sexta-feira, 8 de março de 2024

Décimo Aniversário da Sunshine


Hoje, 8 de março é o décimo aniversário de minha cadelinha que mora comigo, a Sunshine (Shine para os íntimos). Quando a recolhi da rua, ainda filhote junto com sua irmã de infortúnio, a Cléo (que morreu novinha de infarto fulminante), ela estava muito ruim, e por cerca de 1 semana eu estive cuidando dela, dia e noite. À noite eu dormia com as duas no meu colo. Hoje está uma moçona linda, cruzamento de Husky Siberiano com sei lá quem, ou como digo brincando, com Cruz Credo. 

Então excepcionalmente, a trova acima é para esta cadela maravilhosa, que hoje é ela quem cuida de mim 24hs por dia.







Newton Sampaio (Damião)

Naquele passo, a estrada se pôs mais estreita. Sinal de que a mata ia aparecer na primeira curva. Damião espiou pra cima. Era uma só faiscação, o sol. Chegava a doer, de tão claro, de tão quente. Pisou o chão, odiando quase. Mas o chão sabia se vingar. A vingança era a poeira. E era também aquele bafo que sufocava — o bafo da terra ressequida.

Deu mil graças a Deus quando alcançou a mata. Entrou nela, com vontade.

Reconheceu o guaretá (espécie de árvore) raquítico na exibição diuturna do tranco enfezado. E a canelinha, pletorada de folhas. A canelinha era bem um archote verde à beira da estrada. E aquela pindaíba, então? Parecia um urso. No entanto, os cipós se lhe espiralavam avidamente no tronco, como serpentes enfurecidas. A pindaíba, mais os cipós, tinham a expressão fugace de dois seres hostis em empenhado conflito.

Respirou profundamente. Sentiu-se dono de tudo aquilo. Dono dos caules que tomavam em cima aquela disposição confusa e resolviam-se abaixo da superfície naquele emaranhado de raízes possantes. Dono da folharia que silhuetava sobre o caminho, só pra formar abóbada rendada e não deixar o sol entrar do jeito que quisesse.

Dono do riacho humilde, esgueirando-se por aqui, por ali. Abaixou-se, a lavar o suor. E, com a mão em concha, bebeu até não poder mais.

Depois foi andando, com passo lerdo. De tão distraído, uma vareta de lambe-papo lhe queimou a epiderme. Reagiu incontinenti. E tomou tento de sua obrigação. 

Baitacas em bando traçavam um rastilho verde no céu do sertão. Teve, de supetão, uma bruta vontade ser baitaca...

Chegou no paiol do Malaquias. Foi só o tempo de entregar o bilhete, trepar na carroça, e fazer estalar o chicote. A arrancada dos animais aumentou o alarido dos guapecas. O cuidado na direção não lhe facultava espiar a simetria caprichosa do cafezal — o cafezal que se perdia de vista nas requebras do monte.

Nem ligou. Estava enjoado daquilo...

O menino o que queria era chegar em tempo na casa do coronel. Por isso nem percebeu que em pouco apareceu certo ventinho. O vento foi ficando mais forte, mais forte, movendo com energia as copas das árvores. E erguendo muito o pó da estrada. E revoluteando-o em espirais ralas. Já, em redemoinhos mais espessos.

Lá em cima, inumeráveis nuvenzinhas apareceram, avolumando-se logo. Deslocaram-se. Uniram-se. Compuseram outras maiores, que subiam no céu, escurecendo-o. Quando Damião deu em si, a tempestade estava desencadeada. 

Caiu um raio no lado sul. E o trovão, largo tempo, ficou reboando. Tinham dificuldade em vencer o caminho os animais, mas Damião não queria saber disso. Fustigava-os, sem piedade. Até com o cabo do chicote. Assim ele se vingava das chicotadas que lhe dava a chuva. A chuva batia no rosto, emplastrava os cabelos, atravessava a roupa. No Fundão do Santo, viu o negro Ezequiel, na porta da tapera, de mãos supinas, carapinha à mostra, orando, orando.

