terça-feira, 20 de novembro de 2012

Lino Mendes (CONVERSA com a Escritora Dulce Rodrigues)


Mas quem  é DULCE RODRIGUES?

 Dulce Rodrigues é uma escritora portuguesa que vive um pouco por toda a Europa. Gosta de jardinagem, fotografia, arte, música, animais e livros – tanto os dos outros como os que ela própria escreve, especialmente os que escreve para crianças e jovens… de todas as idades. É uma apaixonada por História e por viagens e adora os seus dois filhos. Leia excertos dos seus livros, os textos das suas conferências, os seus artigos sobre plantas medicinais, lendas e tudo o mais que encontrar no seu sítio web – www.dulcerodrigues.info – e sinta-se à vontade em lhe dizer o que pensa… sobre tudo ou quase tudo

Mas as suas respostas nesta nossa “conversa “complementam”, e de que maneira, esta curta apresentação

1) A doutora dedica uma especial atenção à literatura para a infância, sem ignorar o género teatral.  Alguma razão para a preferência?

Efectivamente, há várias razões para a minha preferência pelo género teatral. Como menciono na página teatro do meu sítio www.dulcerodrigues.info, um texto de teatro (ou guião) pode ser usado como fonte de leitura na sala de aula ou em actividades depois das aulas. As crianças nem sequer têm necessidade de memorizar os textos, mas simplesmente de os ler, e este género de actividade dispensa mesmo o palco. O espaço da sala de aula chega para o efeito, pois o objectivo principal é a leitura do texto, se possível acompanhada de expressão verbal e corporar, coisas que os jovens normalmente adoram fazer. 

Por outro lado, os textos de teatro são sempre numa linguagem mais fácil, porque são diálogos, um discurso de todos os dias. A minha experiência mostrou-me, assim, que crianças e jovens pouco interessados pelos livros ou que sentem por vezes dificuldades na leitura ganham confiança e gosto em ler à medida que começam a poder gerir textos de teatro (guiões) de dificuldade média.

A finalidade da leitura é transmitir ao leitor conhecimentos sobre assuntos variados, sobre outras gentes e outras culturas e fazê-lo, tanto quanto possível, de uma maneira lúdica e num discurso acessível, e uma peça de teatro reune geralmente esses ingredientes. 

2) O que deve  caracterizar  a literatura infanto-juvenil?

O livro – seja ele infanto-juvenil ou para um público mais crescido – não é um objecto decorativo para pôr na prateleira. A sua apresentação gráfica é importante, mas é sobretudo o seu conteúdo literário que nos deve interessar. É no conteúdo literário que reside o valor intrínseco de um livro. Uma estória para crianças deve ter um discurso autêntico e espontâneo e desenvolver um laço afectivo entre o leitor, as personagens e o autor. A estória de um livro infantil tem de despertar a imaginação dos leitores a que se destina. É preciso que as crianças se identifiquem com as personagens, os seus defeitos, virtudes, desgostos e desejos. Mas, tudo isto, contando uma estória. 

É neste aspecto que, por exemplo, os contos tradicionais e os contos de fadas têm tanto interesse para as crianças e foram adaptados ao cinema, primeiramente por Walt Disney, por outros realizadores mais tarde. Continuam e continuarão a ser actuais – embora com algumas evoluções a nível de certos usos e costumes morais e sociais. Contam estórias que são universais e que agradam a todas as crianças, quer elas tenham vivido no século XVIII ou vivam agora no século XX; quer elas vivam na Europa ou em África. 

Na literatura infanto-juvenil, todavia, devemos considerar em primeiro lugar a idade dos leitores para que escrevemos. Se o livro se destina a crianças com idades entre os dois e os quatro/cincos anos, o indicado são livros de imagens onde o texto é reduzido a algumas frases que contam a estória. Para leitores entre os cinco/seis e os dez/onze, o texto deve ser mais extenso,mas também é recomendado que leve ilustrações. Aqui, faço a distinção entre um livro de imagens e um livro com ilustrações, pois não são a mesma coisa. Tratando-se de literatura juvenil, portanto para um público já adolescente, no meu ponto de vista o livro pode conter somente texto. Contudo, não esqueçamos que mesmo alguma literatura, em princípio dirigida aos adultos, também contém por vezes ilustrações.

No caso particular de peças de teatro, a ilustração pode ser inexistente ou reduzida a um mínimo. Contudo, considero que uma peça de teatro infantil pode muito bem incluir ilustrações se assim o entendermos. Afinal, trata-se igualmente de literatura jovem, por vezes até mais acessível a quem ainda não domina muito bem a leitura, visto que a escrita em diálogo que caracteriza uma obra literária de teatro é muito mais acessível do que qualquer outro texto de ficção. Aliás, tenciono ilustrar uma ou mais das minhas peças de teatro infantis, e o livro Le Théâtre des Animaux levou também algumas ilustrações.

Por outro lado, a escrita é também uma forma de arte, e a arte deleita. A literatura infantil – embora um utensílio através do qual a criança descobre novos mundos e desperta para novas sensações, isto é que tem um fundo moral,  pedagógico e didáctico –- não pode de modo algum esquecer a componente lúdica, a criatividade, a imaginação. Excluo a fantasia, pelo efeito nefasto que ela exerce no desenvolvimento intelectual do indivíduo, conduzindo-o a uma alienação da realidade. Na nossa sociedade ocidental actual, os jovens parecem viver desde há algumas décadas num mundo fantasista, alheados das realidades da vida, num mundo cada vez mais virtual, no plano tecnológico como humano. Penso que a literatura do fim do século passado e início do presente tem contribuído, de certo modo, para essa alienação.

3) O que devemos considerar  como literatura portuguesa?

Na minha modesta opinião, acho que hoje em dia na Europa – e até mesmo de um modo geral no mundo, com excepção ainda de alguns países – já  não existe propriamente uma literatura portuguesa ou luxemburquesa, francesa... Vivemos numa época em que as pessoas se movem cada vez mais de um lado para o outro e conhecem novas ideias e culturas. Quer nos agrade ou não, a globalização existe e reflecte-se em todos os domínios culturais. O que é preciso é que continuemos a ser nós próprios, impregnando-nos do ambiente que nos rodeia mas sem, todavia, nos deixarmos contaminar por ele. Assim, a obra de cada um será única e universal ao mesmo tempo. 

4)  Conhece e escreve para vários países. Há grandes diferenças nos projectos educativos?

Infelizmente, sim. Enquanto em Portugal reduzimos os orçamentos para a Educação e o Ensino (além dos da Saúde), em países com a França o orçamento da Educação nacional é o maior de todos os orçamentos do governo! Um povo ignorante é muito mais fácil de manipular do que um povo culto. Aliás, a Educação e a Cultura  têm sido desde sempre duas órfãzinhas no nosso país. 

Deixando de lado a “complicada” história do Ministério da Educação, que até 1976 geria igualmente a Cultura, não esqueçamos que esta última tem tido ainda uma vida mais atribulada e efémera do que a Educação, ora pertencendo a uma Secretaria de Estado, ora sendo elevada a uma categoria superior digna de um Ministério da Cultura. Estamos de novo com a Cultura entregue a uma Secretaria de Estado. A título informativo, por exemplo, data de 1959 o Ministério da Cultura em França, sem nunca ter sofrido nenhuma descida de estatuto. 

A própria palavra “cultura” parece ser algo de que muitos Portugueses fogem como o Diabo foge da cruz. “Cultura” em Portugal, só a do futebol, das telenovelas e dos programas débeis como o do “Gordo” e semelhantes e, como se já não chegasse, temos agora ainda um tal de “Café Central”. Sem falar nas touradas, de que alguns “aficionados” (empresas e membros da família) receberam em 2011 subsídios no valor de 9.823.004,34 (nove milhões, oitocentos e vinte e três mil e quatro euros e trinta e quatro cêntimos)!! Depois não há dinheiro para a Educação, a Cultura e a Saúde!

Claro que este estado “cultural” se reflecte em tudo o resto, incluindo o nível do ensino. Todos sabemos que os sábios desejam rodear-se sempre de outros sábios. Mas que  os medíocres  se rodeiam de outros ainda mais medíocres, pois é a única maneira da sua mediocridade não dar muito nas vistas. Assim, mesmo que queiramos fazer alguma coisa a nível pessoal, porque sabemos que não podemos contar com as instituições e entidades oficiais para isso, deparam-nos com um muro impossível ou difícil de transpor. Somos um povo muito bairrista e, se não tivermos uns “conhecimentos” que nos arranjem uma “cunha”, só por milagre poderemos concretizar alguma coisa. Só a título de curiosidade, nas poucas ocasiões em que contactei alguma entidade governamental – nomeadamente o Ministério da Educação em 2002, 2003 e, mais recentemente, de novo em 2012, com propostas de projectos pedagógicos, nem resposta recebi. 

Quando, regularmente, envio para um jornal qualquer português ou para um programa televisivo, supostamente cultural, uma carta ou mensagem, a carta fica sempre sem resposta e a mensagem é eliminada sem ter sido lida. Isto sucede sistematicamente também com as bibliotecas! Não devo, possivelmente, ser uma escritora com suficiente estatuto para que, ao menos as bibliotecas se dignem ler as minhas mensagens. 

Em contrapartida, como sabe, continuo a receber com regularidade convites de países estrangeiros. O último veio de França, nomeadamente de Oloron, onde tinha estado em 2009 para dar uma conferência na Câmara Municipal sobre o nosso grande poeta Camões (entre outras actividades), e nessa altura conheci os Franceses que me convidaram agora para o Salão do Livro Sem Fonteiras e visita a duas escolas da região. Em 2002, A Education nationale (nome do Ministério de Educação de França) realizou um projecto-piloto e um dos livros escolhidos e trabalhados em quatro escolas da região de Longwy (perto da fronteira com a Bélgica) foi o meu primeiro livro infantil L’Aventure de Barry. No seguimento desse trabalho sobre o livro, alguns alunos sentiram-se inspirados pelas estórias e escreveram maravilhosos poemas, para grande surpresa de professores, que nunca tinham visto nada semelhante acontecer antes, e para grande prazer meu, como é óbvio.   

