segunda-feira, 1 de julho de 2024

Recordando Velhas Canções (Abismo de rosas)


Compositores: Canhoto e João do Sul

Ao amor em vão fugir
Procurei, pois tu
Breve me fizeste ouvir
Tua voz mentirosa, deliciosa...
E, hoje, é meu ideal
Um abismo de rosas
Onde, a sonhar, eu devo,
Enfim, sofrer e amar!
Mas, hoje, que importa
Se tu'alma é fria?
Meu coração se conforta
Na tua própria ironia!
Se há no meu rosto
Um rir de ventura,
Que importa o mudo desgosto
De minha dor, assim,
Sem fim?
Se minha esperança
O que não se alcança
Sonhou buscar,
Deve calar
Hoje o meu sofrer
E jamais dele te dizer.

O amor que é puro
Suporta obscuro,
Quase a sorrir,
A dor de ver
A mais linda ilusão morrer.
Humilde, bem vês que vou
A teus pés levar
Meu coração, que jurou
Sempre ser amigo e dedicado.
Tenha embora que viver
Neste sonho enganado,
Jamais direi
Que assim vivi
Porque te amei!
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O Abismo de Rosas: Amor, Dor e Ilusão

O grande violonista Canhoto tinha apenas 16 anos quando compôs "Abismo de Rosas", em 1905. A composição era um desabafo a uma decepção amorosa, pois o autor acabara de ser abandonado pela namorada, filha de um escravo. Canhoto realizou três gravações desta valsa: a primeira, com o nome de "Acordes do Violão", lançada no disco Odeon número 121249, em meados de 1916; a segunda, já como "Abismo de Rosas", no disco Odeon 122932, em 1925; e, finalmente, a terceira no disco Odeon 10021- a que fazia parte do suplemento de agosto de 1927, um dos primeiros da era da gravação elétrica no Brasil.

Ressalta nesta terceira gravação seu vibrato característico e inigualável, que ele tirava de um violão de corpo mais fino com braço não muito rígido. Peça obrigatória no repertório de nossos violonistas - de Dilermando Reis a Baden Powell -, "Abismo de Rosas" é considerada o hino nacional do violão brasileiro pelo professor Ronoel Simões, uma autoridade no assunto.

A música "Abismo de Rosas" é uma obra que explora a complexidade do amor não correspondido e a dor que ele pode causar. A letra começa com o eu lírico tentando fugir do amor, mas sendo inevitavelmente atraído pela voz mentirosa e deliciosa da pessoa amada. Essa contradição inicial já estabelece o tom de sofrimento e idealização que permeia toda a canção. O abismo de rosas é uma metáfora poderosa que representa um lugar de beleza e dor, onde o eu lírico se vê preso entre o sonho e a realidade, entre o sofrimento e o amor.

A segunda parte da letra revela a resignação do eu lírico diante da frieza da alma da pessoa amada. Mesmo sabendo que seu amor não é correspondido, ele encontra conforto na ironia dessa situação. A dor é constante, mas é mascarada por um sorriso de ventura, uma fachada que esconde o desgosto mudo e profundo. A esperança de alcançar o inalcançável é uma ilusão que o eu lírico decide calar, preferindo sofrer em silêncio a revelar sua dor à pessoa amada.

Na última parte da canção, o eu lírico expressa a pureza de seu amor, que suporta a dor quase a sorrir. Ele se humilha ao levar seu coração aos pés da pessoa amada, jurando amizade e dedicação, mesmo sabendo que vive em um sonho enganado. A humildade e a resignação são evidentes, e o eu lírico decide nunca revelar que viveu assim por amor. A música, portanto, é uma reflexão profunda sobre a natureza do amor não correspondido, a dor silenciosa e a ilusão que muitas vezes o acompanha. 
Fontes:

domingo, 30 de junho de 2024

José Feldman (Versejando) 142

 

Eduardo Martínez (Salustiano e Salazar, eternos rivais)

De tão antiga é essa história, não se tem notícia de que alguém ainda se lembre dos protagonistas. Na certa, os que a presenciaram já são tão velhos e a memória há tempos os abandonou. Se bem que o mais provável é que estejam todos escondidos debaixo da terra. 