Passou de largo, afrouxando as rédeas. Ezequiel pisou o terreiro e abriu os braços, feito uma cruz. Damião sofreu um medo louco do feiticeiro.

Doíam perdidamente os braços. E a carroça pesava cada vez mais. Pensou em descansar no primeiro rancho. No primeiro? Virgem Maria! Era o rancho dos leprosos. Fez o sinal da cruz com a mão canhota.

Na volta do Faria a chuva se pôs mais branda. E como estava ansioso por demonstrar ao patrão a presteza com que agira, a intervenção heroica feita no negócio do doutor Henrique, dispensou qualquer descanso.

Atravessou o terreiro da casa grande com o coração batendo forte. Aquele baticum era mais de orgulho pela sua proeza. Desceu, lépido. E viu um cavalo arriado no toco. Entrou. Vinha encharcado, ofegante. Apenas o viu, gritou o coronel. 

— Nhengo do inferno! Só agora?

E meteu um tabefe medonho no menino.

Damião, sem compreender coisíssima, rolou no chão. Parecia um possesso o coronel. Sapecou-lhe um pontapé de classe.

— Toma, vagabundo. Toma, pra criar vergonha.

Ninguém tentou a defesa. Sabiam todos como era o coronel Florêncio.

O caboclinho fugiu pra cozinha, manquitolando, em soluços. Sentiu crescer, dentro do peito, um ódio de morte. Então ele fizera o impossível para salvar o negócio, e era assim que o recompensavam?

Chorou, baixinho. Nem as lágrimas se viam. Elas faziam corpo com a água escorrendo do cabelo, escorrendo...

Frederiquinho, vestido de marinheiro, muito janota, ficou na porta, espiando. Enquanto isso, o coronel Florêncio dizia impropérios.

A chuva o livrara do incêndio do paiol. Mas não o livrara de outro fogo — que tal era a má-fé do doutor Henrique.

Repetiu uma porção de vezes:

— Doze contos! Canalha... Doze contos! Vai me pagar. Ah, se vai.

Pra que serve a garrucha do Benedito? Pra quê?

Naquela noite, Damião jurou que havia de fugir da fazenda.

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 06/11/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 3


AMOR À TERRA

Amo-a (hoje) como só amanhã
a deveria amar. Amo-a, mas ainda
em viagem.
Por antecipação. Como a um sol,
entre ouro e obtuso.
Monstruosa estrela já em desuso.

Já relegada para um verso
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AMOR DE CABOCLO

O caboclo na sua choupana,
à hora em que a tarde desmaia vestida de chita
está pensando naquela estrangeira bonita
que viu apanhando café na fazenda.
(Os grãos de café debulhados
pareciam rubis e esmeraldas redondas
caindo em balaios dourados)

Um par de bois vagarosos rodeia rodeia
fazendo rodar os cilindros da moenda
uns agarrados aos outros
por dentes rombudos de pau.

Passa gritando no céu sertanejo
o último pica-pau.

“Ela não é brasileira...
Ela veio outro dia
trazendo goiabas maduras
na cesta dourada.

Ela parece de tão estrangeira
uma formiga ruiva.
Mas por ela (ele pensa)
eu era capaz de fazer uma casa
e de plantar uma goiabeira...”

E já sentia na boca
o caldo das melancias com cheiro de terra
e o gosto matutino das goiabas…
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A NOTÍCIA

Então o vento
lá dentro da serra,
onde apenas havia
o barulho insensato
das coisas sem nome
começou a bater
a bater rataplã
no tambor da manhã.

Então os ecos
saíram das grutas
levando a notícia
por todos os lados.

Então as palmeiras
ao fogo do dia,
em verde tumulto,
pareciam marchar
carregando bandeiras.

Depois veio a Noite
e os morros soturnos
levavam estrelas
por vales e rochas
como uma silente
corrida de tochas…
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AS 4 IRMÃS E O AMIGO

A uma ofereci um Cristo.
A outra dei um relógio
(um relógio de parede)
A terceira abre a janela.
A última recebe o amigo.
Meu amigo que não veio
e um dia virá da rua.

A primeira em cujo peito
o alvo Cristo chora sangue,
fica a minha cabeceira,
quando sofro, em duro leito.
A segunda conta as horas,
forçando-me a ser exato
entre as mais tristes demoras...

A terceira, pitoresca,
tem sobre o seio uma rosa
estampada em tinta fresca.
A última é a que recebe
o meu pão de cada dia,
o jornal, de manhã cedo;
é a que guarda o meu mistério,
e fica a porta da rua
que vai para o cemitério.

Com a primeira me confesso.
Com a segunda conto as horas.
Com a terceira olho a paisagem.
A última – é o que lhe peço –
será noiva do meu corpo
numa viagem sem regresso.

Ó Cristo de olhar antigo,
ó minhas horas de espera,
ó flor azul da janela!
Ó minha futura noiva
que estás a porta da rua,
onde estará meu amigo?
Meu amigo que não veio?
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BAIRRO POBRE

A italianinha que vende frutas
passou com a carrocinha pintada de novo
levando toda uma alvorada brasileira
feita de abacaxis, de melancias gordas,
e bolas roxas de maracujás.

(Não há nada mais interessante do que a gente
observar por um vão de janela a alma simples do povo)

Quando ela passa no anil redondo da manhã,
com o seu vestido verde e seu lenço amarelo
preso à cabeça, às vezes penso (não faz mal)
que ela fez seu vestido e seu lenço
de uma bandeira nacional.

No quadro vermelho da tarde
O Brás lembra um grande cartaz de letreiro vivaz.

Depois vem a noite e vem com ela
um varredor de cascas de laranja.
Um lampião cor de gás numa esquina da rua
passa a maior parte da noite a piscar o olho verde
arremedando a lua como um bobo.

O último poeta passadista
sob o noivado da garoa
quando abre a boca e canta
parece que está segurando e espremendo o silêncio
pela garganta.
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BALADA PARA MINHA MÃE

À hora difusa, decomposta,
em que as perguntas terrenas
ficam no ar, sem resposta;
em que as coisas maiores do mundo
nos parecem pequenas;
em que se arrancam as palavras
ao nosso corpo moribundo
como se arrancam pobres penas
à asa de um pássaro ferido;
à hora crucial dos vãos confrontos
e das inúteis cantilenas,
não se dirá de mim, ao certo,
que houve a mais triste das cenas;
nem se dirá que minhas mãos
semeando o mal, como semearam,
terão a cor das açucenas
se para o bem foram pequenas. . .
À hora sem brilho, sem resposta,
minhas mágoas serão serenas;
pois há um nome que foi feito
pra ser pronunciado por último
por ser uma sílaba apenas. . .

Beatrix Potter (O Conto de Tom Gatinho)


Era uma vez três gatinhos, e seus nomes eram Mittens, Tom Gatinho e Moppet.

Eles tinham seus próprios casacos de pele; e eles tropeçavam na soleira da porta e brincavam na poeira.

Mas um dia a mãe deles – a Sra. Tabitha Twitchit – tinha amigos esperados para o chá; então ela trouxe os gatinhos para dentro de casa, para lavá-los e vesti-los, antes que as visitas chegassem.

Então ela escovou o pelo deles (esta é a Mittens).

Então ela penteou suas caudas e bigodes (este é Tom Gatinho).

Tom era muito travesso e arranhava.

A Sra. Tabitha vestiu Moppet e Mittens com aventais e calças limpas; e então ela tirou todos os tipos de roupas elegantes e desconfortáveis de uma cômoda, a fim de vestir seu filho Thomas.

Tom Gatinho era muito gordo e tinha crescido; vários botões estouraram. Sua mãe os costurou novamente.

Quando os três gatinhos estavam prontos, a Sra. Tabitha imprudentemente os levou para o jardim, para ficarem fora do caminho enquanto ela fazia torradas quentes com manteiga.

“Agora mantenham suas roupinhas limpas, crianças! Vocês devem andar sobre as patas traseiras. Fiquem longe do poço de cinza, e de Sally Henny Penny, e do chiqueiro e dos patos.”

Moppet e Mittens caminhavam cambaleantes pelo caminho do jardim. Logo elas pisaram em seus aventais e caíram de nariz.

Quando elas se levantaram, havia várias manchas verdes!

“Vamos escalar o rochedo e sentar no muro do jardim”, disse Moppet.

Elas viraram seus aventais de trás para frente e subiram com um um salto; a manta branca de Moppet caiu na estrada.

Tom Gatinho era incapaz de pular quando andava sobre as patas traseiras em calças. Ele subiu o rochedo gradualmente, quebrando as samambaias e derrubando botões à direita e à esquerda.

Ele estava todo em pedaços quando alcançou o topo da parede.

Moppet e Mittens tentaram puxá-lo juntas; seu chapéu caiu e o resto de seus botões estourou.

Enquanto eles estavam com dificuldades, ouvem um pit pat pit pat! e os três patos vieram pela dura estrada, marchando um atrás do outro e fazendo o passo de ganso – pit pat pit pat! pit pat pit pat!

Eles pararam e ficaram em fila, olhando para os gatinhos. Eles tinham olhos muito pequenos e pareciam surpresos.

Então as duas patas, Rebeccah e Jemima, pegaram o chapéu com abas grandes e os colocaram.

Mittens riu tanto que ela caiu da parede. Moppet e Tom desceram atrás dela; os aventais e todo o resto das roupas de Tom saíram na descida.

“Venha! Sr. Drake Pato”, disse Moppet – “Venha e nos ajude a vesti-lo! Venha e abotoe Tom!”

O Sr. Drake Pato avançou lentamente de lado e pegou as peças de roupas.

Mas ele as colocou em si mesmo! Elas se encaixavam nele ainda pior do que Tom Gatinho.

“É uma manhã muito bonita!” disse o Sr. Drake Pato.

E ele, Jemima e Rebeccah Pato começaram a subir a estrada, mantendo o passo – pit pat, pit pat! pit pat, pit pat!

Então Tabitha Twitchit desceu o jardim e encontrou seus gatinhos na parede sem roupas.

Ela os arrancou da parede, bateu neles e os levou de volta para casa.

“Meus amigos chegarão em um minuto e vocês estão terríveis; estou muito brava”, disse a Sra. Tabitha Twitchit.

Ela os mandou para cima; e lamento dizer que ela disse a seus amigos que eles estavam de cama com sarampo; o que não era verdade.

Pelo contrário; eles não estavam na cama: nem um pouco.

De alguma forma, houve ruídos muito extraordinários acima dos convidados, que perturbaram a dignidade e o repouso da festa do chá.

E acho que um dia terei que fazer outro livro, maior, para contar mais sobre Tom Gatinho!

Quanto aos Patos, eles foram para um lago.

A roupa saia toda na hora, porque não tinha botões.

E o Sr. Drake Pato, e Jemima e Rebeccah, estão procurando por elas desde então.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Tom Gatinho. Publicado originalmente em 1907 como The Tale of Tom Kitten. Disponível em Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Vitória da Conquista/BA)


Conquista, joia do sertão baiano;
Esperança ridente do brasil
A ti, meu orgulho soberano.
O afeto do meu peito juvenil
A ti minha esperança no futuro
Os sonhos do meu casto coração,
És e sempre serás meu palinuro*
Ó pérola fulgente do sertão

Refrão:
Conquista tesouro imenso...
O mais belo da Bahia,
Que primor, que louçania
Tem mais brilho aqui o sol;
Conquista terra das rosas,
De florestas seculares,
Tem mais amor em seus lares,
Que luzes no arrebol.

(refrão)

Deixar o doce encanto destas ruas,
Deixar teu céu que tanto bem almeja,
Eu morreria de saudades tuas
Minha querida terra sertaneja,
Entretanto, se a pátria me exigir,
Deixar-te para a pátria defender
Este afeto bairrista é vã mentira,
Pelo brasil inteiro irei morrer!

(refrão)

Surge o sol, fogem pássaros dos ninhos!
Todos vão venturosos trabalhar;
Eu também imitando os passarinhos
Deixo o morno regaço do meu lar,
Para a escola caminho satisfeito,
Da pátria vou saber as glórias mil
Conquista, que emoção vibra em meu peito...
Ao fitar-te no mapa do brasil.

(refrão)
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*Palinuro = piloto, guia.

Estante de Livros (“Angústia”, de Graciliano Ramos)

Apesar de Vidas Secas (1938) ser considerada a obra emblemática do escritor alagoano Graciliano Ramos, o romance Angústia é uma de suas obras-primas, mesmo que ignorado pela crítica na época de sua publicação, em 1936. Segundo o professor Fabio Cesar Alves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, da USP, Angústia é o terceiro romance do autor – os dois anteriores são Caetés (1933) e São Bernardo (1934) – e foi lançado quando Graciliano Ramos ainda se encontrava preso, sem processo nem acusação formal, pela polícia política de Getúlio Vargas.

“A contragosto do próprio Graciliano, o romance sai com ele ainda na prisão. Inclusive os companheiros de cela fazem uma festa para comemorar dentro do presídio a publicação de Angústia e ele autografa vários exemplares para seus companheiros, que eram pessoas como Eneida de Moraes, Olga Benário e Aparício Torelly”, conta o professor. “De certo modo é um livro que vem à tona num momento muito crítico da vida brasileira”, acrescenta.

Segundo Alves, “a questão fundamental é que nesse romance, em particular, Graciliano Ramos, que já é autor de uma obra bastante introspectiva, consegue unir essa introspecção à crítica social, que é própria da geração de 30”. Para o professor, Angústia é um romance que promove uma espécie de amálgama entre a tomada de consciência do País nos anos 30 e a introspecção e o subjetivismo próprios dos romances anteriores.

Penso que esse livro dá conta dessas contradições que estavam em jogo nos anos 30 e, ao mesmo tempo, mostra uma espécie de falta de horizonte do Brasil e desse personagem-narrador, que é o Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida, num momento de modernização acelerada do País. ” E nesse sentido, segundo o professor, é bastante atual, porque procura mostrar também o que permanece de patriarcal, de escravista e de atrasado na nossa estrutura e na nossa vida social. “O saldo é extremamente amargo. É uma denúncia daquilo que permanece insuperável.

O professor explica que Luís traz lembranças de uma abolição recém-proclamada, do patriarcado – representado pelo seu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva – e do velho mundo da fazenda, que, de certo modo, esse narrador procura recuperar no seu presente, o Brasil moderno dos anos 30.

“Para Luís, Julião Tavares, com quem disputa o amor de Marina, representa a burguesia arrivista que ele tanto odeia. É o poder do dinheiro e não mais da posição social herdada. Portanto, há um confronto entre o velho País colonial e o novo País que começava a ser construído a partir da era Vargas”, relata. “O Luís é uma espécie de desambientado em Maceió, porque ele vem dessa oligarquia rural e decadente, que faz ressoar a biografia do próprio Graciliano, que também é um ramo empobrecido da oligarquia nordestina”, comenta o professor.

Além disso, o tom da narrativa é totalmente delirante. “É um livro contado em estado de delírio. O Luís da Silva abre delirando e fecha sua confissão delirando, porque a não separação entre o real e o irreal é uma das tônicas dessa personalidade do protagonista, a tal ponto que de fato não há consequências para a ação que ele comete no final do romance, que é o assassinato de Julião Tavares”, analisa Alves, lançando a hipótese de que talvez esse crime nem tenha acontecido de fato.

Para falar da exuberância da narrativa, o professor cita o crítico literário Antonio Cândido (1918-2017), que disse ser bastante incomum essa característica nas obras de Graciliano Ramos, autor conhecido por seu estilo seco, conciso e direto. “ Angústia é o contrário disso. É um livro bastante derramado, bastante gorduroso, mas tudo isso está a serviço dessa lógica delirante do Luís, dessa mentalidade perturbada de um sujeito que se vê acuado na Maceió moderna dos anos 30”, informa.

Segundo o professor, a perspectiva pela qual ele lê a realidade – as associações entre passado e presente – está colocada toda sob essa chave da deformação expressionista. “É curioso, porque Graciliano, um realista no sentido forte da palavra, se vale das técnicas de vanguarda para dar conta dessa situação delirante do Luís.

Outra curiosidade, diz o professor, são os dois títulos propostos para o livro que não foram adiante. O primeiro, Um Colchão de Paina se refere ao colchão da prisão em que Luís se imagina depois de cometer o crime contra Julião Tavares, e 16384 ao número do bilhete de loteria com o qual Luís sonhava para ganhar dinheiro e conquistar, efetivamente, o amor de Marina.

Como as outras narrativas de Graciliano, o que está em jogo, em Angústia, é o ataque à sociedade burguesa. 

Angústia lançado no período em que Graciliano Ramos estava preso – de março de 1936 a janeiro de 1937 –, é uma narrativa escrita em um momento de Estado de exceção no Brasil, diz Alves. “O Estado Novo começa em 1937, mas a perseguição à esquerda e a qualquer pessoa considerada subversiva começa em abril de 1935, com a Lei de Segurança Nacional”, lembra o professor. “Portanto, é uma narrativa que vem no fluxo dessa perseguição. Há nesse romance um mundo concentracionário muito marcado, com uma atmosfera densa e opaca da história brasileira naqueles anos, que aparece como atmosfera da narrativa. ”

O professor ainda comenta que, assim como as outras narrativas de Graciliano Ramos –  Caetés São Bernardo e, depois, Vidas Secas -, o que está em jogo em Angústia também é o ataque à sociedade burguesa e ao conservadorismo. “Enfim, a todas essas manchas que parecem superadas e que nos dizem respeito nos dias de hoje.

É por isso que a literatura e as humanidades incomodam tanto. Porque elas mostram um aspecto do País que não é o desejado”, acredita Alves, ressaltando que há uma dimensão de enfrentamento do real que aparece não só em Graciliano Ramos, mas em Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, entre outros grandes autores. “A literatura brasileira é uma forma de pensar o País.
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ENREDO
O narrador-personagem e protagonista Luís da Silva, acaba de se recuperar de uma grande crise que o acometeu há 30 dias e o derrubou na cama, delirante e com febre. É a história desta crise que ele conta nas páginas seguintes.

A virada na vida de Luís, homem sem posses mas de algumas economias, acontece quando ele começa a se envolver com a vizinha, Marina. Ela é descrita como uma mulher forte e de personalidade, e mais tarde Luís começa a pintá-la no livro também com jeito de interesseira. A relação entre os dois começa a se desenrolar com alguns encontros no quintal, mas logo assumem um compromisso.

Quanto mais se envolvem, no entanto, mais Marina passa a exigir: para se casar, precisa de enxovais, roupas de cama, móveis, tecidos. Luís acaba com todas as economias na esperança de mantê-la por perto, e chega a se endividar para seguir presenteando a noiva. Até que o terceiro elemento do triângulo amoroso de “Angústia” aparece na história.

Julião Tavares é um homem, na visão do protagonista, degenerado. Descrito como inconveniente e repulsivo, ele conquista a atenção de Marina. Afinal, apesar de não vir de uma família tradicional, é herdeiro de uma loja de tecidos e rico. Para a vizinha de Luís isso bastava. Aos poucos, o protagonista e sua noiva vão se distanciando, até que ela começa a se encontrar com Julião. O novo pretendente a corteja com jantares, a leva no teatro e a presenteia com roupas.

Com o desenrolar do romance, a raiva de Luís só cresce. Além de endividado comprando tudo o que poderia oferecer à vizinha, acabou abandonado. Ele passa a perseguir Marina, vigiando seus passos, em uma obsessão. E nota quando ela é abandonada por Julião – que logo começa a namorar outra moça.

O narrador também relata ter escutado uma conversa de Marina com sua mãe em que ela confessa ter engravidado de Julião, e dias depois a segue quando ela vai ao encontro de uma parteira conhecida por fazer abortos. Luís confronta Marina e ela pede que a deixe em paz.

Tomado pela raiva, Luís decide seguir um ímpeto que já tinha em sonhos: matar Julião. Com uma corda que ganhou de um andarilho, ele espera o rival sair da casa da nova namorada e o ataca pelas costas, sufocando com a corda. Depois, pendura o corpo em uma árvore para simular um suicídio.

Esse final, foi o grande acontecimento que perturbou o protagonista e o deixou em estado de delírio.

Fonte: por Cláudia Costa, artigo “Angústia”, de Graciliano Ramos, une introspecção e crítica social, para o Jornal da USP em 14 nov 2023.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 24

 

A. A. de Assis (A moça do jipe)

Seu Nando vivia ali pacato e bom, baixinho, redondo, discreta calva, solteirão, atendendo a cidadezinha na venda de secos e molhados. Se deu que porém a moça passante brecou o jipe lhe passando um susto, não muito pelo de repente do impacto, mas pela explosão da imagem. Aquela coisa louca, aquele jeitão de rir. Seu Nando tremeu total. 

Queria a moça informação sobre a estrada que levava a uma praia próxima. 

– Se quiser vou junto. Posso mostrar o caminho. Preciso mesmo ir lá, volto de ônibus. 

– Sobe aí, tiozão! 

Zuuuuuuuuuuuuummmmmmmm... Tremeu de novo Seu Nando. Agora sim de medo. Moça maluca, 140 por hora naquele jipe trotão. De agradecimento, deu-lhe ela na chegada um beijo. Na boca. Seu Nando ensandeceu de vez. Retribuiu grudando a moça, que todavia gostou. Rolaram na areia, rolaram no mar, a noite chegou. Na aldeia, no dia seguinte, o bochicho. Sumiu Seu Nando. Uns, que o viram entrar no jipe, se espantaram mais ainda. 

Comunicaram às autoridades, botaram notícia na rádio, espalharam de boca em boca o misterioso evento. Ele tão bom homem, nunca perturbara ninguém, vendeiro prestativo. Chegaram a supor que a moça do jipe fosse extraterrestre. 

Quase um mês mais tarde, já davam Seu Nando por inencontrável: afogado, engolido por tubarão, levado pra outro planeta... Até que noutro de repente reapareceu ele, a barba crescida, a roupa em trapos, a cara de quem andara metido em muito complicada encrenca. 

– Depois eu conto o que aconteceu. Agora quero é tomar um banho, comer um bife enorme, dormir umas 24 horas. Avisem por aí que estou vivo. 

Geral curiosidade, só satisfeita no outro dia, com a presença de repórteres, fotógrafos, e os ouvidos atentos do lugarzinho inteiro. Seu Nando tinha ido com a tal garota litoral acima, até a Bahia. Contudo, acabado o dinheiro dele, ela evaporou-se. Nem chegara a saber o nome dela. 

– Voltei de carona num caminhão. Desci no trevo e de lá vim caminhando. 

Sorte dele que o gerente do banco entendeu a história, refez-lhe o crédito. E o bom homem se reinstalou atrás do balcão, de onde oito meses após ouviu outra freada. 

– Olhe aqui, tiozão! Trouxe pra você a sua obra. 

Ela desceu do jipe mostrando a enorme barriga. Voltara para ter o bebê onde ele começara a ser feito. Seu Nando acolheu-a, pouco se importava se o filho era seu ou não. Pagou as despesas do parto, do berço, das roupinhas. Ofereceu casamento. 