Dos países com quem tive o prazer e honra de colaborar, considero que a Alemanha, a França e, de certo modo o Luxemburgo são os que mais se investem a nível educacional e cultural. Enquanto isto, Portugal torna-se cada vez mais pobre, porque a riqueza de um povo está no nível do seu ensino, da sua educação, da sua cultura.

5) Como situa Portugal neste campo e no contexto internacional? Aliás, como é a criança portuguesa em relação às outras?

Relativamente a Portugal, o ponto anterior responde a essa pergunta. Quanto à criança portuguesa, ela não fica de modo algum atrás das crianças dos outros países; é tão interessada e com as mesmas capacidades intelectuais que qualquer outra criança. O que a pode “castrar” é o meio em que vive. E nesse aspecto as nossas crianças estão em devantagem, o que é lamentavelmente injusto, porque a aprendizagem para aquilo que vamos ser mais tarde, quando adultos, joga-se precisamente nos primeiros anos. Neste aspecto, refiro-me também ao meio familiar, não somente à escola, pois é no seio da família que se dão os primeiros passos. Os níveis educacional e cultural da maioria das famílias portuguesas não são dos mais elevados, e o interesse pela aprendizagem, o conhecimento, numa palavra os interesses culturais, são muito baixos.  
    
6) Qual a sua posição face ao novo acordo ortográfico? Concorda que nos nossos jornais de referência se escreve por vezes muto mal, em especial na construção das frases?

De um modo geral, os Portugueses falam e escrevem muito mal o português, e os jornalistas (mesmo alguns que são igualmente escritores) não são excepção, contribuindo até para que haja uma degradação cada vez maior da língua portuguesa.

Quanto ao “aborto” do acordo ortográfico, dentro de alguns dias tenciono tornar pública a carta que vou enviar ao Parlamento sobre o assunto. Nessa altura; envio-lha para que a publique também, se quiser. Como já deve ter deduzido pelas minhas palavras, sou completamente contra. Foram pressões, especialmente de grandes editoras (algumas brasileiras, aliás) que estão por detrás deste acordo. E como os Portugueses, especialmente aqueles que nos têm governado ultimamente, têm um baixo perfil e se humilham perante qualquer estrangeiro, foi este o resultado...

De todos os países de língua portuguesa, o Brasil é exactamente aquele em que se fala pior e onde a língua portuguesa é mais estropiada. O que se fala no Brasil é já um dialecto português não A língua portuguesa, e por mais acordos que possa haver, mais tarde ou mais cedo seremos obrigados a considerar duas linguagens separadas – mas, entretanto, a língua degradou-se também em Portugal. Fala-se tão mal português no Brasil que as pessoas com mais educação e instrução, como professores universitários, por exemplo, dizem ter de falar e escrever mal, pois de outro modo a maioria dos Brasileiros não os percebe!  Basta falarmos com Brasileiros para nos apercebermos que eles têm dificuldade em nos compreender e que falam uma linguagem que já se distanciou da língua portuguesa, uma das línguas literárias mais antigas da Europa e que está em risco de se tornar um dialecto a curto ou médio prazo se não a salvarmos. 

Aliás, não penso que seja por acaso que a procura do ensino da língua portuguesa tenha descido 26% no estrangeiro. As pessoas aperceberam-se já dessa degradação e perderam interesse em aprendê-la.

Se já o anterior acordo ortográfico (que, curiosamente, os Brasileiros não assinaram...) não devia ter sido posto em prática – e nem sequer devia ter sido pensado – este ainda menos. Ainda o podemos recusar e, de qualquer modo, há uma maneira democraticamente cidadã de o boicoitar: não comprar livro nenhum que seja escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico. Em momento de crise, esta medida terá ainda a vantagem de se poderem adquirir livros mais baratos, em segunda-mão; e não deve ser difícil encontrá-los. Pessoalmente é o que tenciono fazer. E, claro, muito menos devemos escrever ao abrigo do acordo. Excepto as “pobres criancinhas” que serão obrigadas a (des)aprender a língua na escola. 

É fácil eliminar do computador o corrector de português. Aliás, quanto mais as pessoas se habituarem a deixar que as máquinas substituam as suas faculdades mentais, mais vão perdendo capacidades. Um dia, quando precisarem de escrever alguma coisa sem recorrerem ao corrector, não saberão como se escreve. E assim, a língua portuguesa ainda se vai degradando mais. A perda de faculdades, por causa do uso de “máquinas” que substituem o esforço de pensar, é um dos grandes problemas com que vão defrontar-se as gerações mais novas e as futuras, que possivelmente já por volta dos 50 anos sofrerão da doença de Alzheimer e outras do género. Poderemos discutir deste assunto numa outra ocasião.

Quanto aos livros que escrevo, com a evolução que o mercado editorial tem sofrido, em que é possível publicar um livro em qualquer língua em qualquer país, não publicarei certamente em Portugal se me exigirem que seja escrito ao abrigo do novo acordo. O livro infantil que publiquei recentemente em Portugal – Era uma Vez uma Casa – não foi escrito ao abrigo do novo acordo. 
   
7) Projectos para o futuro?

Tenciono continuar a trilhar os mesmos ”caminhos” que até agora:  publicação de livros infanto-juvenis em várias línguas (incluindo peças de teatro, claro) e actividades lúdico-pedagógicas, por um lado; por outro, conferências e fóruns, participação em salões do livro, publicação de livros também para um público adulto. 

Fui contactada há dias por um editor em Paris que disse ter-me conhecido durante o Salão do Livro de Paris de 2011 -- em que participei a convite do editor do meu livro bilingue O Pai Natal está constipado. É possível que se verifique uma colaboração a curto ou médio prazo. Ele disse-me ter adorado o meu livro Il était une fois une Maison, uma estória que recebeu um prémio literário em França em 2004 e que é, na realidade,  a versão original de Era uma Vez uma Casa, o livro recentemente publicado em Portugal. 

Projectos não me faltam, o que me falta é o tempo para poder realizá-los todos, pois já não sou nova...

8) Uma mensagem e tudo o que mais entender

Teria imensas mensagens que gostaria de enviar a todos os Portugueses que lerem esta entrevista. Mas vou tentar condensá-las numa pequena frase que me tem acompanhado ao longo da vida : “Desejo que cada um de nós  procure ver o mundo através do olhar da criança que todos já fomos, e que continua sempre no fundo de nós mesmos. Só uma alma de criança nos fará aproveitar em harmonia e felicidade tudo o que a Vida tem para nos oferecer.”

Fonte:
Colaboração de Lino Mendes

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 31 de dezembro de 1854: Conto Fantástico


Antes de tudo, preciso contar-vos um caso singular que me sucedeu há dois dias.

Tinha acabado de ler os contos de Hoffman, sentei-me à mesa, cortei as minhas tiras de papel, e ia principiar o meu artigo, quando chegou-me uma visita inesperada.

Se algum dia fordes jornalista, haveis de compreender como é importuno o homem que vem distrair-vos, justamente no momento em que a primeira idéia, ainda em estado de embrião começa a formar-se no pensamento e quando a pena impaciente espera o primeiro sinal para lançar-se sobre o papel.

Haveis de ver que não há nada neste mundo que se lhe compare; nem mesmo o sujeito que vem interromper-vos precisamente na ocasião em que ides fazer uma declaração de amor, ou o maçante que vos agarra e vos faz perder a hora do ônibus ou da barca.

Por isso, podeis imaginar com que mau humor, e com que terrível disposição de espírito, me prepararei para receber a tal visita, que escolhera uma hora tão imprópria, a menos que não fosse uma mulher bonita, para quem estou persuadido que não se inventaram os relógios.

A porta abriu-se; e entrou-me um homem já idoso, vestido em trajes de pretendente, de calça, casaca e colete preto. Havia naquele carão um não sei que, um certo ar de ministro demitido, de deputado que não foi reeleito, ou de diplomata em disponibilidade.

Trazia debaixo do braço um maço enorme de jornais, de planos de estrada de ferro, de projetos de navegação fluvial e de regulamentos e leis brasileiras. Quando dei com aquela papelada, fiquei horrorizado e com a idéia de que o sujeito se lembrasse de a desenrolar.

Enfim o homem chegou-se, fez as duas cortesias do estilo, temperou a garganta, e dirigiu-me a palavra.

- É ao Sr. Al. que tenho a honra de falar?

- Um se criado.

- Pois, senhor, eu sou o Ano de 1854.

- O quê?

- Eu sou o Ano de 1854.

Desta vez não havia que duvidar; tinha ouvido bem. O tal homem dos papéis ou era um hóspede que se tinha escapado do Hospício de Pedro II, ou então queria caçoar comigo. Em qualquer dos casos, não ganhava nada com zangar-me; por conseguinte, tomei o bom partido de aceitar a minha visita por aquilo que ela se anunciava.

- Muito bem, senhor; respondi-lhe eu, queria ter a bondade de sentar-se, e dizer-me o que me dá a subida honra de ser visitado pelo Ano de 1854.

- O senhor não ignora que estou breve a concluir a minha carreira política, e a retirar-me de uma vez dos negócios.

- Não, senhor, não ignoro: depois de amanhã, creio que é dia de São Silvestre, dia em que todos os membros de sua família costumam abdicar.

- É verdade, replicou-me o sujeito com um suspiro; depois de amanhã terei cessado de reinar!

- Mas creio que não foi para me dar esta grande novidade que tomou o incômodo de procurar-me?

- Decerto: o que me trouxe aqui foi especialmente pedir-lhe a sua benevolência.

- Como; a minha benevolência?

- Pois o senhor não é folhetinista?

- Tenho esta honra. 

- Ora, os folhetinistas costumam sempre fazer a despedida ao ano que finda, e emitir o seu juízo a respeito dos seus atos.

- Não me lembrava dessa! Assim...

- Vinha suplicar-lhe toda a indulgência para comigo, visto a boa vontade que sempre manifestei de bem servir, não só a este país, como a toda a humanidade.

- Meu amigo, a boa vontade só não basta. Os homens estão hoje muito positivos; exigem fatos.

- Passo a apresentá-los.

- Então vamos a isso: espere, deixe-me preparar o papel para tomar meus apontamentos. Agora estou às suas ordens.

