sábado, 8 de dezembro de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O Filho do Rei da Irlanda e o Rei da Ilha Verde)


Há muito tempo, existiu na Irlanda um rei que só teve um filho, ao qual dispensava tanto carinho que não o deixava afastar-se da sua vista nem do castelo, fosse de noite ou de dia.

Finalmente, quando cresceu e completou vinte e um anos, o filho disse ao pai:

— Chegou o momento de me deixares ir a algum lugar.

— Se é exercício que pretendes, ofereço-te uma bola e um taco de hurling*  — respondeu o monarca.

No dia seguinte, deu ao jovem uma bola e um taco e ele foi praticar no prado. Havia um ano que se dedicava a essa atividade, quando, um dia, surgiu um homenzinho cinzento por cima do fosso, dirigindo-se-lhe:

— Suponho que já deves estar bem preparado. Se quiseres, jogo uma partida contigo.

— Que vamos disputar? — perguntou o filho do rei.

— Quem ganhar receberá tudo o que desejar. O outro terá de lhe dar.

Começaram a jogar e prosseguiram todo o dia, até que o Sol principiava a pôr-se quando o filho do rei conseguiu ganhar.

— E agora, que desejas? — quis saber o homenzinho cinzento.

— Que o prado do meu pai se encha de cavalos para mim, amanhã de manhã.

Na manhã seguinte, o relvado apresentava-se cheio de cavalos, que foram levados para os estábulos e tratados. 

O filho do rei começou de novo a praticar e continuou durante um ano e um dia. O homenzinho cinzento tornou então a aparecer e jogaram durante todo o dia. Ao anoitecer, quando o Sol principiava a descer para o horizonte, o filho do rei alcançou a vitória.

— Agora, que desejas? — perguntou o homenzinho cinzento.

— Possuir um castelo suntuoso no prado do meu pai, amanhã de manhã, com servidores e tudo o que deve haver num lugar desses.

O castelo apareceu na manhã seguinte, com serviçais e riquezas de toda a espécie.

De novo o filho do rei praticou durante um ano e um dia, após o que o homenzinho cinzento o abordou pela terceira vez.

— Bem, filho do rei, agora que já praticaste três anos e três dias, jogarei contigo pela terceira vez.

Assim fizeram e, quando o Sol se punha ao entardecer, o homenzinho cinzento conquistou a vitória.

— Que desejas? — perguntou o filho do rei.

- A ilha verde — Que precisamente um ano e um dia a contar de hoje, estejas na ilha Verde.

— Onde fica essa ilha?

— Procura-a, que talvez a encontres.

Naquela noite, quando regressou ao castelo, o filho do rei estava desanimado e triste.

— Que te aflige? — perguntou o rei. — Qual é a tua mágoa, meu filho?

— Desta vez, perdi a partida e tenho de procurar a ilha Verde.

— Se o deves fazer, não há outro remédio. Vou dar-te dinheiro para a viagem.

O filho do rei viajou até que chegou à casa de um gigante, que o recebeu com cordialidade.

— Onde te conduz o teu caminho? — perguntou.

— Procuro a ilha Verde — informou o filho do rei.

O gigante admitiu-o no castelo e ofereceu-lhe ceia e alojamento.

— Consultarei os meus livros durante a noite — anunciou. - Se descobrir onde se situa, dir-te-ei pela manhã.

— Descobriste onde é? — quis saber o filho do rei, na manhã seguinte.

— Não, mas tenho um irmão que vive a alguma distância daqui e talvez te possa elucidar.

E o gigante deu-lhe dois pães para o caminho.

O filho do rei exprimiu a sua gratidão e empreendeu a marcha, viajando até que chegou ao castelo do segundo gigante, o qual surgiu a correr, enfurecido, com a intenção de o matar. O filho do rei apressou-se a dar-lhe um dos pães. Quando o teve nas mãos, o gigante disse:

— Isto vem da fornada da minha mãe.

O filho do rei recebeu ceia e alojamento, e o gigante perguntou-lhe:

— Onde te leva o teu caminho?

— Procuro a ilha Verde.

— Tentarei encontrar nos meus livros alguma indicação sobre ela. Se o conseguir, informar-te-ei pela manhã — comunicou, quando o filho do rei ia deitar-se.

— Descobriste alguma coisa? — perguntou este último, na manhã seguinte.

— Não — respondeu o gigante -, mas segue em frente por este caminho até chegares ao castelo de outro meu irmão, que vive longe daqui. Nada receies. Dá-lhe o pão e compreenderá.

O jovem andou até que chegou ao castelo do terceiro gigante, que se enfureceu ao avistar um desconhecido e surgiu a correr, disposto a matá-lo. Mas, quando o filho do rei lhe mostrou o pão, disse:

— Isto saiu do forno da minha mãe.

Deixou então o filho do rei entrar no castelo e deu-lhe ceia e alojamento.

— De manhã, dir-te-ei onde fica a ilha Verde — prometeu.

Quando amanheceu, o filho do rei perguntou-lhe:

— Dizes-me agora onde fica a ilha Verde?

O gigante, que era o senhor do ar, indicou:

— Acompanha-me lá fora. Vou chamar todos os pássaros do céu, para lhes perguntar onde se encontra a ilha Verde. — Com estas palavras, conduziu o filho do rei ao exterior do castelo e, uma vez diante da entrada, disse: — Esqueci-me do chifre em cima da mesa.

— Vou buscá-lo — declarou o filho do rei.

Correu para o local indicado, mas não conseguiu levantar o chifre, pelo que teve de ser o próprio gigante a fazê-lo. Soprou-o, e todas as aves do mundo acudiram à sua volta.

— Falta uma — observou o gigante. — A águia-dourada.

Tornou a soprar o chifre, para ver se a águia aparecia. Esperou um quarto de hora e soprou mais uma vez. Pouco depois, viu-a voar ao longe. Quando pousou no prado quase não podia falar, de tão cansada que estava.

— Não desanimes, nem te sintas amargurado — aconselhou ela. — E come só o que eu te trouxer.

Ele pôs de parte o que o rei lhe tinha enviado e o jovem serviu-lhe uma porção do seu próprio pequeno-almoço. O jovem tragou tudo e aguardou que o rei aparecesse.

— Que te pareceu o pequeno-almoço? — perguntou.

— Gostei muito — disse o filho do rei da Irlanda.

O monarca retirou-se e, à hora combinada, surgiu a filha mais jovem com a comida e ele deitou-a fora. Mais tarde, ela reapareceu com metade do seu próprio almoço e o filho do rei comeu tudo. À noite, o rei tornou a visitar a cela e anunciou:

— De manhã, tenho um trabalho para ti. Prepara-te.

Mais tarde, a filha mais jovem do rei conduziu-o aos seus aposentos, onde conversaram demoradamente. Por fim, ela advertiu-o:

— Tens de estar lá em baixo, antes que o meu pai te vá buscar, de manhã.

Com efeito, ele já regressara à cela quando o rei entrou e explicou:

— Há um estábulo para vacas, que não foi limpo uma única vez nos últimos cento e vinte e cinco anos, onde se encontra um broche que pertencia à minha bisavó. Vai proceder à limpeza e encontra-o.

O filho do rei da Irlanda pegou numa pá e dirigiu-se ao estábulo, o qual era tão grande que tinha quarenta janelas. Começou a trabalhar, mas cada vez que retirava uma pá cheia de lixo, entrava o correspondente a três através das janelas, pelo que se viu obrigado a abandonar precipitadamente o local para não ficar sepultado.

A jovem levou-lhe o pequeno-almoço e ele chorou de desespero.

— Que te aflige, agora? — perguntou ela.

— Trabalhei muito, mas passou a haver mais para limpar no estábulo do que quando comecei.

— Não chores mais, que farei a limpeza por ti.

Ato contínuo, ela principiou a trabalhar e, por cada uma das suas pazadas saía a voar pelas janelas o lixo correspondente a vinte e uma. Por fim, encontrou o broche, entregou-o ao filho do rei da Irlanda e recomendou:

— Não vás ao castelo até passar uma hora desde o meu afastamento. Quando o meu pai te pedir o broche, não lhe deves entregar. Alegas que não podes renunciar ao que a sorte te concedeu.

Quando ele chegou ao castelo, o rei perguntou-lhe:

— Encontraste o broche?

— Encontrei.

O rei pediu-lhe, mas o jovem disse que não lhe cederia, pois não podia renunciar ao que a sorte lhe tinha proporcionado. Por conseguinte, ficou com ele. O monarca voltou a mandá-lo para a cela e deixou o broche em seu poder. A sua filha mais jovem levou-lhe pão e água, que o jovem deitou fora. Mais tarde, cedeu-lhe metade da sua própria refeição. Ele comeu tudo, e a princesa disse que o levaria para o seu quarto à noite, mas devia regressar à cela antes que o pai aparecesse, de manhã cedo. Assim, à noite, conduziu-o aos seus aposentos no castelo, porém o jovem encontrava-se de novo na cela antes de o velho rei se apresentar.

— Hoje, tenho outra tarefa para ti.

— Não me podes encarregar de qualquer tipo de trabalho que não seja capaz de executar — declarou o filho do rei da Irlanda.

— Tenho um lago onde a minha bisavó perdeu um anel de ouro. Vais, pois, extrair toda a água e recuperar o anel.

O jovem pegou num balde e começou a retirar água do lago, mas, à medida que o fazia, tornava-se cada vez mais profundo. Finalmente, desanimado, sentou-se numa rocha e pôs-se a chorar. Ao meio-dia, a filha do rei levou-lhe metade do seu almoço e disse:

— Não deves pôr-te assim. Senta-te e come.

Em seguida, puxou do lenço e atirou-o ao lago, que começou imediatamente a secar, até que a água se extinguiu por completo. Ela encontrou o anel e entregou-o ao filho do rei da Irlanda, que se dirigiu para o castelo uma hora depois de se separar da princesa.

— Encontraste o anel que te mandei procurar, esta manhã? — perguntou o monarca.

— Encontrei.

— Dá-me.

— Não posso renunciar ao que a sorte me proporcionou — declarou o jovem, e ficou com o anel.

O rei mandou-o recolher à cela e enviou lá a filha mais jovem com pão e água, que o filho do rei da Irlanda deitou fora, como sempre. Mais tarde, ela levou-lhe metade do seu jantar e conduziu-o aos seus aposentos no castelo. Depois, disse:

— Agora, tens de voltar para a cela, antes que apareça o meu pai.

Ele correu para lá e acabava de chegar quando o rei fez a sua aparição.

— Como passaste a noite? — inquiriu.

— Na verdade, muito agradavelmente — respondeu o jovem.

— Tenho mais uma tarefa para ti.

— De que se trata?

— Há uma espada na copa de uma árvore e quero que me tragas.

O filho do rei pegou no seu machado e traçou uma linha em volta do tronco da árvore, para verificar se crescia, como acontecera ao lago e ao lixo do estábulo. Em seguida, começou a cortar a árvore, mas, a cada golpe que lhe aplicava, o tronco tornava-se cada vez mais grosso. Por fim, sentou-se e começou a chorar. A filha do rei apareceu então e disse-lhe:

— Não estejas triste, nem abatido. Eu própria derrubarei a árvore.

Com uma única machadada, fê-la tombar no chão, após o que retirou a espada da copa, entregou-a ao filho do rei da Irlanda e indicou-lhe:

— Volta ao castelo uma hora depois de mim. Se o meu pai te pedir a espada, não lhe entregues. Diz que não podes renunciar ao que a sorte te ofereceu.

Afastou-se e, uma hora mais tarde, o jovem seguiu o mesmo caminho.

— Derrubaste a árvore? — perguntou o monarca.

— Derrubei.

— Dá-me a espada.

— Não, porque não quero renunciar ao que a sorte me proporcionou.

Mandou-o voltar para a cela, depois de lhe dizer:

— Sei que todos os nativos da Irlanda sabem narrar contos. Esta noite, levar-te-ei aos meus aposentos. Quero que me contes alguns.

Assim fez. Entretanto, a filha mais jovem tinha disposto uma cama em cada lado do quarto — uma para o pai e a outra para o filho do rei da Irlanda. Providenciou para que as lanternas iluminassem pouco, pelo que o aposento estava imerso na penumbra. Depois, levou três pães grandes que ela própria tinha confeccionado, deixou um na cama do jovem, outro no chão, no meio do quarto, e o terceiro junto da porta. Por último, a princesa e o filho do rei da Irlanda puseram-se apressadamente em fuga.

— Muito bem, filho de um rei, começa o teu conto — disse o monarca.

O pão que se encontrava na cama iniciou a narração, a qual se prolongou tanto que ocupou grande parte da noite. No final, o rei reconheceu:

— É um bom conto. Agora, conta-me outro.

O pão que estava no chão, no meio do quarto, encetou a segunda narração e alongou-se tanto que, quando terminou, já quase era dia.

— Este conto também é muito bom — admitiu o rei. — Conta-me um terceiro.

O pão junto da porta disse:

— Vou contar um que te despertará a atenção, rei da ilha Verde. A tua filha fugiu esta noite com o filho do rei da Irlanda. Neste momento, encontram-se longe daqui e compete-te persegui-los.

O monarca levantou-se de um salto e, ao aproximar-se da cama onde supunha que se encontrava deitado o filho do rei da Irlanda, deparou-se-lhe o pão. Compreendeu que tinha sido obra da filha mais jovem, chamou as outras duas e partiram os três em perseguição dos fugitivos.

A filha mais jovem tinha a certeza de que o pai e as irmãs os perseguiriam, pelo que recomendou ao filho do rei da Irlanda que olhasse para trás e verificasse se vinha alguém no seu encalço.

Ele obedeceu e disse:

— Vejo três pássaros que nos seguem ao longe.

— Torna a olhar.

— Parecem três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

Ele assim fez e anunciou:

— Parecem três montanhas.

— Atira o broche para trás de ti.

Atirou-o e, naquele momento, todo o campo se cobriu de enormes agulhões de aço, eretos como um bosque denso e sem ramos, perante o rei da ilha Verde e as suas duas filhas.

— Vão rapidamente a casa e tragam-me o martelo que deixei debaixo da cama — ordenou o monarca.

Elas não tardaram a reaparecer com o martelo, que era grande e pesado e com o qual o pai abriu caminho através dos agulhões de aço, pelo que puderam continuar em frente.

Pouco depois, a filha do rei indicou ao filho do rei:

— Olha para trás e verifica se consegues vê-los.

— Vejo três coisas do tamanho de pássaros a seguirem-nos.

— Torna a olhar — volveu ela, passado algum tempo.

— Agora, parecem três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

— Parecem três montanhas.

— Atira o anel para trás de ti.

No momento em que ele obedeceu, todo o campo atrás deles se converteu num lago. O rei da ilha Verde não o podia atravessar, mas ordenou às duas filhas mais velhas:

— Vão a casa e tragam o balde que está no meu quarto.

Elas partiram apressadamente e não tardaram a voltar com o balde.

O monarca pegou nele e utilizou-o para secar o lago, após o que reataram apressadamente a marcha.

A filha mais jovem do rei ordenou ao filho do rei da Irlanda:

— Olha para trás e verifica se eles nos seguem.

— Parecem de novo três pássaros.

— Toma a olhar.

— São como três montões de feno.

— Olha mais uma vez.

— Parecem três montanhas.

— Atira a espada para trás de ti.

O jovem assim fez e todo o campo atrás deles se cobriu de um bosque tão denso, que ninguém o poderia atravessar.

O rei ordenou às filhas:

— Vão a casa buscar o machado.

Quando lhe entregaram, abriu caminho através do mato e reataram a perseguição a toda a velocidade.

Os dois fugitivos chegaram a um rio de quase dois quilômetros de largura. Saltaram para dentro de uma embarcação que havia na margem e remaram com todo o vigor. O rei da ilha Verde podia alcançar, de um salto, mais de um quilometro. A embarcação encontrava-se exatamente a essa distância, quando os perseguidores chegaram à margem. Ele deu um salto para a frente e foi pousar precisamente atrás dela. Naquele momento, o filho do rei da Irlanda atingiu-o na cabeça com o remo e o monarca morreu. Por conseguinte, ele e a princesa chegaram sem problemas à outra margem e seguiram em frente calmamente.

— Agora, já não temos de recear ninguém — reconheceram.

O filho do rei da Irlanda viajou com a filha do rei da ilha Verde, até que chegaram às proximidades do castelo do pai do primeiro.

— Aguarda aqui um momento — indicou ele. — Venho já buscar-te.

— Entretanto, não beijes ninguém, nem permitas que te beijem — advertiu a princesa. — De contrário, esqueces-me no mesmo instante.

O jovem entrou no castelo. Não beijou ninguém, nem consentiu que o beijassem, mas o seu cão, que estava deitado a um canto, levantou-se de um salto e beijou-o. Ato contínuo, esqueceu-se da princesa. Ela cansou-se de esperar e, como ele não aparecia, internou-se num bosque.

Havia aí um ferreiro, com a sua forja. Quando começou a anoitecer, a jovem trepou à copa de uma das árvores, junto da qual se encontrava um poço. A noite estava iluminada pelo luar e a serviçal do ferreiro aproximou-se para levar água. Ao ver o reflexo da jovem, julgou que era do seu rosto e exclamou:

— Que sorte a minha! Com uma cara assim tão bela e tenho de servir na cabana de um ferreiro!

Largou o balde, afastou-se, e o ferreiro não voltou a saber dela. A esposa esperava o regresso da moça e, receando que tivesse caído ao poço, foi procurá-la. Ao ver o reflexo na água, pensou que era o seu próprio rosto e lastimou-se:

— É vergonhoso para mim ser a mulher e escrava de um ferreiro, com os atributos físicos que possuo!

Por conseguinte, não voltou à casa do marido. Este foi procurar a serviçal e a esposa e, chegado ao poço, olhou para dentro, viu o reflexo, apercebeu-se de que era de uma mulher, voltou a cabeça para cima e avistou uma jovem na árvore.

— Desce daí — ordenou-lhe. — Por tua culpa, fiquei sem serviçal nem esposa. Agora, tens de vir comigo e cuidar da minha casa.

A princesa acompanhou-o e cozinhou para ele, até que, um dia, inteirou-se de que o filho do rei ia casar, e o ferreiro disse-lhe.

— Se fosses ao casamento, podias encontrar trabalho e ganhar algum dinheiro.

E ela foi. Na véspera da boda, tinha de se confeccionar um bolo enorme.

— Posso encarregar-me disso? — perguntou ao chefe de cozinha.

Este irritou-se e replicou:

— Não serias capaz.

Ela deu-lhe cinco moedas de ouro e o homem deixou-a preparar o bolo. Apressou-se a começar e incluiu nele o castelo do pai, o estábulo e o lago, para que o filho do rei os pudesse ver.

Quando apresentou o resultado, todos disseram:

— Há uma estranha no castelo.

Chamaram o chefe de cozinha, o qual explicou que tinha sido feito por uma jovem.

— Vai chamá-la — ordenou o rei.

Ela compareceu e ficou na sua comitiva. A noite, todos narraram contos e, no final, o monarca indicou-lhe:

— Agora, é a tua vez.

— Não sei nenhum — alegou ela -, mas, se me permitires, ensinar-lhes-ei um truque.

— Com certeza — disse o rei.

Lançou ao solo dois grãos de aveia, dos quais surgiram um galo e uma galinha. Em seguida, lançou outro entre ambos. A galinha apanhou-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que limpavas o estábulo e fui obrigada a ajudar-te — queixou-se a galinha.

A jovem lançou novo grão, com idêntico resultado: a galinha apanhou-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que esvaziavas o lago para encontrar um anel — lembrou a galinha.

A jovem lançou um terceiro grão, a galinha recolheu-o e o galo picou-a.

— Não me terias feito isso no dia em que derrubavas a árvore enorme para recuperar a espada do meu pai, nem quando cozi três pães grandes e fugimos.

De repente, o filho do rei recordou-se dela e reconheceu-a imediatamente, pelo que se voltou para o pai e anunciou:

— Não terei outra esposa que não seja esta mulher.

O filho do rei da Irlanda desposou a filha do rei da ilha Verde e viveram eternamente felizes.
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* Antigo desporte irlandês, semelhante ao hóquei moderno

Fonte:
http://guida.querido.net/contos/irlanda.htm

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Daniel Mauricio (Poemas Avulsos)



Palavra é ave
Às vezes suave
Às vezes arredia
Entre um pouso e outro
Escolhe um coração
Como ancoradouro
Pra nele fazer
O seu seguro ninho.
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Voei por muitas Eras
Nos degraus do tempo descansei
Seguindo o fio da vida
Por muitos portais atravessei
O chamamento da tua alma
Pelas frestas da gaiola escutei
Almas gêmeas
Finalmente plenas
Completando o ciclo do viver
Eu te beijei.
__________________________

DE REPENTE

De repente
Um quê de fada,
De anjo, de estrela,
Brilhou diferente entre os cachos de flores.
Borboletas...
Pequenas e ligeiras
Almas com asas,
Tingidas com pó de arco-íris
Rasgam o vento tão leve
Tal como o sono inocente.
Sonha em mim,
Coração em pétalas 
No suave pousar das borboletas.
Em silêncio falam aos meus olhos
De um mundo de paz, 
Amor e poesia.
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As imagens do tempo
Ficaram encalacradas
No velho espelho 
E o sorriso sem jeito
Ficou imperfeito pela mancha no aço
No corredor semi-escuro
Com ladrilhos em mosaico
Desfilam lembranças 
Com chinelos de veludo
E o espelho
Com olhar cansado 
Já não guarda mais segredo 
Com silêncio centenário 
O relógio de parede
Assiste a tudo
Pois já os seu ponteiros 
Parados
Marcam um tempo indefinido.
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Do
Passado
Cai
O
Em
Bofetada
Nos
Meus
Olhos.
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Primavera.
O amor
Borboleteava
Em minha janela.
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Sem pressa...
Na tua calmaria
Desacelero meu pensamento 
E como é bom respirar direito
Seguindo o ritmo do teu peito
Trocar a ansiedade
Pela pausa da saciedade 
Sem pressa
Pois tu és 
A fonte dos meus desejos.
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A beirada do céu 
sobre a serra desceu
derramando estrelas
pelo caminho,
Que ao balançar do vento
cintilam de mansinho:
brancas, rosas e lilás.
A alma respira energizada! 
Dos anjos,
mensagens perfumadas
encharcam o coração 
de amor e muita paz.
_____________________

Fonte:
Poemas obtidos no Facebook.

Daniel Mauricio (1968)

Cadeira n. 7 da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia)
Patrono: Paulo Leminski

Daniel Mauricio nasceu em 1968, na cidade de Jaguariaíva/PR, radicando-se em Curitiba.

Cursou Magistério e Técnico em Contabilidade; Graduação em Letras, Administração de Empresas e Direito. Pós-Graduado em Gestão Administrativa e Tributária; em Gestão de Pessoas e Qualidade no Serviço Público; Gestão Pública de Tecnologia da Informação e Comunicação. Foi Professor da Rede Municipal de Ensino em Curitiba, Contabilista da Prefeitura Municipal de Curitiba, sendo atualmente Auditor de Tributos Municipais.

Foi monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná; integrante do Projeto VARSUL – Variação Linguística da Região Sul desenvolvido pelas Universidades Federais do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 

Foi vencedor do concurso Poemas Curtos (2014), Prêmio Marilda Confortin (2015), Prêmio Alice Ruiz (2016) promovidos pela Prefeitura Municipal de Curitiba.

Publicou o livro Mosaico de Sentimentos, Cacos e Retalhos (Editora Scortecci); 

Participa de diversas coletâneas, como: Poesias Escolhidas – Vozes de uma Alma, Poesias Escolhidas – O Melhor de Mim, Eles São de Vênus: Homens Sem Frescuras (Editora Poesias Escolhidas); Parnaso Poético; e das Antologias: Cumplicidade de Movimentos, Memórias e Passagens (Editora Scortecci); Conexão III.

Fonte:

Carlos Drummond de Andrade (Drink)


A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda, pela indecisão da palavra. 

Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano? Parece que é difícil encontrá-lo em casa, qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob a capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde - é claro - não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda, sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:

- Que é isso que você tem aí?

- Isso quê?…

- O livro.

- Nada, não. É um livro.

- Deixe ver, se não é segredo de Estado.

Não era, mas o inimigo contemporiza: “Daqui a pouquinho”. O leitor, que
acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso
relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moça nos sondava antes de praticar a doação.

Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:

- Levei um exemplar ao Barata, colunista da Folha.

- Então?

- Me convidou para um drink.

- Que mal tem nisso, minha filha?

- Bom… Nem olhou para o livro, olhou só para mim, entende?

Entendíamos. Mas o Barata - ponderamos - não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma big diferença entre reviewer e crítico.

- Pois sim, o Lessa é crítico e também me convidou para um drink. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor, antes de ler?

Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os drinks lhe flagelam o fígado. Ela sorriu.

- Eu adoro um alexânder ou uma cuba-libre. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.

Tranquilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não frequentamos bares, não a convidaríamos para drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.

- Não vai escrever nada?

- Que gostaria que eu escrevesse?

- Ah, isso você não era capaz de escrever.

Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito: queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um drink.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Trova 331 - Prof. Garcia


Carolina Ramos (Canto Interrompido)


O sol brincava e apagar sombras, na tarde em que aquele menino, igual a qualquer outro menino de cinco anos de idade, distraía-se em catar pedrinhas redondas, no chão da Galileia, não longe de sua casa.

Ao ouvir o pássaro que cantava num galho florido, estacou maravilhado.

As aves são esboços de anjos que Deus mandou à terra para enternecer os homens - é o que parecia afirmar o olhar daquele menino que começava a se fazer especial, incitando hipóteses.

As sonoridades do canto de um pássaro, a fantástica beleza multicolorida de suas penas têm algo intensamente angelical que sugere o paraíso. Quem terá servido de modelo a quem? Teriam os anjos inspirado Deus a criar as aves, ou teriam estas estimulado o Criador a idealizar os seres alados que seraficamente enfeitam os céus?

O menino, enlevado, não viu a pedra certeira que, num segundo, calou o canto do pássaro. Viu-o, sim, tombar inerte ao solo. Largando seus seixos rolados, correu para ele.

Havia perplexidade, havia tanta dor e recriminação no olhar magoado daquele menino! E havia, também, algo estranhamente indefinível que pôs em fuga os agressores da avezinha que estertorava.

Quando a criança chegou junto à mãe, a ave estava morta.

A meiguice dos braços maternos empenhavam-se em consolar o filho, inconformado, cuja angústia indagava: - "Por quê?!... por quê aqueles homens malvados mataram meu pássaro? Ele era bom. Tão feliz!... Ele não fazia mal a ninguém!"

A mãe, coração traspassado por infinita tristeza, acariciou os cabelos do filho. Como a querer protegê-lo, abraçou-o com ternura, murmurando, de olhos voltados para o amargo amanhã:

- "Os homens não são maus, meu Filho, não são... apenas não sabem o que fazem... e nem o que farão!" - completou num sussurro.

As lágrimas dAquele Menino deslizaram de manso caindo sobre o corpinho mole, ainda morno, da avezinha ensanguentada. Então, o pássaro, sacudindo as penas, cheio de vida, voou para o galho mais próximo. E, como se perdoasse, por inteiro, a maldade humana, retomou, feliz, o canto interrompido!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. 2. ed. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 3


DIAS DISTRAÍDOS DE SAUDADE

Todos os dias tu te moves no meu sonho;
Sempre te ponho na redoma do que eu sinta
Mesmo que eu minta a dor, meu verso mais tristonho
Dilui, no sonho, a solidão de cada tinta.

Todos os dias, alimento um conteúdo
Que não diz tudo, tu és parte celular
Do meu olhar no teu olhar, se fico mudo, 
Grito, contudo, o que só eu posso escutar.

Todos os dias tu me vens tão verdadeira,
Na derradeira vez que amei-te de verdade,
Deixei meu barco de papel na corredeira
E afoguei meu coração numa saudade.

Todos os dias, tu te tornas tão real,
Mas te dissolves…afinal, meu coração
Te reconstrói na solidão que nem faz mal ,
Quando percebo que te amei… por distração.

ESPORAS

Sob as esporas do desejo, o tempo corre...
O tempo escorre como grãos por entre os dedos,
O sal da lágrima... de mel... nos lábios morre,
numa saudade que eterniza alguns segredos.

Nas asas leves do sonho, uma ansiedade,
que não invade, apenas acaricia
a fantasia de se amar em liberdade,
numa vontade que embevece e extasia.

Do vendaval mais sedutor, ninguém recua
e a pele nua sempre pede algum afeto,
o dialeto sensual deixa que flua
a emoção feliz de um sonho predileto.

Sob a carícia do amor, o enlevo voa, 
a alma boa é uma pétala no ar... 
a voz macia se dilui... jamais ecoa
e a luz melhor sempre ilumina um doce olhar.

Quem tem o dom de transformar as cicatrizes
na experiência, observa mais que fala, 
cura as tristezas com sorrisos mais felizes
e deixa livre a esperança que o embala.

Da calmaria, resta alguma correnteza.
Por natureza, só quem consegue sonhar, 
sabe que amar, bem mais que um gesto de nobreza, 
é a certeza de poder se libertar.

EU SOU TÃO POUCO MEU IRMÃO...

Eu sou tão pouco, meu irmão... Deus é imenso
O amor despreza toda essa arquitetura
Que faz de nós um óleo fora da moldura,
Quando é na alma que ele é sempre mais intenso.

O criador não reinventa a criatura,
O cidadão é um produto inacabado,
Que Deus criou, e é nesse ser fragilizado 
Que estão guardados os momentos de ternura.

Sou de uma raça que aprendeu com passarinhos
O doce ofício de voar sobre os abismos,
Seres humanos grandes são pequenininhos,
Quando se entregam a estranhos pessimismos.

E nesse pouco, eu sou tanto, quando Deus
Me dá amigos e irmãos especiais
E sentimentos que são meus e que são teus,
Quando buscamos... com ternura... a mesma paz

RESSURREIÇÃO

Todos os dias alguém vem e te assassina...
Tu não te importas, pois és tão superior,
Que basta apenas uma fé bem pequenina,
Que ressuscitas e dás vida ao nosso amor.

Morres na mão que se estende e ninguém nota,
Morres no dedo que comprime algum gatilho,
Morres no pai cuja opção é sempre a rota
De abandonar à solidão, o próprio filho.

Morres naquele que renega quem o ama,
Morres na trama que acusa um inocente,
No miserável que faz de um jornal a cama,
No preconceito que despreza um indigente.

Tu observas cada tolo transgressor
Que se desvia do caminho que ensinaste,
Mas que se volta, quando sente alguma dor,
Como uma flor, que com amor, tu semeaste.

E logo estendes tuas mãos iluminadas
A cada um que necessita de carinho
Ou que se perde na penumbra das calçadas,
Por se sentir amargurado e tão sozinho.

Estás tão próximo de cada um de nós
E és tão humano, generoso e complacente,
Que mesmo quando não ouvimos tua voz,
Cuidas de nós com teu amor onisciente.

Todos os dias, quem te ama te resgata,
Em comunhão com cada irmão, pregando a paz,
E é assim que cada dor mais insensata
De quem te mata, pouco a pouco se desfaz.

REPINT...ÂNSIAS 

Não sei cantar a morte... me perdoa...
Se voa, toda alma é passarinho;
O ninho do amor é o que ele doa
Para quem necessita de carinho.

Só sei falar da vida: Vem comigo !
O abrigo do poeta é o que ele sente ;
Se mente, é porque vê, no seu amigo
Ausente... o que ele deixa de presente.

Não fujo do real, apenas minto
E invento, nesta dor que às vezes sinto,
A minha mais perfeita companhia

E mesmo que acabe o vinho tinto,
E a tela se desfaça, eu repinto
A vida, outra vez, de fantasia.

Fonte:
Facebook do poeta

Conto Tradicional do Algarve/Portugal (As Três Nuvens)


Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 

 Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde aparecia um medo. 

 Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

 Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

 O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 – Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

 – Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

 No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

 – Podem retirar-se: ainda não foi desta, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

 – Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

 – Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

 E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

 Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

 Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios a seguir. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo em casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

 Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a tenção de lá se apresentar. 

 Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: – Valha-me a nuvem preta. 

 Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. – O que me queres? perguntou. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

 O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

 No dia seguinte disse: 

 – Valha-me a nuvem parda. 

 Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma Jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

 No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Ficou vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

 Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

 Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

 Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fonte:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. Disponível no Estudio Raposa.