segunda-feira, 27 de julho de 2020

Bernardo Élis (Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá)


- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.

O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole – outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo equilátero.

Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:

- Pronto, vó.

- O rio já encheu mais? - perguntou ela.

– Chi, tá um mar d'água! Qué vê, espia, - e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um "ar de estupor" e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.

Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal. O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, - que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, - tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.

- Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.

Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.

A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.

Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo - ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo. A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.

Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.

No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.

"- Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda." Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido:

"- Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis". Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.

A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, – o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.

Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte - era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.

No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.

- Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? - pediu ela ao filho. - Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.

Ela receava a baita cascavel que ainda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.

Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.

Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.

- Adonde será que tá o chulinho?

Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão - tchibungue - tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:

- Nossa Senhora d'Abadia do Muquém!

- Meu Divino Padre Eterno!

O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira, cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorções diabólicas de espasmos epilépticos, entre as espumas alvas.

- Cá, nego, cá, nego - Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.

O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, - que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, - e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.

Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.

- E o chulinho? - perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.

Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.

- É o mato? - perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.

Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável - deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo.

A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.

Quelemente viu a velha cair n’água, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.

A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima. As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava, abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.

Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d'água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.

Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.

Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse...

Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas escorrendo ao longo do rio?

Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo ronco escurecia mais ainda a treva?

- Mãe, ô, mãe!
- Mãe, a senhora tá aí?

E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.

- Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.
- Espera aí, mãe!

O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.

- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.

Fonte:
Conto publicado 1944 em Bernardo Élis. Ermos e gerais.

domingo, 26 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 330


Carolina Ramos (Neblina)


Acordara triste. Permanecia triste, sem bem saber o porquê. Nem sempre a tristeza que se sente tem explicação. Algo assim como neblina teimosa, que desce sobre a paisagem, sem mesmo precisar de lógica. A condição de adolescente dava a Maria Augusta o direito de aceitar, sem questionamentos, as íntimas oscilações do ego em busca de afirmação. Direito esse negado a qualquer adulto, para quem alegria e tristeza têm sempre conotações explícitas e imediatistas.

Maria Augusta sentia-se triste porque sentia-se triste, assim como a planta enlanguesce pelo desconsolo de não ter alguém para matar-lhe a sede; assim como o salgueiro debruçado às margens de um rio cantante, não precisa de motivos para justificar a aparente melancolia, mesmo que a brisa marota venha brincar de arrepiar suas folhas.

A exemplo do salgueiro-chorão, a menina-moça, não mais menina e não ainda moça, estava triste, sem razões palpáveis nem preocupações de auto-análise. Faltava-lhe alguém que lhe ninasse a tristeza, que dela partilhasse ou então que a soprasse para longe, como névoa indesejável, dissipada pela brisa amiga, que tristeza é sempre mais triste, se curtida em solidão.

O aroma do café fresco estimulava-lhe os passos, naquela manhã que nascia. Ao passar pelo escritório do pai, há um ano falecido, estacou. Aquele cômodo, situado na parte mais nobre do velho casarão, era, por assim dizer, sagrado. Sempre que o pai nele adentrava, trancando a porta, era como se dependurasse, pelo lado de fora, um aviso: — "Não perturbem". Todos, sem exceção, respeitavam a ordem, como se deveras o letreiro existisse. Por isso mesmo, à moça sempre intrigara aquele pequeno santuário, onde as letras eram cultuadas através de divindades inspiradoras, cujos nomes, desde criança, aprendera a venerar. Era o templo das Musas. Os mortais ficavam-lhe à soleira.

A curiosidade impulsionava Maria Augusta. Torceu a maçaneta e devagarinho insinuou-se no aposento.

A penumbra casou bem com a névoa que trazia na alma. Após pausa emocionada, acendeu o abajur, disposto atrás da escrivaninha. Passeou o olhar pelas paredes forradas de livros. Apanhou alguns volumes abandonados sobre a mesa; soprando-lhes a poeira invasiva, recolocou-os nas vagas das estantes, com o desvelo de que se faziam credores. Tinham credenciais as mais ilustres — sábios, poetas e filósofos, amigos inseparáveis de seu finado pai, que com eles dividira a maior parte de suas horas. Amigos prontos a lhe fazer companhia, sempre que solicitados.

A jovem folheou algumas obras, tentando familiarizar-se com elas. Não conseguiu. Pesavam mais do que suportava sua mente pouco madura, não ainda preparada para leituras de maior consistência. Precisava de outros amigos. Aqueles, tão queridos de seu pai, não pertenciam à sua estirpe. Falavam com jeito passadista, conduzindo-a por vias que não a levavam a lugar algum. A maioria dos problemas que debatiam já estava devidamente suplantada pelo avanço do tempo. Até mesmo as questões passionais pareciam praticamente superadas: — para um amor impossível, havia o aceno promissor do divórcio, a abrir claros de esperança, meio aos trovões domésticos. As distâncias, encolhidas sucessivamente pelos jatos e supersônicos, não impunham mais angústias aos corações apaixonados. Notícias, cavalgando botões e teclas, tinham sabor de agora, na época movida a cibernética. O hoje, daí a um nada, virava ontem e o amanhã, se não navegado com urgência, sem mais aquela, ancorava no passado.

E os sonhos? Onde ficavam, afinal os sonhos?

Se — dentro dessa sensação angustiante de sentir a fuga acelerada dos próprios passos, sem coragem de arrastar-se atrás deles — viver era tão difícil, sonhar, então?! Por quê? Para quê?

A mente simplista, imatura e ao mesmo tempo romântica, da adolescente, mais e mais a separara do legar à filha o brilho da sua riqueza interior.

Maria Augusta deixou as derradeiras reflexões prensadas entre as páginas do último livro folheado. Concentrou a atenção na pequena estante que se destacava das demais — móvel antigo, esculpido com arte e requinte. Como viera aquela estante incorporar-se aos bens da família, não sabia. O sóbrio escritório do pai, há tantos anos, religiosamente o mesmo, sempre contara com a presença dessa peça de arte, estilosa, depositária de precioso acervo de filosofia, história, de qualquer amante da cultura,

Tinha bom gosto o pai!

Maria Augusta passou os dedos, carinhosamente, pela macia ondulação das lombadas. Algumas obras tinham encadernação primorosa, iluminadas artisticamente por douraduras.

Entre aquelas preciosidades, descobriu um pequeno livro, presença humilde, roída pelos dentes implacáveis do tempo. Destoava do todo, por isso mesmo fazia-se notar.

Manuseado por mãos pouco cuidadosas, o velho livro lembrava soldado cansado, remanescente de múltiplas batalhas, guardando no corpo as marcas dos entreveres.

Intrigada, a moça puxou-o da estante, constatando, surpresa, tratar-se de velha cartilha.

Logo à primeira página, o esclarecimento escrito por mão infantil, truncado por misteriosas reticências: "Este livro pertence a... 8 anos — 2° ano primário"

O nome do aluno mantido em segredo e acobertado pelas reticências, instigou mais a curiosidade de Maria Augusta, principalmente depois de ler no rodapé:

— Quer saber o meu nome? Então, vá até a página 28.

Folheou a cartilha rapidamente e, na página indicada, encontrou mais um recado: — Não é aqui... meu nome está quatro páginas adiante.

Já divertida, a moça prosseguiu, pacientemente, ao sabor das pistas, tendo embora a certeza de que não alcançaria, tão cedo, o objetivo.

