quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Raul Pompéia (Decotes de quinze anos)

Curiosa coincidência, pensava Otília, debruçando-se à janela com a carta que lhe escrevera a prima, curiosa coincidência, aquela carta e aquela situação!

Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.

Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.

Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...

Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2o. andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.

"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.

Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.

Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.

Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias coisas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.

Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.

A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.

Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.

Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.

Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.

Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.

Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.

De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.

Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.

Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.

Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.

Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.

Era para desesperar.

Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.

Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.

O pudor é uma grande força.

Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.

Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.

Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.

Na tua idade, eu adivinhava os homens!

Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.

Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dois... três... botões da gola do meu princesa!

Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.

Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...

E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."

Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dois... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.

Que horror!

E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2o. andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVII

GALOPANDO...

Vou galopando em busca do meu sonho
que retrata o que penso desta lida.
No compasso da Fé, hoje componho
e me preparo para a despedida...

Por onde vou, a agradecer me ponho,
que a gratidão é flor sempre querida
e quem a tem se torna tão risonho
e conquista o poder que rege a vida.

Sou valente e não temo que o perigo
venha me perturbar no meu abrigo,
porque me considero um vencedor.

Pois encontrei, feliz, grande tesouro
com mais valor que o cobiçado ouro,
em quilates de Luz, o nosso Amor!
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INSPIRAÇÃO

Busquei a inspiração a duras penas
para escrever, com fé, este soneto,
e quero que as palavras mais amenas
sejam a Paz e o Amor, como dueto.

Que vou dizer das provações terrenas,
se o ninho é construído com graveto?
- Será melhor curar dores pequenas
e confirmar aquilo que prometo.

Mas teimo em encontrar a inspiração
que se escondeu e foge com razão,
deixando amargurado este poeta...

Clamo de novo e então ela aparece
trazendo junto ao peito farta messe
e agora, sim, a noite está completa!
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IPUPIARA

Feliz é quem trilhou estes caminhos
que levam à vibrante Ipupiara,
ouvindo o som de belos passarinhos
numa paisagem deslumbrante e rara.

Ibipetum, Pintada e outros vizinhos
Sodrelândia, Vanique e Caiçara,
Chiquita, Bela Sombra com seus ninhos,
Brejões, Coxim que muito me ensinara.

Jamais vou esquecer... O Olho d'Aguinha,
Veríssimo, Barreiro e até Matinha,
Deus me Livre, Umbaúba e Boa Vista.

Felicidade, então, é ter nascido
e neste berço um dia ter vivido
com gente hospitaleira e idealista!
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JUDAS MODERNO

Tu que habitas palácios decantados,
amante da aparência e do dinheiro.
Os teus castelos ricos, chumaçados,
nada serão no dia... derradeiro.

Tens riquezas e carros importados,
- contas bancárias pelo mundo inteiro,
- trabalhadores pobres, explorados,
tudo para chegares em primeiro...

Esqueceste do exemplo verdadeiro,
quando morreu o pobre carpinteiro,
pregado ao lenho de uma rude cruz.

Queres poder, és Judas do presente
vendendo o que aparece pela frente,
traindo, uma vez mais. Cristo Jesus!
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O LAVRADOR

Sou lavrador do campo e planto certo,
mantenho a crença de quem é cristão:
- a minha vida é como um livro aberto
plantando Paz, Amor, Compreensão...

Mas, se o terreno é seco qual deserto
nada vale investir na plantação,
que a semente caindo a descoberto
se perde e não germina nenhum grão.

É preciso primeiro arar a terra,
tirando a praga que produz a guerra,
que o mundo terá nova diretriz.

Quando o respeito se fizer presente,
nosso Planeta será mais decente
e o Ser Humano será mais feliz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (As visões de um certo Júlio Verne)

“Tudo que um homem pode imaginar, outros homens poderão realizar.”

Essa frase de Júlio Verne desperta o meu imaginário, e me faz viajar tanto ao passado quanto ao futuro em busca de loucas aventuras. Tão loucas, que chegam a lapidar-se em uma lucidez rara e, portanto, pouco conhecida.
 
Esse pensamento Verneano me faz viver as reflexões desse homem que possuía uma mente genial, capaz de prever melhor do que se bruxo fosse, a face do amanhã.
 
Certa vez, em profundo estado de meditação, fui ao passado e adentrei a cabeça prodigiosa de Verne. Dentro dela, enxerguei um ancião de cabelos compridos, barba longa e acinzentada. Ele conversava com os neurônios daquele que, em pouco tempo ficaria, através de suas obras, conhecido como o pai da ficção científica.

O velho lhe contava sobre as engenhosas invenções humanas, que logo se tornariam reais no mundo:  o helicóptero, o arranha-céus, os tanques de guerra, o submarino, a televisão, o cinema falado etc...
 
Resta–nos saber se o sábio que visitava a cabeça do escritor era uma espécie de “guia espiritual” à parte, ou se era um duplo de sua personalidade. Mas isso pouco importa. O importante foi alojar-me em sua mente nos dias em que ele resolveu descrever em seus livros de forma mágica, tudo o que estava por vir.
 
Encantei-me por Júlio Verne. Enamorei-me por sua capacidade de prever o futuro e pelo seu estilo infanto juvenil de criar histórias capazes de despertar as utopias mais secretas do ser humano. Afinal, nem só de previsões viviam seus escritos. Mas também de fábulas lúdicas e inocentes ...
 
Em a Viagem ao Centro da Terra, por exemplo, o professor Otto Lidenbrock é um senhor de idade avançada, mas cheio de sonhos e especulações que decide partir em viagem para confirmar a teoria de que a Terra tem um centro fecundo. Aliando-se a Axel, seu sobrinho e ajudante, parte em expedição. O ponto de partida é um vulcão inativo numa ilha da Islândia. Chegando lá eles encontram um guia chamado Hans, um homem frio e corajoso.
 
No decorrer da inusitada e excêntrica caminhada, os aventureiros ficam sem água, se perdem, se acham, dão de cara com monstros, mastodontes, homens gigantes... Depois da comprovação de que a Terra possui sim, um cetro mágico, eles retornam através da chaminé de um vulcão desativado localizada no sul da Itália.
 
Moral da história: Quem ousa acreditar com pureza, descobre. Quem descobre, enxerga. Quem enxerga, vive. E quem vive, sabe mais. Muito mais...

Portanto, acredite em algo que todos consideram impossível... 
 

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 2

 

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 11

A distância, é infinda, intensa!
Por mais que o tempo me iluda,
muda essa distância imensa,
mas a saudade, não muda!
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A honradez não se enxovalha,
nem se faz dela, adereço;
mas a honradez de um canalha
se compra por qualquer preço!
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Daquelas noites antigas,
no altar da velho abadia,
vagueiam sombras amigas
nas sombras da nostalgia!
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Dos meus bens que eu tive outrora,
de todos o mais amado,
é o pião que, cochila e chora,
com saudade do passado!
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Enquanto as filhas cantando,
seguem meus passos discretos,
vão meus cabelos nevando
de exemplos bons aos meus netos!
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É tarde!… Os monges cochilam
com o breviário na mão;
e, em volta deles, desfilam
almas, sonho e solidão!
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Há uma inquieta sensação;
um silêncio... E, de repente...
Uma estranha solidão,
desfaz o sonho da gente!
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Há um contraste, na verdade,
em quem vive de ilusão
e, troca a luz da humildade
na treva da ostentação!
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Lágrima, gota vertida
do olhar triste da emoção;
lágrima, essência da vida,
gota d'água do perdão!
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Lembro das noites antigas,
mesmo apesar da distância,
de velhas sombras amigas
dos tempos de minha infância!
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Logo assim que o sol se põe,
minha alma, aflita e dolente,
um lindo verso compõe
nos varais do sol poente!
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Na aurora, o que me fascina,
e, à ventura me conduz,
é ver a luz peregrina
banhando a aurora de luz!
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Não reclames das pedradas
que te dão pelos caminhos.
Vê, que às vezes, de mãos dadas,
há aqueles que vão sozinhos!
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No céu, brilha seminua;
no mar, minha alma vagueia,
enquanto os dedos da lua
escrevem versos na areia!
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Nós dois, graças ao Senhor,
até no olhar, se traduz,
que eu peço esmolas de amor,
e tu, esmolas de luz!
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O velho sino enlouquece,
toda tarde, na abadia;
e, no ensaio de uma prece,
desperta a melancolia!
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Por mais que a angústia persista,
crê na força da oração!...
Não há mágoa que resista
ao silêncio do perdão!
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Quando a natureza tinha
a fauna e a flora completas,
o orvalho da noite vinha
beijar os pés dos poetas!
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Sábia lição, tive um dia,
de um sabiá inocente,
que por cantar, não sabia
que era poeta como a gente!
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Se é ilusão, pouco me importa;
mas ouço no pensamento,
os passos dela, na porta,
no sopro da voz do vento!
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Senhor!... Não sei se mereço,
seguir teus passos, Senhor!
Mas sigo, e em cada tropeço,
tropeço nos pés do amor!
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Se o infortúnio nos condena,
o perdão, aperfeiçoa;
e, é Deus quem perdoa a pena
da pena de quem perdoa!
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Só cinzas e plantas mortas!…
Lenhador, tu que destróis,
não percebes quando cortas
que cortas a todos nós.?!…
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Tanto plano desejado,
ilusões, sonhos, canseira.
Pra ver tudo sepultado
nas cinzas da quarta-feira!
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Tuas cãs loiras, sedosas,
reclamam da sorte ingrata;
serão bem mais preciosas
quando pintadas de prata!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Adega de Versos 88: Carolina Ramos

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLV

NADA. PASSARAM NUVENS E EU FIQUEI

 
Nada.  Passaram nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei o meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?
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NADA QUE SOU ME INTERESSA
 
Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer que tem pressa
Terá pressa em vão.

Nada que sou me pertence.
Se existo em que me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.

Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só que o não hei de ter.
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NA MARGEM VERDE DA ESTRADA
 
Na margem verde da estrada
Os malmequeres são meus.
Já trago a alma cansada -
Não é de si: é de Deus.

Se Deus me quisesse dá-la
Havia de achar maneira...
A estrada de cá da vala
Tem malmequeres à beira.

Se os quer, colho-os, e tenho
Cuidado com os partir.
Cada um que vejo e apanho
Dá um estalinho ao sair.

São malmequeres aos molhos,
Iguaizinhos para ver.
E nem põe neles os olhos,
Dá a mão pra os receber.

Não é esmola que envergonhe,
Nem coisa dada sem mais,
É pra que a menina os ponha
Onde o peito faz sinais.

Tirei-os do campo ao lado
Para a menina os trazer...
E nem me mostra o agrado
De um olhar para me ver...

É assim a minha sina.
Tirei-os de onde iam bem,
Só para os dar à menina -
E agradeceu-me a ninguém.
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NA NOITE QUE ME DESCONHECE
 
Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.

Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheiamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.

Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite. embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres?
Tudo enfada Antes só sintas, coração.
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NÃO DIGAS NADA!
 
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -  
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
 
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
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NÃO FIZ NADA, BEM SEI, NEM O FAREI
 
Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos ao encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.

A. A. de Assis (O trem do amor)

A cerimônia estava marcada para as seis da manhã. Isso mesmo: ao nascer do dia. Porque o maria-fumaça passava pela estação de Cambuci-RJ às sete e meia.

Noivos e convidados já estavam de pé antes das cinco; a noiva por certo nem dormira. Seis horas em ponto, escutava-se a marcha nupcial. Qualquer descuido com o relógio significaria o risco de perder o trem.

Casamento bonito, solene, com missa e cantos em caprichado latim, comovente sermão do padre Othon. Terminou às sete, igualmente em ponto. Em meia hora deveríamos, após trocar de roupa e cortar o bolo, estar prontos para o embarque na estação.

O normal era o trem atrasar, mas justamente naquele sábado quebrou a regra: chegou na horinha... sem que lá estivéssemos. O recurso foi os convidados plantarem-se em cima da linha, na frente da locomotiva, impedindo a partida. Sorte que o maquinista estava de bom humor e acabou aderindo à brincadeira, aproveitando para comer a fatia de bolo que alguém se lembrou de oferecer-lhe. Entre podes e não podes, gritos, apitos e assobios, espera-um-pouco e espera-um-pouco-mais, uns quinze minutos se passaram... e o trem ali parado.

Quinze ou vinte minutos, sei lá. Naquele alvoroço, o embarque foi um tumulto. Além de nós, que viajaríamos para o Rio de Janeiro, iriam juntos até São Fidélis e Campos dezenas de convidados. Gente cantando, gente tocando violão, gente gritando “é pique, é pique, é pique...”, gente jogando arroz... O recolhedor de passagens quase endoidou naquela confusão.

Após o desembarque dos barulhentos convidados, Lucilla e eu, enfim sós, poderíamos prosseguir tranquilos nossa lua de mel sobre trilhos, o trem rolando pachorrento a 40 ou 50 quilômetros por hora, soltando fumaça, apitando em cada curva, batendo sinos...

Porém o “enfim sós” pouco durou. Por obra do atraso forçado na estação das núpcias, ficamos famosos e superparicados. Os passageiros todos se fizeram figurantes da história, batendo palmas, gritando vivas, se acercando para abraçar os dois pombinhos. O maquinista mandou perguntar se estávamos bem. O vendedor de jornais ofereceu os matutinos de graça: “Pra vocês escolherem um bom programa na capital”. O baleiro trouxe bombons: “Não precisam pagar, é cortesia da casa”.

Passamos dois dias no Rio, um dia em Aparecida, dois dias em São Paulo, e dali para Maringá. O aeroporto era ainda de chão batido. A Avenida Brasil, por onde passou o táxi, não tinha asfalto. Um poeirão de dar medo. Lucilla não comentou nada, mas até hoje, sessenta e quatro anos depois, fico imaginando o que ela pensou naquele instante. No mínimo sentiu uma vontade enorme de pegar o avião de volta.

Mas quando a gente é jovem tudo é festa. Em pouco tempo ela se adaptou ao jeito maringaense de viver. Graças a Deus.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 28-7-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Daniel Maurício (Poética) 37

 

Concurso de poemas para crianças (Poemas Premiados no Tema: Tesourinha)

O Projeto Poetizar o Mundo, lançou em julho/2022, para os participantes do grupo do Facebook "Poetas Amigos de Isabel Furini, o  Concurso de poemas para crianças, com o tema "Tesourinha", foram os ganhadores:

1º Lugar

Katia Sentinaro
Campinas/SP

ENTRE O CÉU E A TERRA


Tesourinha no céu,
Tesourinha no chão.
Com uma, voa o papel.
Com a outra, voa a estação.
Uma supera a colina,
Outra permanece na mão.
Uma é leve, feito bailarina.
E com as duas voa a imaginação
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2º Lugar

Décio Romano
Curitiba/PR

TESOURINHA


Tesourinha escolar
De cortar papel
O recorte que me encanta
É a nuvem lá no céu.

Quem recorta a figurinha
Que ilustra a página?
A criança que estuda
Ou a tesourinha mágica?
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3º Lugar
(Poema en espanhol)

Sheina Leoni Handel
Montevidéu/Uruguai

TIJERITA


Corta ,corta , tijerita
Corta, corta tijerita,
y no dejes de cortar;
dale forma a mis hojitas,
que las debo terminar;
con forma de palomita,
para la fiesta final,
pues las clases ya culminan
hoy es el baile especial,
y seremos palomitas,
listas para despegar.
Nuestra maestra querida,
seguro nerviosa está,
un poquito de alegría,
nos ha visto madurar,
más también melancolía,
porque debemos marchar;
piloteando tras la vida,
seguro otro año más;
terminó mi tijerita,
ya tengo pronto el disfraz,
parto para la escuelita,
seguida de mis papás,
a celebrar este día,
fin de otro año escolar,
un momento de alegría,
de esos que hacen llorar.
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TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS, por José Feldman

TESOURINHA


Corta, corta, tesourinha
Corta, corta, tesourinha,
e não pare de cortar;
molda minhas folhinhas,
que devo terminar;
em forma de pomba,
para a festa final,
pois as aulas acabaram.
hoje é o baile especial,
e seremos pombinhas,
pronto para decolar.
Nossa querida professora,
certeza que está nervosa
um pouquinho de alegria,
nos viu amadurecer,
mas também melancolia,
porque devemos marchar;
pilotando após a vida,
certeza outro ano;
terminei minha tesourinha,
já tenho pronto o traje,
parto para escola,
seguida por meus pais
para comemorar este dia,
fim de mais um ano letivo
um momento de alegria,
daqueles que fazem chorar.
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MENÇÃO HONROSA

Rita Queiróz
Feira de Santana/BA

MÃOS DE TESOURA


Com as mãozinhas mágicas,
Joaninha e Pedrinho fazem arte.
Cortam tudo que veem pela frente
De papel a sabonete, fazem picadinho
Colam num quadro e fazem um mosaico.
Joaninha e Pedrinho querem outro mundo
As mãozinhas são tesouras afiadas
Cortam os galhos das árvores, as folhas
Tudo voa pelos ares como bolas de sabão
Coloridas imagens recortadas nas asas do avião.
Cabelos e unhas cortados, nariz empinado
Bonecas viram Pinóquios, brincam de Pluft
Fantasminha amigo, corta o branco lençol
Buracos nos olhos, bocas abertas,
Risadas dobradas, origâmis bailam.
Tesourinha é uma varinha de condão
Da fada e do mago, farta imaginação
Corta a tristeza, a mágoa e o mau humor
Vira alegria, amor e muita gratidão,
Fartos pedaços de uma fantasia infantil.
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MENÇÃO HONROSA

Flávia Ferrari
São Paulo/SP

FOTOGRAFIA


A menina Rosa gostava de rolar na terra
Correr sozinha pela escola
Contar os tatus-bolas
Olhar as minhocas se esconderem no canteiro
Pendurar-se na trave do goleiro
E durante sua exploração
Aparecia aquele bichinho diferente
De quem a menina não tinha notícia
Com suas garras em forma de pinça
De movimento alongado
E corpo achatado
Gostava de se esconder de Rosa
E ela ficava intrigada
Tocava o sinal e a menina nem se mexia
E logo tirava os sapatos
Voava no balanço sem vontade de aterrissar
Nunca se cansava de brincar
Eis que um dia
Enquanto folheava um livro na sala
Rosa teve uma surpresa
E saiu em disparada
Passou correndo pela amarelinha
Procurou por todo quintal
E a encontrou bem perto do bananal
Com a boca cheia de vontade
Tinha que dizer bem alto
Chegou pertinho da sua nova amiga
Que parecia olhar para Rosa
- Tesourinha, Tesourinha, descobri que você é famosa
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MENÇÃO HONROSA

Elieder Corrêa da Silva
Curitiba/PR

MOTRICIDADE


Marianinha, garota vivaz,
na mão a tesourinha,
repica papéis, sabe, faz.
Faz toalhinhas floridas,
bandeirolas coloridas,
em folhas brancas de papel.
Recorta animaizinhos,
enfeitarão o carrossel.
O carrossel terá cavalos,
peixes e passarinhos,
Nesses momentos
lúdicos com a
tesourinha na mão,
recortou para a mamãe
bonito coração.

Milton S. Souza (Amante à moda antiga)

Tudo começou naquele encontro casual na floricultura. O relógio marcava nove horas da manhã quando ele estava entrando e o outro sujeito, moreno, alto, de bigode, saindo. Quase colidiram na porta. E o enorme ramalhete de flores, com cerca de 30 rosas brancas e vermelhas, que o outro levava nas mãos, chamou a sua atenção. Foi então que resolveu comprar um igual. Afinal, nada melhor do que presentear a sua “filial” com aquele belíssimo buquê de flores. Ela era tão compreensiva. Nunca reclamava da sua condição de homem casado e sempre estava pronta, naqueles poucos momentos em que conseguiam se encontrar, para cobrir a sua vida de carinhos. Ninguém melhor do que ela para merecer aquelas flores...

Pagou caro pelo ramalhete. E pagou um pouco mais ainda para que as flores fossem enviadas diretamente para a casa da “2ª dama”. Não poderia deixar furo. Se fosse visto saindo da floricultura com aquela belezura de buquê, logo a sua mulher saberia de tudo. Foi discreto até mesmo no cartão que escreveu para colocar junto com as flores: “Tu sabes que és a primeira no meu coração”. Não assinou e nem colocou o nome da amada. Nem precisava. Ela logo saberia que o presente era dele. Ainda mais naquela data, 21 de setembro, quando o calendário marcava o Dia da Amante...

Trabalhou o dia inteiro esperando um telefonema de agradecimento da sua amada-amante. Mas o telefonema não chegou. Até tentou ligar para o apartamento dela, do seu celular, mas não conseguiu completar a ligação. E não quis pedir para a secretária tentar, pois poderia levantar suspeitas. Lamentou não ter tempo sobrando para fazer uma visita-surpresa e saborear em carícias aquele “investimento florido”. O dia terminou sem surpresas. Mas a surpresa maior, sem que ele soubesse, estava esperando na sua própria casa...

Quando entrou no “doce-lar” a mulher não estava. Num bilhete, avisava que tinha ido ao instituto de beleza. “A bruxa querendo se enfeitar”, pensou em voz alta. Quase caiu duro, porém, quando penetrou no quarto e viu, sobre a cômoda, um buquê de flores exatamente igual ao que ele havia enviado para a casa da amante. Seus pensamentos dispararam: como um raio, surgiu na sua mente o fantasma do “cara” moreno, alto e de bigode da quase colisão na floricultura. Sentiu uma estranha coceira repentina na testa. Começou a imaginar que aquele sujeito metido a bonitão era amante da sua mulher. Só poderia ser isso. Receber flores no Dia do Amante!!! Desgraçada. Que instituto de beleza, que nada. A esta hora ela deveria estar em algum motel lambendo os bigodes daquele miserável!!! Sentou na cama, arrasado, com a cabeça entre as mãos. Naquele momento, escutou o barulho da porta se abrindo. Só poderia ser ela, a maldita traidora...

A mulher veio quase correndo na direção dele, cabelo cortado e arrumado, toda maquiada e enfeitada. Nem conseguiu falar. Foi sufocado por um abraço e um beijo. E ela começou a desfiar um rosário de agradecimentos pelas flores e de desculpas “por não estar sendo uma boa esposa ultimamente”. Elogiou o cartãozinho escrito com a letra dele, com a declaração de que ela era “a primeira no seu coração”...

Um turbilhão passou pelos seus pensamentos. Só poderia ser isso. Na hora de escrever o endereço para a entrega das flores, pela força do hábito, colocara o da sua casa no lugar do da amante. Um calafrio desfilou pelo seu corpo. Ainda bem que não escrevera o nome da dita cuja, senão... Sentiu dois pesos pontudos saírem da sua cabeça... E se entregou de corpo e alma para as carícias da esposa, que nem lembrou de fechar a porta do quarto para começar a se despir.  Foi o melhor Dia da Amante da sua vida…

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/72831

domingo, 14 de agosto de 2022

Varal de Trovas n. 566

 

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 7 -

CANÇÃO DE AMOR

 
"Vem, formosa minha, vem!"
(CL 2.10)


Volta, amada minha,
Vem pra junto de mim,
Que uma canção de amor
Te cantarei.

Eu te espero sempre,
Sempre com ansiedade,
E com canção de amor
Te embalarei.

És toda minha vida,
És tudo para mim,
És tudo,
Tudo o que sonho!
Tudo, tudo,
Meu bem,
Meu bem!

Eu não suporto mais
Este exílio sem fim;
E com canção de amor
Te esperarei.

Tão só estou no mundo,
No mundo tão deserto;
E com canção de amor
Te buscarei.

És toda a minha vida,
És tudo para mim,
És tudo,
Tudo o que sonho!
Tudo, tudo,
Meu bem,
Meu bem!
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DOCE ESPERANÇA

"Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu."
(Ct. 6.3)


Longo tempo de espera passou,
Novo dia raiou na estação;
Trago n'alma o nosso passado,
Pra revê-la com toda emoção.

Na memória, bem viva, a guardei,
Eu só tive você na saudade;
Suspirei encontrá-la de novo
- Casarei com a felicidade.

Vou dizer-lhe que o amor é maior,
Ele é puro tal como o marfim;
Ele sabe que digo a verdade
- É o amor que jamais terá fim.
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MINHA
 
"Graciosa é tua boca!"
(Ct. 4.3)


Bela menina, atraentes olhos,
Com quanto ardor me procuras tanto;
Essa maneira do teu olhar
Faz-me sonhar e compor meu canto.

Lindo botão de rosa vermelha
É tua boca tão redondinha;
Deixa eu te dar, de leve, um beijinho
E, com jeitinho, hás de ser minha.

Que encanto um dia poder beijar-te,
Co'aquele beijo lá d'outro mundo;
Da tua entranha viria um gemido
Estremecido num "ai" profundo.

A brisa iria sentir na tua boca,
Na tua boca tão redondinha;
Suave aroma de puro amor,
Com que calor irias ser minha.

Meiguice estranha deste teu ser
Que, embora em chama, me dá frescor;
És refrigério de sensação,
Rara paixão que fecunda o amor.

Oh, não me deixes, quero-te muito!
Venhas saciar este sonho meu!
Será que alguém te dá mais calor?!
- Maior amor quem te dá sou eu!
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POMBAL
 
"Ali te darei minhas delícias."
(Ct. 7.13)


Rósea pombinha, contempla a alvorada!
Voa pra mim! - É hora da revoada
Para o pombal amigo.
Voarei contigo, no teu doce lado!
Felicidade é o Éden procurado
Que será nosso abrigo.

Não demores mais! - O ágave* te chama
Com voz tangente... O teu ser se inflama
Num idílio de amor.
Voejarei contigo!… Dar-me-ás a mão...
Como ninguém, serás feliz então,
Bem longe do pavor.

Além das vagas, no pombal distante,
O Sol, da Lua, eternamente amante,
Em namoro sem fim,
Contigo ficarei - assim juntinho,
Para te dar amor no mesmo ninho...
E arrulharás pra mim...

Irás repousar em seguros ombros,
Acalentando carícias dos pombos
Do alvejante pombal.
Do mundo esquecerás por um instante,
Reclinarás no ninho aconchegante
- Delícia sem igual.
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* ágave = Planta ornamental. Fig: algo de extrema raridade.
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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Machado de Assis (Flor anônima)

Manhã clara. A alma de Martinha é que acordou escura. Tinha ido na véspera a um casamento; e, ao tornar para casa, com a tia que mora com ela, não podia encobrir a tristeza que lhe dera a alegria dos outros e particularmente dos noivos.

Martinha ia nos seus... Nascera há muitos anos. Toda a gente que estava em casa, quando ela nasceu, anunciou que seria a felicidade da família. O pai não cabia em si de contente.

— Há de ser linda!

— Há de ser boa!

— Há de ser condessa!

— Há de ser rainha!

Essas e outras profecias iam ocorrendo aos parentes e amigos da casa.

Lá vão... Aqui pega a alma escura de Martinha. Lá vão quarenta e três anos, — ou quarenta e cinco, segundo a tia; Martinha, porém, afirma que são quarenta e três. Adotemos este número. Para ti, moça de vinte anos, a diferença é nada; mas deixa-te ir aos quarenta, nas mesmas circunstâncias que ela, e verás se não te cerceias uns dois anos. E depois nada obsta que marches um pouco para trás. Quarenta e três, quarenta e dois, fazem tão pouca diferença...

Naturalmente a leitora espera que o marido de Martinha apareça, depois de ter lido os jornais ou enxugado do banho. Mas é que não há marido, nem nada. Martinha é solteira, e daí vem a alma escura desta bela manhã clara e fresca, posterior à noite de bodas.

Só, tão só, provavelmente só até a morte; e Martinha morrerá tarde, porque é robusta como um trabalhador e sã como um pero. Não teve mais que a tia velha. Pai e mãe morreram, e cedo.

A culpa dessa solidão a quem pertence? ao destino ou a ela? Martinha crê, às vezes, que ao destino; às vezes, acusa-se a si própria. Nós podemos descobrir a verdade, indo com ela abrir a gaveta, a caixa, e na caixa a bolsa de veludo verde e velha, em que estão guardadas todas as suas lembranças amorosas. Agora que assistira ao casamento da outra, teve ideia de inventariar o passado. Contudo hesitou:

— Não, para que ver isto? É pior: deixemos recordações aborrecidas.

Mas o gosto de remoçar levou-a a abrir a gaveta, a caixa, e a bolsa; pegou da bolsa, e foi sentar-se ao pé da cama.

Há que anos não via aqueles despojos da mocidade! Pegou-lhes comovida, e entrou a revê-los.

De quem é esta carta? pensou ela ao ver a primeira. Seu Juca. Que Juca? Ah! o filho do Brito Brandão. “Crê que o meu amor será eterno!”. E casou pouco depois com aquela moça da Lapa. Eu era capaz de pôr a mão no fogo por ele. Foi no baile do Club Fluminense que o encontrei pela primeira vez. Que bonito moço! Alto, bigode fino, e uns olhos como nunca mais achei outros. Dançamos essa noite não sei quantas vezes. Depois começou a passar todas as tardes pela Rua dos Inválidos, até que nos foi apresentado. Poucas visitas, a princípio, depois mais e mais. Que tempo durou? Não me lembra; seis meses, nem tanto. Um dia começou a fugir, a fugir, até que de todo desapareceu. Não se demorou o casamento com a outra... “Crê que o meu amor será eterno!”

Martinha leu a carta toda e a pôs de lado.

— Qual! é impossível que a outra tenha sido feliz. Homens daqueles só fazem desgraçadas...

Outra carta. Gonçalves era o nome deste. Um Gonçalves louro, que chegou de S. Paulo, bacharelado de fresco, e fez tontear muita moça. O papel estava encardido e feio, como provavelmente estaria o autor. Outra carta, outras cartas. Martinha relia a maior parte delas. Não eram muitos os namorados; mas cada um deles deixara meia dúzia pelo menos, de lindas epístolas.

 “Tudo perdido”, pensava ela.

E, uma palavra daqui, outra dali, fazia recordar tantos episódios deslembrados... “desde domingo (dizia um) que não me esquece o caso da bengala”. Que bengala? Martinha não atinou logo. Que bengala podia ser que fizesse ao autor da carta (um moço que principiava a negociar, e era agora abastado e comendador) não poder esquecê-la desde domingo?

Afinal deu com o que era; foi uma noite, ao sair da casa dela, que indo procurar a bengala, não a achou, porque uma criança de casa a levara para dentro; ela é que lha entregara à porta, e então trocaram um beijo...

Martinha ao lembrá-lo estremeceu. Mas refletindo que tudo agora estava esquecido, o domingo, a bengala e o beijo (o comendador tem agora três filhos), passou depressa a outras cartas.

Concluiu o inventário. Depois, acudindo-lhe que cada uma das cartas tivera resposta, perguntou a si mesma onde andariam as suas letras.

Perdidas, todas perdidas; rasgadas nas vésperas do casamento de cada um dos namorados, ou então varridas com o cisco, entre contas de alfaiates...

Abanou a cabeça para sacudir tão tristes ideias. Pobre Martinha! Teve ímpetos de rasgar todas aquelas velhas epístolas; mas sentia que era como se rasgasse uma parte da vida de si mesma, e recolheu-as.

 Não haveria mais alguma na bolsa?

Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca.

— Que flor é esta?

Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lhe deu?

Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando?

A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar.

Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima!

— Mas que flor é esta? repetiu Martinha.

Aos quarenta e cinco anos não admira que a gente esqueça uma flor. Martinha mirou-a, remirou-a, fechou os olhos a ver se atinava com a origem daquele despojo mudo.

Na história dos seus amores escritos não achou semelhante prenda; mas quem podia afirmar que não fosse dada de passagem, sem nenhum episódio importante a que se ligasse?

Martinha guardou as cartas para colocar a flor por cima, e impedir que o peso a desfibrasse mais depressa, quando uma recordação a assaltou:

— Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo.

Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove. Era primo de umas amigas. Julião nunca lhe escrevera cartas. Um dia, depois de muita familiaridade com ela, por causa das primas, entrou a amá-la, a não pensar em outra coisa, e não o pôde encobrir, ao menos da própria Martinha. Esta dava-lhe alguns olhares, mais ou menos longos e risonhos; mas em verdade, não parecia aceitá-lo. Julião teimava, esperava, suspirava. Fazia verdadeiros sacrifícios, ia a toda parte onde presumia encontrá-la, gastava horas, perdia sonos. Tinha um emprego público e era hábil; com certeza subiria na escala administrativa, se pudesse cuidar somente dos seus deveres; mas o demônio da moça interpunha-se entre ele e os regulamentos. Esquecia-se, faltava à repartição, não tinha zelo nem estímulo. Ela era tudo para ele, e ele nada para ela. Nada; uma distração quando muito.

Um dia falara-se em não sei que flor bonita e rara no Rio de Janeiro. Alguém sabia de uma chácara onde a flor podia ser encontrada, quando a árvore a produzisse; mas, por enquanto, não produzia nada. Não havia outra, Martinha contava então vinte e um anos, e ia no dia seguinte ao baile do Club Fluminense; pediu a flor, queria a flor.

— Mas, se não há...

— Talvez haja, interveio Julião.

— Onde?

— Procurando-se.

— Crê que haja? perguntou Martinha.

— Pode haver.

— Sabe de alguma?

— Não, mas procurando-se... Deseja a flor para o baile de amanhã?

— Desejava.

Julião acordou no dia seguinte muito cedo; não foi à repartição e deitou-se a andar pelas chácaras dos arrabaldes. Da flor tinha apenas o nome e uma leve descrição. Percorreu mais de um arrabalde; ao meio-dia, urgido pela fome, almoçou rapidamente em uma casa de pasto. Tornou a andar, a andar, a andar. Em algumas chácaras era mal recebido, em outras gastava tempo antes que viesse alguém, em outras os cães latiam-lhe às pernas. Mas o pobre namorado não perdia a esperança de achar a flor. Duas, três, quatro horas da tarde. Eram cinco horas quando em uma chácara do Andaraí Grande pôde achar a flor tão rara. Quis pagar dez, vinte ou trinta mil réis por ela; mas a dona da casa, uma boa velha, que adivinhava amores a muitas léguas de distância, disse-lhe, rindo, que não custava nada.

 — Vá, vá, leve o presente à moça, e seja feliz.

Martinha estava ainda a pentear-se quando Julião lhe levou a flor. Não lhe contou nada do que fizera, embora ela lhe perguntasse. Martinha porém compreendeu que ele teria feito algum esforço, apertou-lhe muito a mão, e, à noite, dançou com ele uma valsa. No dia seguinte, guardou a flor, menos pelas circunstâncias do achado que pela raridade e beleza dela; e como era uma prenda de amor, meteu-a entre as cartas.

O rapaz, dentro de duas semanas, tornou a perder algumas esperanças que lhe haviam renascido. Martinha principiava o namoro do futuro comendador. Desesperado, Julião meteu-se para a roça, da roça para o sertão, e nunca mais houve notícia dele.

— Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima.

E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos, — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor.

Quis pedir à tia que lhe pusesse a flor no caixão, sobre o seu cadáver; mas era romântico demais. A negrinha chegara à porta:

— Nhanhã, o almoço está na mesa!

Fonte:
Publicado originalmente no Almanaque da Gazeta, em 1897.

sábado, 13 de agosto de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 3: Saudades

 

Fabiano Wanderley (Glosas) – 5

ADOTE A SUA CRIANÇA,
ANTES QUE A DROGA LHE ADOTE.


Dê-lhe amor, paz e esperança,
ame-a, com o coração,
dê-lhe estudo, educação,
adote a sua criança.

Seja dela, a segurança,
não deixe que o amor se esgote,
saiba que um papelote,
a deixará sem guarida,
dê-lhe amparo, dê-lhe vida,
antes que a droga lhe adote.
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ONTEM FOI NINHO DE AMOR,
HOJE, É TERRA DE NINGUÉM.


Ele, em seu interior,
abrigou paixões, outrora;
se sozinho vive agora,
ontem, foi ninho de amor.

Teve o cárdio ao seu dispor,
segredado, um grande bem,
mas, no entanto, já não tem
quem lhe aguce o palpitar,
é vazio, em seu estar,
hoje, é terra de ninguém.
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O SONHO DO JOÃO NINGUÉM,
É MAIOR QUE DO ABASTADO.


Nos anseios que detém,
tem grandezas, tem magias,
são cheios de fantasias,
o sonho do João Ninguém,

Sempre aspira ser alguém,
com destaque afortunado
e em seu delírio acordado,
trás para si, a bonança,
por quanto, sua esperança,
é maior que do abastado.
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POR TRÁS DO AMIGO SISUDO,
ESBOÇA UM LARGO SORRISO.


Quando afirmo, eu não me iludo
e falo com convicção;
há sempre um bom coração
por trás do amigo sisudo.

Ele é o famoso faz tudo,
Rogério é justo e preciso,
detesta ver prejuízo,
protege até os incertos;
traz sempre os braços abertos,
esboça um largo sorriso!

(Versos endereçados ao meu amigo Rogério Vilar, pelas suas qualidades, que tão bem, as desempenha e as merece.)
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TEREZA, A SANTA DAS ROSAS
ENFEITA O JARDIM, DO CÉU


Entre freiras fervorosas,
contrita, em sua oração,
cumpriu a sua missão,
Tereza, a santa das rosas.

Pelas ações virtuosas,
mostrou-se sempre fiel,
é para Deus um troféu
e por todos seus louvores,
entre rosas multicores,
enfeita, o jardim do céu.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Sammis Reachers (Meganha, raça do cão)

Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito divertido – que passei em minha vida de coletor de reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106 um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel. Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados fora, sem marca nem dono.

Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto – talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até a altura do asfalto, pois eram quase três metros de pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30 centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso.

Foi já com um plano em mente que Renato chegou na Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda, sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em marcha de quase três quilômetros até o tal valão.

Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair de seu cemitério pacífico.

Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós.

A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro daquele estabelecimento decorativamente burguês, um indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho. Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos que ele estava “jogado fora” dentro de um valão ali perto, talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.

O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários, Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até eu tenha chorado...

Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro roubado e que todas as peças possuem um registro numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos observava, de frente à loja – que, passados quase trinta anos, ainda existe.

Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elocubrador de ideias...

Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a classe policial? Quem sabe.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 11

 

Caldeirão Poético LIII


Adão Ventura
Santo Antonio do Itambé/MG, 1939 – 2004

PRECONCEITO

— Muitas vezes
a cor da pele
é uma grande parede.

Daí
o abraço frouxo,
o beijo mal dado
e o sorriso amarelo.
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Betty Vidigal
(Elizabeth Vidigal Hastings)
São Paulo/SP


PITANGAS

Era uma febre, um delírio,
Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de lírio.

Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?

Meus dedos fazendo renda
com os pêlos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de fruta.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Carlos Pena Filho
Recife/PE, 1929 – 1960


SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
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Dora Ferreira da Silva
Conchas/SP, 1918 – 2006, São Paulo/SP


O VENTO

Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?

Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).

Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.
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Ésio Macedo Ribeiro
Frutal/MG


NOME

O poeta quer ter nome fácil: João.
Ninguém erra,
ninguém esquece,
tão barro.

João estuda o céu para o plantio,
poema de outra lavra.

O poeta colhe no espaço uma nuvem-açucena,
que cheira na página que não vinga.

João dorme cedo,
acorda com o galo.

O poeta nunca dorme,
nunca acorda.
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Fernando Fábio Fiorese Furtado
Juiz de Fora/MG


COMO DESFAZER BAGAGENS

Como quem de viagem
demora a acomodar-se
ao clima, ao horário,
às vogais de outra sintaxe,
também escrever estranha
quando muda de paisagem.

Como quem de viagem,
o que carrega apouca
a dicionários, passagens
e alguma muda de roupa,
também escrever exige
aprender a descartar-se.

Como quem de viagem
pouco ou nada decifra
do manuscrito-cidade
(mal soletra as esquinas),
também escrever ensina,
menos importa encontrar-se.

Como quem de viagem
evita, quando sabe,
os apelos do fóssil,
do que é fausto adrede,
também escrever prefere
o que se dá sem salvas.

Como quem de viagem
sabe o prazer de andar
sem endereço ou idade,
com a roupa amassada,
também escrever comparte
esse corpo sem abas.

Como quem de viagem,
para rever a janela onde
lhe sorriu uma criança,
o embarque adiaria,
também escrever alcança
os vestígios desse dia.

Como quem de viagem,
das malas faz relicário
de rostos, ruídos e mares,
de balas, livros e ácidos,
escrever também seria
como desfazer bagagens.
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Graça Pires
Figueira da Foz/Portugal


AMOR

Quando te procurei
em rotas de seda e ouro,
eu não sabia que o amor
é uma espera de mágoa e mel.
Nem suspeitava
que há nos corpos nus
a enchente das marés
que altera a tempestade.
E desconhecia que é preciso
empunhar o leme
para que as mágoas inundem
desesperadamente as margens.

Sílvio Romero (A mulher gaiteira)

(Folclore do Rio de Janeiro)

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Havia uma mulher casada e que não tinha filhos. Defronte dela morava um padre, pelo qual a mulher apaixonou-se. Ela chamava-o de Rabo de Galo, por ele ter os cabelos muito bonitos.

O padre não correspondia e mesmo nem sabia de tal paixão.

A mulher já não governava mais a casa e só queria estar na janela para ver o padre. Estava já tão doida, que chegava a dizer ao marido: “Não é bonito aquele padre?” O marido fingia não compreender e afirmava o que ela dizia.

Não satisfeita de ver o padre só da janela, a mulher não perdia missa um só dia, a pretexto de ir rezar, e o marido suportando tudo calado. Querendo ver até que ponto chegava aquela mulher, pretextou uma viagem e escondeu-se perto de casa, recomendando à negra que lhe fizesse sabedor de tudo o que sua mulher praticasse na sua ausência.

Não tardou em que a negra lhe viesse entregar um bilhete que a senhora ia mandar por ela ao padre, no qual pedia-lhe uma entrevista à noite, visto o marido não estar em casa. O homem apoderou-se do bilhete, disse à negra que dissesse à senhora que o tinha entregado ao padre, e escreveu, disfarçando a letra, outro bilhete, dizendo ser do padre, aceitando o convite e marcando a hora da dita entrevista.

Trouxe a negra o bilhete e deu-o à senhora. Esta não cabia em si de contente, e à hora marcada, entrou o marido, que se disfarçou no padre, vestido de batina, e com um grande chicote de couro cru escondido. A mulher convidou-o a entrar no quarto para descansar.

Aí não teve dúvida; o marido empurrou-lhe o chicote a torto e a direito, ainda fingindo ser o padre e dizendo: “Mulher casada, sem vergonha, como é que seu marido não está em casa, e manda-me um bilhete convidando-me para vir aqui! Tome juízo”, dizia o padre, e empurrava o chicote na mulher.

Ela, desesperada com as bordoadas, dizia: “Vai-te embora, padre dos diabos, se eu soubesse que tu eras tão mau, não tinha caído nesta. Sai, malvado, tu queres me matar? Basta, não me dês tanto.”

O marido, depois que deu-lhe muito, saiu deixando a mulher quase morta de pancadas. Mudou toda a roupa, e veio para casa, fingindo ter chegado da viagem. Perguntou pela mulher e disseram-lhe que ela estava doente. Ele, muito penalizado, perguntou que moléstia era aquela, pois ele a tinha deixado tão boa. Ela respondeu que sentia muitas dores pelo corpo, mas que também não sabia o que era. Mal pôde dizer estas palavras ao marido, e começou logo a gritar, tão forte era o seu sofrimento. Então o marido disse que ela estava muito mal, e que ele ia mandar chamar aquele padre, que morava defronte, para confessá-la.

A mulher ouvindo isto, exclamou: “Não, marido, por Nossa Senhora não me mande chamar aquele padre.”

O marido replicou: “Pois mulher, você não o acha tão bonito, e como não quer que ele venha lhe confessar?”

E para apreciar bem o efeito da surra, mandou chamar o padre do Rabo de Galo, como a mulher o chamava, e este veio confessá-la, alheio a tudo o que tinha se passado. A mulher, assim que foi vendo o padre, foi dizendo: “Sim, seu diabo, ainda achou pouca a surra que me deu, e ainda se atreve a vir aqui?

“Sai, diabo, vai-te embora.” O padre ficou espantado, e acreditou que a mulher estava com efeito muito doente, que talvez estivesse com o diabo no corpo, e então benzia-a e dizia: “Filha, acomoda-te, lembra-te de Deus, que estás para morrer. Eu esconjuro este mau espírito, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém”.

“Sim”, dizia a mulher: “Eu esconjuro é a surra que tu me deste.”

O padre, depois de muita reza retirou-se, e o marido quase que não podia conter o riso. Passados muitos dias, de cama, levantou-se a mulher curada da grande surra. A primeira coisa que fez foi pregar a janela que dava para a casa do padre, com uns pregos bem fortes, o que, vendo o marido, disse-lhe que não fizesse aquilo, que aquela janela era para ela se distrair nas horas vagas. Por mais que o marido pedisse, a mulher não foi capaz de deixar de pregar a janela e nunca mais olhou o padre.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 59

Os versos acharam interessante como esta forma de escrita - a crônica - entrou em nossa vida. Na verdade, ela sempre andou junto a nós, versejares, embora pouco lembrada. Jamais desprezada.

As delícias da vida devem ser sempre cultivadas. O mel dos dias está em todo lugar. E nós, na condição de abelhas, devemos ensalivar o melífluo da existência, repassando doçuras em doses homeopáticas.

Os pensares, os versos, os viveres, as crônicas, são unidades que entremeiam constantemente. E deslindam, e cantam, e semeiam vozes perenes que Gaia oferece nas incendiárias manhãzinhas, nas tardes ventaneiras, nas silentes madrugadas.

Vozes vívidas vivenciando viveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 12

Fonte: Facebook
 

Mário Quintana em prosa e verso – 23 –


O TEMPO E O VENTO


(Para Érico Verissimo, em comemoração aos seus 65 anos)

Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo

E o vento!

O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...
*****
A beleza dos versos impressos em livro
— serena beleza com algo de eternidade —
Antes que venha conturbá-los a voz das declamadoras.
Ali repousam eles, misteriosos cântaros,
Nas suas frágeis prateleiras de vidro...
Ali repousam eles, imóveis e silenciosos.
Mas não mudos e iguais como esses mortos em suas tumbas.
Têm, cada um, um timbre diverso de silêncio...
Só tua alma distingue seus diferentes passos,
Quando o único rumor em teu quarto
É quando voltas, de alma suspensa — mais uma página
Do livro... Mas um verso fere o teu peito como a espada de um anjo.
E ficas, como se tivesses feito, sem querer, um milagre...
Oh! que revoada, que revoada de asas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CRÔNICA

(SÃO PAULO, 23 — Morreu ontem o trapezista René Bugler, internado quando o mastro em que fazia acrobacias quebrou e ele caiu de uma altura de 10 metros. (Do noticiário.))

A pantera é uma curva em movimento:
vai-se desenrolando como um desenho.
Mas a sua harmonia é linear como
a figura que, na sucessão de um friso,
repete-se, com o andante ritmo de um verso
num poema...
O trapezista,
entanto,
não quer a pauta de uma corda única
e a curva do seu voo traça geometrias no espaço,
vai e volta, mergulha, sobe, entrelaça-se
como se brincasse consigo mesma.
Só não se brinca com a imperfeição das coisas...
e a tua dança aérea, ó pobre René Bugler,
interrompeu-se:
tombaste, da altura de 10 metros, os braços abertos em cruz
e a maravilhosa curva que traçavas
imobilizada de súbito num corpo inerte.
Sim, tu estás, agora, na reta horizontalidade da morte.
A morte odeia as curvas, a morte é reta
como uma boca fechada.
Tenho até remorsos de fazer-te um poema...
O poema
— o poema da tua vida
está apenas nisto,
nestas simples palavras:
“René Bugler, trapezista,
morto aos 22 anos
no exercício da sua arte”.
*****

Nítido, no espelho,
Meu quarto projeta-se
Em parte nenhuma...
Um dia estarei,
Tão nítido assim,
Em parte nenhuma?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RETRATO

Morreu ontem.
Portanto, o seu retrato está completo.
A longa vida — sabe Deus com que trabalho —
deixou-nos, na lembrança,
por final,
em companhia de um velhinho suave...

Mas um velhinho suave como os couros gastos,
as madeiras polidas pelo uso,
como os seixos rolados

— suave e rijo!

Sua voz grave e trêmula tinha o som do tempo
e nós sempre nos espantávamos de a estar ouvindo

porque era como se alguém tangesse o silêncio.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PAISAGEM

Sol e sombra brincavam de esconder
sobre o rosto do primeiro morto.

Perto dele, cantavam as águas,
porque ainda apenas sabiam cantar.

Cantavam as águas inocentemente
sua canção de continuar...

— e ele também não sabia de nada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EMERGÊNCIA

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
— para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VIDAS

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...

Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ARQUITETURA FUNCIONAL

(Para Fernando Corona e Antonieta Barone)

Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
E não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. 1976.

Jaqueline Machado (Olhai os lírios do campo)

"Olhai os lírios do campo" é uma importante obra literária, escrita pelo gaúcho Érico Veríssimo.

O livro faz um retrato da sociedade brasileira, usando Porto Alegre como cenário principal, no ano de 1938, período marcado pelas consequências do golpe do então presidente Getúlio Vargas, golpe esse, que  marcaria o início de uma ditadura inclemente, claramente inspirada no regime Mussolini, intitulada de Estado Novo. Tendo de contraponto o socialismo de Stálin. Nesse período o mundo estava às vésperas do início da segunda grande guerra e, com isso, surge a crise da democracia liberal.

Abalado com a dramática situação do mundo,  Veríssimo, num ato de desabafo, dá início a essa obra, que segundo ele disse, não estava entre suas obras favoritas, ao contrário, esse livro foi rejeitado por ele, pois trazia pensamentos muito humanitários por parte da personagem Olívia, que mais parecia santa do que gente. Revoltado, Érico Veríssimo se percebeu tolo, pois tais virtudes descritas pela personagem, não pareciam pertencer à raça humana (desumana).

O protagonista da história é Eugênio, um rapaz de origem humilde, filho de um alfaiate e de uma lavadeira de roupas. Ele sabia da bondade dos pais, mesmo assim, sentia vergonha da família. Queria ter nascido rico. Não entendia porque Deus dava tudo para uns, e nada para outros, já que todos eram seus filhos, frutos de sua obra.

Eugênio ganhou uma bolsa da escola onde sua mãe trabalhava e, por isso, teve uma boa educação, tornou-se médico. Gostava de Olívia, sua colega de faculdade. A única mulher em meio a um bando de rapazes a cursar medicina. Mas Olívia, também era de origem muito humilde. Por isso, Eugênio preferiu casar com Eunice, uma mulher de posses, porque assim, finalmente faria parte da elite da sociedade.

Nos jantares e almoços de família assuntos ligados à situação mundial, especialmente sobre a perseguição aos judeus, estavam sempre  presentes. Uns contra as atrocidades ocorrentes, outros, a favor.

Durante as discussões, por vezes, se dispersava e se deixava levar pelas palavras de Olívia, que com suavidade, ressoavam em sua mente. Ele a amava e não podia esquecê-la.  Os dois tiveram uma espécie de “amizade colorida”. Ele não sabia, mas desse relacionamento, a jovem teve uma filha. Olívia adoece, e prestes a morrer, o chama, fala sobre as vontades de Deus, sobre a beleza da vida, ensina-lhe que as verdadeiras riquezas não estão nas conquistas materiais e que todos deveriam dar atenção ao que Jesus disse no Sermão da Montanha. Disse ele: “Olhem os lírios do campo, que não trabalham nem tecem! E contudo nem Salomão em toda a sua glória se vestiu tão bem como eles”.

 A amada morre, ele separa-se de Eunice. Passa a viver o que realmente importa, ajudando os doentes necessitados, relendo as cartas que Olívia lhe escrevia quando estavam separados, e buscando ser um bom pai, à filha órfã. Herança de Olívia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.