- Em primeiro lugar, senhor, mencionarei a estrada de Mauá, o primeiro caminho de ferro que se construiu no Brasil. Isto é uma glória que ninguém me pode roubar; um fato pelo qual a posteridade  me abençoará.

- Concordo, sim, senhor; mas que contas me dá das promessas brilhantes da estrada de ferro do Vale do Paraíba, que já se devia estar construindo?

- A culpa não é minha; foi herança que recebi e negócio que já vinha um pouco transtornado. Entretanto, eu organizei a companhia do Juazeiro, e dei começo aos seus primeiros trabalhos.

- Bem, escrevo cá nos meus apontamentos as estradas de ferro; passemos ao mais.

- O senhor lembra-se que fui eu que primeiro empreguei toda a solicitude no asseio e limpeza da cidade...

- Basta, basta!... Por aí advirto-lhe que vai mal. A respeito de limpeza e de asseio da cidade, temos contas a ajustar; o senhor comprometeu-me horrivelmente.

- Eu, senhor! Não é possível!

- Escute-me; quando o senhor começou com as suas azáfamas de asseio das ruas, de regulamentos, etc., eu julguei que o negócio era sério, fiz-lhe o meu elogio, e defendi-o contra aqueles que o atacaram; mas hoje vejo que tudo aquilo quase que não passou de palavras, e que as ruas continuam a ser charcos de lama.

- Mas, senhor...

- Tenha paciência, deixe-me acabar. Há aí uma pretendida rega, que o senhor pôs em voga, e que só serve de enlamear os passeios todas as tardes: ao meio-dia tudo está seco; quando ameaça chover, aí temos as carrocinhas a refrescarem as ruas, provavelmente para que a chuva não as constipe.

- Já vejo que neste ponto o senhor está prevenido contra mim.

- Prevenido, não. O senhor caçoou completamente conosco; não tem desculpas.

- Bem, não insisto mais sobre isso; mas creio que não me poderá negar a iluminação a gás.

- Ah! a iluminação a gás! Não estou bem certo, mas tenho uma lembrança vaga de que já é idéia do 53. Entretanto concedo que seja sua. Como se defende o senhor contra as acusações que se lhe têm feito de nos ter roubado o encanto dos belos  luares, e de haver privado os namorados daquelas noites escuras tão favoráveis a uma conversinha de rótula, ou a um passeio de Rua do Ouvidor?

- Ora, senhor, esses homens não sabem o que dizem: todo o namorado, toda a mocinha – é coisa sabida – precisa de um pouco de gás. Quanto à lua, é já tão antiga que era bem tempo de acabar com ela. Entretanto esses ingratos, que falam de tudo, não se lembram que lhes fiz um grande benefício, livrando-os da lua.

- E esses eclipses não anunciados na folhinha, a má qualidade do gás, o preço exorbitante dos combustores, o cálculo excessivo da quantidade consumida! Como se defende desta e outras censuras graves que lhe têm feito os jornais?

- A falar a verdade, eu carreguei um pouco a mão; mas, além de outras razões, era preciso não desacreditar o gás, vendendo-o muito barato logo em começo.

- Bela teoria! Mas, como eu não possuo ações da companhia do gás, há de permitir que tome uma nota nos meus apontamentos: “iluminação à gás, ainda não satisfatória e muito cara”.

- Porém...

- É negócio decidido: que mais temos?

- A Rua do Cano.

- Isto é, o projeto da Rua do Cano.

- Eu não tenho culpa que o tempo não me chegasse para leva-lo a efeito.

- Mas tem culpa de haver demorado perto de quatro meses a incorporação da companhia; durante este tempo, se o senhor não se andasse divertido com questões de prerrogativas municipais, podia ter ao menos dado começo àquela obra importante.

- De maneira que o senhor não me concede nem a Rua do Cano?

- Concedo-lhe o projeto, e nada mais: a idéia creio que foi de 53.

- Pois bem, passemos agora a uma outra ordem de coisas. Fui eu que iniciei na Câmara dos Deputados diversos projetos importantes; que efetuei a reforma da instrução pública e reorganizei a Academia das Belas-Artes. Parece-me que esses fatos são títulos à estima pública.

- Certamente, sou o primeiro a confessar; é verdade que eu tenho minhas dúvidas sobre alguns desses melhoramentos; mas isto são coisas que eu tratarei de deslindar com o seu sucessor, que amanhã deve-se mandar o seu bilhete de faire part.

- É preciso não esquecer as condecorações do dia dois...

- O quê? O senhor toma-me por algum oficial da secretaria do Império?

- Como! O senhor mesmo já não me elogiou por ter tido a idéia deste fato?

- Está enganado; elogiei-o  por ter cumprido o legado dos cinco anos passados; e, de mais, isto é uma coisa que pode dar glória a um dia como o 2 de dezembro, mas nunca a um ano como o senhor.

- Finalmente esta cidade não pode deixar de agradecer-me o não ter querido imitar aquele  malvado 1850.

- Parece sepultis, meu caro.

- Perdão, senhor: não quero falar mal de ninguém; mas, à vista daquele ano, acho que se deve levar-me em conta a ausência da febre amarela e de outra qualquer epidemia.

- Ora, é boa! Nisso não fez o senhor mais do que cumprir o seu dever.

- Entretanto...

- Espere... espere... lembra-me agora; e aquele grande medo que o senhor nos meteu com o cólera!

- Ora, senhor! Retorquiu-me o sujeito com um risozinho malicioso!

- Explique-se.

- Aqui em segredo; aquilo foi um negócio com os médicos.

- Não se zangue, senhor; lembre-se do que eu fiz pelos advogados com a questão das sociedades comanditárias; do que fiz pelos jornalistas, à quem presenteei com uma boa quantidade de pufs; lembre-se, finalmente, que esse mesmo receio do cólera deu-lhe matéria para um folhetim em ocasião em que o senhor estava bem apertado.

- Bem; o dito por não dito. A respeito da salubridade pública pode ficar descansado.

- Agradeço infinitamente a V. S.

- Não se apresse tanto; talvez no fim tenha muito que agradecer-me. Até aqui tem o senhor alegado os seus direitos; agora há de permitir-me que capitule as minhas queixas. Trate, portanto, de defender-se, bem.

- Farei o que puder.

Havia algum tempo que me parecia que o tal sujeito ia emagrecendo de uma maneira espantosa, e tornando-se delgado como um varapau; mas, como era alta a noite, atribuí isto à alucinação da vista, efeito talvez da fadiga e dos raios amortecidos da luz, que mal esclarecia o vasto aposento. Não fiz, portanto, muito caso disto, e tratei de continuar a minha singular conversação.

- Meu caro senhor, sinto dizer-lhe que o senhor, embora me desse alguns momentos de prazer, contudo fez-me muitos males, e um principalmente que eu não lhe posso por maneira alguma perdoar.

- Qual, senhor?

- O ter-me feito mais velho um ano.

O homem ficou fulminado. Eu continuei:

- Roubou-me uma boa parte daquelas ilusões dos primeiros anos da mocidade; desfolhou-me algumas dessas flores que nascem nos seios d’alma, orvalhadas com as primeiras lágrimas do coração, e que perfumam os sonhos mais belos desta vida.

Cada dia, cada hora, cada momento que passa, rouba-nos um pouco dessa poesia sublime, que embeleza os nossos prazeres e consola as nossas dores. Lá vem tempo em que a alma perde as suas asas de ouro, asas que Deus lhe deu para voar ao céu.

O que há neste mundo que valha os nossos sonhos cor-de-rosa, as nossas noites de plácida contemplação, os idílios suaves de nossa imaginação a conversar com alguma estrela solitária que brilha no céu, semelhante a essas amizades santas.

Qui se cachent parfois em nos heures d’azur,
Et reviennent à nous em entendant nos plaintes?

Quando todas essas flores murcham, que resta para encher o vácuo que fica em nossa alma? Nada: o tempo foge rapidamente, e apenas deixa uma ruga na face, alguns cabelos brancos na cabeça, e um número de mais à soma dos nossos dias.

- Não, Com os anos aí vem os pensamentos sérios, as grandes coisas, a glória, a ambição, a política, as honras, os estudos graves. Confesse que isto vale mais do que todas estas frivolidades que preocupam o espírito da mocidade, e com as quais se gasta o tempo inutilmente.

Chama a isso frivolidades? O que é então que há neste mundo de sério e de real? A glória, porventura? É interessante; trata-se de bagatela o amor, as verdadeiras afeições, as mais belas expansões de nossa alma, zomba-se do homem que segue por toda parte em vestidinho de uma certa cor, que se mataria por um sorriso, e que guardaria preciosamente uma flor murcha que caísse de um buquê.

Entretanto vós, homem sério e grave, que calculas refletidamente, que do alto da vossa importância lançais um olhar de desprezo para essas futilidades do mundo, que fazeis vós?

Sacrificais a vida, a preguiça, o prazer, como diz Alfonse Karr, para um dia atar à gola da casaca uma fita de uma certa cor. Enquanto nós suplicamos um sorriso de uma bela mulher, vós daríeis um dedo da mão pelo sorriso do ministro ou do conselheiro de Estado.

Desprezais a moda; é uma coisa ridícula, mas sonhais noite e dia com a farda bordada. Se nós esquecemos tudo para, em um momento de expansão, colher numa linda boquinha rosada duas palavras que nos abrem o céu, vós renegais os amigos, prostituís a consciência unicamente para ter o prazer de ouvir (qu glória!) um passante dizer-vos – Sr.Barão.

Oh! se tudo é ilusão e quimera neste mundo, meu Deus, deixai-me os lindos sonhos da mocidade, deixai-me as visões poéticas de meus vinte anos, as minhas horas de cismar, deixai-me todas estas futilidades, e reservai para outros as coisas sérias, calmas e refletidas. Mas isto é um vão desejo. Daqui mais a alguns anos tudo terá passado, e também entraremos, como os outros, na luta dos homens graves e sisudos, e, como eles, lançaremos um olhar de desdém para essas páginas douradas da nossa vida. Apenas, nas horas da solidão, nos virá encantar a doce recordação desses belos dias em que tínhamos, como diz Lamartine:

     Um flot calme, um vent dans as voile;
     Toujours sur as tête une étoile,
      Une espérance devant lui.