Uma após outra, as sugestões levavam a leitora a virar e revirar o livro, detrás para diante, de cima para baixo, de acordo com os caprichos do misterioso proprietário da cartilha:

— Você quase me achou... volte três páginas.

— Agora, procure na última.

— Seu bobo, meu nome está na página do meio.

— Nessa? não... na que vem depois.

— Vire o livro de cabeça para baixo. Conte três páginas,

— Calma... é só virar mais uma!

— Juro que se contar dez páginas, vai saber o meu nome.


Já impaciente, Maria Augusta contou, religiosamente, as dez páginas exigidas e, com agradável emoção, pôde ler, afinal, grafado com letra irregular, um nome muito querido — o nome de seu pai!

Vibrou emocionada! Impenetrável, aparentemente frio, austero como o próprio escritório onde passava a maior parte de sua vida, aquele pai sisudo e distante, tinha sido criança, travessa e alegre, como qualquer outra, capaz de uma brincadeira inocente!

Brincadeira que, tantos anos depois, sopraria brumas que enevoavam as fantasias da filha, emocionalmente carente. Entendia, agora, o porquê daquele livro, singelo, em precário estado, ter conquistado o direito de figurar entre obras de tão significativa importância. Era o primeiro degrau de uma escalada brilhante. Sem passar por ele, o pai não teria atingido o estágio privilegiado que lhe dera tanto renome.

Pai e filha reencontravam-se nesse primeiro patamar, com muitos anos de atraso. Não tarde demais, porém, para reconhecer que ali estava o elo de ternura que faltava entre eles!

E havia ainda uma outra surpresa reservada à moça:

Um pequeno envelope, perdido entre as folhas da cartilha, deslizou para o chão. Apanhou-o. Continha uma carta. Maria Augusta arregalou os olhos maravilhados: — uma carta para Papai Noel, assinada por seu pai! Exultou! A data — dezembro de 1924. Oito anos, portanto, tinha o remetente. O texto deliciou-a:

Querido Papai Noel —

       Hoje briguei na escola por sua causa. Meu amigo riu de mim e disse que você não existia. Fiquei fulo da vida! Como é que você. Papai Noel, pode ser meu pai, se meu pai já morreu quando eu tinha três anos?!
      Às vezes, fico triste... será que você não existe mesmo?
      Não sei nem se vou ter coragem de mandar esta carta, E se mandar, não sei se ela vai chegar até aí. Mas, puxa! eu queria tanto que você existisse!
     Pai Noel, se você for mesmo de verdade, por favor, veja se me traz uma caneta bem bonita, dessas que já vêm cheias de tinta azul e também um caderno bem grosso, bem grosso mesmo, para eu escrever uma porção de histórias!
     Boa noite. Papai Noel. Prometo que não vou brigar nunca mais com ninguém. Bênção.


Luiz

Maria Augusta enxugou as lágrimas e dobrou a carta, carinhosamente, com um suspiro.

O envelope foi recolocado dentro da cartilha, e esta voltou a ocupar, como venerada relíquia, o lugar onde a deixara o sentimentalismo paterno. Rompera–se a cortina de gelo. Passava a entender o pai como pessoa simples, humana, comum. Gente, enfim! Acima de tudo, gente de grande sensibilidade e, sem dúvida alguma, muito privilegiada. Seu pai ascendera por esforço próprio e méritos incontestáveis, méritos dos quais Maria Augusta, agora, profundamente se orgulhava. Sentia que o amava como nunca pensara amar!

A moça deixou o escritório com o coração mais leve. Crescera um pouco mais,

Fechou, cuidadosamente, a porta e escancarou as janelas da alma!

Aspirou o ar fresco da manhã, tal se fora uma dádiva do céu!

O beijo do sol acariciou-lhe, mornamente, a pele. Notou, então, que a neblina teimosa deixara de toldar a paisagem da sua vida. O Natal avizinhava-se. Feliz, agradeceu a Pai Noel o presente antecipado.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Thalma Tavares (Poemas Avulsos) 2


AS HORAS ERMAS

Ah! solidão, como tu és danosa!...
Quando me cercas com o teu vazio,
minha alma triste, insone, pesarosa,
sofre de ausências neste quarto frio.

Estendo as mãos ao nada e desafio
a noite, que se adensa vagarosa
sobre o meu corpo tenso e erradio,
a se agitar na insônia insidiosa.

Não há ninguém em minhas horas ermas.
Apenas sombras do passado, enfermas,
povoam de saudade minhas noites.

E então maldigo a solidão das horas
e a chegada acintosa das auroras,
que me fustigam com seus mil açoites.
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PONTO DE VISTA

(Resposta à pergunta de Adélia Victória)

"Pode alguém ser feliz na mais completa paz?"
- Perguntas-me. Não sei, mas entendo que a vida
isenta de emoções ou de uma dor sofrida,
não é vida, é quimera, é comédia fugaz.

Eu posso ser feliz num turbilhão voraz,
ou infeliz na calma, às vezes conseguida
a golpes de renúncia ou paixão reprimida,
e viver na ilusão mentirosa e falaz.

Toda infelicidade e toda dor da gente
são frutos de quem vive egoisticamente,
negando ao coração a grandeza do amor.

Não pode ser feliz quem assim não entende.
Felicidade é luz que a gente mesmo acende
na lanterna da Paz de nosso interior.
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PECADOS

Eu tenho pecados, e muitos, não nego,
Só Deus é quem sabe das culpas que expio,
dos erros, das faltas que eu triste carrego,
que o sono me roubam, por noites a fio.

Porque aos teus braços me atiro, me entrego,
minha alma anda triste qual planta no estio.
Mas Deus é culpado, se não me fez cego
à rara beleza do teu corpo esguio.

Não sei de pecados, mais doces, mais quentes
que a luz de teus olhos, teus lábios ardentes,
que enchem minha alma de sol e calor.

Mas tenho certeza que os nossos pecados,
por muitos que sejam. Já estão perdoados,
pois não é pecado pecar por amor.
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QUIXOTE


Meu velho coração, que é solidário,
me faz ir por aí, doido e disperso,
sangrando os pés em rude itinerário,
para aplacar as dores do universo.

E penso que sou múltiplo e sumário,
que multidões eu trago no meu verso,
que às vezes sou Quixote temerário,
paladino do amor em sonho imerso.

Então desperto e vejo que me iludo,
mas faço do ideal o meu escudo
contra as tribulações do meu fadário.

E quando o coração bate mais forte,
eu decido enganar a minha sorte
e volto a ser Quixote doido e vário.
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SONETO DA AMIZADE
(Para Lisete, Delcy, Dorothy e Divenei)

Esta vida me deu grandes riquezas!…
Não me refiro a prata nem ao ouro,
mas a amigos que tive nas tristezas,
que são ainda o meu maior tesouro.

São amigos no incerto e nas certezas,
no efêmero e também no duradouro,
que sabem perdoar minhas fraquezas,
e rir, e ser, na dor, ancoradouro.

Assim, quando eu partir para o outro lado,
após pagar, talvez, algum pecado,
recobrarei a paz na consciência...

Mas lá, no Céu, serei quem nunca dorme,
só por velar, numa saudade enorme,
os amigos que fiz nesta existência.
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VIVANDEIRA

Assim que eu recolher a minha adaga,
quero te amar de todas as maneiras.
Mas se queres seguir-me nesta saga,
terás que costurar nossas bandeiras.