Pois bem, quem me contou esse causo foi o Moacir, um septuagenário, que o ouviu do pai, o falecido Januário, cuja fama de amigo das inverdades ainda corre lá pelos lados do município de São Bento do Una, localizado no Planalto do Borborema, bem aqui no nosso lindo Pernambuco. E como a história é muito antiga, nem vou me preocupar em trocar os nomes dos envolvidos.

Salustiano e Salazar, dois amigos de idades parelhas, eram vizinhos desde os primeiros dias de vida. Apesar da amizade, a disputa sempre os acompanhou. Era uma coisa de saber quem era melhor nisso ou naquilo. Até discussão para saber quem era o mais bonito, mesmo que nenhum tivesse nascido com traços de um famoso contemporâneo, um tal Rodolfo Valentino. 

O imbróglio entre aqueles dois estava tão acirrado, que as competições andavam cada vez mais esdrúxulas. Uma delas, que parece que foi vencida pelo Salustiano, era a de quem conseguia comer jiló puro e cru. Isso, aliás, foi o estopim para que o perdedor lançasse um desafio.

— É, Salustiano, estamos ficando velhos. Não demora, a danada da Dona Morte aparece para puxar o pé da gente.

— Que coisa mais besta, Salazar! Homem que é homem vai ter medo da morte? Isso é coisa de gente frouxa!

— Ah, não? Então, você vai querer me dizer que não tem medo de morrer?

— Tenho nada! Sou é homem!

— Hum. Nem de defunto?

— Salazar, se eu não tenho medo de suçuarana, vou lá ter medo de gente que já morreu? Deixa de ser besta! Aqui é macho!

— Hum. 

— Tá duvidando?

— Hum. Então, que tal uma apostazinha?

— Que aposta?

— Cada um de nós vai ter que ir lá no cemitério e pregar um prego no portão. Mas tem que ser à meia-noite em ponto. 

— Combinado! Quem vai primeiro?

— Vamos tirar a sorte pra ver.

Salazar ficou aliviado por ter ganhado e, por isso, o amigo precisou ser o primeiro a cumprir a missão. O homem, mesmo com um frio percorrendo toda a espinha, tratou de não demonstrar medo. Disse que iria naquela mesma noite cumprir o trato. Salazar, desconfiado de falcatruas por parte do amigo, tratou de marcar o prego e o entregou a Salustiano.

Quase meia-noite, Salazar, na janela de sua casa, viu o amigo sair.

— Já vai, né?  

Como era julho, época de frio e o vento gritava que nem alma penada vagando em busca de redenção, Salustiano pensou em desistir. Que nada! Não tinha como. Pegou uma capa de frio com capuz, apertou o cinto para as calças não caírem, caso precisasse correr, e rumou na direção do cemitério. Olhos arregalados, começou a imaginar assombração. 

Quando chegou ao destino, pegou o prego no bolso da calça e, pouco antes de martelá-lo, ouviu o piar de uma coruja. Apavorou-se, mas conseguiu pregar o maldito prego.

Na manhã seguinte, Salazar foi procurar o amigo. Mas nada do Salustiano. Pensou até que ele estivesse dormindo o sono atrasado. Entretanto, como o dia prosseguiu sem notícias do companheiro, Salazar começou a desconfiar que Salustiano teria sido arrastado por algum espírito. Tanto é que, por volta das duas horas da tarde, rumou para o cemitério. 

Mal chegou, viu o amigo em pé no portão do cemitério. Salustiano estava com a face apavorada e disse para Salazar não se aproximar. 

— O que houve, Salustiano?

— Uma alma me pegou!

Salazar, sabendo que àquela hora do dia as almas estavam todas dormindo, se aproximou do amigo, quando começou a gargalhar. Salustiano, sem entender, continuou com o pavor estampado no rosto.

