roberto passava pescando. Durante o dia, ia vender o peixe de casa em casa. À tarde tratava da canoa, das linhas e das redes. Feliz no seu negócio, trazia sempre a canoa cheia de peixes grandes e bons.

Um dia lançou a rede ao mar e nada trouxe. Lançou-a outra vez, e só vieram peixinhos peixinhos, que nada valiam.

No dia seguinte aconteceu-lhe o mesmo que na véspera. Deitou a rede diversas vezes; e, nada tendo conseguido, ia voltar para casa, desolado, pensando que naquele dia sua família não teria o que comer.

De súbito ouviu uma voz que partia do mar:

– Roberto, terás muito peixe, se me prometeres trazer o que avistares, assim que chegares à casa.

O pescador respondeu que daria, pois sempre chegava à praia, encontrava o cachorrinho de Marocas, que ia esperá-lo, latindo a saltando alegremente.

Tendo-o prometido, os peixes começaram a saltar para a canoa, e ele nesse dia obteve muito dinheiro com a sua venda.

De volta o pobre velho ia quase embicando à praia, contentíssimo por ter dinheiro para dar à família, quando ao olhar para a terra viu sua filha mais moça, Marocas, justamente aquela por quem tinha maior predileção.

Ficou desesperado, aturdido, triste, lembrando-se da promessa e chegando à casa contou à família o que se tinha passado.

Quando acabou de falar a menina respondeu:

– Meu pai, não chore por tão pouco. Eu vou e estou certa de que é para meu bem. Com certeza serei muito feliz, e demais minha família terá sempre com que se sustentar.

Roberto vendo como a filha se sacrificava por ele de tão boa vontade, ficou menos pesaroso. No dia seguinte, pela madrugada, embarcou com ela na canoa de pesca. Assim que chegou ao lugar onde ouvira a voz, as águas se separaram um pouco, e o pescador atirou Marocas, que desapareceu imediatamente.

Voltou para terra com a canoa cheia de peixes, sem ter sido preciso lançar a rede.

A moça foi ter a um palácio no fundo do mar, habitado pelo Rei dos Peixes, que fora quem havia falado ao pescador.

Encontrou aí tudo quanto lhe era necessário: salas e quartos mobiliados, vestidos riquíssimos e jóias de subido (exorbitante) valor. Entre essas jóias havia um anel de brilhantes, muito rico, com uma dedicatória feita pelo soberano dos peixes. Contudo, apesar de tudo isso, Marocas vivia tristíssima, porque não via pessoa alguma, principalmente os seus. O serviço da casa era feito por encanto, pois nunca vira um ser vivente no palácio, e os objetos estavam sempre em ordem.

Depois de já estar habituada àquela solidão, na noite, quando já estava deitada, a formosa Marocas ouviu ruído. Sentiu-se receosa, assustada, esperando ver entrar algum monstro, algum bicho que viesse matá-la. Sossegou, porém, ao ver entrar um enorme peixe, com uma coroa de ouro na cabeça. Era o rei dos Peixes. Entrou silencioso, quase sem fazer ruído, andando naturalmente em seco como se estivesse na água.

O rei entrou, e logo após saiu, aparecendo aos olhos deslumbrados da jovem um moço elegante e lindo, ricamente vestido à corte, com trajes de gala, que bem indicavam o seu nascimento real. Sempre calado, aproximou-se da moça e pôs-se a contemplá-la, enleado, maravilhado.

Marocas disse-lhe então:

– Príncipe, porque não vieste há mais tempo?

– Porque receei que, vendo um peixe tão feio, tivesses medo. Se vim hoje admirar tua beleza, foi porque julgava que dormias.

Desde esse dia, Marocas e o rei dos Peixes viveram juntos, completamente felizes. O serviço do palácio continuava a ser feito por encanto. O único ser vivo que a moça via era o Rei-peixe e sempre nessa figura.

Apenas uma vez, de sete em sete dias, deixava aquela aparência, para vir a ser o príncipe encantador, divinamente belo, que era em verdade.

Estavam casados havia já um ano, quando uma vez, Marocas lhe pediu, rogou, suplicou, insistentemente que a deixasse ir ver sua família.

– Podes ir, respondeu o príncipe, mas com a condição de só te demorares lá uma semana. Quando quiseres voltar, põe este anel no dedo, que imediatamente estarás aqui.

E deu-lhe um anel de aço.

A moça pôs num baú muita roupa e presentes que levou à família, e no dia seguinte quando o velho Roberto veio pescar, apareceu na canoa e foi com ele para terra.

Em casa ficaram todos muito alegres ao vê-la, e sua mãe e suas irmãs começaram a indagar como vivia ela; se estava satisfeita; se o noivo era bonito. Marocas respondeu que julgava que era, que não garantia, pois só via o príncipe de noite.

Lembraram-lhe, então, a conveniência de levar para o fundo do mar um pedaço de vela, para ver se o rei de fato era bonito. A jovem concordou. Ao sexto dia, chegando ao palácio, não dormiu à noite, esperando que o príncipe adormecesse primeiro que ela.

Assim que o ouviu ressonar, saiu da cama, com a vela acesa, e foi se certificar da beleza do noivo. Tendo porém, chegado a vela muito perto, deixou cair um pingo de sebo no peixe. Ficou trêmula de medo, receando que ele acordasse, e com o tremor, derramou mais outros pingos, os quais se transformaram em chagas.

O Peixe-rei acordou, sofrendo horrivelmente, e exclamou:

– Foste tu a causa destas chagas Se quiseres viver comigo, tens que me procurar num lugar muito distante daqui, chamado pico do Amor.

Assim que o peixe acabou de dizer essas palavras, desapareceu por encanto, e Marocas viu-se num lugar deserto, em meio de uma mata virgem.

Começou a caminhar muito triste; e, como estava fatigada, sentou-se debaixo de urna árvore, e ouviu esta conversa:

– O rei dos Peixes está muito mal e ninguém pode pô-lo bom, porque não sabem qual é o remédio necessário.

Disse outra voz:

– Nada mais fácil, basta apanhar três de nós, torrar-nos e colocar esse pó nas feridas.

Disse uma terceira voz:

– Ai de nós, se souberem disso!...

A moça levantou-se para ver onde estavam as pessoas que assim falavam. Ficou admirada quando viu três andorinhas, que conversavam no alto de uma árvore.

Armou um laço e apanhou-as. Imediatamente torrou-as, guardando cuidadosamente o pó.

Continuou a andar, até que chegou finalmente ao pico do Amor, por onde se entrava para o palácio do rei dos Peixes. Soube que ele estava quase para morrer e pediu que a deixassem falar com o rei, o que os criados não consentiram. Não desanimou. Insistiu outra vez, tanto, tanto, que conseguiu mandar-lhe um prato de mingau.

O príncipe começou a comê-lo, e quando pôs a segunda colherinha na boca, sentiu que havia um caroço misturado no mingau. Foi ver o que era, e reconheceu o anel que tinha dado à filha do pescador.

Ordenou que trouxessem a mendiga ao quarto e conheceu a moça. Dias depois já estava restabelecido, graças ao remédio das andorinhas que Marocas trouxera.

Voltaram ao Palácio do Mar apanharam todas as riquezas e foram morar em terra. Mandaram buscar o pescador Roberto e sua família, e casaram-se dias depois.

O príncipe desencantou-se de uma vez e nunca mais se transformou em peixe.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.