Ao aprender o amor das vivandeiras,
que engana a solidão e a dor afaga,
deves manter acesas as fogueiras
que o vento da incerteza sempre apaga.

Se a paz não se fizer nestas refregas,
eu te amarei no leito das macegas
que os céus reservam para o bom guerreiro.

Mas, se um dia cessar a hostilidade,
e se um de nós não morre de saudade
teremos por alcova o mundo inteiro.

Fonte:
Thalma Tavares. Alguns sonetos e sonetilhos. São Simão/SP, 2014.
Apostila enviada pelo poeta.

Figueiredo Pimentel (O Moleque da Carapuça Dourada)


Manuel Borba, depois de trabalhar a existência inteira, velho e cansado já, próximo do fim, via-se, como no princípio da sua carreira, cada vez mais pobre, ganhando o indispensável para não morrer de fome. Toda a sua fortuna consistia em uma roça que cultivava com os dois filhos.

Ao chegar a casa, uma tarde, teve notícia que a mulher dera à luz um menino muito desenvolvido e forte que ficou se chamando Anselmo. Não obstante ser pobre, ficou muito contente com o nascimento do filho, que prosperava dia a dia, a olhos vistos, cada vez mais, a ponto de ser, ao cabo de um mês, do tamanho de um homem. Além disso, comia como um gigante; só se contentava com um boi inteiro para jantar!

Borba, vendo que não podia sustentar um filho assim, aconselhou-se com Barbosa, sua mulher, e combinaram os dois de mandar o rapaz procurar a vida. Anselmo não se incomodou com a notícia. Pediu apenas que o pai mandasse fazer uma bengala de ferro, uma foice e um machado, grandes e pesados.

Assim que tais instrumentos ficaram prontos, partiu ele a correr mundo.

Depois de muito andar, chegou à casa de um lavrador, e ofereceu-lhe os seus serviços, que foram aceitos. Sendo incumbido de fazer uma roça, em três ou quatro foiçadas, pôs abaixo todas as matas da fazenda.

O fazendeiro, assustado com semelhante empregado, com uma desculpa qualquer, pensou em despedi-lo, dizendo que não precisava mais dele.

À hora do jantar, quando apresentaram a comida comum, recusou-se Anselmo a jantar, dizendo que, o que estava na mesa não chegava nem para o buraco de um dente, e pediu, para aliviar um pouco a fome com que estava, um boi e dois sacos de farinha.

O fazendeiro mandou dar-lhe o que pedia, e muito admirado, ficou quando o viu devorar tudo. Então, cada vez mais amedrontado, despediu-o.

Partiu o nosso herói em busca de novo emprego chegando ao palácio de um rei.

Perguntando o que sabia fazer, Anselmo respondeu:

– Saberá vossa real majestade que sei fazer, tudo, e sou capaz de tudo neste mundo.

À vista disso, o rei, para experimentá-lo, mandou-o caçar seis leões, que andavam devastando os arredores.

O moço aceitou a incumbência, e pediu um carro com três juntas de bois. Passou seis dias nas matas, onde estavam os. leões. Em cada dia matava um boi para comer, e prendia um leão, que amansava e atrelava ao carro. No fim desse tempo, cortou árvores das mais grossas e trouxe-as para a cidade, no carro puxado pelos leões amansados.

O povo, ao ver aquele carro com árvores enormes, puxado por leões, correu a contar o que via.

Assim que Anselmo chegou à praça, em frente ao palácio real, o rei mandou que os soldados matassem os seis animais ferozes, e avisassem o homem que saísse o mais depressa possível, sob pena de ser fuzilado.

Recebendo tal intimação, ficou Anselmo admirado de ter feito coisa que zangasse a real majestade, e indagando porque motivo o expulsavam do reino, não obteve resposta alguma.

Desconsolado por ver que ninguém queria aceitar seus serviços, partiu da cidade, protestando que não se empregaria mais.

– Agora vou trabalhar por minha conta; não quero mais saber de patrões, pois tenho sido infeliz com meus amos. Quero experimentar a vida, sem ter que dar satisfação a pessoa alguma.

Jornadeava ele por uma estrada muito larga e muito comprida, a ponto de se perder de vista, quando, depois de muito caminhar, encontrou um rio. Parando, para descansar, viu um homem atravessá-lo, sem se molhar.

– Como é que você anda na água, sem se molhar? indagou. Como se chama você?

– Eu me chamo o Homem-peixe. Você admirado de me ver passar este riacho; quanto mais se souber que acabei de atravessar todo o mar!

– Quer vir em minha companhia? perguntou Anselmo.

– Quero, disse o Homem-peixe.

– Pois então, passe-me para o outro lado.

O Homem-peixe carregou-o nas costas e caminhou para a outra margem. Seguiram os dois companheiros, quando, depois de andarem muito tempo, encontraram um homem cortando cipó e emendando-o para fazer um laço.

– Que fazes aí, homem? Como te chamas?

– Chamo-me o Homem-laçador. Estou a fazer este laço para laçar uma boiada que está pastando num campo, dez léguas daqui.

– O que me dizes, Homem-laçador, é admirável! Queres vir em nossa companhia?

– Pois não; e até estimo, porque não gosto de viajar só.

E lá seguiram os três companheiros a procurar a vida, por este mundo de Cristo em fora.

Pararam numa casa abandonada, no meio de uma floresta, e combinaram que o Homem-peixe fosse buscar comida para os três. O companheiro encontrou no caminho um molequinho, muito preto, com uma carapuça dourada na cabeça, que lhe pediu fogo para o cachimbo.

O Homem-peixe, não quis dá-lo; e o moleque, para se vingar, arrumou-lhe o cachimbo na cabeça, com tanta força, que o prostrou sem sentidos, no chão. Quando voltou a si, já não encontrou mais o pretinho, mas dirigiu-se para casa, contando aos outros o que lhe havia sucedido.

Disse o Homem-laçador:

– Qual, Homem-peixe, você é um moleirão! Amanhã quem vai sou eu; quero ver se o molecote me põe também por terra, sem sentidos.

E assim fez.

Estava já o laçador muito longe, quando lhe apareceu o moleque, pedindo-lhe fogo para a cachimbo.

O laçador não quis dar, e os dois começaram a lutar numa briga muito feia que durou mais de uma hora. Afinal, o moleque de carapuça dourada lhe deu com o cachimbo tal pancada na cabeça, que o pôs por terra, desacordado.

Quando o laçador deu acordo de si, voltou envergonhado para casa e contou aos companheiros o que lhe acontecera.

Anselmo começou a caçoar, chamando ambos maricas, moleirões, e disse que era ele quem iria no dia seguinte.

De manhã cedo partiu com a sua bengala de ferro e, depois de muito andar, em um lugar afastado encontrou o tal moleque, que lhe disse:

– Olá, Anselmo, como vai?...

– Bem obrigado. E tu, como vais, moleque?

– Bem. Muito obrigado. Dá-me fogo para acender o meu cachimbo?

– Não, moleque, não dou; e retira-te já daqui, senão... senão...

Meteu-lhe a bengala, e o moleque meteu-lhe o cachimbo. Travaram uma luta medonha de mais de duas horas.

Afinal Anselmo deu-lhe com a bengala de ferro, com tanta força, que o moleque se viu de repente sem a carapuça dourada na cabeça.

Anselmo apanhou-a, mais que depressa.