— Salustiano, mas você é burro mesmo! Você pregou a manga do casaco no portão.

Vereda da Poesia = 49 =


Trova Humorística, de São Paulo/SP

MARINA BRUNA
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP

"Dez filhos do mesmo leito?!"
pergunta o padre e ela fala:
"Acho que não, pois suspeito
que um é da rede da sala..."
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Poema da França

CARLOS EDMUNDO DE ORY 
Cádiz/ Espanha, 1923 - 2010, Thézy-Glimont/ França

Poema

Amo aquilo que arde
o que voa e se abre
o que enlouquece e cresce
o que salta e se move
aquilo que bebe os ventos
e é música e contato
o que é vasto e é casto
o que é milagre e perigo
e se espreguiça e respira
e viaja por capricho.
Amo viajar descalço.

(Tradução: Herberto Helder)
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Aldravia de Belo Horizonte/MG

ANGELA TOGEIRO

mente
jovem,
corpo
envelhecendo:
ninguém
merece!
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

JOÃO COSTA

Viajante do Tempo

Venho de longe, nos ombros trazendo
peso de vidas outrora vividas.
Venho de longe, venho de outras vidas,
tempo afora vivendo e revivendo.

De tempos idos, priscas eras idas
venho volvendo tempo-espaço, sendo
em cada ciclo (vivendo e aprendendo)
preparado para futuras vidas.

E sigo nesta contínua viagem
pelo que chamam tempo. Na bagagem
vou transportando infinitas memórias.

Venho de longe e vou rumo ao futuro
– destino infinito. Sigo seguro
de que ainda viverei muitas histórias.
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Trova Premiada  em Jambeiro/SP, 2003

ABÍLIO KAC 
(Rio de Janeiro/RJ)

Num dos rodeios da vida
conquistei o meu espaço...
Não pela prova vencida,
mas por vencer meu fracasso!
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Poema do Rio Grande do Sul

MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

A Torre Azul

É preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
É preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto-mar perdida.

É preciso construir uma torre…
É preciso construir um túnel…
É preciso morrer de puro,
puro amor!…
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Quadra Popular

Que cigarro tão cheiroso!
Me dê uma fumacinha.
Com a desculpa do cigarro,
sua mão pega na minha.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

FERNANDO FORTES
Carlos Fernando Fortes de Almeida
1936 – 2016

X

Tu finges que és feliz e em ti persiste
A miséria de todos os humanos
Se os anos da existência foram tristes
Não há por que ocultar teus próprios danos.

Fizeste pela vida tantos planos
E nenhum de teus planos construíste
Tudo aquilo que um dia possuíste
Foi poeira na estrada de teus anos.

A velha eternidade te carrega
No seu colo triunfal de fantasia
Mas foge o tempo e a morte ainda não chega.

Buscas a Deus e o mesmo Deus te nega
O coração do céu que se anuncia:
Pois Deus existe mas jamais se entrega.
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Trova de Curitiba/PR

VANDA ALVES DA SILVA

Na vida vivo tentando
tornar meu mundo risonho,
pois a tristeza vem quando
existe ausência de um sonho.
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Poema de Belo Horizonte/MG

ROGÉRIO SALGADO

Conceito
para Otávio de Campos

Sou o que representa
a febre, a dor
a expressão exata
a corda que desata
todos os nós acorrentados
aos conceitos do que
querem que a poesia seja.

Canto a canção ferida
daquilo que é doído

tenho olhos de vidros partidos
e a imensidão de compor.

Não me estabeleço
amanheço, entardeço, anoiteço
na forma mais concreta.
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Haicai de Ilhéus/BA

GIL NUNESMAIA

Vi a lua cheia
entre fios telegráficos:
uma semibreve!
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Setilha de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Mesmo com tanta maldade
eu alimento a esperança,
de ver um mundo feliz
sabendo que não se alcança;
mas esta fé que me guia,
vem da força da poesia
que trago desde criança.
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Trova de Belo Horizonte/MG

OLYMPIO COUTINHO

Nada recebe quem nega
 dar amor ou coisa assim...
 Só colhe flores quem rega
 dia e noite o seu jardim.
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Glosa do Rio Grande do Sul

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Entrar no céu sonhando

MOTE:
Sei que, deste mundo lindo,
vou sair, só não sei quando,
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando.
José Lucas de Barros 
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

GLOSA:
Sei que, deste mundo lindo,
o meu tempo está escasso,
mas continuo sorrindo...
Sou feliz, por onde passo.

