sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “07”

 

Mensagem na Garrafa – 44 –


Paulo Coelho
Rio de Janeiro/RJ

TEMPO CERTO

De uma coisa podemos ter certeza:
de nada adianta querer apressar as coisas;
tudo vem ao seu tempo,
dentro do prazo que lhe foi previsto.
Mas a natureza humana não é 
muito paciente.
Temos pressa em tudo e aí acontecem
os atropelos do destino,
aquela situação que você mesmo provoca,
por pura ansiedade de não
aguardar o tempo certo. 
Mas alguém poderia dizer:
Qual é esse tempo certo?

Bom, basta observar os sinais.
Quando alguma coisa está para acontecer
ou chegar até sua vida,
pequenas manifestações do cotidiano
enviarão sinais indicando o caminho certo.
Pode ser a palavra de um amigo,
um texto lido, uma observação qualquer.
Mas, com certeza, o sincronismo se encarregará
de colocar você no lugar certo,
na hora certa, no momento certo,
diante da situação ou da pessoa certa.

Basta você acreditar que nada
acontece por acaso. Talvez seja por
isso que você esteja
agora lendo estas linhas.
Tente observar melhor o que está a sua volta.
Com certeza alguns desses sinais
já estão por perto e você nem os notou ainda.
Lembre-se, que o universo sempre
conspira a seu favor quando você 
possui um objetivo claro e uma disponibilidade 
de crescimento.

Coelho Neto (O Vaqueiro Firmo)

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.

Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias, e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam ou arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só história dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do Sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas eram inventadas por ele, diziam; outras o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.

Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe daria tanta idade. O diabo era o reumatismo que não lhe deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava o melhor ao Firmo do Curral Novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso cavalo, o laço em volta da cinta, a aguilhada firme sobre a coxa coberta de couro cru, perdiam-se de amor por ele.

Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.

Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo som os seus dentes limados, agudos como pontas de flechas. Apesar de alquebrado e enfermo andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.

Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e de longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola a tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?! As tabaroas (mulheres acanhadas do interior) morenas sorriam com os olhos fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o cantador as fosse pisando no sapateado. Por isso Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido à faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado – nunca fugiu de arrelia fosse com um, fosse com dez ou mais.

Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado, pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:

– Isso, ahn! Isso, foi o diabo!

Firmo "vivia encostado no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? Má língua e moleza só", dizia e citava os valentes de antanho e mostrava as velhas gabando-lhes a beleza que a idade fanara:

"Serapião, homem que nem o diabo!... Ana Rosa, essa curumba (moça de baixa condição social)... foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente. Eu também pisei duro, ora!"

Firmo vivia das recordações. Passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.

À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: "Estava vivendo..." dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.

De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava... uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres: um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo, às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que apartava os dois à ponta de vara. E a marcha aproximava-se morosa.

Firmo ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sôfrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, bradando:

– Eh! eh! eh cou! ruma! ruma! Eh! lou...

E ficava longo tempo excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andavam na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas ninguém o acomodava antes de ser laçado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado, Firmo suspirava baixinho:

– Ah! Nossa Senhora! Meu tempo!

Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sitio. Nas casas dos escravos, as velhas, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.

Firmo estava doente, mal podia mover-se: passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite, justamente na véspera do grande dia. Encontrei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.

– Eh! Vaqueiro velho... Então que é isso?!

– Estou derrubado, patrãozinho.

– Mas que diabo tem você?

– Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.

– Ora qual...

– Eu é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...

– Pois eu preparei uma surpresa que te vai fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? Adivinha...

– Ah! patrãozinho, alguma alma boa. Quem há de ser?!

– Raimundinho.

O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:

– E onde está esse negro que não entra?

– Boa noite à gente da casa! – disse da porta o cafuzo.

– Entra, negro!

O cafuzo, um codoense (natural de Codó/MA) de fama, atravessou o limiar da porta:

– Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?!

– Sim porque eu não vi quando ela entrou... quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?...

– Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo.

– Como vai Noca?

– Boa.

– E Ana? Está na cidade, mais o pai?

– Hen, hen. – afirmou o cafuzo.

– Negro, você não vai daqui hoje. Ah! Patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...

– Está encordoada?

– Ó danado! Onde você viu viola de homem sem corda? E afinada. Ajunta.

O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pelas cordas.

– Passa pra luz, cafuzo.

– Lá vou.

Sentou-se no centro da sala, cruzou as pernas e, tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja.

– Anda com Deus.

– Lá vai; pigarreou e desferiu:

No coração de quem ama
Nasce uma flor que envenena"

– Eh! - gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:

"Morena, essa flor que mata
Chama-se paixão, morena."

– Pega, negro, não deixa o verso no chão!

De fora, contínuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.

Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede com esforço, arrastando a voz fraca:

– Canta, canta mais, cafuzo... Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.

Era tarde quando desci o outeiro. Raimundinho lá ficou cantando.

No dia seguinte, à hora em que saía o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viajeiro:

– Raimundinho, como vai ele?...

De longe apontou a palhoça:

– Sim.

O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes:

– Às quatro da manhã... Atirei um verso e disse, para bulir com ele: Pega, velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado!... Estava morto. E deu esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.

Subi ao outeiro. Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que veem a morte passar, à noite, com a foice de rastro, através das campinas! Bem que choraram nessa noite os bois: de certo viram a morte entrar na cabana de Firmo.

Fonte: Coelho Neto. Sertão. Publicado em 1926.

Silmar Böhrer (Poemas Avulsos)


CONFÚCIO E EU

Tenho cometido alguns sonetos
até mesmo gostosinhos,
creio que Confúcio nos analectos
rivaliza com meus versinhos.

São versos despretensiosos
escritos bem à revelia,
alguns deles, saborosos,
com gostinho de ambrosia.

Se a carpintaria é pobre
com versos de paus-quebrados,
a intenção é a de um nobre

Destes tantos que se assanham
nos momentos inspirados
em que as musas acompanham.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

ESQUECIDOS?!

Aqueles versos perdidos
entre os meus alfarrábios
podem não ser versos sábios
nem são versos esquecidos.

Na gestação deles tantos
sempre há os demorados,
pensamentos depravados,
rimas más, sem encantos.

Para a catarse sem pressa
ficam um tempo guardadinhos
no (quase) baú, lá à beça . . .

Pois versos são como as gentes,
purificam bem devagarinho
remindo maus antecedentes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O ÁS DO SONETO
(Ao Dr. Miguel Russowski, amigo)

Criatura sempre envolvente
nas planuras deste mundão,
desde cedo um competente,
fez-se hábil cirurgião.

Sendo um vivente facetado,
poliedro multilavra,
agita este mundo agitado,
também é operário da palavra.

Dos seus versos não vou falar,
pois doçuras eu não espalho,
verdadeiramente prometo,

Apenas algo eu quero evocar,
que se existe o ás do baralho,
ele é o nosso ás do soneto.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

OH! MAGIA

Ninguém a desafinar,
a orquestra cedo cantando,
corruíras, tico-ticos, sabiá,
joão-de-barro, bem-te-vi vibrando.

Uma sabatina em festa
então cá(qui) amanheceu,
os passarinhos na sua gesta
dão ao mundo o que Deus lhes deu.

Eis-me loguinho a perguntar
nesta insólita romaria
em que vamos nós a navegar,

Que outra mágica magia
haverá que se possa igualar
aos passarinhos em sinfonia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

RIMAS

Ando à procura de rimas
para algum soneto bissexto,
arrisco praticar incesto
usando íntimas enzimas.

O mais pobrete vassalo
dos vassalos do verso,
vasculho rimas no universo
pra enfeitar algum regalo.

Mesmo com a inspiração escassa
eu sigo fazendo devassa
em busca de alguma rima,

Prescruto fontes a esmo,
versos dentro de mim mesmo
pra erigir uma obra-prima.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

TRANSCENDÊNCIAS

 Ora (rireis), ouvir asneira,
o poeta Bilac não cantaria,
se as estrelas ele ouvia,
a verdade é verdadeira.

Tenho ouvido as estrelas
nestas minhas romarias,
o Cruzeiro, as Três-marias,
preciso ouvi-las e vê-las.

Num mundo de turbulências
busco mesmo transcendências
para uma vida de bonança,

Em momentos aflitivos
as estrelas são lenitivos
e bálsamos de esperança.
= = = = = = = = = = = = = = =  = 
Fonte: Recanto das Letras do poeta.
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=43868&categoria=Z

Newton Sampaio (Delírio do Zé Carijó)

— Deixe de maldade, rapaz! Pra que judiar do animal? Não sabe que isso machuca as pernas do bicho?

Geraldo, repreendido pelo pai, desistiu da proeza que queria praticar — amarrar uma lata de querosene na cauda do cavalo, que era tão manso, para depois gozar a barulheira, quando a corrida desabalada a fizesse sacolejar doidamente.

Desistiu dessa proeza, mas enfiou-se pelo fundo do quintal, à cata de novos motivos de travessura.

Zé Carijó abanou a cabeça.

— Não tem mais jeito, mesmo.

E, empunhando a foice, continuou a fazer ponta em um pedaço de peroba que serviria para ultimar a cerquinha do paiol de milho.

— Precisa ser posto em colégio de padre ou em quartel de polícia. Cruz-credo! Não há quem possa com as suas ruindades...

De dentro de casa, veio uma voz de mulher:

— Nhô Zé! Posso pôr a janta?

— Pode, Rosália. Já ‘tou com a barriga nas costas.

Largou a ferramenta. Foi até o poço tirar água para lavar as mãos. Espiou o céu.

— Quá! Nem sombra de chuva! Nem parece janeiro...

O jantarzinho foi servido no prato de folha.

— Cadê Geraldo? Vá ver se ele tá aí por perto, Rosália. 

O menino chegou com um sorriso velado, cínico, nos lábios.

— Coma depressa e vá à casa do compadre Lucas levar um recado.

Quando o garoto, já nutrido, saiu com destino ao velho Lucas, Zé Carijó puxou uma cadeira até a porta do terreiro. Chamou Ritinha, que andava pelos quatro anos.

— Filha, venha cá sentar no colo do pai.

Fora o último presente de Rita, pois, quando a criança nascera, a mulher partira desta vida para melhor.

Zé Carijó lembrava-se bem. Tinha sido difícil consolar-se com a perda de sua companheira fiel de doze anos. Enfim... Como assim rezava a vontade de Deus... Achava Ritinha (ele somente) infinitamente parecida com a mãe.

Até o mesmo nome lhe botara. E a fizera criar com carinhos requintados. Era o seu “ai Jesus”, como dizia perdidamente o Geraldo — na petulância de seus quinze anos —, que não podia compreender nem justificava a adoração do velho pela caçulinha. Até a “sinhá” Rosália — a irmã mais nova da Rita, e que passara a morar ali desde o nascimento da criança — de vez em quando gracejava com o exagero daquele amor paternal.

— Livra, nhô Zé! ‘Té parece princesa...

Zé Carijó, com a filhinha no colo, relembrava o seu jeito de vida. Não fossem a saudade da companheira e as peraltices do Geraldo (matutava), e o mundo não lhe seria mau.

Com a fuga do sol, o céu ficou todo cheinho de estrelas. E o caboclo, até muito tarde, deixou-se ficar ali, na porta da casinhola, pensando na sua Rita, que devia estar bem pra lá das estrelas, e afagando a menina do seu coração, a Ritinha, que ressonava, alheia à saudade do pai, alheia aos astros longínquos, piscantes, aos urutaus que enchiam a noite de assombrações — alheia à vida. 

Entrava mês, saía mês, e a existência do sertanejo arrasta-se no ritmo de sempre. Há certas pessoas que vivem assim: sem grandes dissabores nem gozos notáveis — o pêndulo da sensibilidade oscilando isocronicamente, suavemente de um lado a outro, na amplitude acanhada de seu movimento, sem jamais se desequilibrar no paradoxismo dos extremos.

Geraldo completara os dezenove anos. E Ritinha andava beirando já a casa dos oito. Foi por esse tempo que a pacatez do Zé Carijó começou a descambar francamente. O rapagote, cujos instintos perversos dia a dia se acentuavam, burlava a vigilância do pai. E, certa vez, sumiu do lugar, depois de praticar um roubo vultuoso contra o próprio padrinho, o velho Lucas.

Para Zé Carijó, o choque foi inimaginável. Seu nome, sempre tão honrado, manchado agora por esse malfeito do filho! 

Por muitos dias ficou abobado, indiferente, com a cara cheia de sulcos, e com uma vergonha tremenda pondo-lhe tremores na alma. Não quis mais aparecer a ninguém. Sentia-se sem o direito de olhar os outros homens. E, um belo dia, arrumou os tarecos, vendeu a moradia, pagou as poucas dívidas, e zarpou para longe, sem dizer a ninguém o destino que tomava.

A Ritinha — coitada! — chorou, chorou como nunca. Tinha amor pela casinhola onde nascera. 

Zé Carijó — mais a filha e a cunhada — tocou-se pros lados de São Jerônimo, lá no fundo sertão paranaense. E começou nova vida. Criando porcos. Plantando milho. Vendendo os presentes que a terra lhe dava.

Ninguém o conhecia ali. Achou até de bom aviso trocar de nome, embora como um eco, soubesse da regeneração do Geraldo. E, para todos os efeitos, passou a atender por “Zé de Minas”. 

Ritinha ia crescendo. Franzina sempre, tomava, no entanto, um arzinho simpático. E para Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — que, apesar de não ser muito velho, andava já com a cabeça branqueando cada vez mais — para o Zé Carijó ela era o supremo consolo, na maturidade amarga de sua vida. Fazia-lhe por isso os melhores carinhos, aguardando uma possibilidade para levá-la p’ra perto da cidade.

Um dia, começou a chegar àquelas bandas o eco das façanhas de um tal João dos Corações. Assim o alcunhara o povaréu transido, porque — era voz corrente — quando o bandoleiro assaltava inopinadamente uma vivenda qualquer, depois de levar a efeito uma razia impiedosa, matava uma das moças, se as houvesse, deixando-a de peito aberto, à mostra. Um tipo mórbido, não havia dúvida.

Vencê-lo, e a seu bando, a raquítica polícia do interior não podia. E o já famoso João dos Corações continuava a assustar o bom povo do sertão, pilhando as fazendas desprotegidas e, quando possível, obedecendo ao imperativo de seu sadismo criminoso.

Quando uns vizinhos contaram ao Zé das Minas a história do bandido, ele não demonstrou susto.

— Que adianta esse João dos Corações vir a este rancho? Eu sou um coitado, sem haveres quase...

Numa noite, em que fazia um luar muito bonito, Zé das Minas se viu coagido em ir a um guardamento na casa de um conhecido que morava a menos de meio quilômetro.

Lá se foi, recomendando expressamente a Ritinha e a Rosália que não abrissem a porta a ninguém.

— Não tenham medo. Fico lá só meia hora, pra cumprir a obrigação. Logo ‘tou de volta.

Já de regresso, quando Zé das Minas deixava a casa do amigo enlutado, um grupo de cavaleiros passava pela frente de sua casa.

— Chefe! Luz! (E apontando o ranchinho). Deve ter coisa...

Desceram silenciosamente alguns homens. Examinaram as armas. Tudo no pontinho de bala, se fosse preciso. Forçaram rápida e violentamente a porta. O vento entrou pela casa, brusco, apagando a chama da lamparina.

As duas mulheres nem tiveram forças pra gritar, de tanto susto. Imobilizaram-se, no escuro tenebroso, pois, até lá fora, uma nuvem cúmplice tinha estorvado a luz da lua. Uma logo rolou pelo chão, ensanguentada. A outra, incólume, mas exânime, caiu no fundo da cozinha.

A pilhagem quase não trouxe lucro aos assaltantes. Ainda assim, uma ou outra coisa, apanhada na obscuridade, tinha bastante serventia. Quando os primeiros bandidos se dispunham a vir para o terreiro ensombrado, um deles procurou o corpo da moçoila. Rasgou-lhe, com suma perícia, o lado esquerdo do peito. Arrastou-a depois para fora, no mesmo instante em que o Zé das Minas, de volta, atravessava a porteirinha próxima.

Sentindo a aproximação de alguém, o bandoleiro largou a vítima. Mas, ao virar-se, a lua, desvencilhando-se da nuvem importuna, iluminou-lhe em cheio a feição sinistra.

E o Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — teve tempo de reconhecer o fugitivo.

— Geraldo!...

Subiu uma onda incrível... Era piedade. E também ódio.

— Corre danado! Monta! Vai-te, bandido!

E a garganta apertou.

Zé Carijó estacou. Compreendeu tudo, num segundo. E sentiu na cabeça uma tonteira invencível. Reclamou energia extrema para das alguns passos. Chegou-se perto do corpo abandonado no terreiro. E viu o peito da sua Ritinha todo golpeado, exibindo um pedaço de coração, que parecia querer pulsar, ainda, o ritmo instintivo da vida.

Fez intenção de se baixar e levantar nos braços a filhinha de sua alma. Mas não o conseguiu. Sumiram-lhe as forças. O caboclo arregalou os olhos. Esfregou as pálpebras. Mas tudo começou a embaralhar. Pareceu-lhe que, do peito da moça, saía uma coisa pequenina, pequenina, que pouco a pouco aumentava para formar um coração bem da altura da sua Ritinha.

A perobeira, que havia ali perto, se pôs a mudar também de jeito.

O vasto matagal distante saiu do lugar e veio diminuindo, até desaparecer ali a dois passos. A luz, que estava muito clara, arreganhou-se toda em grandes curvas cordiformes, e, despencando do céu, vinha chegando, devagar, pra perto do caboclo.

Zé Carijó, com fisionomia agônica, no supremo esforço de sua vitalidade, traçou no ar, com o dedo longo, o contorno exato de um enorme coração. E caiu de borco, ali mesmo, rente ao corpo inanimado da filha.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Aparecido Raimundo de Souza (O menino e os encantos do primeiro amor)

ANTES DE CRUZAR as portas da matriz da igreja, findada a missa dominical, o garoto chegou para a menina, com um bilhetinho dobrado na mão esquerda e uma rosa vermelha escondida na outra que trazia cruzada atrás das costas. De perto, ela era, sem dúvida alguma, bem mais bonita e divinal, que vista às escondidas, de longe, com a ajuda do binóculo do pai. Rostinho de cinderela, pose de princesa, sem falar na maneira como se vestia: tão elegante e esbelta, como uma rainha dos contos infantis.

— Oi!

— Oi!

Na voz embargada, podia ser notada uma emoção indescritível. Havia um encantamento colossal e assombroso. Do sorriso emanava uma pureza bucólica que dava a impressão de se abrir em um leque de sonhos dourados e quimerados em direção a uma vida próspera e harmoniosa.

— Mandaram eu entregar estas coisas a você.

Trêmulo e indeciso, praticamente o guri jogou o bilhete que escrevera e mais vacilante ainda, atirou a rosa aos pés da criatura.  Ela sorriu com um ligeiro toque de elegância, ao tempo em que as suas maçãs faciais ruborizavam. No instante em que a preciosa esticou as mãos para receber os objetos, ele sentiu uma vontade imensa de agarrá-la num abraço inesperado e beijá-la longamente, calmamente. Seria, para ele, depois, um desejo absconso que guardaria no seu desejo eterno como um revérbero imorredouro. Todavia, um medo infantil, um tormento mesclado por mil fantasmas, não lhe deixou levar adiante o gesto pretendido. A jovenzinha, em voz maviosa, indagou “quem fora que mandara fazer aquela entrega,” mas o espavorido travesso andava longe. Corria, às carreiras, desembestadamente, feito um doidinho pelo meio dos carros estacionados, até o instante em que sumiu na esquina próxima. Temia levar um fora, um não, um chega pra lá, e, assim, ver as suas alucinações rolarem por água abaixo. 

A menina, em casa, vinte minutos depois, se acomodou na rede estendida na varanda que se fazia adornada por um jardim imenso. A residência onde morava, frenteava (do outro lado da calçada), com um parquinho. Todas as manhãs e finais de tarde, crianças das mais variadas faixas de idade vinham gastar o tempo brincando com a vida aos regozijos dos balanços e gangorras, enquanto as mães e as babás tricoteavam em seus celulares. De repente ela olhou para um ponto fixo equidistante, como se temesse a presença de alguém a observando. Na verdade, poderia ser (e, de fato, não outro), senão o tal menino que lhe fizera o lisonjeiro galanteio. Possivelmente o engraçadinho sapeca a estaria reverenciando. Se abriu inteira, numa fervura inquietante. Jurou, atrelada às suas emoções que não descansaria enquanto não descobrisse quem se atrevia a mandar recadinhos de amor a uma charmosa que mal saíra dos desabroches das fraldas. Sua mãe, por experiência própria, há muito sabia deste amor oculto. Nada dizia, só observava. E se enamorava dos seus tempos de juventude.

Entretanto, uma coisa se fazia incógnita. Ela desconhecia, ou pelo menos fingia ignorar que a sua encantadora mocinha, apesar da pouca idade, alimentava no peito um sentimento muito vivo e latejante que fazia um outro ser, possivelmente não muito distanciado dali, disparar e voar longe quando via a sua filhota por perto. A se ver, de fato, sozinha depois de se certificar que a mãe e o pai não a flagrariam, a donzela abriu cuidadosamente o bilhetinho mal escrito numa metade de folha de caderno: 

“Você é o vento que mexe nas folhas e balança as cortinas de seu quarto. Este sopro é o meu desespero batendo descompassado, querendo pular tresloucado de dentro do meu ser só para ficar escondido, quietinho, bem fundo, dentro da quentura que brota das entranhas de seu corpo. Saiba que te gosto muito. Assinado: seu admirador secreto.”

Logo abaixo, um coração desenhado e, ao lado, uma observação sublinhada com lápis de cor:

“A rosa que você está segurando agora é o símbolo do nosso futuro amor. Você será minha. Até lá, sinta o perfume dela e se embriague com o cheiro da paixão inimitável que sinto por você.” 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 1 -

Trova e imagem: Facebook do trovador
Imagem de Fundo: arte por JFeldman


Mensagem na Garrafa – 43 -


Gabriela Pais
Almada/Portugal

DEVANEIO

Quem não sonha ser princesa,
montar em branco alazão
encontrar grande paixão.
Sobre a luz da natureza
a quimera fica presa,
a cabeça em devaneio,
sonha de coração cheio.

Quem viaja com o vento
quem não vive de lembranças
e queremos ser crianças,
entressonho de espavento,
aspiração de momento,
percorrer montes e vales,
por amor sarar os males.

Cada sonho uma mensagem,
o encontro duma aventura
em mar crispo e com bravura,
a mente segue viagem
por vezes ganha vantagem,
fica liberado o amor
devaneio sai vencedor.

Fértil imaginação
fugir da realidade
almejar felicidade,
firmar realização
de melhor mundo, ilusão.
Será princípio de loucura
sonhar o que se procura?…

João da Câmara (Perdido)

Quando ouviu ao longe, no campanário da freguesia, bater meia-noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia àquela hora.

Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao ombro, aproximou-se da aldeia, que tinha de atravessar. Tudo era silêncio; apenas, muito ao longe, junto à fonte, uma rã solitária coaxava tristemente.

A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas 30 ou 40 casas, dispostas no fundo do vale, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os últimos pinheiros da mata, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.

Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava com o ouvido à escuta, olho à espreita, com um pé adiante, o outro para trás, posto de bico, pronto para a retirada. E, quando tudo outra vez caía no primitivo silêncio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobressaltado, de olhar desconfiado, como se fosse cometer um crime.

Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nódoas escuras, onde a lua, numa carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair grossos pingos d’água sobre a rama dos pinheiros. O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantásticos, em meio do sussurro da folhagem.

À medida que a encosta ia se elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossara, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como pérolas transparentes, as gotas d’água, que tremeluziam no extremo das agulhas.

Era no alto da serra que o seu tesouro junto, pouco a pouco, desde tantos anos, fora escondido. Vinha aumentá-lo naquela noite, vinha palpá-lo, tomar-lhe o peso, tendo como únicas testemunhas de prazer tamanho o céu de temporal e os pinheiros a gemerem.
* * *

Subitamente estacou. Na clareira, no meio do pinhal, era a choupana do guarda. Ouvira um choro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.

O avarento aproximou-se pé ante pé.

— Fome que o pequeno tem — dizia a mulher com a voz chorosa, interrompendo o canto. — Se eu não comi!... Secou-me o leite. 

E chorava.

Aquela mulher pedira-lhe esmola na véspera. Pedira- lhe esmola!... Tinha fome, dizia. E ele?... Tinha frio. E ele? O filho definhava-se, desde que o marido dela adoecera. Pedira-lhe esmola, como se lhe fora possível, a ele, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!

Mas ao som daquela voz estremeceu, porque ela, doida, ofendida pela recusa, desgrenhada, olhos injetados, chamara-lhe de ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados junto da cara.

— Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, hás de chorar, em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama... ladrão!

E só a ideia de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe eriçou todos os pelos do corpo.

Afastou-se da choça, para longe afugentar aquela ideia soturna; mas poucos passos andara, quando lhe pareceu ouvir o lenhador, com uma voz fraca de tísico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.

Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido a escuta, sentindo bater acelerado o coração. Calara-se tudo na choça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal afora uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de sofrer.

Tentariam aqueles roubá-lo?

E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal afora, deixando o vento levar-lhe o chapéu esburacado e remoinhar-lhe nas longas farripas (cabelos ralos e um tanto compridos) grisalhas, largando aos bocados nos tojos (plantas espinhosas) e nas silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma (folha de pinheiro), agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali afora, até ao alto da serra, onde se deixou cair extenuado ao pé dum enorme pinheiro manso, seco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de espectro.

Era ali o seu tesouro.
* * *

Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos úmidos, arquejando longamente. Depois, criando ânimo, mostrando força inacreditável em corpo tão franzino, com os braços ósseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro.

Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, meteu-lhe dentro as mãos e, arquejante, fazendo um esforço supremo, com um ah! de vitória, puxou para si o cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do êxtase.

Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.

Ali estava o seu tesouro!... Seu!

E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimazinha no olho, abaixando-se para sopesá-lo.

Queriam roubá-lo talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente de uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendê-lo como nunca uma loba defendeu um filho.

Podia alguém ter desconfiado do lugar onde o escondera... Era muito noite, ainda teria tempo de sobra para levá-lo dali. Felizmente não lhe escasseavam forças. Querido tesouro da sua alma, junto moeda a moeda!

E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a dele; pedia-lhe, cheio de ternura, que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração!

Os pinheiros úmidos tornavam balsâmica a atmosfera. Os raios oblíquos da lua quebravam as sombras das árvores nos troncos das outras e as sombras das copas bailavam, fantásticas, sobre os fetos molhados. E ele ali, tão sozinho com seu tesouro! Havia tanto que lhe não punha os olhos! 

Sentando-se numa pedra, aproximando o cofre, com um esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.

O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faíscas de ouro. E o avarento, em êxtase, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!

O vento cessara de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um grito de dor, estrídulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo eco da montanha empinada, partiu da choça do lenhador.

Eram eles com certeza!... Eram os ladrões!

Ergueu-se abraçado ao tesouro, transido de medo, suando frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos esgalhos, caindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia.

E durante toda a noite, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.

Quando o luar começava esmorecendo ajoelhou meio desfalecido, e com as unhas agudas, recurvadas, abriu uma cova funda onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, de onde estava antes. Tapou tudo e, por instinto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez.

Era manhã quando chegou na casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabelos agarrados às faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cair no catre nojento.

O dia rompia sereno. O vento abrandara e só por detrás da serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paisagem, em que destacavam alvejantes os casarios. O sol erguia-se esplêndido, enchendo os campos de joias cintilando no escrínio de verdura. A aldeia acordara num banho de luz, cheia de bulícios, de cantos de galos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma colunazinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços. 

Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delírio, apenas intercalado por curtos sonos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquela noite agitada.

Viu-se percorrendo o pinhal imenso, que gemia e dançava lugubremente, contorcendo-se no temporal como um condenado na fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nódoas negras, os joelhos escalavrados.

Mas onde enterrara o seu ouro?

Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sítio, a forma de algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, trêmulo, suando frio. 

Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a boca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas às portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam, no riacho, tostando ao sol os ventrezinhos redondos e as cabecinhas loiras.

E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali afora! Ali estava o seu tesouro, ali debaixo de uns fetos, cujas hastes se abriam à sombra de uns pinheiros, fetos e pinheiros todos iguais naquela imensidão!

Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cérebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia!

Quase noite foi dar à choça do lenhador.

Lembrou-se então que dali partira o grito que o amedrontara e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:

— Ladrões! Ladrões!

No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, pálida, mirrada, as mãozinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha de seda roxa.

E o pai e a mãe, ao lado do cadáver do filho, choravam mansamente.

O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo último vislumbre da razão. Recuou instintivamente e foi cair sobre um grande molho de achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgazeados, doido de todo e para sempre.

E diante dele passavam bandos alegres de pintassilgos fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que ele deixara nas silvas do pinhal enquanto os gaios contentes, aquecendo-se ao último raio de sol daquela tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas irônicas.

Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) – 2 –


NOITE DE NATAL

Na noite tão divina, estou sempre sozinho,
na favela onde vivo, eu sei que não sou mal.
Já cresci, mas não sei por que, meu bom velhinho,
não mereço um presente, noite de Natal!

Não te esqueças, Noel, que eu tenho um sapatinho,
que eu tiro do meu pé e o ponho no quintal,
passa a noite a esperar teu gesto de carinho,
tremendo de emoção, nas cordas do varal.

O meu sonho não morre, e eu vivo esta esperança,
porque quero sonhar, e enquanto eu for criança,
cobrarei do senhor o bem que sempre fiz,

Meu pobre sapatinho já nem presta mais,
mas eu vou te esperar Noel, noutros Natais,
porque quero um Natal, mais justo e mais feliz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SONHOS DE UM SEPTAGENÁRIO

Aos setenta de idade, eu conto agora,
tudo quanto perdi, quanto ganhei;
venci muitas batalhas mundo afora,
quando fui derrotado, não chorei.

Esse velho poeta a Deus implora,
que proteja a família que eu sonhei,
que me guarde esse amor, sonhos de outrora,
o mais rico troféu que conquistei.

Eu não sei se meu sonho, na velhice,
terá sempre o vigor da meninice,
mas um sonho de amor não me envergonha...

Se eu errei, meu perdão pelo que fiz,
que quem sonha, na vida, em ser feliz,
será sempre feliz enquanto sonha!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

TRISTE CORAÇÃO

Vi teu rosto num sonho e fiquei rindo,
no verdor da mais linda mocidade.
Como é doce beijar a flor se abrindo,
aos suspiros do amor, na flor da idade.

Na verdade, eu te vi sempre sorrindo,
como estavas no sonho, sem maldade.
Mas o amor, mesmo em sonho, me iludindo,
redobrava o temor desta saudade.

E depois deste adeus, tu foste embora,
nem sequer, acenaste a um ser que chora,
num silêncio esquisito e sofredor...

E eu do sonho, acordava e, por lembrança,
só restava, do tempo de criança,
velha foto repleta de esplendor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MEMÓRIA

Esta dor que me fere e me magoa,
quando lembro da minha mocidade,
nem me importa, que a dor, tanto me doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente, eu vou lembrando,
de saudade em saudade, eu vou vivendo,
mas não posso esquecer, de quando em quando,
que em teus braços, aos poucos, vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice...

Mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre, na lembrança,
a saudade feliz da meninice!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

GANÂNCIA DESUMANA

Quem me dera as belezas campesinas
das manhãs orvalhadas do meu chão,
aves soltas, voando nas campinas,
pirilampos riscando a escuridão.

Sem beber mais nas fontes cristalinas,
como bate tristonho o coração;
guardo tristes, gravados nas retinas,
os instantes felizes que se vão.

E os heróis da ganância irrefletida,
vão, aos poucos, matando a própria vida
de quem tudo, na vida, já lhes deu...

Chora a fauna, e a floresta não reclama,
porque sabem que o bruto também ama,
mas quem ama este mundo já morreu!

Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo autor.