– Dê-me a minha carapuça, pelo amor de seu pai! dizia o moleque, de joelhos.

– Só te darei, se me deres as três princesas que tens em teu poder, respondeu o valentão.

– Não posso, porque não são minhas.

– Então, vai-te daqui, negro amaldiçoado!

O negro, que era o diabo, que vigiava as três princesas, foi andando... Anselmo acompanhou.

De repente o moleque entrou por um buraco, feito na terra, sempre acompanhado por Anselmo, que não deixava de o perseguir. Chegaram a um palácio riquíssimo, todo de ouro, onde havia muita gente trabalhando em caldeiras, em fogo, em ferro, e outros metais.

Aí chegando, o moleque pensou que o outro tinha medo do que via, e pediu novamente a sua carapuça. Respondeu Anselmo que só a entregaria se o negro lhe desse as três princesas.

O diabo, vendo que era o mais fraco, resolveu-se a entregá-las.

– Agora, só te darei a carapuça se me puseres lá fora, disse Anselmo.

Satanás não quis, e ele meteu-lhe outra vez a bengala. Vendo o diabo que de todo não podia com Anselmo, fez tudo quanto ele exigia.

O Homem-peixe e o laçador, que tinham ido à espreita, assim que viram três moças lindas saírem daquele buraco, fugiram com elas, enganando dessa forma o companheiro.

Anselmo não se incomodou muito com aquilo.

Recebera ele de cada uma das três moças um lenço, e sabia que mais tarde ou mais cedo havia de lhes descobrir o paradeiro.

O Homem-peixe e o Homem-laçador souberam que elas eram filhas de um rei poderoso, que habitava não longe dali, se fossem por mar, e muito longe se a caminhada fosse feita por terra. Seriam, então, precisos dois anos para se chegar lá.

O Homem-peixe disse:

– Com isso não me incomodo, minhas formosas princesas, pois até ando melhor na água do que em terra; o que está me impedindo de fazer a viagem por mar é que não as posso levar e mais o meu companheiro.

– Não seja esta a dúvida, Homem-peixe. Se te comprometeres a nos levar por mar, sem perigo, vou fazer um laço para prender as três lindas princesas e nós dois as levaremos.

Ficaram combinados.

Chegados ao palácio, o rei recebeu com alegria as filhas, e já tratava os dois companheiros como filhos.

Nesse intervalo, Anselmo, cansado de procurar as três princesas, sonhou que os três lenços que elas lhes haviam dado eram encantados, e se ele quisesse o conduziriam ao palácio do rei.

Acordou muito satisfeito, apanhou o primeiro lenço e disse:

– Voa, meu lenço, para o colo de tua dona.

O lenço virou papagaio, e desapareceu.

Quando a princesa o viu, lembrou-se do seu salvador e disse:

– Meu pai, só me casarei com o dono deste lenço.

Anselmo fez o mesmo com o segundo, que foi no colo da segunda princesa, que repetiu ao rei o que sua irmã dissera.

Vendo os dois lenços se transformarem em dois papagaios, Anselmo pegou no terceiro:

– Voa, lenço que a princesa me deu, voa e leva-me até o castelo do rei, seu pai.

O lenço transformou-se num grande papagaio com um selinzinho de ouro nas costas.

Anselmo cavalgou-o, e quando deu acordo estava no palácio.

Descoberto o embuste, Anselmo casou-se com a mais bonita das princesas. Os dois companheiros foram expulsos, depois de bem castigados.

As outras duas princesas casaram-se com dois príncipes vizinhos, senhores de um reino amigo.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

sábado, 25 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 329


Humberto de Campos (Os Jasmins)


- Que linda flor, almirante; e que perfume!

Foi assim que a linda viúva Dagmar Antunes recebeu, num arrulho gracioso, a florzinha alva, a mimosa estrelinha de neve, que o almirante Ribas destacara, gentil, da botoeira do seu "smoking" impecável.

- Dona Dagmar não conhece, porventura, a história desta flor? - perguntou, risonho, o velho marinheiro, tomando lugar ao lado da moça, no mesmo canapé.

E como a encantadora senhora lhe respondesse com o enigma de um sorriso, o almirante começou, falando-lhe quase ao ouvido:

- Para a primeira mulher, como a senhora sabe, a expulsão do Paraíso teve a importância de uma verdadeira calamidade. A maldição de Jeová tombava, principalmente, sobre ela, sobre o seu destino, sobre a sua felicidade na terra. Era ela que ia sofrer, dali em diante, as dores da multiplicação da espécie. Era sobre ela que iam recair as penas, os trabalhos, os cuidados da vida doméstica. Era sobre ela, em suma, que iam pesar as preocupações do vestuário, da mudança quotidiana da folha de parreira. E, por isso, era com o coração aos pedaços que ela ia deixar, para sempre, aquele abençoado domínio do Senhor.

Nesse ponto, fez pausa, olhou os dentes miudinhos da moça, que continuava a sorrir, e acrescentou, bordando a fabula:

- Expulsos do Éden, Adão e Eva baixaram a cabeça, e partiram, tristes, humildes, abatidos, para a horrível solidão do degredo. Assim, porém, que ultrapassaram os limites do grande jardim das delicias, nossa primeira mãe não pôde mais. Os lindos olhos umedeceram-se-lhe, como violetas tocadas de orvalho. E à medida que ela ia andando, iam as lágrimas caindo uma a uma, dos seus grandes olhos, assinalando, na areia, como pérolas do mesmo colar, as curvas do seu caminho. No dia seguinte, porém, ao amanhecer, o rosto da primeira mulher iluminou-se de uma divina felicidade: marcando os seus passos no Deserto, a areia aparecia semeada de florzinhas em forma de estrela, alvas como a inocência e cheirosas como o pecado!

Virou-se mais para a moça, e explicou:

- Foi assim, das lágrimas da mulher, que nasceram os jasmins!

E olhando-lhe nos olhos, com a voz trêmula:

- E foi nas pétalas dos jasmins, D. Dagmar, que Deus talhou os seus dentes!

Fonte:
conto XIV do livro de Humberto de Campos “A serpente de bronze”, publicado em 1925.

Elizabeth Mengelberg (Poemas Diversos)


DESATAR DE CORAÇÕES

Aproxima-se a hora da despedida,
uma hora inexata, uma atroz ferida…
E de todos os sonhos, seus e meus,
resta a recordação do nosso adeus.

Num breve e triste aceno nossas almas
irão se separar calmas... mui calmas.
E como dois amigos, dois irmãos,
selamos o amor num aperto de mãos.

E partiremos então, sem rancor,
com doces lembranças de nosso amor.
Cada qual fugirá para seu canto,
levando consigo dolente pranto.

E por um curto e pertinaz momento
talvez haja um cruel esquecimento
de detalhes pequenos que sobraram
e em nossos corações se abandonaram!
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ILUSÃO


Dia chuvoso é um dia sempre triste,
onde a felicidade nem sequer existe;
Éden de sublimes mas solitárias flores,
onde se perdem todos os eternos amores.
Ignorada saudade da feliz infância
perdida entre caminhos de grandes distâncias.
Soneto breve, só, como a chuva do céu,
lembrando um amor meu, que em sonhos se perdeu.
Instante feliz que preencheu o coração,
com uma leve felicidade: Ilusão!
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MERAS RECORDAÇÕES


Uma rosa já sem vida
e por todos esquecida,
lembra-me do nosso amor,
que murchou como esta flor.