Tenho sim, plena certeza,
vou sair, só não sei quando,
vou deixar esta beleza:
o mundo, que estou amando!

Dias e noites, vão indo,
e a morte ronda por perto...
Mas quero morrer dormindo,
morrerei feliz, por certo!

Vou dormir, tal qual criança,
mil sonhos acalentando,
não perderei a esperança...
Para entrar no céu sonhando.
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Aldravia de São Gonçalo do Rio Abaixo/MG

MIRIAM STELLA BLONSKI

olhos
vazios
de
sonhos:
face
perdida
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Soneto de São Paulo/SP

MARIA JOSÉ GIGLIO

[4]

Não se deve gritar ao surdo vento
a canção destinada a ser ouvida
na glória silenciosa de um momento
no efêmero momento de uma vida.

Não se deve pedir ao isolamento
a comunhão ao gênio oferecida,
na face opaca do deslumbramento
espelha-se a maldade enlanguecida.

Não bastam para a vida os temas puros,
não dês à morte falsos esconjuros
que vida e morte se rirão de ti.

Ama, inda que esse amor semelhe um crime
pois só o amor de teu amor redime
a dispersão das almas que perdi.
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Trova Premiada  em Curitiba/PR, 2010

MILTON SOUZA 
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Madrugada… No infinito,
estrelas a cintilar…
Mas meu céu é mais bonito:
ele brilha em teu olhar!
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Poema de São Paulo/SP

OSWALD DE ANDRADE
1890 – 1954

Escapulário

No Pão de Açúcar 
de cada dia 
Dai-nos Senhor 
a Poesia 
de cada dia. 
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Triverso de São Paulo/SP

GRACIANE DOS SANTOS SILVA

Vento forte na janela
a menina se assusta -
Trovoada.
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Ramalhete de Trovas Traiçoeiras com Final Feliz!

NEMÉSIO PRATA 
Fortaleza/CE

Olhando com bem clareza
pras marcas do seu herdeiro,
já não tem tanta certeza
de ser o pai verdadeiro!

Olho azul, branco e lourinho
o filho do "Zé Negão"
lembrava mais o vizinho;
coitado, tinha razão!

Mas o popular ditado
diz que Pai é o que cria,
sem olhar se foi botado,
ou se feito à revelia!
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Trova de Fortaleza/CE

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quando o sol se faz mais forte
e a chuva responde...não!
a silhueta da morte
se espraia pelo sertão. 
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Hino de Juiz de Fora/MG

Compositores: Duque  Bicalho e Lindolfo Gomes

Viva a Princesa de Minas,
Viva a bela Juiz de Fora,
Que caminha na vanguarda
Do progresso estrada a fora! 

Os seu filho operosos
Asseguram-lhe o porvir,
Para vê-la grandiosa 
Nunca têm mãos a medir...

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Demos palmas, demos flores
Aos encantos da Princesa!
Ela é rica de primores
Da poesia e da beleza.

É a cidade aclamada,
Do trabalho e da instrução,
É do Cristo abençoada
Sob o sol da religião.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.
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Poetrix de Limeira/SP

CARLOS ALBERTO FIORE

Pico

Sons, buzinas, neuroses.
Pressa predadora, desumana.
A rua enfrenta o dia.
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Poema de Portugal

HERBERTO HELDER
Funchal/Ilha da Madeira, 1930 – 2015, Cascais 

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Se vejo o mundo às escuras,
embarco em meu sonho...e assim,
subo a escada e, nas alturas,
acendo um sol para mim!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

Ossos do ofício

Uma vez uma besta do tesouro
Uma besta fiscal,
Ia de volta para a capital
Carregada de cobre, prata e ouro,
E no caminho
Encontra-se com outra carregada
De cevada
Que ia para o moinho.