Não sei se dizia, ou se unicamente pensava todas estas coisas. Tinha-me esquecido do meu hóspede.

Deu meia-noite. Senti um estalar de juntas. Voltei os olhos para o sujeito. À última pancada do relógio, um outro homem se destacou do primeiro e desapareceu.

Obstupui, steteruntque comae, et vox faucibus hoesit. Fiquei pasmo. Decididamente passava-se naquele momento alguma coisa de fantástico e de sobrenatural.

Entretanto o sujeito, calmo, mas repentinamente emagrecido, olhava-me  com um semblante tranqüilo, um pouco melancólico.Compreendeu o meu espanto, e respondeu à pergunta muda que lhe fazia o meu olhar espantado:

- É o dia 29 que acabou, e que se foi embora. Só me restam agora dois dias de vida.

Esta resposta ainda mais me atordoou. Mas afinal, como o meu companheiro esperava pacientemente a continuação da conversa, tomei uma resolução; acendi o meu charuto na vela que estava quase a apagar-se, e fui por diante, disposto a não me admirar de mais coisa alguma.

Palestramos muito tempo. Dissertamos sobre a guerra do Oriente, sobre a Europa, e mais largamente sobre os futuros destinos do Brasil. Contou-me algumas crônicas escandalosas, que presenciou, referiu-me muita anedota engraçada e muita história galante.

Viemos a falar do teatro; e ele confessou-me francamente que, a princípio, tentou deita-lo a baixo com o negócio das tesouras, e mesmo com algumas chuvas e  com a grande ventania do mês passado. Que infelizmente não o conseguiu; e por isso assentou de torna-lo a coisa mais ruim e a mais desenxabida, para ver se assim se resolvem cuidar da ópera lírica, e a construir um edifício digno desta corte.

Por fim, já pela madrugada, comecei a fechar os olhos insensivelmente, e não sei o que mais se passou.

Agora, meu leitor, se vos destes ao trabalho de ler o que ai ficou escrito, talvez desejeis saber a explicação disto. É muito simples. Tinha, como vos disse, acabado de ler alguns contos de Hoffman. Suponde que, como eu, folheais uma daquelas páginas, e segui a regra da antiga sabedoria – Nihil admirari.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Ana Maria Machado (Lenda grega recontada: A Tapeçaria de Aracne)


Há muito, muito tempo, na Grécia Antiga, contavam que Palas, a deusa da sabedoria (que mais tarde os romanos chamariam de Minerva), ensinava todos os segredos de fiação e tecelagem a uma moça chamada Aracne. 

Aracne era de origem humilde, mas se tornou tão habilidosa com fios e tramas que até as ninfas dos bosques e dos rios vinham vê-la trabalhar. Não só porque os tecidos que fazia eram incomparáveis, mas até porque a graça de seus movimentos tinha a beleza de uma arte, desde que puxava os chumaços de lã ou cânhamo até quando fazia novelos e meadas. E, principalmente, depois, quando a linha macia e longa se convertia em belos panos num tear ou era ricamente bordada em desenhos divinos. Divinos, sim. Pois todos os que viam o trabalho de Aracne logo concluíam que ela aprendera seu ofício com Palas, e cobriam a deusa de louvores.

Ora, quanto mais atenção atraía, mais Aracne se ofendia com os elogios a Palas e negava qualquer mérito à deusa. Até que certo dia acabou exclamando:

Sou muito melhor tecelã que Palas! Se ela viesse competir comigo, todos iam ver isso. E, se me vencesse, poderia fazer comigo o que quisesse. 

Antes de aceitar o desafio, a deusa se disfarçou e veio visitar Aracne sob a forma de uma velha, aconselhando-a a respeitar a experiência e a sabedoria dos anciãos e a reconhecer a superioridade dos deuses.

— Se você se arrepender de suas palavras e pedir perdão, tenho certeza de que Palas a perdoará — disse.

— Você está é de miolo mole, sua velha. Quer dar conselho? Vá procurar suas netas... Eu me defendo sozinha. Palas tem medo de mim. Se não tivesse, já teria vindo me enterrar.

A velha deixou cair o disfarce e se revelou em todo o seu esplendor:

— Pois Palas veio, sua tonta!

As ninfas e todas as mulheres se prostraram diante da deusa, mas Aracne manteve seu desafio. 

Sem perder tempo, cada uma das duas foi para um canto do enorme salão, com seus novelos, meadas, fios e seu tear. 

Durante muito tempo, uma belíssima tapeçaria foi surgindo em cada tear. Palas fez questão de ilustrar em seu bordado todas as histórias de mortais que tinham desafiado os deuses e os terríveis preços que tiveram de pagar por isso. Aracne, por outro lado, mostrou em sua tapeçaria os inúmeros crimes que os deuses já tinham cometido, recriados com exatidão e minúcia de detalhes. Cada uma, ao final, rematou seu trabalho com uma preciosa moldura tecida.

Ninguém se surpreendeu com a perfeição da obra de Palas. Mas quem ficou surpresa foi a deusa, pois, por mais que procurasse o mínimo defeito na obra de Aracne, não conseguiu encontrar uma única falha. Com raiva, bateu várias vezes com seu bastão na testa da tecelã. 

Não suportando a dor, Aracne passou um fio no pescoço para se enforcar. Mas Palas teve pena e a segurou, suspensa no ar, dizendo:

— Você tem má índole e é vaidosa, mas tenho que respeitar sua arte. Não admito que morra. Porém, você e seus descendentes viverão sempre assim, suspensos o tempo todo.

E, ao partir, borrifou-lhe uma poção que fez o cabelo da moça cair, a cabeça e o corpo encolherem, os dedos crescerem, e a transformou para sempre numa aranha, condenada a fabricar fio e teia até o final dos tempos. Sempre com perfeição incomparável. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Mário Quintana (Entrevista concedida à Edla Van Steen)


Arte: Arradium
Entrevista concedida à Edla van Steen e publicada no livro: Viver & escrever. V. 1. Porto Alegre: L&PM, 2008. 

 - Você se lembra de como ou quando descobriu que podia ou queria fazer versos?

Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneira de ser. O leitor de poesia é também um poeta. Para mim o poeta não é essa espécie saltitante que chamam de Relações Públicas. O poeta é Relações íntimas. Dele com o leitor. E não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta é que descobre o leitor, que o revela a si mesmo. O poeta que "me descobriu" foi o Antônio Nobre do Só. Tínhamos lá em casa aquela bela edição ilustrada por Antônio Carneiro, e não sei em que mãos estará agora. A propósito, o jornalista e poeta Egydio Squeff comprou num sebo um exemplar do Só onde estava escrito: "Este é o quarto exemplar do Só que eu compro. Os outros todos me roubaram." E vinha assinado em baixo: Álvaro Moreyra. Em meu primeiro livro, A Rua dos Cataventos, tenho, por dever e devoção, um soneto a ele dedicado e mais uma referência em outro poema. Isto bastou para acusarem em mim a influência de Antônio Nobre. Protesto: não há influência - há confluência, pois a gente só gosta de quem se parece com a gente. Porém, mais remota do que a presença de Antônio Nobre, está, entre as recordações da infância, a voz grave e pausada de meu pai a recitar-me o episódio do Gigante Adamastor. Aquele ritmo severo ensinava-me a profundidade da poesia e até hoje me assombra aquele verso: "Que o menor mal de todos seja a morte". Em compensação minha mãe, educada no Uruguai, recitava-me Espronceda e Becquer: "Ya se van las oscuras golondrínas". A par disso aprendi a ler muito cedo, sem quase saber que estava lendo. E ouso afirmar que as verdadeiras influências na minha formação foram Camões e O tíco-tico.

- Tentou alguma vez escrever conto ou romance?

Aos vinte anos ganhei o primeiro prêmio num concurso estadual de contos, entre duzentos e tantos concorrentes, promovido pelo Diário de Notícias, de Porto Alegre. Depois de algumas outras tentativas, reconheci que os meus contos só tinham um personagem: eu mesmo. Desisti.

- Conte um pouco de sua infância ou adolescência.

Não sei se tive infância. Fui um menino doente, por trás de uma janela. Creio que foi a ele que eu dediquei depois um soneto de A Rua dos Cataventos. O meu "elemento" era a poesia. Comecei a ser poeta como um cachorro que cai n'água e não sabia que sabia nadar. (Sabia.) E o meio familiar ajudou. Tanto meu pai e minha mãe, como meus irmãos Milton e Marieta, a quem dediquei meu primeiro livro, gostavam de poesia. Nunca tive a clássica incompreensão da família, de que tanto se vangloriam alguns poetas. Aliás, foi meu próprio irmão Milton, quinze anos mais velho do que eu, quem me ensinou a metrificar. Como tive a infância muito presa, devido à precariedade da saúde, quando pude soltei-me no mundo. Um choque. Fui criado num aviário e solto num potreiro. Daí talvez a explicação da minha posterior e prolongada boemia.

- De quem herdou os olhos azuis?

De meu bisavô holandês Van Ryter, morto num naufrágio como bom holandês.

- Seu primeiro livro - A Rua dos Cataventos - saiu publicado em 1940, quando você tinha 34 anos. Por que tão tarde?

Preguiça e consciência. Tudo o que prejudica a minha preguiça prejudica o meu trabalho. Consciência, porque eu sempre quis fazer uma coisa muito conscienciosa.

- Depois de A Rua dos Cataventos você publicou mais nove livros. Em São Paulo, durante a "Semana do Escritor Brasileiro", em 1979, você afirmou numa entrevista que o livro de que mais gosta é exatamente o primeiro. Explique a preferência, por favor. Eu disse, ou creio que disse, que "era dos livros de que mais gostavam". É o livro de que mais gosta o público em geral. Augusto Meyer e Manuel Bandeira preferiam O Aprendiz de Feiticeiro. Carlos Drummond também (ele até fez um poema sobre O Aprendiz, intitulado "Quintana's Bar"). Por outro lado, Guilhermino César e os meus colegas poetas daqui acham que o meu melhor livro é Apontamentos de História Sobrenatural. Isto é ótimo, pois eu o escrevi, na maior parte, depois dos sessenta anos.