Sua imagem está presente,
mesmo você estando ausente.
Um riso nos fez unir,
um ciúme o fez partir.

Você foi como um navio
que parte de um triste cais,
deixando um clima sombrio;

solidão tirando a paz.
Mas o navio luzidio
volta e você não mais!
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O HERÓI DA NOITE


O mar tão calmo e tão triste
espalha-se sobre a areia,
parece querer brincar,
Em sua frente existe
uma alegria que vagueia,
som de vozes, a falar.

A vida torna-se um sonho,
talvez grande ilusão,
que vive a nos perseguir.
Às vezes, um vulto risonho
põe fim a uma solidão
que surgirá no porvir.

E, ao anoitecer, o mar
herói de todos se faz,
e fica feliz assim.
Pois também sabe chorar
quando um sonho se desfaz,
chega a ser humano, enfim!
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REFLEXÃO

Meus pensamentos
se esvaem rapidamente;
caminham mais rápido
do que eu caminho agora,
já velha e cansada.
Revivendo o passado
como se este fosse presente.
Construo castelos de areia,
para viver meu futuro.
Morro a cada instante
em que perco você.
Ressuscito quando o vejo,
mesmo tão longe,
tão distante.
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SÓ UM SONHO E NADA MAIS!

 

A bruma que habita dentro de mim
é igual àquela que, em um dia de frio,
esconde casas e prédios, tudo enfim.
E assim se esvai um pensamento sombrio.

A solidão em que vive meu ego
é como se dentro de um museu
só existisse um quadro preso a um prego,
e esse quadro solitário fosse eu.

Uma tristeza quase me consome,
é um enterro de belas lembranças;
um pobre gritando de raiva e fome,
o fim de todas as minhas esperanças.

Deixo-me levar pelos pensamentos...
Estou num navio, o qual deixa o cais,
tentando fugir de todos tormentos.
Mas é só um sonho e nada mais!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

João Alphonsus (Galinha Cega)


Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:

- Frangos BONS E BARATOS!

Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.

- Psiu!

Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.

Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador brusco.

- Olhe esta franguinha branca. Então não vale?

- Está gordota... E que bonitos olhos ela tem. Pretotes... Vá lá!

O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:

- Frangos BONS E BARATOS!

Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.

- Olha, Inácia, o que eu comprei.

A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.

- Olha os olhos. Pretotes...

- É.

- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.

- É.

No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava divertidíssimo.

A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta. A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas.

Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna... Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.

Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha... Sujeito cacete.

O galo - có, có, có - có, có, có - rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo.

- A melhor galinha, Inácia! Boa à beça!

- Não sei por quê.

- Você sempre besta! Pois eu sei...

- Besta! besta, hein?

- Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto da galinha e fica me amolando.

- Besta é você!

- Eu sei que eu sou.

Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.

O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai... Nem por sombra imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.

Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.

Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus
instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.

Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! Para depois cantar.

As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.

- A coitada está cega, Inácia! Cega!

- É.

Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas enormes.

Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele.

Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura. Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha) que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado. Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.

Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade - o pouco de liberdade necessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.

Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e começava a niná-la com a voz branda, comovida:

- Coitadinha da minha ceguinha!

- Tadinha da ceguinha...

Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário.

De repente os acontecimentos se precipitaram.

- Entra!

- Centra!

A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas chutavam, e gozavam a brincadeira.

O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.

- Você chicoteou o filho do delegado. Vamos à delegacia.

Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa.

- Onde está a galinha, Inácia?

- Vai ver.

Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...

Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.

- Não fui eu não! Com certeza um gambá!

- Você não viu?

- Não acordei! Não pude acordar!

Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando: - Me acudam!

Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é pau-d'água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho. GOSTOSAMENTE.

De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas 20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.

Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes, e começou a rir:

- Kiss! kiss! kiss! (Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)

O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizado:

- Vai embora, seu tratante!

O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana:

- A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um ......

E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.

Fonte:
João Alphonsus. Galinha cega (contos). Publicado em 1931.

João Alphonsus (1901 – 1944)


João Alphonsus de Guimaraens nasceu em Conceição do Mato Dentro/MG, a 6 de abril de 1901, terceiro filho do grande poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens.

Iniciou seus estudos em Mariana e, aos 17 anos, se mudou para Belo Horizonte, onde finalizou a graduação em Direito. Foi Promotor de Justiça e Procurador-Geral do Estado.

Publicou seus primeiros poemas na revista Fon-Fon, em 1918. Em 1925, fundou a revista Verde em parceria com Antônio Mendes e outros companheiros. Influenciado pelo simbolismo, inicialmente escrevia somente poemas. Em contato com o modernismo, passou a escrever romances e contos, incorporando a fala coloquial e neologismos.

Recebeu o prêmio Machado de Assis com o romance Totônio Pacheco, em 1934; o Prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo romance Rola-Moça (1938); e o romance A Pesca da Baleia (1943).

João Alphonsus, na expressão do poeta e amigo Drummond, criou "uma literatura humana, terrivelmente humana, miudamente, dolorosamente humana". Foi um dos maiores nomes da nossa literatura. Sobre o autor diz Pedro Nava em suas memórias: "Esse poeta, filho de poeta, teve uma das mais brilhantes carreiras literárias de sua geração." "A linguagem de João Alphonsus é límpida, simples, cheia de equilíbrio, de valores estilísticos, da musicalidade de quem sabia admiravelmente o verso."

João Alphonsus faleceu em Belo Horizonte em 24 de maio de 1944, deixando sua esposa Esmeralda Vianna de Guimaraens e 3 filhos: João Alphonsus de Guimaraens Filho, Liliana Baeta Viana de Guimaraens e Fernão Baeta Vianna de Guimaraens.

Obras
1931 - Galinha Cega (contos); 1934 - Totônio Pacheco (romance); 1938 - Rola-Moça (romance); 1942 - A Pesca da Baleia (contos); 1943 - Eis a noite! (contos); 1965 - Contos e Novelas

Fontes:
Wikipedia
Imagem = http://www.rascunho.com.br

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 328


Silmar Böhrer (Croniquinha) 6


Caminho solito por estas areias deixando pegadas que jamais serão vistas por outra pessoa, porque as águas vão apagando meus sinais.

Rastros na areia são como tantos segredos que ninguém jamais imagina e nunca tomará conhecimento, porque são únicos, exclusivos, de um só. Meus, seus. Existem invisíveis, inimagináveis; portanto, não existem.

Segredos de um só são como pegadas na areia. Simplesmente não existem.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dinah Silveira de Queiroz (A Moralista)


Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe - não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando - só nós três em casa - vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:

- Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...

Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural.

O moço e a senhora choravam juntos.

Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios.

Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós.

Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra:

- Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora?

Contaram a Mamãe. Ela não riu:

- Eu não gosto disso. - E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço.

Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:

– Já estão me chamando de "padra"... Imagine!

Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:

- Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos...

Todos acharam ótima a ideia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava:

- Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis?

Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:

- Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou.., contando a sua miséria. Ë um desgraçado!

Um sonho de glória a embalou:

- Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade!

O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai - foram avisá-lo:

- Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito!

- Ela quis - respondeu meu Pai. - Ela sempre sabe o que faz!

O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:

- Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então...

Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:

- Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos!

Animado, meu Pai garantia:

- Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso!

Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. à hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranquilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar:

- Você não acha que ela consertou... demais?

Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.

Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:

- Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido - chegou a querer que morresse! Eu falo - porque todos sabem - mas ele hoje é um moço de bem!

Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou:

- Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!

- Mas - disse Mamãe admirada. - Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência.

Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora- seu pescoço - naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:

- Você tem razão. É melhor que ele volte para casa.

À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:

- Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...

No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe:

- Saia!... - disse ela baixo, antes de começar a reza. Ele ouviu - e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos.

Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite.

- Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...

Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias.

Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade.

Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção - eu o sabia - a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.

Fonte:
Conto escrito em 1957. in Histórias do amor maldito (Gasparino Damara, org.)

Sammis Reachers (5 Cartas em Versos)


CARTA À ÁRVORE

Torre transterna,
                          Transuterina
Verde malha de açambarcar
Estaca que a vida finca
Patamarizado playground,
                                    Estação clorofila
Biopilar da paz

Terramáter véu
Usina alquímica
A nutrir o sistema-Terra

Obrigado eternamente obrigado
Por alimentar-nos
De proteção e pão
Por verdecer para que não
                                          Ressecássemos
Nós vorazes algozes agradecemos
Por nos servir
De berço,
                 Púlpito
     E esquife

Perdoa-nos a nós os desgalhados entes
Nós a raça kamikaze de sem plumas
E sem clorofila
****************************************

CARTA AO CAFÉ


Café aroma de lar
Ritual, despedida de quem vai,
Abraço a quem retorna
Coffea arábica, Coffea canephora,
Coffea liberica, Coffea dewevrei

E as raças secretas de café

Cremes, bolos, infusões
Drinks, balas, canapés
Reversa marihuana
De santos, céticos e sahibs

Aqueduto tônico odoropulsante
Odoropulsar:
Café cuspidor de estrelas,
Regurgitador de luzes
Festim fenomenológico
Reserva moral da literatura

Sol do leite, do creme, do rum
Sol para tantas pressurosas luas
Centro da galáxia

Inimigo do deus do sono Oneiros,
Adversário do deus de gelo Ymir
Multilíngue deus de ébano & trópico

Licor laboral
Elixir de trevas luminosas
Rubro fruto de a noroeste
Do Eufrates e do Tigre
Último pomo a escapar do Paraíso
Antes de seu traslado
De volta ao seio de Deus

Orfeu negro, liquefeita
Cítara
Poema em estado tênsil
Combustível dos Napoleões
Comburente dos Quixotes

Aumente a pressão sanguínea
De nossas ideias,
Aqueça nossa tumultuosa
Solidão campestre ou citadina
****************************************

CARTA AO LIVRO DE BOLSO


Adolescido tomo
lanterna dos afogados

paraninfo da literatura
rancho da tropa, democrática
classe econômica
talismã, lítero muiraquitã iniciático

sustentáculo dos sebos, colecionário
de ceitils, centavos e xelins

Ingresso de matinê
na nau de Stevenson, na floresta
de London
na faiscante Paris espachim e amante
dos Dumas

condensário das imensidões
de Moby Dick ao pai Quixote

dramas d’antanho em prosa e papel jornal
poemas seletos lidos com lenta pressa
enquanto sacoleja o bonde ou o busão

lâmpada de celulose que exulta
na cama de solteiro do quartinho dos fundos
tanto te devemos, fiador dos desamparados
bengala dos moços, livro de bolso
****************************************
CARTA AOS PEDAGOGOS


A você, doador de sangue.
Que acredita nos pequenos inícios.
E se esmera nos processos, e vê ao longe
E no agora a colheita.
E vê perenidade na intermitência.

Você, alma grávida:
Beija-flor levando água
Para apagar o incêndio
Que na floresta dos homens grassa;
Salmão contra a corredeira,
Remando movido duma pulsão
Maior que seu pequeno corpo, urdida chama,
Flama & frêmito da expansão que o Conhecimento
- Este agridoce tutor - exige daqueles
Que o portam não na tumba cerebral,
Mas na cardíaca fornalha.

Guardião do Palácio de Tudo,
Cidadão matricial, apaziguador das gerações:
Nós te celebramos.
****************************************

CARTA AOS ANTOLOGISTAS


Deus é o códice e a logosfera
Donde todo verbo emana:
A você, pequeno livro de DNA,
Cabe adentrar as bibliocatedrais,
Abrir os outros livros em sua fonte,
Esposar em luz a profusão de periódicos,
Os homens e(m) suas memórias;
Mergulhe, vá!, polígamo pária,
No Oceano de Papel do qual
Você é o mais propício nauta;
Execute seu trabalho
Como compilador.

Revista-se de anonimato
Para celebrar os Nomes luminosos;
Você é o cobrador de impostos
Da sabedoria humana,
E o seu mais fiel e abnegado tributário.

Sua psicanálise é clara:
Sofre da pulsão de abarcar.
Sua sociologia é a mais chã e nua:
Todo antologista é um civilizador,
Um amigo do Homem.

“Não há limites para o fazer livros”,
E você, muar cargueiro de Gutenberg,
Entendeu exato que, logo,
Não há força que lhe impeça.
O muito estudo, enfado da carne
Que a muitos bem-intencionados
Amolece, você pisoteia
Com as botas de seu pragmatismo,
Pois mortificar a carne
É a sua ascese.

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dois: Fuga Letal


O SUJEITO CHEGOU no trigésimo andar vindo pelas escadas. Por algum motivo, não usou nenhum dos elevadores.  Havia quatro cabines verticais à disposição, mas ele preferiu o anonimato dos corrimões e das luzes tênues das escadas empoeiradas. Ao se avolumar com a sua massa corporal no extenso do corredor, notei seu semblante ressabiado e o respirar fatigado. Num primeiro momento, olhou para todos os lados, inúmeras vezes, como se temesse a chegada inesperada de alguém.

Percebi, logo de cara, que as intenções dele não eram assaz benignas. Quem aparece assim, do nada, suando em bicas, elegendo as escadas, para galgar trinta pavimentos, ao invés das comodidades dos ascensores, e o mais importante, amedrontado, se esgueirando feito cobra, pelos cantos escondidos, certamente não vinha disposto a se ajoelhar e rezar para pedir clemência à Deus. Aquele homem tinha outras intenções e eu, com toda certeza, seria, ainda que a contragosto, a testemunha ocular de um possível futuro crime hediondo prestes a acontecer.  

De onde eu estava  (por incrível que pareça, metido no cubículo onde ficava disposta a lixeira que servia a todas as quatro suítes imensas daquele andar), ele não podia me ver, a menos que caminhasse até meu esconderijo e, de supetão, abrisse a porta por qualquer motivo não justificável. Ou, de outro modo, um morador retardatário que naquele horário resolvesse jogar seu lixo fora, surgisse sem prévio aviso e desse comigo clandestinado onde as pessoas apareciam somente para se livrarem de seus expurgos caseiros. Seria muito azar da minha parte. Bota azar nisto.

Fora isto, acrescentando mais dois motivos,  eu seria pego de calças curtas, se produzisse algum ruído estranho, tipo se deixasse cair uma agulha no chão, ou, em face do cheiro forte exalado dos detritos, espirrasse numa sequência de atchins incontroláveis. No pior dos mundos, meu Cristo Salvador, no pior dos mundos, eu seria igualmente surpreendido, no flagra, de saia justa (apesar de não usar saia), se ousasse abrir a boca e gritar pelo fato de ter sido estuprado, quem sabe, por uma barata afoita que surgisse sem motivos justificáveis. 