Passa-lhe logo adiante
Largo espaço,
Coleando arrogante
E a cada passo
Repicando a choquilha,
Que se ouvia distante.

Mas salta uma quadrilha
De ladrões,
Como leões,
E qual mais presto
Se lhe agarra ao cabresto.
Ela reguinga e dá uma sacada,
Já cuidando
Que dispersava o bando;

Mas, coitada!
Foi tanta a bordoada,
Que exclamava enfim
A besta oficial:
«Nunca imaginei tal!
Tratada assim...
Uma besta real!
Mas aquela, que vinha atrás de mim,
Porque a não tratais mal?!

— Minha amiga! cá vou no meu sossego:
Tu tens um belo emprego;
Tu sustentas-te a fava, e eu a troços;
Tu lá serves El-Rei, e eu um moleiro;
Eu acarreto grão, e tu dinheiro:
Ossos do ofício... que não há sem ossos!»

(tradução: João de Deus)
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Colaborações: gralha1954@gmail.com

Leon Tolstói (Lipúniuchka)

Um velho vivia com uma velha. Não tinham filhos. O velho foi arar a terra e a velha ficou em casa para fazer panquecas. A velha fez as panquecas e disse:

− Se a gente tivesse um filho, ele levaria as panquecas para o pai; mas, agora, a quem vou pedir?

De repente, do meio do algodão, saiu um menininho e disse:

− Bom dia, mamãe!

A velha perguntou:

− Filhinho, de onde você saiu e como se chama?

E o filho respondeu:

− Mãezinha, você fiou o algodão e enrolou as meadas e eu saí de lá. Pode me chamar de Lipúniuchka. Pode deixar, mãezinha, eu levo as panquecas para o papai.

A velha disse:

− Você consegue levar mesmo, Lipúniuchka?

− Consigo, mãezinha…

A velha amarrou as panquecas dentro de uma trouxinha e deu para o filho. Lipúniuchka pegou a trouxa e correu para o campo. No campo, ele topou com um morrinho na estrada e gritou:

− Papai, papai, me ajude a passar pelo morrinho! Eu trouxe panquecas para você.

No campo, o velho ouviu que alguém chamava, foi ao encontro do filho, levou o menino para o outro lado do morrinho e disse:

− De onde você veio, filho?

E o menino respondeu:

− Papai, eu saí do algodão − e deu as panquecas para o pai.

O velho sentou-se para comer e o menino disse:

− Deixe que eu vou arar a terra.

O velho disse:

− Você não tem força para arar a terra.

Mas Lipúniuchka pegou o arado e começou a arar. Ele arava e ainda por cima cantava.

Um senhor de terras passou por aquele campo e viu que o velho estava sentado comendo enquanto o cavalo arava sozinho. O senhor de terras desceu da carruagem e disse para o velho:

− Como pode ser isso, velho? O cavalo está arando sozinho?

O velho respondeu:

− Tenho um menino que está arando, e ele ainda canta.

O senhor de terras chegou mais perto, ouviu a canção e viu Lipúniuchka.

O senhor de terras disse:

− Velho! Venda esse menino para mim.

E o velho respondeu:

− Não, não posso vender, só tenho um.

E Lipúniuchka disse para o velho:

− Venda, papai, eu fujo dele.

O mujique vendeu o menino por cem rublos. O senhor de terras deu o dinheiro, pegou o menino, embrulhou num lenço e guardou no bolso. O senhor de terras correu para casa e disse para a esposa:

− Trouxe uma alegria para você.

E a esposa disse:

− Mostre. O que é?