Porém cadê a moça?... Do jeito que rechegou, de novo magicamente sumiu. 

Criou-se a criança engatinhando ali na venda, assistida pela bondade de umas senhoras vizinhas. Ele um homem de tão generoso coração, baixinho, redondo, discreta calva, pela segunda vez abandonado no pique dos seus melhores sonhos. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07.3.2024)

Fonte> enviado pelo autor

Vanda Paz (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa v.11)


DUETO ETERNO

É quando me agarras as palavras 
pela cintura
e me envolves na dança de um poema 
que me desarmas.

Em tom de tango
contornas-me o corpo
e resgatas-me a alma
num movimento sublime e intenso.

O fado dos teus lábios nos meus
é o dueto eterno em que navegamos 
neste rio onde te recebo ao sabor da lua.

Tenho sede de ti.
Seca-me a voz quando te respiro
e te sinto ancorado 
naquele miradouro à procura de nós.

Não me deixes agora,
devolve-me a esperança 

de encontrar aquilo que fomos
e juntos despertarmos o abraço,
o beijo e o prazer de sermos um só.
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NESTE TEMPO QUE É SÓ MEU

Abraçar a natureza 
é como nos encontrar 

É ter 
o sol, o ar, a água e a terra 
na ponta dos dedos

É 
usarmos os sentidos  
embalar o mar
sorrir com as estrelas 
e respeitar a terra

Neste copo 
(que já vai a meio) 
encontro 
as minhas dores 
e as minhas alegrias
Estou capaz de dizer 
ao mundo  
que este tinto 
sou eu

Vou 
driblando o fogo 
enquanto 
o pensamento se extravia 
para um lugar 
com raízes profundas
para onde os pássaros 
cantam 
e rasgam 
o céu sem medo
para onde se parou 
a verdade do sustento
ao deixar os cachos secos 
na parreira 
e a azeitona por apanhar

São outros os tempos
a correria 
do que vem depois de amanhã 
leva-nos a esquecer 
o que é importante 
hoje

É assim 
que se envelhece
é assim que se aprende 
a vida 
neste tempo que é só meu.
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PONTES

Existem ausências que incomodam 
a capacidade de entender o acaso. 
Existem caminhos
que se revelam felizes 
mas que demoram, 
o tempo tão certo, 
como qualquer destino. 
As pontes
mantêm- se agarradas  à memória, 
como se algo fizesse parar o tempo 
quando te penso. 
Talvez no dia que nos quisermos 
seja abraço apertado em silêncio 
ou mar galopante em areal esquecido. 

O horizonte
é sempre um corpo apetecido, 
quando o luar brilha nos teus olhos 
e o vinho aquece o peito.
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QUANDO SURGE O POEMA

Quando te percebo
desenhado 
no negro da madrugada
renasço do brilho do luar,
que me encanta,
qual magia atiçada de palavras.
É aí que surge o poema,
emaranhado de palavras
desnorteadas e um tanto loucas
como este amor que sinto por ti.

Quando te encontro
no enlace 
dos meus versos,
aconchego-me num abraço
forte de sentidos,
carregado de sentimentos,
como um molho de rosas vermelhas
com a cor dos teus beijos.

Consinto então,
nesse preciso momento,
que me tomes tua
nas garras da noite.
E me devolvas o brilho
com o sorver 
deste néctar encorpado
embriagando-te de mim
embriagando-me de ti
até à última gota do nosso olhar
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TUDO É POESIA

Asas brancas e mãos cheias de silêncio
Deixam a minha pele nua de ti
Tudo é poesia em lábios secos
Tudo é madrugada em folha de papel
São searas como lençóis 
Terra afortunada pelo teu olhar
Triste é a videira despida
Que geme ao sabor do vento
Onde se cansa a olhar a serra
Deixando que o futuro chegue
E recomece o ciclo da vida
Em cada dia 
Um por do sol que me embala
Em escassos momentos 
Um sorriso teu

Respiro cada bolha com aroma a baga