Depois de se abanar com um jornal enrolado que retirara do bolso esquerdo, tomar fôlego e prescrutar cuidadosamente todos os cantos, de espiar pela janela de vidro inteiriçada incrustada à parede de meia altura o movimento da avenida lá embaixo,  de sentir no rosto o brilho da lua resplandecente, puxou da cintura um chaveiro e, dele, uma lixa e se prestou a procurar  qual apartamento seria o seu destino final. Foi lá, veio cá, passou perto de mim, vagarosamente. Tremi na base. Me benzi, esparramando de qualquer jeito, o Sinal da Cruz. Se o desgraçado resolvesse abrir a lixeira.... Eu estava fe... Entretanto, o cidadão estancou a caminhada diante do 3004. Mandou vê. Em questão de segundos, com a ajuda da gazua, arreganhou a porta da unidade e entrou. Simplesmente abundou aquela residência, como se tudo ali fosse dele.

Dentro do apartamento, norteado apenas pela luz da lanterna do celular, não perdeu tempo. Abriu várias gavetas, vasculhou minuciosamente atrás das cortinas, levantou o tapete que se estendia por boa parte do chão, remexeu nos livros dispostos na estante. Deu a entender que o procurado não fora achado. Afinal, o que o sujeito tinha tanta pressa em colocar as suas garras afiadas?

Finalmente, se esparramou no sofá retrátil de doze lugares, acendeu um cigarro e se fixou a olhar para o teto, sem se preocupar com a porta principal que arrombara e deixara diametralmente aberta ao acaso de outras moradias. Me veio a cabeça que o suspeitoso não se tratava de um ladrãozinho qualquer. Longe disso. Pelo menos, não vestia a pele de um meliante comum. Embora tivesse revolvido e remexido em tudo, deixado no seu remelexo o ambiente em desordem, de nada que viu pela frente, se apoderou para si. Foi aí que entendi a charada.

Claro, que besta quadrada! Só eu mesmo para pensar besteira. O estrangeiro não  fazia parte dos  larápios e salteadores buscando quinquilharias. Sem sombra de dúvidas, eu estava diante (em termos) de um assassino. Um facínora frio e calculista. Esperava, pois, a dona do imóvel. E eu sabia de quem se tratava.  Marcela, uma loira de tirar o sossego de qualquer coração. Andava, a beldade, pela  casa dos vinte e oito anos. A jovem morava sozinha, e, com toda certeza, ele a esperaria para lhe dar o bote e, de roldão, cabo da vida. Fiquei imaginando, com meus botões:  por que o infeliz não encostara a porta que violara?

De repente, ele saltou do sofá. Apagou o cigarro. Foi até a janela. Abriu um pouco a cortina e despachou a guimba ao sabor da escuridão. Um dos elevadores, ou mais precisamente o social parou neste momento e alguém saltou. Sabia que apeara uma pessoa, pelo barulho da porta sendo empurrada. De fato, eu não errara. Marcela havia acabado de aportar. Meu Deus, eu precisava fazer alguma coisa, no mínimo, por descargo de consciência, avisar a coitada. Jesus Cristo, eu seria testemunha de um crime brutal, cometido à revelia de uma inocente e eu não poderia sequer sair de onde estava. Aquela altura, se me delatasse estaria dando um tiro no próprio pé.

Talvez, com  certeza, me enveredasse pelo mesmo destino trágico daquela doçura que acabara de chegar  da rua, ou do trabalho, sei lá, que diferença isto faria agora? Ouvi nitidamente seus passos no corredor. De fato, a moradora se achegava. Enquanto esperava e espiava, temeroso e tremendo, ela passou por mim. Quase a toquei. Senti seu calor. Capturei o cheiro forte do seu perfume, me coloquei dentro dos olhos dela, ambos direcionados para a porta de seu quadrado. Ela percebeu, então, que a sua habitação fora transgredida. Apesar disso, não parou. Caminhou devagar, quase parando, como se não tivesse pressa. Como se sentisse o perigo iminente que a espreitava, mas por alguma razão mais forte, não retrocedia, seguia em frente, os cabelos soltos, em ondas esvoaçantes descendo sedosos até a cintura fina.

Vista por trás, a espetaculosa, se transformara a meus instintos animalescos numa deusa encantada. O corpo perfeito. Seu conjunto escultural, lembrava uma princesa recém saída de um castelo encantado. Coitada! Tão nova, tão linda, tão... Seu fim se  aproximava. À alguns passos e tudo estaria acabado. Acovardado, preso ao chão, eu tremia pior que caniço em temporal. Ela parou no umbral. Acendeu a luz. Ao ver o homem, em pé, quis retroceder.  Tarde demais.

Ele se aproximou, como se voasse. Ligeiro, agarrou a formosa pelos cabelos e a puxou violentamente para si. Ela tentou se libertar. Emitiu uns “me solta, me deixa, pelo amor que você tem à sua mãe”, entre outros impropérios, que acabaram sendo abafados pela força bruta do desumano algoz. Ato contínuo, a arrastou para o sofá, como se fosse, a criatura,  uma pluma. Um beijo se fez ligeiro, depois outro, numa sofreguidão que arrepiou o mais profundo da minha alma. Apavorado, mais que apavorado, aterrorizado, espantado, terrificado, me questionei rezando o Pai Nosso. Que atitude tomar? Correr? Berrar? Buscar ajuda?  Virar homem e sair da toca e chamar a polícia ou pôr para fora o que tinha de fazer ali mesmo e não dava mais para segurar, ou meter o rabo entre as pernas e me escafeder?

Se ao menos eu tivesse trazido o celular... Eu não podia continuar estático, feito um cão assustado, acossado, perseguido e embaraçado... Precisava, carecia, necessitava  fazer algo o mais urgente possível. Tomei, então, uma atitude. Engoli o medo. Mastiguei o receio. Esmaguei meus temores. “Afinal, sou um homem ou um rato?”.  Isso não iria ficar assim. De forma alguma. Me enchi de razão. Resolvi sair do armário, digo, da lixeira. Peguei o controle e, ato continuo, desliguei a televisão. Droga de filme chato!  Apaguei a luz da sala e fui para o meu quarto dormir.

Fonte
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 327


Sinclair Pozza Casemiro (Maria e Maria)


Caminhoneiro feliz era o Tião. Não foi a vida que pedi pra Deus... mas já que ele me deu.... Um caminhão bem cuidado, as posses não lhe puderam conferir um novo, mas seu sonho por certo um dia viraria verdade e ele passearia pelas ruas de Campo Mourão com as Marias na boleia. Esse dia ia chegar, tão certo como o sol que me alumia, lhe agaranto, Maria. E Maria concordava, rindo. Era assim sempre aquela mulher. Sempre rindo, co'a filhinha ao colo. Mulher de caminhoneiro é também uma forte, Euclides. Não tem tempo ruim, sol, chuva, frio, calor, comida, fome, cobrador à porta, o silencio cumplicioso diante do credor indignado... e a vida vai-se indo...

Maria e Maria. Suas duas maiores fortunas que ele, sempre que podia, carregava junto. A filhinha não reclamava, gostava muito. Nem sabia se tinha outro jeito, é claro. A mãe não só não reclamava quanto gostava muito, também. Acompanhar Tião, seu homem. Valente, alegre, mal-humorado com quem não gostava e um doce, até estragado de tão doce, pra quem queria bem. Assim, a vida ia se indo.