O senhor de terras tirou o lenço do bolso, abriu e dentro do lenço não havia mais nada. Fazia tempo que Lipúniuchka tinha fugido para o pai.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.  Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Maringá)


Compositor: Joubert de Carvalho

Foi numa leva que a cabocla Maringá 
Ficou sendo a retirante que mais dava o que falar 
E junto dela veio alguém que suplicou 
Pra que nunca se esquecesse de um caboclo que ficou 
  
Maringá,  Maringá 
Depois que tu partiste tudo aqui ficou tão triste 
Que eu "garrei" a imaginar 
Maringá,  Maringá 
Para haver felicidade é preciso que a saudade 
Vá bater noutro lugar 
Maringá,     Maringá 
Volta aqui pro meu sertão pra de novo o coração 
De um caboclo a sossegar 
  
Antigamente uma alegria sem igual 
Dominava aquela gente na cidade de Pombal 
Mas veio a seca, tudo a chuva foi-se embora 
Só restando então as águas 
Dos meus "'óio" quando chora 
Maringá,   Maringá 
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A Saudade e a Seca em 'Maringá' de Joubert de Carvalho

É comum no mundo inteiro cidades emprestarem seus nomes a canções. Difícil é uma canção inspirar o nome de uma cidade, como foi o caso de "Maringá". O fato ocorreu em 1947, quando Elizabeth Thomas, esposa do presidente da Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná, sugeriu que a composição desse nome a uma cidade recém-construída pela empresa, e que em breve se tornaria uma das mais prósperas do estado.

O curioso é que a canção jamais teria existido se seu autor Joubert de Carvalho não fosse, quinze anos antes, um frequentador assíduo do gabinete do José Américo de Almeida (Ministro da Viação e Obras), tinha como chefe de gabinete o senhor Ruy Carneiro , que mais tarde viria a governador e senador do seu Estado (a Paraíba)..

Joubert, formado em medicina, pleiteava uma nomeação para o serviço público. Numa dessas visitas, aconselhado pelo oficial de gabinete Rui Carneiro, o compositor resolveu agradar o ministro, que era paraibano, escrevendo uma canção sobre o flagelo da seca que na ocasião assolava o Nordeste.

Surgia assim a toada "Maringá", uma obra-prima que conta a tragédia de uma bela cabocla, obrigada a deixar sua terra numa leva de retirantes. Alguns meses após o lançamento vitorioso de "Maringá", Joubert de Carvalho foi nomeado para o cargo de médico do Instituto dos Marítimos, onde fez carreira chegando a diretor do hospital da classe.

Joubert de Carvalho gostava da boemia e naquele ambiente veio a conhecer e se tornar amigo do senhor Alcides Carneiro (irmão de Ruy Carneiro e também funcionário do Ministério da Viação e Obras), que solteiro e apaixonado por uma namorada chamada Maria, residente na cidade do Ingá (60 km de João Pessoa - PB), compôs a música “Maringá”, narrando o flagelo da seca no nordeste, principalmente na cidade de Pombal, localizada na alto sertão paraibano. 

A música 'Maringá', composta por Joubert de Carvalho, é uma obra que retrata a dura realidade do sertão nordestino brasileiro, marcada pela seca e pela migração forçada. A letra conta a história de uma cabocla chamada Maringá, que se torna uma retirante, uma pessoa que precisa deixar sua terra natal em busca de melhores condições de vida. A partida de Maringá é um evento significativo, que causa grande comoção e tristeza na comunidade, especialmente para um caboclo que fica para trás, suplicando para que ela não o esqueça.

A canção também aborda a transformação da cidade de Pombal, que antes era dominada por uma alegria sem igual, mas que foi devastada pela seca. A falta de chuva trouxe desespero e tristeza, restando apenas as lágrimas do caboclo que chora pela partida de Maringá. A seca é uma metáfora poderosa para a ausência e a saudade, que são temas centrais na música. A repetição do nome 'Maringá' no estribilho reforça a intensidade da saudade e o desejo de que ela volte para trazer de volta a felicidade ao sertão.

'Maringá' é uma canção que, além de contar uma história de amor e saudade, também serve como um retrato social e cultural do sertão nordestino. A música destaca a resiliência e a esperança das pessoas que vivem nessa região, mesmo diante das adversidades. A saudade e a seca são elementos que se entrelaçam, mostrando como a ausência de uma pessoa querida pode ser tão devastadora quanto a falta de água. A canção é um exemplo da rica tradição da música brasileira em abordar temas sociais e emocionais de maneira poética e tocante.

Fontes: 

sábado, 29 de junho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) = 18 =

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Um conto para nossos dias)

 

“De porta em porta, eu andara mendigando pelo caminho da aldeia, quando o teu carro de ouro apareceu na distância como um sonho deslumbrante, e eu me perguntei se seria esse o Rei de todos os reis. Exaltaram-se as minhas esperanças e pareceu-me ver chegado o fim de meus dias maus. E fiquei aguardando esmolas que seriam dadas sem ser pedidas e um tesouro que seria espalhado por toda a parte, na areia.

O carro parou onde eu estava. Teu olhar caiu sobre mim e tu desceste com um sorriso. Senti que, afinal, chegara a felicidade de minha vida. Então, inesperadamente, estendeste-me a tua mão direita e disseste: ‘Que tens tu para me dar?’ Ah, que capricho de rei foi esse de abrires a palma da tua mão para pedires a um pedinte! Fiquei confundido e parei indeciso. E do meu alforje então, lentamente, tirei e dei-te o grão de trigo menor de todos.

Mas que grande surpresa foi a minha quando, pelo fim do dia, entornando no chão a sacola, encontrei entre as minhas migalhas um grão de ouro que era o menor de todos. Amargamente chorei, lamentando não ter tido coragem de me haver dado todo a Ti”.

Seria cristão o autor dessa fina censura ao egoísmo de todos nós? De certa forma, ela remete ao final do episódio do jovem rico: “Todo aquele que deixa casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e campos, por causa de mim e do Evangelho recebe cem vezes mais agora, durante esta vida, com perseguições, e no mundo futuro, a vida eterna” (Mc 10, 17-30). Não, o criativo relato não pertence à literatura cristã. Escreveu-o o poeta indiano Rabindranath Tagore (1861-1941). Com rara sensibilidade ele indica a causa das diferenças sociais que inventamos.

O poema das bem-aventuranças (Mt 5,3-12) principia pelos pobres. Não sem razão. Quem não partilha os bens terrenos se faz cúmplice dos flagelos que infelicitam o planeta inteiro. A História comprova, há séculos, que a cobiça do dinheiro congela os corações. Esteriliza-os de toda a doçura. Infunde-lhes uma dureza que nem os animais bravios demonstram. As misérias globais não permitem ilusão. Atingimos a cifra de sete bilhões de ocupantes de um mundo que não se preocupa que morram de fome, por ano, um bilhão e duzentos mil. Um bilhão e trezentas mil pessoas iguais a nós estão privadas da água potável minimamente necessária. Por falta de comida morrem, a cada dia, onze mil crianças. Tão inocentes quanto as que levamos ao shopping para comprar coisas supérfluas. Entre as várias causas da fome no mundo não se devem omitir “a busca egoísta do dinheiro, do poder e da imagem pública; a perda do sentido de serviço à comunidade, em benefício exclusivo de pessoas ou de grupos; sem esquecer o importante grau de corrupção, sob as mais diversas formas, de que nenhum país se pode afirmar isento”. Foi o que apontou, em 4 de outubro de 1996, o documento pontifício “A Fome no Mundo”.

Estamos carecas de saber verdades claras como o sol do meio-dia. Mas não fazemos caso. O Senhor continua a nos estender a mão: ‘Que tens para me dar’? Desconfiamos que ele nos queira roubar. Tolice. Tudo o que temos foi ele que nos deu. De que aproveita ler a Bíblia e citá-la a todo instante, se recusamos praticar o que ela ensina? Ela não diz, com todas as letras, que Jesus interpreta como feito a Si mesmo o que fizermos ao menor dos irmãos (Mt 25,40)?

Fonte: Portal do Rigon 12/11/2011