- Muitos poetas e escritores tiveram de pagar a edição dos seus primeiros títulos (alguns ainda são obrigados a isso). Fale do que aconteceu com você.

Como disse, eu ia deixando, adiando ... Erico Verissimo, então secretário da Editora Globo, pôs-me contra a parede. Meu irmão Milton disse-me que eu ia ficar como aquela personagem do Eça, muito gabado, muito louvado ... e nada! Reynaldo Moura, poeta e amigo, pôs-me em brios: "Se você não publicar nada vão achar que você é um boêmio. Se publicar, dirão: É um escritor! Meio extravagante ... " Ora, como eu tivesse escrito também sonetos e como o soneto era uma forma meio desmoralizada, eu fiz questão de estrear com um livro de sonetos para provar que os sonetos também eram poemas. (Provei.) Provei-o muito antes de outros fazerem "a descoberta do soneto".

- "Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente... " Gostaria de comentar algo sobre a poesia de cunho social e político?

A poesia engajada? Eis aí uma questão com que, em certas épocas, costumam ser assaltados os poetas. Impossível não levá-la em conta quando se pensa no que fez pela abolição da escravatura um poeta como Castro Alves. Mas querer obrigar todos a serem Castro Alves é forte. E, convenhamos, uma boa causa jamais salvou um mau poeta. Essa gente poderá fazer mais pelo povo candidatando-se a vereadores. É muito de estranhar essa campanha contra o lirismo, isto é, contra 95% da poesia de todos os tempos. Nem se pense que o poeta lírico está fora do mundo. Os sentimentos que ele canta pertencem a todo o mundo, a toda a humanidade, são de todos os tempos e não apenas os de sua época - independentes de quaisquer restrições de nacionalidades, raças, crenças ou partidos políticos. Se não é assim, depois de resolvidos os problemas, o que seria dos poetas? Ficariam simplesmente sem assunto.

- Alguns autores escrevem a lápis, outros têm necessidade de ouvir o teclado da máquina. Quais são os seus hábitos para escrever? Costuma carregar algum caderninho no bolso?

Não sei pensar à máquina. Escrevo a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda, passo a coisa a limpo com um dedo só, na máquina. Não uso caderninhos.

- Em geral os poemas saem prontos, ou você tem apenas uma frase poética e constrói o poema em torno dela?

Às vezes a frase nem é poética. Certa vez, por exemplo, disse-me um companheiro ao observar um nosso amigo, desses do tipo "mosquito elétrico", gesticulante, etc.: "Fulano parece um boneco de engonço". Pois bem, fui para casa e escrevi um dos meus poemas mais realizados, aquele que assim começa: "Os mortos são ridículos como bonecos de engonço a que cortassem os fios". Por outro lado, meu poema O Morituro, em Apontamentos de História Sobrenatural, saiu ali publicado na sua quarta versão. E olhe lá!

- O que gosta de ler atualmente (ou gostava antigamente)? Prefere prosa ou poesia?

Leio de tudo, noite adentro, intercaladamente, novelas, ensaios, poesia. Mas, para ser sincero mesmo, parece que já passei da idade de ler coisas sérias. Em minha adolescência devorei todo o Dostoiévski (como os adolescentes liam naquele tempo, antes da era analfabetizante das histórias em quadrinhos!). Abominava Camilo, embora gostasse de Herculano. Os meus colegas adoravam Vargas Vila e Coelho Neto, que eu detestava. Pois a minha principal característica foi sempre o bom senso. Foi esse mesmo bom senso que me afastou das questões metafísicas da adolescência, pois se nem Pia tão e outros craques da Antigüidade, se ninguém, em trinta séculos de pensamento, conseguiu decifrar o significado da vida - muito menos eu! Fiquemos com o mistério da poesia. Nem foi por outro motivo que dei ao meu penúltimo livro o titulo de Apontamentos de História Sobrenatural. Há pouco você me perguntou se bastava "uma frase poética", etc. A conquista da poesia moderna é a transfiguração, acabaram-se os temas poéticos. Antes só se podia falar em cisne, agora fala-se em pato e sapato. O cotidiano, escrevi eu no Sapato Florido, o cotidiano é o incógnito do mistério. Existe a lenda do Rei Midas, que conta que tudo quanto ele tocava se transformava em ouro. O verdadeiro poeta, tudo quanto ele toca se transforma em poesia. Há poetas que sempre leio, quero dizer, aos quais sempre volto: Cecília Meireles, GarcÍa Lorca, Guillaume Apollinaire.

- "Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos", você disse na Carta a um Jovem Poeta. O que vem a ser esse medo?

Tenho medo de ceder a injunções que não sejam a da pura expressão. Pois a gente sente necessidade é de expressão. A badalada comunicação é apenas uma decorrência disso. Um poeta deve escrever como se fosse o último vivente sobre a face da terra. - Então, para que escrever? - Por isso mesmo! Como o último vivente, ele não tem de pensar no que pensarão os outros. Às vezes - às vezes? - muita vez o poeta é induzido a modas, quando na verdade não há nada tão ridículo como os figurinos da última estação. Só nunca sai da moda quem está nu.

- Entre outros autores você traduziu Proust e Virginia W oolf. Foi amor pelas obras ou alguma necessidade financeira que o teriam levado à tradução?

Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução. Quando soube que Proust estava incluso no programa editorial da Globo, pedi para traduzi-lo, por medo que caísse em outras mãos. Retirei-me do quadro de funcionários da Globo quando, por ocasião de um aumento de salário, eu não fui contemplado, sob a alegação de que me demorava muito na tradução de Proust. Traduzi da primeira até a quarta parte (Sodoma e Gomorra). Por felicidade, o restante foi cair em excelentes mãos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). E Virginia Woolf? Pois foi isso mesmo: eu não tive medo de Virginia Woolf! Mrs. Dalloway é um denso, belo, misterioso poema. Brito Broca julgou a minha tradução à altura do autor. Fiquei contente de ter sido o outro livro de Virgínia (Orlando) traduzido por um poeta como Cecília Meireles. Em tempo: quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro que ela publicou a Canção do Meio do Mundo no suplemento do Diário de Noticias, com uma bela ilustração de Correia Dias. Outro que sempre fez muito por mim foi Augusto Meyer, o nosso último humanista. O que mais me admira em Augusto Meyer é a admiração que eu tenho por ele. Embora apenas quatro anos mais velho do que eu, sempre o considerei um mestre. A saudação que ele me fez de improviso na Academia Brasileira de Letras em 1966, o Aurélio Buarque de Holanda me confessou que era uma obra-prima, com o perdão da palavra. Não sei se foi gravada.

- No seu entender, o que é uma boa tradução?

Aquela que segue o estilo do autor, e não o do tradutor. Os períodos de quadra e meia de Proust (sim, o período dele dava volta na quadra) não poderiam ser divididos em pedacinhos, por amor da clareza ou coisa que o valha, como acontece às vezes na tradução castelhana. Mas a maior alegria que tive como tradutor foi quando a minha tradução dos Romans, Voltaire, um calhamaço enorme. Com jóias como Cândido e A princesa da Babilônia, foi remetida à apreciação de Paulo Rónai, especializado em literatura clássica francesa. Ele devolveu os meus originais com a seguinte nota: “É preciso ortografar”. A tradução de Voltaire foi também a meu pedido. Você há de espantar-se que eu, assombrado com Camões, envolto de Virginia Woolf, tenha me comprazido na luz mediterrânea de Voltaire. A culpa foi também de meu pai, que adorava La Fontaine e me fez decorar algumas de suas fábulas antes que eu as pudesse ler. Assim as névoas e perigos do Cabo Tormentório eram varados pelo riso claro e simples do bonhomme fabulista. Não admira, pois, que, mais tarde, eu adorasse Racine, a par de Shakespeare. Cheguei a começar por conta e risco uma tradução da Ifigênia, de Racine, e do Sonho de uma noite de verão, as quais infelizmente se perderam. Ou felizmente, nunca se sabe. Bem, eu estava falando nas minhas atuais leituras. Há uma época de ler e uma época de reler, como diria o Eclesiastes. Agora, para descanso, estou na época de desler. E, como continuo insone (uma vez escrevi que não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna), agora leio principalmente para adormecer. É uma leitura de fora para dentro, como quem olha distraidamente a televisão. As outras leituras, as leituras de dentro para fora, excitam o cérebro e não são recomendáveis no meu caso. Leio ficção científica, uma espécie de volta a O tico-tico. A falar verdade, o que de melhor e pior se publica atualmente nos Estados Unidos são as novelas de ficção científica. Entre elas, descobri as de um grande poeta, Ray Bradbury. É dessas obras que a gente gostaria de ter escrito.

- Você gosta da literatura norte-americana?

Gosto de Scott Fitzgerald, o que não é de admirar porque ele pertence à minha geração: o mesmo caldo de cultura, a mesma sensibilidade. Gosto de Edgar Poe, e eu não compreendo como é que ele foi aparecer por lá. Deve ter havido um engano de país ou de planeta. Gosto de Gertrude Stein (Três Vidas eu já li outras tantas vezes).

- Só?

Só. Não esquecer que minha infância se passou na belle époque, quando até os americanos sabiam falar francês. Tenho uma amiga que foi para a Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe observasse que era pouco, ela respondeu: "Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês". Aproveito a ocasião para lançar o meu protesto contra essa idéia de tirarem a língua francesa do currículo escolar. O que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. Se não fosse a França. o mundo ocidental teria perdido Dostoiévski. Imagine você o que teríamos de conhecimento da alma humana se não conhecêssemos Dostoiévski. Nada. Ou quase nada. Pois me lembrei agora de Shakespeare. Mas a minha queixa é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a acreditar que sejam apenas literatura de exportação. Enquanto isto, os livros brasileiros bons não são reeditados. Nem são reeditadas as traduções de bons livros estrangeiros. Onde está, por exemplo, a minha tradução de Poeira, de Rosamond Lehman, o meu Sparkenbrook, de Charles Morgan?

- Você tem sido bastante estudado pela crítica brasileira? O que pensa?