Os botinas já tinham se acostumado de ver a família na boleia. Carona não pode, mas as Marias eram carona? Acho que não. Pelo sim, pelo não, uma cervejinha de vez em quando e o problema estava resolvido.

Assim a vida ia se indo, Maria sempre rindo. Tião, ia e voltava, frete não lhe faltava. A casinha, ali perto do 119, na saída pra Peabiru, era humilde. A cidade de Campo Mourão ainda não era assim asfaltada, com as comodidades de agora, mas já mostrava futuro. A vizinhança, pouca, muito rara mesmo, era pobre igual, ou melhor, mais pobre. Tião não era pobre. Era afortunado, tenho um caminhãozinho, uma família, vamo vivendo... Muita peça que quebra, pneu que estoura, recape que não aguenta, senão até que sobrava pra não dever nada. Mas... tá bom. A noite fazia esquecer os problemas junto do corpo quente e macio da Maria, sempre rindo...

A filhinha crescendo, já dando seus passinhos, entendia de um tudo. Gostava de passear no caminhão, parava pra isso qualquer birra ou tristeza, se é que havia.

A Maria era sua, só sua, a Maria, filhinha, era deles, só deles. Mas a fortuna eles dividiam com os amigos. A casinha, quando eles lá paravam, era sempre cheia de gente. E de causos, e de chimarrão, dava gosto. Maria, sempre rindo. Não gostava de ficar, queria ir com Tião, nem precisava chamar. Chegava, lavava, arrumava a casinha, preparava comida pras viagens, ajeitava as coisas. Ia de novo. Seu lar era mesmo a boleia.

Estavam todos na roda do chimarrão, naquela tarde meio chuvosa, quando chegou uma mudança. No barraco ao lado. Não para ninguém aí, esquisito. Já ouvi dizer que foi amaldiçoado, quando os pioneiros vinham pro lado do Santa Cruz, fazer as rezas na Gruta, uma mulher foi assassinada nesse rancho. Me contaram que foi de amor. O companheiro não aceitava que ela não lhe queria mais. E aquele filho, diziam, nem era dele, não. Então ele trouxe ela, mais o filhinho no rancho, e escondido de todo mundo, matou a infeliz. O filhinho, Tião? Ah, nem tinha como saber das coisas, era de colo. Cresceu, com parentes. Mas o ranchinho fica aí, assustando os outros. Diz que ela vem, de noite, procurar o filhinho,.. Diz que se escuta o choro dela e ela chamando o bebê. É... coração de homem é terra que ninguém pisa...

A roda, de repente, tem mais gente. Chega a dona nova da casa e o filho, rapaz de corpo bem feito, falador, bonito. Logo se enturma, aprecia o chimarrão. Muito bem feito, fazia tempo que não experimentava um igual, com essas ervas... Ervas daqui, do quintal, diz Maria. Pra gente usar. Quando quiser... A conversa se anima, vão terminar a mudança, vai que chove.,.

E choveu. Choveu tanto, que o ranchinho não serviu pra abrigo e os novos vizinhos foram procurar arrego no Tião. Como sempre, o caminhoneiro atendeu. Tratou o vizinho já como velho companheiro, o que só o caminhoneiro sabe fazer. As mulheres confabulavam, a Maria, filha, encantava com sua graça e esperteza. A noite chuvosa embalou a todos, até os desafortunados do novo lar, que não tinham mesmo o que fazer.

E assim a vida ia se indo. No outro dia, o moço arrumou o rancho, nem precisou mais de ajuda. Agradecido, só fez visita, na outra noite. Tião recebeu, Maria sempre rindo...

Os dias foram passando, Tião, Maria e Maria indo e voltando, os novos vizinhos se conversando... Tinha mesmo um barulho esquisito no rancho. Mas.,. arre! Tenho o corpo fechado, falava o moço, que achava bonito o jeito da Maria, sempre rindo...

Maria achava bonito aquele moço, sem medo, valente que nem o Tião.

Hoje não vou, Tião. Tenho que arrumar umas coisinhas. Tá bem, volto logo. E assim a vida ia se indo... Maria já nem sempre rindo... Já nem indo tanto mais, também, no caminhão com Tião.

Um dia, um amigo falou pro Tião que ele nunca que ia morar em casa perto de casa assombrada. Tragédia chama tragédia. Se fosse o Tião, mudava dali.  Ora! Pra mim, essas coisas? Desde quando, nunca me aconteceu nada! Eu, se fosse você, Tião, mudava dali. O ranchinho é coisa do tinhoso, nem é bom tá perto. Oras!!

Mas o amigo insistia... Reparando bem, era mesmo. Maria nem sempre ria mais, já não ia mais com ele como antes, andava aborrecida, doente. Doente? Mas tava mais bonita, cabelo sempre arrumado, batom, as unhas sempre pintadas... Não tinha que se preocupar, não. Que confusão, Meu Deus! Acho que o Pezão não é bem amigo, não. Deu pra me perturbar com coisas... Tião, você não merece. Tentei evitar, até te tirar de lá, mas... Você é muito bom, rapaz, não percebeu. Cuida da Maria e do moço bonitão.

Bastou. O coração bom de Tião se anuviou, ele mais nada viu. Depois, bem depois que a tonteira e o ódio amainaram, ele achou que não era verdade, era engano, era mentira, era pesadelo. E nessa ilusão conseguiu chegar. Estava igual seu cantinho, mas já não era o mesmo mais. Também Maria, já não sorria. Mas um fio de esperança contava pra ele que não, que era tudo ilusão, pesadelo. Tião despediu, da Maria e da Maria, vou viajar. Tinha um plano.

Chegou a Peabiru, como nunca antes, nem viu passar o tempo, a estrada. E, de lá, encostou o caminhão, voltou a pé. A peixeira na cinta, não ia ser preciso usar. Era tudo ilusão, pesadelo. Os passos iam fazendo ele se achar tolo, perda de tempo. A Maria era só dele, era, sim, como era quando ela sempre ria.

Na porta do seu cantinho, ele viu umas chinelas que não eram dele. No azul escuro da noite sem lua, Tião viu tudo claro, de repente. E, brusca, irrompidamente saltou ao leito onde dormiam os corpos descansados dos pecadores ingratos. Tião só viu massas de corpos nus, braços, pernas, gritos, molhados, em meio ao prateado fio. Depois, no tribunal, soube que foram muitas, perto de cinquenta. A Maria, filha, tadinha, estava muda. Os olhos sempre abertos, fugidios, corriam do Tião. A vida pra eles também se acabara. Não foi preso, que a Lei, naquele tempo, não condenava quem matava pra defender a honra. A pequena Maria, ficou sabendo que morrera também. Como os olhos não queriam mais ver, a boca não quis mais comer, o coração não quis mais viver. E naquele tempo, também era mais difícil remédio pra essas dores.

Até hoje, quem passa por aquela estrada, escuta no rancho e no cantinho do Tião, um choro e mais uns gritos. Conforme a hora, escuta também uma voz, principalmente quando se anuvia e o vento assobia, chamando longe... longe... "Mariinha, filhiiinha!..." O pai, esse vagueia, pelo rio 119, pela estrada pra Peabiru, como vagueou em vida até ser reconhecido, ainda quente, sob as rodas de um caminhão.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.