Nem tanto. Transcrevo aqui o final do meu verbete no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de José Paulo Paes e Massaud Moisés: ( ... ) "O enganoso ar 'passadista' de boa parte da obra de M. Q., marginalizando-a no contexto da poesia brasileira posterior a 22, fez com que a crítica negligenciasse, as mais das vezes, o que há de refinadamente original no seu humor sutil e na sua diáfana melancolia". Dos que disseram bem do autor, isto é, dos que compreenderam e sentiram o autor, cito, por um dever de gratidão, o belíssimo estudo, com antologia crítica, de Fausto Cunha, em Leitura Aberta, quase uma terça parte do volume, e os estudos de Augusto Meyer em A Forma Secreta, Paulo Mendes Campos em O Anjo Bêbado. É muito significativo o meu verbete no Dicionário da Literatura Brasileira e Portuguesa, de Celso Pedro Luft.

- O trabalho crítico tem algum efeito sobre você ou na sua obra?

Nenhum.

- Quem teria sido o crítico mais sensível à sua poesia?

Augusto Meyer e Fausto Cunha. Os outros, os doutrinários, em vez de me julgarem pelo que eu sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: "Mas isto não é um trator!" Em todo caso, tive "o amor dos grandes", como escreveu Gustavo Corção a meu respeito: Cecília, Drummond, Augusto Meyer, Bandeira...

- Aliás, se não me engano, foi no prefácio dos Apontamentos de História Sobrenatural que você disse que nunca evoluiu. Que foi sempre o mesmo. Não acredita no aprimoramento técnico etceterá e tal?

No fundo, sou sempre o mesmo. Só acredito em poema escrito de dentro para fora, e não de fora para dentro, isto é, os que são como redações, que até podem tirar grau 10, mas não passam de temas escolares. Aliás, um tema é sempre um ponto de partida e nunca um ponto de chegada, da mesma forma que as bem-amadas são um pretexto para o amor. Quanto à técnica do poema, isto já é outra coisa. O poeta tem de criar ele mesmo a sua arte poética. Mas não se cristalizar nela. Aí seria então um poeta satisfeito. E um poeta satisfeito não satisfaz. Tenho tratado sempre de despojar-me. Muita vez sacrifiquei uma bela imagem em prol da unidade e do equilíbrio do conjunto. Em suma, para cada poema urna arte poética. É preciso evitar o excesso de inspiração. Ah, as associações de imagens! Elas vêm vindo, vêm vindo, até que o poema parece um desses altares barrocos, tão cheios de anjinhos que a gente não enxerga o santo. Mas escrevo tudo. Depois guardo. Deixo passar o tempo. Até esquecer o poema. Quando vou relê-la é como se fosse de outra pessoa. Aí vou cortando, para só deixar o que julgo essencial.

- Que critério deve ter um poeta ao selecionar poemas para uma antologia? O cronológico, como o adotado por você em Apontamentos de História Sobrenatural?

Ao compor a edição de meus outros livros, dividindo os poemas por afinidades entre eles, ao reuni-los depois num volume só, aconteceu que os críticos apressados, ao ler Poesias, julgaram o todo pela primeira parte. Quando adotei em Apontamentos a ordem cronológica, descobri, pela reação dos leitores, que era a melhor. Pois bem se pode dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade nem a inquietude a constância".

- O que significam na sua obra os livros infantis?

Fazem parte do menino que faz parte de mim. O Pé de Pilão creio que é uma história que eu contei mais para mim mesmo. Foi escrito à maneira da poética infantil, porque as crianças gostam muito de rimar. As brincadeiras delas são rimas em parelhas. Assim: "Olha a Gabriela cuma cara de panela. Olha o João cuma cara de feijão." Coisas assim. Nada mais que duas linhas. Eu consegui escrever uma história dentro dessa poética infantil: duas linhas, ponto, duas linhas, ponto, duas linhas, ponto. E parece que não perdeu a naturalidade, porque as crianças gostaram. Já vai para a quinta edição. A propósito, na década de 20 vi Monteiro Lobato num famoso sebo do Largo da Sé (não sei se ainda existe). Disse-lhe que adotava os seus livros infantis. Resposta de Lobato: "Isto é que me deixa com a pulga na orelha: eu escrevo para criança e barbado é que gosta". Respondi-lhe que tinha "uma imundícia de sobrinhos" (vi que ele gostou da expressão, não sei se tomou nota), e que os meus sobrinhos eram doidos pelas suas histórias. De modo que eu comprava os livros para eles, mas antes os devorava (os livros). Ora, uns dez anos depois estava eu na minha cidade natal (Alegrete) e lá eram publicados, mais ou menos mensalmente, os Cadernos do Extremo Sul. Pediram-me colaboração. Tinha eu uns pensamentos. Mas achei que umas sentenças isoladas pareceriam algo pedante e ridículo, como se eu quisesse bancar o Marquês de Maricá. Resolvi enquadrá-los em quartetos. Eram dez ao todo. O diretor da publicação enviou-a a Monteiro Lobato. Monteiro Lobato leu e gostou. Entregou à UJB, que os distribuía pelos jornais do interior (pelo mundo, disse Lobato), e pediu-me em carta que arranjasse mais, para serem publicados em livro. Entreguei-me então esportivamente à luta com as palavras. Essa luta parece que não termina nem no outro mundo. É pelo menos o que está escrito no último soneto de A Rua dos Cataventos:

Hei de levar comigo uns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão.
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da expressão!

Por falar em conhecimentos ilustres, fui ao Rio em 1966 para lançar a minha Antologia Poética a pedido expresso de Manuel Bandeira, o qual me escreveu instando-me que fosse, pois não podia viajar porque já estava com oitenta anos e queria dar-me um abraço antes. Escrevi-lhe: "Isto não é um pedido. É uma ordem. Irei. Mas você não imagina como eu sou chato no intervalo dos poemas." A primeira vez que vi Manuel Bandeira foi no Rio, em 35, quando Egydio Squeff e eu estávamos sentados num banco do Passeio Público, ocultos por umas palmas. Bandeira passou, lento, cabisbaixo, mãos às costas. Gritamos: "Manuel!" Ele virou-se, olhou para o busto de Castro Alves e continuou imperturbável o seu caminho. A última vez que falei com Manuel Bandeira, por assim dizer não falei com ele. Era num almoço da Editora José Olympio e quem falou todo o tempo foi Ivan Pedro de Martins, que estava à nossa frente e nos fez uma preleção sobre poesia, aliás belíssima.

- Sei que você não gosta de dar entrevistas ...

Poeta lírico, falo do meu eu, nos poemas, como ser humano. Mas acho incorreto estar falando sobre minha pessoa. Creio que a minha vida íntima nem a mim interessa. Quando a gente fala sobre si mesmo é para se gabar ou para se queixar. No primeiro caso, ainda passa. Mas, no segundo, ninguém gosta de despertar piedade. Disse que minha infância transcorreu na belle époque, mas isso implica uma disciplina vitoriana em matéria de educação. Como eu era o caçula, todos me observavam, me aconselhavam, me dirigiam. Havia um mundaréu de coisas que não se podia dizer, que não se podia fazer. A tragédia dos da minha geração é que nascemos e fomos criados numa casa de intolerância.

- Mas aquele ambiente familiar de poesia a que você se referiu ...

Era um mundo paralelo. Meus pais, embora lhes agradassem meus poemas, temiam a "vida de poeta". Seria bom você ler, em Apontamentos de História Sobrenatural, "O Velho e o Espelho", em que se nota a comovente tragédia pai-filho. Mesmo depois que vim para um internato em Porto Alegre, notei que certo bedel se interessava muito pelo que eu fazia. Desconfiei. Preguei-lhe algumas mentiras. E, nas férias seguintes, meu pai me falou naqueles inocentes pecadilhos inventados. Na adolescência, como eu sempre fui eu mesmo, queriam saber de onde é que eu tirava "aquelas idéias". Tempos depois, vim a saber que meu pai fora à Biblioteca Pública do Estado informar-se sobre que livros eu lia. Consultado o fichário, verificou-se que as minhas leituras, feitas nas tardes e noites de sábado, eram os novelistas russos, os poetas simbolistas franceses, as revistas de arte européias. Dessas e de outras leituras formativas, falo eu a páginas tantas de A Vaca e o Hipogrifo, creio que para desculpar-me de certas acusações de europeísmo. Puxa! É o diabo ser diferente! Certa vez, numa redação, escrevi eu: "Vasco da Gama transportou as Colunas de Hércules para a Índia". Creio que o professor morreu sem acreditar que a imagem fosse minha mesmo.

- Então a poesia só lhe trouxe transtornos!

A poesia só pode trazer alegria, a alegria criadora que, como no ato genésico, apaga tudo o mais. Em todo caso, os tempos mudaram. O fato de a Câmara de Vereadores conceder-me unanimemente, na passagem de meus sessenta anos, o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre, pelo simples motivo de ser poeta, é uma prova de que outros ventos estão soprando. Tanto que, na minha fala de agradecimento, aliás brevíssima, disse eu: "Antes, ser poeta era um agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma credencial." Outra coisa que achei extraordinária - e no mesmo sentido - foi que Alegrete, minha terra natal, resolveu gravar um poema meu em praça pública: a principal da cidade. Fiquei numa situação terrível, aquilo já tinha sido votado, mas como é que eu ia escolher um poema? Se eu achava que não poderia escolher, muito menos outros poderiam. Mas eu não podia cometer a grosseria de recusar. Em discussões que tive com o prefeito e o presidente da Câmara, disse-lhes que não podia escolher um poema porque um engano em bronze (- um engano eterno. Discutiu-se, discutiu-se, e ficou assentado que ficaria apenas isto na placa: "UM ENGANO EM BRONZE É UM ENGANO ETERNO". MARIO QUINTANA (palavras com que o poeta se eximiu a que fosse gravado um poema seu, nesta praça, como justa homenagem de seus conterrâneos). ALEGRETE 1968. Acho que este é um monumento único no mundo - foi uma grande solução. E, depois disto, no caso de não sobrar nada do que fiz, eu lavo as mãos, Alegrete lava as mãos e a posteridade toma um banho de corpo inteiro nas águas do Ibirapoitã.

- Tenciona escrever, já escreveu um livro de memórias!

Se você conhecesse o meu eletroencefalograma... Bem, temo o perigo das falsas recordações. Embora não acredite na observação direta, acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei. Mas há muito descobri que a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer. Como vê, nada disto leva a um livro de memórias, só pode levar a um livro de poemas.
o poema,

essa estranha máscara,
mais verdadeira do que a própria face ...

- Você falou nas homenagens oficiais que lhe valeu a poesia. Que me diz da Academia?

As homenagens que recebi foram espontâneas, não partiram de mim ou dos meus empenhos. Quanto aos prêmios literários, tanto o Fernando Chinaglia, 1966, para o melhor livro do ano, como o Prêmio Pen Clube de Poesia, 1977, para os Apontamentos de História Sobrenatural não dependiam de inscrição. Para a Academia é preciso o próprio candidatar-se, mexer os pauzinhos. Ainda mais, eu tenho a coragem de não animar-me a solicitar pessoalmente o voto a cada um dos acadêmicos, como é de praxe obrigatória. A vida do acadêmico, por outro lado, é dispersiva. As Academias são uma espécie de sociedades recreativas e funerárias. Você sabe como é, não precisa explicar mais. Nada como o silêncio e o recolhimento para a criação. Antes, nas histórias da literatura, vinha assim: "No Rio Grande, Érico Verissimo, Augusto Meyer, Alcydes Maya, Eduardo Guimarães e outros". Nesses outros eu me sentia orgulhosa e anonimamente incluído. Agora passei para os citados. O que importa em entrevistas, tevês, homenagens ... Isso é também uma vida dispersiva. Você não imagina a inveja que eu tenho de mim mesmo quando eu era os outros. Não gosto de estar sendo exibido como um macaco sábio. Sei que me acusam de introversão. Se eu fosse de fato um introvertido, não faria poemas. Pelos poemas sinto-me compensado, especialmente por causa do público jovem. Pois isso prova que, tendo eu atravessado umas três gerações, conservo leitores em todas elas, inclusive a minha. Portanto, deve haver algo de permanente na minha poesia.

- Aos 73 anos de idade, Mario, valeu a pena ser poeta?

Valeu e vale.

Fonte:
Escritores do Sul
(este site foi desativado)

Mário de Carvalho (Vaudeville)


(Foi mantida a grafia original)

Como de costume, à hora do almoço, Gilberto entrava no gabinete de Isabel, a directora de serviços, com papéis graves na mão, ávidos de boa ponderação e despacho, e logo fechava a porta à chave, atrás de si. Isabel recebia-o com um brando sorriso e indicava-lhe o grande sofá, forrado de napa castanha.

O edifício estava vazio, zumbiam as moscas, o pessoal almoçava, e os dois amantes iniciavam o seu ritual, rápido, às vezes tumultuoso, sempre com o travo picante da transgressão e o risco de escandaloso processo disciplinar, no caso de serem reduzidos a auto os rumores que já circulavam em todo o departamento.

Gilberto tinha a suspeita insidiosa de que partilhava Isabel pelo menos com metade da população masculina ao norte do Tejo, e a consciência do carácter caprichoso e efémero daquela relação. Mas o que havia começado de um modo um tanto indiferente, descontraído e relaxado, absorvia-o neste momento por completo, com o sabor da passagem triunfal dos limites. Durante aquela hora em que prevaricavam, Isabel queimava pauzinhos de incenso, cujos vapores tinham depois de expulsar pela janela aberta, numa azáfama divertida e excitada. Pelo resto do dia, tratavam-se com um «senhor doutor», «senhora doutora», cerimonioso e distante, a propósito de assuntos de serviço. Ao fim da tarde, partia cada qual para seu cônjuge, na fila dos funcionários em regresso.

E, assim, imperceptivelmente, mais e mais se fora firmando o empenho de Gilberto naquela ligação, estimulado pela sua própria escassez, celeridade e incompletude.

Mas Gilberto mostrava-se hoje tenso e enervado. Não fechou a porta à chave, recusou o sofá grande, atirou com os papéis para uma cadeira, aplicou ambas as mãos sobre a secretária e exclamou, dramaticamente:

«Estamos perdidos!»

Isabel não se alterou. Com uma suave compostura de gestos, acendeu um cigarro, deu um jeito ao cabelo e perguntou, num tom levemente zombeteiro:

«Credo! Então?»

«Já sabes quem vem substituir o Emanuel?7»

«Já... É uma tal Elsa Gonçalves, das Contribuições e Impostos. Tenho para aí o processo em qualquer lado...»

«É que, minha querida, a Elsa é a melhor amiga da minha mulher. E, sobre isso, a maior coscuvilheira e contadeira de coisas da Função Pública.»

«Hum...», inquietou-se Isabel.

«Se ela suspeita de alguma coisa vai logo a correr contar à minha mulher. E agora?»

«E agora é preciso sangue-frio, meu querido», sussurrou Isabel, sorrindo. E aproximou-se, depois de esmagar o cigarro no cinzeiro.

No dia seguinte, Elsa já ocupava, alegremente, a sua secretária, frente à de Gilberto. Em sinal de posse, instalara sobre o tampo uma caixa de lápis, uma moldura com fotografias e um relógio de calendário. Por parte de Isabel a recepção foi reservada e cortesmente distante, como era de esperar do desnível hierárquico. Já Gilberto foi expansivo e ruidoso nos cumprimentos e colaborou, zelosamente, com o meticuloso arrumar das gavetas de Elsa.

«Onde é que almoças?», perguntava Elsa às tantas.

«Ah, fico até mais tarde e depois talvez vá almoçar com uns tipos conhecidos, da Associação dos Amigos dos Castelos. Não esperes por mim. Olha, há por aqui uns restaurantes baratos, do tipo come-em-pé...»

Foi desesperado que, uma hora depois, Gilberto entrou no gabinete de Isabel com as pastas costumadas na mão:

«É o fim... Imagina que agora até quer almoçar comigo. Inventei uma desculpa, mas, bem vês, a situação é embaraçosa...»

«De facto, preferia não me envolver em mexerufadas», respondeu Isabel, tranquilamente, enquanto ia sublinhando a vermelho os períodos mais significativos de um longo documento em papel pautado. «Imagina que a tua mulher vinha aí fazer-me uma cena... ou que o meu marido acabava por saber ê àparecia a pedir-te contas... Desagradável, hem? Burlesco...»

Isabel arrumou cuidadosamente o papel azul e só então levantou os olhos para Gilberto:

«Quer-me parecer, meu querido, que vais ter de usar de muita diplomacia...»

«E se nos passássemos a ver mais tarde, depois do serviço? À noite, sei lá... Sempre tenho a desculpa dos Amigos dos Castelos...»

«Bem sabes que é impossível. Então, e o Raul?»

Compenetradamente, ambos estudaram a situação. Isabel serenamente sentada à secretária, e Gilberto medindo o gabinete a grandes passadas e expelindo túrgidas baforadas de fumo. Dessa vez, ninguém se lembrou dos pauzinhos de incenso.

«Há só um processo», acabou por dizer Isabel com alguma hesitação. «Rouba-lhe a amizade da tua mulher. Trata-a bem, liga-a a ti, enfim, corteja-a...»

Gilberto irritou-se. Falou alto:

«Mas cortejar, como? Aquela voz áspera, aquele corpo desengonçado... Minha querida, é seduzir a Olívia Palito, é namorar um gafanhoto...»
«Não se pescam tmitas a bragas enxuitas», replicou Isabel secamente. «Amanhã vais almoçar com ela. Depois, veremos...»

Elsa, durante o almoço, falou, falou... Tinha um assunto predilecto: a família e os filhos; e um inimigo favorito a quem chamava «as pessoas»: «as pessoas» eram tão ruins, «as pessoas» eram tão maledicentes, «as pessoas» eram tão incompreensivas.. .

Gilberto notou que ela vestia com um gosto apurado e que não era de todo deselegante aquele gesto de cigarro abando nado entre os dedos, com a mão descaída.

Já de volta, dizia-lhe Elsa:

«Ah, creio que me vou dar bem por aqui...»

E, durante a tarde, assediou a secretária de Gilberto, pedindo informações, pedindo dados, pedindo documentos... Por várias vezes Gilberto teve que esconder com a mão o bilhete, destinado a Isabel, em que dava conta de algum desespero, muita impaciência e sofredoras saudades.

A mensagem terminava com um post-scriptum imperativo: «E vê se consegues remetê-la para uma reunião, para um encontro, para um congresso, de preferência no estrangeiro...»

À saída, em resposta, Isabel passou por ele e segredou-lhe, com um sorriso:

«Vamos, vamos, porta-te bem...»

Mas no dia seguinte, a meio da manhã, Elsa perguntava-lhe, muito jovialmente:

«Então, almoça-se?»

Gilberto, sem levantar os olhos dos papéis, resmoneou que não dava jeito, que tinha de ir a despacho com a chefe.

«Não faz mal, eu espero.»

«Olha que posso demorar e, depois, sabes, os restaurantes ficam cheios...»

«Não tem importância, eu espero. Sempre é melhor que almoçar sozinha.»

Isabel estendeu-lhe a cara, quando entrou no gabinete, à hora habitual, mas Gilberto ficou-se por um beijo silencioso e fugaz:
«Ela está lá fora à minha espera...»

«Irritante, hã?»

«Ouve, temos de arranjar maneira de nos vermos noutro lado. Podíamos, talvez, uma destas tardes...»

«Impossível, com este serviço. O director-geral não me larga. Estás a ver?» E Isabel apontava as resmas de papel, em cima da secretária. «Além disso, não quero, nem de longe nem de perto, que o Raul desconfie de nada, percebes?»

Gilberto deixou-se cair no sofá com irritação: «Bolas! »

Com alguma impaciência, Isabel arrumou os óculos-de-ver-ao-perto, dispôs o pesa-papéis, figurando a Vitória de Samotrácia, sobre um monte de ofícios e voltou-se, maternalmente, para Gilberto:

«É como te disse: só há uma solução. Tens de lhe ganhar a confiança, ou melhor, a cumplicidade, entendes? A cumplicidade.»

«Mas olha, Isabel, por que não ganhas tu a cumplicidade dela? És a directora, podias, enfim, convidá-la para almoçar, chamá-la mais ao teu gabinete...»

«Ingénuo, meu pobre ingénuo...», sorria-se Isabel, «mas as razões são mais que óbvias... És tu quem pode defender esta relação, não eu.»

Foi de sobrolho derribado que Gilberto partiu para aquele almoço. A frustração, o sentimento de injustiça por ter deixado Isabel mais uma vez sozinha (mas ficaria mesmo sozinha?) amarguravam-no e induziam-lhe nas réplicas um sarcasmo contumaz.

Mas Elsa era totalmente invulnerável à ironia e indiferente a semblantes sombrios. Aparentava, contra todas as evidências, uma exuberante felicidade por se encontrar de novo em companhia de Gilberto:

«A tua mulher? E os miúdos?», perguntava. «Pensar que somos vizinhos, que nos conhecemos há tantos anos e que praticamente não nos vemos. Não tarda, vamos fazer-vos uma visita, está bem?»

«Com todo o gosto», respondia Gilberto. «Assim eu esteja em casa. Sabes, há aquelas reuniões dos Amigos dos Castelos...»

Mas já Elsa, mordiscando uma azeitona, faceiramente, mudava de assunto e inquiria:

«Olha lá, a nossa chefe, que tal?»

«Que tal, o quê?»

«Parece-me que não gosta muito de mim. Trata-me com rispidez, com secura. E eu ainda mal cheguei...»

«É isso, tu mal chegaste. São imaginações tuas. Ela é uma excelente pessoa, trabalhadora, justa... Não ligues, vais ver que não há-de ser nada...»

Elsa encarava-o agora, a face pousada nas palmas das mãos, o olhar penetrante:

«Mais uma gotinha de vinho?», queria saber Gilberto.

, «Só um tudo-nada», respondia Elsa. «É que depois posso ficar tonta...»

Mas Gilberto já pedia para dentro mais um jarro de branco, bem fresco.

Estavam ambos muito animados, à sobremesa. Gilberto despejou um imenso repertório de histórias vagamente brejeiras. Elsa ria, ria. Em dado momento, como para pedir tréguas, pousou a mão na de Gilberto, que achou a pressão magneticamente vibrátil.

«Ai, as horas que são!», assustou-se Elsa.

Fingiram que se apressavam, no caminho para o serviço.

Gilberto brincava: ora estugava o passo, ora o abrandava, com uma moleza indolente, ora parava numa montra, ora dava corridinhas breves. EIsa ralhava e ria.

Já à porta, Elsa estacou e empurrou-o, muito faceira: «Sabes, não é por nada, mas estou convencida de que a nossa chefe gosta muito de ti...»

Quando Gilberto reagiu, já Elsa tinha fechado a porta do elevador e subia, fora de alcance.

Ao outro dia, Elsa faltou.

Eram dez horas, onze, onze e meia, não tinha ainda chegado.

Gilberto foi esperando e retardando o momento de entrar no gabinete de Isabel com um pretexto qualquer, sempre sobraçando um molho de documentos:

«A Elsa falta! Podemos ver-nos à hora do almoço?»

«Não és obrigado! », respondeu Isabel com rispidez, sem despegar olhos dos papéis.

Gilberto mostrou-se estupefacto. Quis protestar. Tossiu e ia replicar quando Isabel o despediu:

«Até mais logo, meu querido, até logo, agora tenho que trabalhar...»

Mas à hora do almoço desarmava toda a fúria acumulada por Gilberto com uma exuberante demonstração de ternura. Queimaram incenso, nessa tarde. E dispersaram os cheiros, infantilmente, aos gritinhos.

Mas Isabel amuou, de repente, de braços cruzados sobre o peito, sentada no sofá. Que tinha?

«Oh, nada», respondeu. E, depois, abraçando-se a Gilberto: «Por favor, não estragues esta relação, toma cuidado...»

Quando Gilberto, um pouco mais tarde, de mente confusa, saía do gabinete de Isabel, já Elsa trabalhava à secretária, muito atenta, alinhando números com a máquina de calcular.

Durante largo espaço, Elsa foi lidando com os seus papéis. Volta e meia, atardava-se, de lápis na boca, a procurar ideias nas volutas do cigarro, e logo mergulhava na elaboração frenética de um relatório.

Desta vez, nada perguntava a Gilberto, contra os hábitos já instituídos. Afectando uma distracção distante, este não a perdia dos olhos, um tanto impaciente, na espera de ser, enfim, interpelado.

Considerava uma vez mais a graciosidade daquele gesto de cigarro desamparado entre os dedos e, sobretudo, admirava a vivacidade do belo vestido cor de cereja que EIsa trazia naquela tarde.

Superficial? Um pouco desengonçada? Talvez... mas um gafanhoto... era exagero. E, depois, aquele voltear da mão...

Só muito tarde, próxima a saída, Elsa rompeu o atarefado silêncio:

«Esta manhã fui buscar o carro à garagem. O meu marido vai para a Holanda e eu quis o carro afinado antes de ele se ir embora. Dou-te boleia?»

Quando Elsa, nesse fim de tarde, o ajudou a abrir a porta do carro do seu lado, Gilberto não se distraiu do corpo dobrado sobre o seu, nem do perfume silvestre, nem da maciez da pele. Durante o percurso, manteve-se imperturbável, conversando serenamente sobre banalidades. Mas, mais tarde, pela noite fora, aquele vestido cor de cereja veio-lhe repetidamente àideia.

«Bom, ao fim e ao cabo tenho instruções a cumprir: devo seduzi-la», ria-se de si para si. Mas não tinha muito a certeza de estar a brincar...

No dia seguinte, Isabel mostrava-se ocupadíssima, enervadíssima:

«O índice de preços? Põe aí...»

Depois, suspendendo o gesto:

«A tua nova conquista, como vai?»

«Preciso urgentemente de estar contigo.»

«Bem queria eu... Mas olha», e volteava as páginas da agenda, «vê bem, às dez com o director-geral, às onze e meia com os tipos de Trás-os-Montes, às duas, outra vez com o director-geral. Hoje é impossível, meu querido.»

«E depois do serviço?»

«Nada a fazer. Tenho de estar no emprego do Raul às seis. Jantamos hoje em casa dos meus sogros.»

E ao dizer isto, já Isabel se levantava, arrepanhando papéis de cima da mesa.

Sentado agora sozinho em frente de Elsa, Gilberto sabia que Elsa dava por estar a ser observada. O silêncio era apenas roçado pelo leve sinal da máquina de calcular dela. O cigarro sempre abandonado na mão, um ar de serena reflexão, um vestido amarelo, não tão vistoso como o de cor de cereja, mas, ainda assim...

Num sorriso intercalado entre duas baforadas de fumo: «Almoçamos?», perguntou Elsa.

«Decerto...»

E durante o resto da manhã continuaram enfronhados nas suas rotinas.

«Vamos?», interpelou Gilberto, olhando para o relógio: «Meio-dia e meia...»

Mas Elsa, debruçada do parapeito da janela, olhava agora o Tejo:

«Já viste já a luminosidade deste rio? Chega a ser agressiva...»

Gilberto aproximou-se, considerou que o Tejo corria, de facto, luminoso, mas, agressivo, seria exagero... E, sem perceber como, viu-se enlaçado com Elsa que exclamava, com voz alterada:

«Não sei, não sei como isto pôde acontecer...»

EIsa, ao almoço:

«Temos de arranjar um tempo e um espaço só para nós. Estou farta de te ver entre papéis.»

«Mas só lá vão três dias...»

«Não importa, estou farta! Quero ter-te só para mim. Faltamos uma destas tardes, está bem?»

«E a chefe?»

EIsa sorriu, dobrou e alisou o guardanapo, hesitou, titubeando um pouco, e disse:

«Não leves a mal o que vou dizer, mas... há ocasiões em que é preciso agir com tacto. Tu sempre és homem, percebes? Tens de procurar insinuar-te mais, seduzi-la um pouco. Enfim, obter-lhe a cumplicidade. A cumplicidade, estás a compreender?»

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

Teatro de Ontem e de Hoje (Besouro Cordão de Ouro)


O espetáculo se baseia na história de um mestre capoeirista do início do século XX para recriar o clima e a cultura dos rituais afro-brasileiros.

Manoel Henrique Pereira, nascido em 1885 e conhecido como o capoeirista Besouro Mangangá, ou simplesmente Cordão-de-Ouro, é citado no livro Mar Morto, de Jorge Amado. O interesse pela personagem faz o compositor e letrista Paulo César Pinheiro empreender uma pesquisa que leva ao texto teatral e à composição de dez músicas para o espetáculo, cada uma delas homenageando um toque de berimbau da capoeira.

'A peça busca preservar o caráter lendário, fazendo a história de Besouro desfilar ao sabor dos relatos de outros célebres capoeiristas, que levaram adiante o seu legado de arte e irreverência', diz o texto do programa. A história do capoeirista não é contada em forma de uma biografia linear, mas por meio de pequenas narrativas, causos, cantos e dança.

João das Neves, é ex-integrante do Grupo Opinião e um dos símbolos do teatro de resistência ao regime militar nos anos 1960. Ele dirige o espetáculo que, por intermédio do protagonista, dá voz à cultura brasileira de origem africana. A sonoplastia ao vivo utiliza um violão e instrumentos de percussão - berimbau, atabaque, pandeiro, agogô e apito.

Com um subtítulo que afirma que o espetáculo é 'um dos mais emocionantes e bonitos da temporada', a crítica Barbara Heliodora do jornal O Globo comenta: "A direção de João das Neves (com assistência de Bya Braga) tem o grande mérito de preservar o talento inato de seus intérpretes, com marcas que favorecem a imagem do espontâneo e um contato próximo porém não invasivo com o público, que se sente a todo momento provocado a acompanhar o ritmo com palmas. Nada poderia ilustrar tão bem a disseminação do mito de Besouro quanto o momento em que todos os elementos do enredo masculino contam, ao mesmo tempo, diferentes histórias de sua vida. É um trabalho excepcional. (...) Besouro Cordão-de-Ouro é um momento precioso do teatro e da descoberta do Brasil..." [1]

Notas
[1]HELIODORA, Barbara. Uma Preciosa Descoberta do Brasil, O Globo, Rio de Janeiro, 21 dez. 2006.

Fonte: