sábado, 27 de abril de 2024

Carolina Ramos (Página Aberta)

Fruto de terna conversa, nasceu este conto não alheio à temática, porque envolve, como veículo de abertura, um casal de cães. A tal conversa aconteceu entre mãe e filha. A primeira redige estas linhas e, a segunda, na história por ela relatada, aparece, simplesmente, como: - "a moça dos cachorrinhos".

Mais realidade do que ficção, o conto leva o nome de "Página Aberta", que outra coisa não é, uma vez que, à mercê do imprevisível, as reticências substituem com maior propriedade o que deveria ser um ponto final.

PÁGINA ABERTA
(inspirado na narrativa da "moça dos cachorrinhos")

O céu, encapotado de cinza, ranzinzava um trovão, com cara de poucos amigos.

Juvenal desviou os olhos do mar e fixou-os nas nuvens carrancudas, a pressentir ser hora de voltar para casa. Não tinha relógio, mas vários indícios à sua volta mediam o tempo com precisão. Deveriam ser quase seis da tarde, afirmava o rabo-de-cavalo a pendular de lá para cá, ao ritmo dos passos da moça que "pastoreava" os dois cãezinhos sortudos, resgatados da rua pelo bom coração da futura dona. Dois cãezinhos bastante simpáticos – brancos, com manchas negras espalhadas pelo corpo – incontestável RG de "viralatice" explícita. Pedigree de ambos: - cão vaquinha ou paulistinha. Origem: - uma rua qualquer.

Ela: - Teca, a cadelinha - Olhos expressivos, baixinha, gordinha, meiguinha, merecedora de todos os inhas possíveis, de fato e de direito

Ele: - Nino, mais alto, mais magro, sempre tenso, sempre alerta, resmunguento, pouco afeito a carinhos - dentes pontiagudos, prontos a demonstrar a preferência pelas canelas de alguém surpreendido em descuido.

- Vale a digressão, porque Juvenal já conversara com a "moça dos cachorrinhos", por várias vezes, chegando mesmo a confidenciar-lhe algumas passagens de sua vida, tendo, também, oportunidade de conhecer de perto a história do festejado casal canino.

Naquela tarde, embora conhecendo o mau humor do Nino, Juvenal sentia, mais do que nunca, a necessidade de trocar ideias com alguém sensível. Precisava partilhar com a outrem a festa interior que o envolvia. A moça era receptiva. Aproximou-se dela.

" 0i! O Nino, hoje, ainda não atacou nenhum calcanhar? - A "moça dos cachorrinhos" sorriu: - Hoje ele está em paz com o mundo! A briga é com ele mesmo. Tomou banho com shampoo perfumado e perdeu as referências. Estranha o próprio cheiro! Por isso, está quieto, confuso... indiferente a quem passa.

Só então a moça prestou mais atenção no homem que, naquele dia, demonstrava apuro incomum - cabelos penteados, barba feita... e um brilho especial no olhar.

- E o senhor... como vai?

- Menina... amanhã vou ter um encontro muito importante! O mais importante encontro de toda minha vida!

- Soraya?!

- Isso mesmo, Soraya... a mulher da minha vida!

Nos encontros anteriores o nome Soraya já se fizera familiar. Para a "moça dos cachorrinhos", era nome bastante significativo. Sabia bem o que ele representava para aquele homem tenso, de emoções à flor da pele e de consciência pesada. Alguém que já lhe dera acesso espontâneo ao "site" de sua vida, onde estavam inclusos o casamento com Soraya, a felicidade curtida por algum tempo e, aquela separação absurda, que já se prolongava por, nada mais nada menos, que trinta e cinco longos anos!

Naquela infeliz tarde, distante e inexplicável, depois de uma rusga banal, tão comum entre pessoas que se querem bem, ele, homem impulsivo, num rompante, passara a mão nos pertences e deixara tudo para atrás! E, nesse tudo, incluía-se "a mulher da sua vida".

Juvenal fora cruel com Soraya e, mais ainda, consigo mesmo. Tão logo chegado o arrependimento, chegaram também o pudor e o medo do retorno. Como seria recebido? Teria direito ao perdão? Como reagiria a esposa, a sua "moleca", agora talvez de cabelos brancos? E os familiares?! Seria aceito?!

- Retorno abortado! - O que, sem mais palavras, explicam os trinta e cinco anos de separação.

Nesse meio tempo, muitas mulheres haviam tentado ocupar o lugar de Soraya no coração daquele homem arrependido, sem o conseguirem. Celeste até que chegou perto, mas, logo fora chamada à pátria que o próprio nome insinuava.

Uma vez mais, Juvenal resvalara para o abismo. Aos poucos, seus parcos valores se diluíram. Deu de beber. Bebeu muito! Degradou-se. Para quem se entrega a qualquer vício, o caminho da descida é por demais conhecido e bastante escorregadio. Desceu degrau por degrau. Perdeu o emprego, perdeu os documentos, perdeu os amigos e a própria identidade.

Chegara à mendicância! Só não conseguira ser desonesto! Seu anjo da guarda não estava de todo adormecido, salvara-o dessa fase terrível, por meio de uma bondosa assistente social, que não só lhe pôs os papéis em dia como lhe conseguiu até uma aposentadoria - modesta, mas suficiente para que recuperasse a dignidade. E ele - que em sua mocidade colecionara troféus conquistados no esporte em algumas maratonas - voltara, afinal, a acertar o passo.

Foi quando Soraya, a esposa abandonada, na impossibilidade de vender a casa, sem a assinatura do marido fujão, acabara por descobri-lo, após tantos anos de tenaz procura.

O primeiro encontro estava para acontecer no dia imediato.

A "moça dos cachorrinhos" entendeu, num relance, o tamanho da emoção e do conflito interior daquele homem inseguro, temente do que estava por vir e que ele era incapaz de adivinhar.

Uma semana depois, viriam à tona os pormenores daquele encontro.

Juvenal chegara ao endereço que o aguardava, mal contendo o nervosismo.

Ao toque da campainha, a porta fora aberta por uma mulher de mela idade, bonita ainda, cabelos tintos, ligeiramente aloirados e com aqueles olhos, meigos e tristes, que Juvenal tão bem conhecia.

Olhos tristes, sim... contudo, não acusadores. No instante em que os dois se fitaram, a ternura do olhar daquela mulher casou-se com a ansiedade do olhar recém-chegado.

- Jú! - murmurou ela, quase num sussurro.

- Soraya... Soraya, minha moleca!

Apesar da mútua ternura, Soraya evitou o beijo. Fugiu a contatos mais íntimos e deixou Juvenal cheio de grilos, sentindo-se rejeitado, apesar do bom acolhimento por parte da família.

Ao final do dia, após muita insistência e rejeição, a verdade veio à tona sob a forma de tristíssima revelação: - foi-lhe apresentado o resultado de um exame de laboratório. Em resumo; Soraya contraíra Aids mercê de um curto relacionamento. O parceiro unira-se a ela sem saber do mal que portava. Falecera há dois anos. Fato consumado!

Soraya botou para fora o drama do qual era protagonista, como um vulcão que vomitasse as próprias entranhas. Sentia a felicidade escapar-lhe novamente das mãos, como água a fugir-lhe por entre os dedos.

E as cinzas e lavas candentes, desse vulcão reativado, desabaram com violência sobre a alma aturdida daquele homem sacudido pelos soluços.

Juvenal acovardou-se. Não sabia o que dizer, nem tampouco o que pensar. Uniu suas lágrimas às de Soraya e, como bom desportista, acabou por pedir tempo. Precisava pensar! Pensar profundamente, longe de tudo e de todos... Antes de qualquer resolução!

Quinze dias bastaram para que aquele homem se decidisse:

- Por motivo algum, renunciaria ao amor de Soraya pela segunda vez! A ciência, evoluindo a cada dia... Os recursos multiplicando-se com ela... Deveria haver uma solução! A curto ou a longo prazo... deveria, sim! Mas... que espera duvidosa e cruel!

- Para aquele homem, contudo, uma coisa era absolutamente certa; - Sem dúvida alguma, queria a sua "moleca" de volta! A qualquer preço! Fosse como fosse! Para o que desse e viesse... e até que a morte os separasse! Igual ao que haviam prometido, num certo dia, à frente ao altar!

Mal ou bem, Juvenal escrevera a história de sua vida. Chegava, agora, ao capítulo decisivo!

As últimas e definitivas linhas deste relato ficam em branco... a serem completadas pelo próprio destino.

Deus pingará o ponto final na derradeira página. E a Sua misericórdia, então, a assinará…

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Olavo Bilac (Poesias para crianças) - 3


AS FORMIGAS

Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando...

Marcham em filas cerradas;
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
E das pedras se desviam.

Entre os calhaus vão abrindo
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Acolá, galgando um muro.

Esta carrega a migalha;
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Outra, uma pata de inseto.

Carrega cada formiga
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.

Vede! enquanto negligentes
Estão as cigarras cantando,
Vão as formigas prudentes
Trabalhando e armazenando.

Também quando chega o frio,
E todo o fruto consome,
A formiga, que no estio
Trabalha, não sofre fome...

Recorde-vos todo o dia
Das lições da Natureza:
O trabalho e a economia
São as bases da riqueza.
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JUSTIÇA

Chega a casa, chorando, o Oscar. Abraça
Em prantos a Mamãe.
“Que foi, meu filho?”
—“Sucedeu-me, Mamãe, uma desgraça!
Outros, no meu colégio, com mais brilho,
Tiveram prêmios, livros e medalhas...
Só eu não tive nada!”

—“Mas porque não trabalhas?
Por que é que, a uma existência dedicada
Ao trabalho e ao estudo,
Preferes os passeios ociosos?
Os outros, filho, mais estudiosos,
Pelas suas lições desprezam tudo...
Pois querias então que, vadiando,
Os outros humilhasses,
E que, os melhores prêmios conquistando,
Mais que os outros brilhasses?
Para outra vez, ao teu prazer prefere
O estudo! e o prêmio alcançarás sem custo:
E aprende: mesmo quando isso te fere,
É preciso ser justo!”
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MEIA-NOITE

O filho:
Ó Mamãe! quando adormecem
Todos, num sono profundo,
Há mesmo almas do outro mundo,
Que aos meninos aparecem?

A mãe:
Não creias nisso! É tolice!
Fantasmas são invenções
Para dar medo aos poltrões:
Não houve ninguém que os visse.

Não há gigantes nem fadas,
Nem gênios perseguidores,
Nem monstros aterradores,
Nem princesas encantadas!

As almas dos que morreram
Não voltam à terra mais!
Pois vão descansar em paz
Do que na terra sofreram.

Dorme com tranquilidade!
— Nada receia, meu filho,
Quem não se afasta do trilho
Da Justiça e da Bondade.
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MEIO-DIA

Meio-dia. Sol a pino.
Corre de manso o regato.
Na igreja repica o sino;
Cheiram as ervas do mato.

Na árvore canta a cigarra;
Há recreio nas escolas:
Tira-se, numa algazarra,
A merenda das sacolas.

O lavrador pousa a enxada
No chão, descansa um momento,
E enxuga a fronte suada,
Contemplando o firmamento.

Nas casas ferve a panela
Sobre o fogão, nas cozinhas;
A mulher chega à janela,
Atira milho às galinhas.

Meio-dia! O sol escalda,
E brilha, em toda a pureza,
Nos campos cor de esmeralda,
E no céu cor de turquesa...

E a voz do sino, ecoando
Longe, de atalho em atalho,
Vai pelos campos, cantando
A Vida, a Luz, o Trabalho.
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O OUTONO

Coro das quatro estações:
Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!

O Outono:
Sou a estação mais rica:
A árvore frutifica
Durante esta estação;
No tempo da colheita,
A gente satisfeita
Saúda a Criação,

Concede a Natureza
O premio da riqueza
Ao bom trabalhador,
E enche, contente e ufana,
De júbilo a choupana
De cada lavrador.

Vede como o galho,
Molhado inda de orvalho,
Maduro o fruto cai...
Interrompendo as danças,
Aproveitai, crianças!
Os frutos apanhai!

Coro das quatro estações:
Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O REMÉDIO

A Amelinha está doente,
Chora, tem febre, delira;
Em casa, está toda gente
Aflita, e geme, e suspira.

Chega o médico e a examina.
Tocando a fronte abrasada,
E o pulso da pequenina,
Diz alegre: “Não é nada!

Vou lhe dar uma receita.
Amanhã, o mais tardar,
Já de saúde perfeita
Há de sorrir e brincar.”

Vem o remédio. Amelinha
grita, faz manha, esperneia:
O pai se avizinha,
Mostrando-lhe a colher cheia:

“Toma o remédio, querida!
Dar-te-ei como recompensa,
uma boneca vestida
De seda e rendas, imensa...”

“— Não quero!”
Chega a titia:
“Amélia é boa, não é?
Se fosse boa, teria
Toda uma arca de Noé...”

“— Não quero!”
Prometem tudo:
Livros de figuras cheios,
Um vestido de veludo,
Brinquedos, joias, passeios...

Teima Amelinha, faz manha.
E diz o pai, já com tédio:
“— Menina! você apanha,
Se não toma este remédio!”

E nada! a menina grita,
Sem querer obedecer.
Mas nisto, a mamãe aflita,
Põe-se a gemer e a chorar.

Logo Amelinha, calada,
Mansa, a colher segurando,
Sem já se queixar de nada,
Vai o remédio tomando.

“—Então? mau gosto sentiste?”
Diz o pai... E ela, apressada:
“— Para não ver mamãe triste,
Não sinto mau gosto em nada!”
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Fonte> Olavo Bilac. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929. Disponível em Domínio Público 

Geraldo Pereira (Um Pierrô Apaixonado)

Onde estão os antigos pierrôs apaixonados, que nas ruas estreitas deste Recife de todos os amores cantavam e decantavam os sentimentos e os desejos pelas colombinas de seus devaneios? Ou que protagonizaram: “Histórias de amor assim/Assim!/...”. Encantaram-se, certamente, desapareceram nas brumas do tempo, nas nuvens de todas as folias, levando na face, sem a máscara já, a lágrima pendente das saudades e das lembranças! Indefinido semblante daqueles que amam e que não merecem mais, da idolatrada musa da paixão desesperada, um olhar sequer, capaz de aplacar os sonhos nunca oníricos. Não há remédio pra essa cura, não há unguento suficiente para sarar a ferida das frustrações do amor, aberta sempre com o aflorar das lembranças. Basta um acorde que seja, uma nota de Nelson, reavendo “Felinto/Pedro Salgado/Guilherme/Fenelon/...” para fazer aflorar na memória imagens ainda guardadas a sete chaves, momentos de intensidade rara, minutos, às vezes, de muitos afetos. Afagos rarefeitos nas nuvens do ontem, declarações paridas em rompantes do coração em fogo, incêndio das paixões.

“Agora chora pierrô/É tua sina/A sina de pierrô é chorar por colombina/...” E por certo os fantasmas desses apaixonados, nostálgicos sofredores em perpetuidades das lembranças, vagam ainda nas noites de Carnaval, perseguindo roteiros de antigos corsos em automóveis de fumaça, buscando aqui e ali, como alhures, ósculos perdidos da amada no éter das ilusões! Levantam as mãos, fluidas quase, para captar mensagens assim, de beijos jogados, roubados também, lançados no estirar lúdico das serpentinas que se desfazem, estirando-se em longos vínculos das fragilidades dos amores. Ou baixam a cabeça, esperando confetes coloridos das esperanças de todos os reatamentos, impossíveis já! 

Nada mais resta, nem pode restar, senão as asas do imaginário que refazem convívios! Vivências e convivências da fantasia, felicidades do efêmero! E nos sulcos que marcam as faces dos fantasmas, caminhos dos desesperos, rolam silentes solitárias lágrimas, lentamente.

E os palhaços, vestidos de branco ou de amarelo, com as bolas da negritude, que simbolizavam por certo o luto das irreparáveis perdas, dançavam nas ruas o passo das ilusões, fazendo a coreografia das alegrias, quando estavam de coração dilacerado, escondendo nas máscaras o semblante das angústias e a fisionomia das ansiedades! Aquele rítmico tocar das castanholas, pungente como a despedida dos amantes, era o pranto derradeiro do estabelecido adeus! Faziam de conta que gostavam do alvoroço das crianças, dos meninos e das meninas fazendo o coro da alegria, mas por dentro sofriam loucamente, como os largados pela vida e pelos amores. 

Quando a quarta-feira das ingratidões chegava, tiravam a máscara de pano, como se estivessem fechando a grande cortina do palco e voltavam para as coxias, condenados a mais um ano de realidades, nuas e cruas, como tem sido a vida de tantos! E a colombina encantou-se, também, desapareceu da roda, dos amores e das alegrias.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Sumaré/SP)

Compositor: Oswaldo Urban


Contemplando o passado distante,
Estendido no chão da memória,
Encontramos o passo imigrante
Iniciando um caminho de glória

Sobre o solo fecundo o labor
Semeou a sementes de fé
Das sementes nasceu uma flor
E esta flor se chamou Sumaré

Esse tempo escreveu a saudade
A esperança no sonho floriu
Hoje, bela, fulgura a cidade
Que a paisagem do amor coloriu

Nas escolas as crianças aprendem,
Soletrando o abc do amanhã
São luzes que risos acendem
São os sóis de uma nova manhã

Do passado fechada cortina
Hoje olhando o progresso fulgir
Nossa vista, feliz, descortina
O horizonte dum grande porvir

No ideal a colmeia formou-se
Sob o lema de paz e união
E o trabalho febril transformou-se
Numa doce e formosa canção

Sílvio Romero (O cágado e a fruta)

Diz que foi um dia, havia no mato uma fruta que todos os bichos tinham vontade de comer, mas era proibido comer a tal fruta sem primeiro saber o nome dela. Todos os animais iam à casa de uma mulher que morava nas paragens onde estava o pé de fruta, perguntavam a ela o nome, e voltavam para comer, mas quando chegavam lá não se lembravam mais do nome. Assim aconteceu com todos os bichos que iam e voltavam, e nada de acertar com o nome. Faltava somente o amigo cágado. Os outros foram chama-lo para ir por sua vez. Alguns caçoavam muito, dizendo:

 — Quando os outros não acertaram, quanto mais ele!

O amigo cágado partiu munido de uma violinha, e quando chegou na casa da mulher perguntou o nome da fruta. Ela disse:

 — Boyoyô-boyoyôquizamaquizu, boyoyô-boyoyôquizamaquizu.

Mas a mulher, depois que cada bicho ia-se retirando já em alguma distância, punha-se de lá a bradar:

 — Ó amigo tal, o nome não é esse, não!

E dizia outros nomes; o bicho se atrapalhava, e quando chegava ao pé de fruta não sabia mais o nome. 

Com o cágado não foi assim, porque ele deu de mão à sua violinha, e pôs-se a cantar o nome até ao lugar da árvore, e venceu a todos. Mas a amiga onça, que já lá estava à sua espera, disse-lhe:

 — Amigo cágado, você como não pode trepar, deixe que eu trepe para tirar as frutas, e você em paga me dá algumas.

O cágado consentiu, ela encheu o seu saco e largou-se sem lhe dar nenhuma. O cágado, muito zangado, largou-se atrás. Chegando os dois a um rio, ele disse à onça:

 — Amiga onça, aqui você me dê o saco para eu passar, que sou melhor nadador, e você passa depois.

A onça concordou, mas o sabido, quando se viu no outro lado, sumiu, ficando a onça lograda. 

Esta formou um plano de o matar. Ele soube e meteu-se debaixo de uma raiz grande de árvore onde ela costumava descansar. Aí chegada, pôs-se ela a gritar:

 — Amigo cágado, amigo cágado!

O sabido respondia ali de pertinho:

 — Oi.

A onça olhava de um lado e de outro e não via ninguém. Ficou muito espantada, e pensou que era o seu traseiro que respondia. Pôs-se de novo a gritar, e sempre o cágado respondendo:

 — Oi!

E ela:

 — Cala a boca, traseiro! — e sempre a coisa ia para diante.

O amigo macaco veio passando, e a onça lhe contou o caso da desobediência de seu traseiro e lhe pediu que o açoitasse. 

O macaco tanto executou a obra que a matou. Deu-se então o cágado por satisfeito.

Fonte> Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado em 1883. Disponível em Domínio Público 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 27

 

Mensagem na Garrafa = 113 =

Antero Jerónimo
Lisboa/Portugal

Se um dia, sem opção, precisares fechar a porta
certifica-te que deixas um sorriso sereno nesse libertar.
Um cantinho na casa que ficará por ocupar
mas que de tão preenchido com o teu vazio, 
jamais caberá em um outro lugar.
Não terás habitado o espaço em vão
ocupas espaço em um outro coração 
almas gémeas bafejadas pela vida em feliz benção.
Certifica-te que fechas a porta devagar, de mansinho
antes de continuares a fazer o teu caminho. 
Sê apenas em essência, não menos que isso
sentirás esse momento em grato deslumbramento
mesmo que role uma furtiva lágrima de emoção. 
Não te diminui, só te vai acrescentar
sê apenas verdadeiro quando outra alma conseguires tocar.

Fonte> Facebook do poeta

Antonio Brás Constante (Sozinho em casa...[Liberdade ou prisão?])

Ficar sozinho em casa nem sempre é muito fácil para quem já constituiu uma família. A esposa e os filhos vão para praia e você fica inteiramente sozinho em sua morada, já que a temporada de praias é maior que suas férias. Muitos dizem que este é um momento de liberdade. Mas às vezes, os fatos dizem outra coisa.

A pior parte de se ficar sozinho é o nosso “eu” interior, que teima em querer ter conosco os tais “papos cabeça”, justamente quando sentamos na frente da televisão com nosso copo de cerveja. Você tenta convencê-lo a esperar a hora dos comerciais, mas ele conhece-o muito bem, afinal está dentro de você. E não lhe deixa em paz até pararem para conversar. Uma auto-reflexão indesejada sobre sua vida. Fazendo-o pensar que morar sozinho consigo mesmo, é uma tortura.

Além de ter que dividir o espaço com sua “consciência”, ainda tem as tarefas do lar para executar. Por exemplo: Todo dia passa várias vezes pela pia, e a encontra cada vez mais cheia de louça suja. Você faz uma carranca para aquele amontoado de copos, pratos, panelas e talheres. Na esperança de intimidá-los e persuadi-los a se lavarem sozinhos, e depois irem se alojar em suas devidas gavetas. Com seus filhos esse procedimento quase sempre funciona. Uma olhada séria é o suficiente para eles irem tomar banho e se deitar. Mas a louça não parece muito incomodada com suas rugas de preocupação e fica ali como se o assunto não fosse com ela.

Outro problema é a TV. Não consegue ficar mais do que dez segundos olhando um mesmo programa. Nestas horas sua esposa funcionava como um moderador, que após a terceira mudança de canal lhe xingava e mandava por na novela. Agora sozinho você fica resmungando para si mesmo, mas não adianta. Viaja por todos os canais umas dez vezes e desiste da televisão.

Resolve procurar seus chinelos, mas as coisas ao seu redor parecem se esconder de você. Não encontra nada. Só achou o controle remoto porque sua esposa conseguiu convencê-lo a deixa-lo sempre em um mesmo lugar. Tal ideia lhe faz pensar se isto não seria o mesmo processo de adestramento utilizado em cães, mas acha melhor esquecer essa linha de pensamento.

No caso da comida a situação é bem mais tranquila, já que inventaram as tele-entregas. Sua dieta alimentar passa a ser à base de pizza, xis e cachorro-quente. O vestuário também é escolhido de forma casual. Você vai passando pelas roupas jogadas pelo chão, e as que ficarem presas aos seus pés acabam sendo escolhidas para vestir.

E assim as noites vão passando (já que os dias são propriedade de sua empresa). Fica a perambular pela casa feito uma alma penada, procurando imaginar que espécie de liberdade é esta que lhe torna escravo da solidão. Por fim sua família volta, ou suas férias chegam, e você parte alegre e feliz ao encontro de sua prisão.

Vasco Mousinho de Quebedo (Poesia sem fronteiras) = 2


SONETO X

Quais no soberbo mar à nau, que cansa
Lidando c'os assaltos da onda e vento,
Os Bálios* irmãos do Etéreo assento
Lhe confirmam do porto a esperança,

Tal vossa vista ao tempo, que se alcança
Desta, que não tem mor contentamento,
No mar de meu cuidado e meu tormento
Mil esperanças cria de bonança.

Comparação, conforme a causa, ufana,
Pois quando um me aparece, outro se esconde,
Como no Céu faz u'a, e outra estrela.

Iguais também no Amor, que em vós responde
Também no desamor da Irmã Troiana,
Que ambos vos conjurais em ódio dela.
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Bálios = Na mitologia grega, Xantos e Bálios eram dois cavalos sendo imortais, filhos do deus-vento Zéfiro e da harpia Podarge. Xantos e Bálios foram presenteados a Peleu, pai de Aquiles, por Poseidon, em seu casamento. 
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SONETO XI

Lá nua estranha e solitária terra,
De gente e nação bárbara habitada,
O metal nobre não se estima em nada
Que embalde seu valor e preço encerra.

Ouro, com que se arreia e move guerra
A corações, a Dama delicada,
Serve lá de grilhão, que em apertada
Corrente a malfeitores fecha e cerra.

Nasce esta confusão e diferença
Do muito que uns o seu valor alcançam,
E do pouco que de outros se conhece.

Julguem do Sol, e sua glória imensa
Os olhos d'Águia, já que todos cansam,
Que só para tais olhos resplandece.
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SONETO XV

Triste do que em tristeza passa o dia,
Feliz porém, se a passa, e enfim lhe passa,
Mas quem ventura teve tão escassa
Que em nada ache prazer nem alegria.

Nos ais, alívio tem quem n'alma os cria,
A quem em trevas vive, a luz dá graça,
Há quem do fogo e Sol se satisfaça,
E quem se satisfaça d'água fria.

Restaura o ar, na calma, o fraco alento,
Conforta o cheiro de u'a flor suave,
Convida a sombra, a erva a grato assento,

Suspende da Ave o canto a pena grave;
Ai que não aliviam meu tormento
Ais, luz, Sol, fogo, água, ar, flor, sombra, erva, Ave.
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SONETO XVI

Já tramontado o Sol do assento puro,
Debuxadas se veem no claro rio
As seis filhas de Atlante pelo estio,
Cobre-se Electra, só, de um manto escuro.

Já que com tanto risco me aventuro,
E sou tachado por escuro e frio,
Mostrem-se todos, que eu num só desvio
De vergonha escondido estar procuro.

Mas bem sabeis, engenho ilustre e nobre,
Que inda que o lavrador bárbaro veja
Que não são mais que seis estas estrelas,

O Astrólogo sábio, que descobre
Mais avante e co'a vista além peleja,
Diz que são sete, esconde-se u'a delas.
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SONETO XVIII

Quem quiser que seus ais o vento leve,
Quem quiser levantar nas águas torre,
Quem semear nas praias onde morre
E onde jamais ser o trigo teve.

Morra por vós, que na constância breve
Sois como folha, que c'o vento corre
Só constante em meu mal, porque me forre
De cuidar que sereis 'té nisto leve.

Suspiros de minha alma a quem vos dei,
Dei-vos suspiros meus ao leve vento?
Que foi de vós ó lágrimas cansadas?

Assaz pago fiquei com meu tormento,
Já que outro bem por vós não alcancei,
O bem me fica de vos ter choradas.
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SONETO XIX

Qual mísera Calisto, quando atenta
Que abrindo o dia vão ao largo estanho
As mais estrelas a seu doce banho,
Só com seu Plaustro só ficar lamenta,

Tal, quando me a memória representa
Banharem-se outros nesse mar estranho,
De graças mil gozando bem tamanho,
A falta dessa glória me atormenta.

E como inda que irada Juno a tolha
Descer ao mar, não deixa em noite clara
Ferir nele seus raios do alto assento,

Assim, por mais que a sorte em tudo avara
Para si deste corpo a parte escolha,
Livre, porém, me fica o pensamento.

Fonte> http://www.sonetos.com/biografia.php-a=39.htm (site desativado). Acesso em 15.01.2016

Eduardo Martínez (Tempos de menino)

Ainda me lembro de quando passava meus dias de menino no sítio do tio Joca, em Carolina, no Maranhão. Após tantos anos, eis que aqui estou defronte daquela largo e profundo rio que banhou minha infância e, para meu espanto, deparo-me com um riacho. Para onde teria ido aquela enormidade de água? 

— Mas, Cássio, é o mesmo córrego - tio Joca tenta me convencer.

Incrédulo, olho ao redor. Até as árvores não me parecem tão grandes. Nem mesmo o jequitibá logo adiante. Tudo parece querer me impor uma realidade que não é a que guardo na memória. Teimoso que sou, fecho os olhos e volto a ouvir o som da correnteza, enquanto meus pés, agora novamente descalços, correm pela sua margem.

Cato uma pedra lisa e a arremesso. Ela, quase disco voador, rente à superfície, toca a água uma, duas, três, quatro vezes, até que, lá bem no fundo daquela imensidão, se torna submarino. Ao seu redor, piabas se fazem de tubarão.

Ouço o ronco de um bugio. Viro o rosto e meus olhos de menino avistam um enorme gorila no topo da árvore logo atrás. Magnífico, magnânimo. Nem o grupo de macacos-prego adiante podem com ele. Assustados, fogem saltando de galho em galho, até se perderem na vastidão da floresta. 

— Cássio?

— O quê, tio?

— Você está bem?

— Sim.

— Já te chamei três vezes.

— Desculpe.

— Vamos, que já estou sentindo o cheiro do almoço daqui. 

Acompanho meu tio, mas meu pensamento ainda está bem distante. Que saudade que sinto do menino que fui, repleto de imaginação.

Fonte> Blog do Menino Dudu – 24.04.2024

Recordando Velhas Canções (Como nossos pais)


Composição: Belchior

Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa

Por isso, cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração

Já faz tempo, eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu tô por fora
Ou então que eu tô inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei que quem me deu a ideia
De uma nova consciência e juventude
Tá em casa guardado por Deus
Contando o vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
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A Reflexão de Elis Regina sobre Tradição e Mudança em 'Como Nossos Pais'
A canção 'Como Nossos Pais', interpretada pela icônica Elis Regina, é uma obra que transcende o tempo com sua mensagem reflexiva sobre a vida, as escolhas e a busca por identidade. Composta por Belchior, a música se tornou um dos maiores sucessos na voz de Elis, marcando a música popular brasileira com sua poesia e melodia envolvente. A letra fala diretamente ao coração, abordando a relação entre as gerações e a inevitável comparação entre os sonhos e a realidade vivida pelos jovens da época e seus pais.

A música inicia com uma conversa íntima, onde o eu-lírico decide compartilhar suas experiências de vida ao invés de lições aprendidas em discos. Há um reconhecimento de que viver plenamente é mais significativo do que apenas sonhar, e que o amor, apesar de ser valioso, não é o único componente da existência. A canção alerta para os perigos e desafios que a juventude enfrenta, simbolizados pela 'esquina' e pelo 'sinal fechado', metáforas para as restrições e limitações impostas pela sociedade e, talvez, pelo regime político da época.

O refrão é um lamento sobre a repetição de padrões, onde, apesar dos esforços e mudanças, ainda se vive como as gerações anteriores. A música critica a idolatria de figuras do passado e a resistência às novidades, sugerindo que a renovação é essencial e inevitável. A dor expressa na letra é a de reconhecer que, mesmo com as lutas e conquistas, muitas vezes as estruturas e mentalidades permanecem as mesmas. 'Como Nossos Pais' é um convite à reflexão sobre o que herdamos, o que repetimos e o que temos o poder de transformar em nossas próprias vidas.

Estante de Livros (“Contos Orientais”, de Marguerite Yourcenar)

Coletânea de contos que formam uma obra única na carreira de Marguerite Yourcenar. Baseados em lendas, fábulas, superstições de origem oriental - guardadas nas memória da autora e recriadas livremente - os contos lembram o fascínio do Oriente no cenário, no estilo, nos personagens.

Escritos ao longo dos anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra, estes Contos tornam patente a tentação oriental a que sempre Marguerite Yourcenar tem, de algum modo, sido sensível e, tanto pelo cenário em que se desenrolam como pelo estilo e o espírito que os habitam, sugerem as vias de acesso a uma harmonia e uma musicalidade próprias de outras paragens.

Da China à Grécia, dos Balcãs ao Japão, o conjunto de fábulas e lendas que constituem os Contos Orientais remete o leitor para o espaço insituável onde o sonho e o mito fazem ouvir, em cada narrativa, a sua estranha e obsessiva voz.

Invulgares, oníricos, com elementos que vão do sobrenatural ao mito e à lenda, estes contos vão beber a inspiração ao Oriente para daí abrirem as suas asas e conseguirem o que apenas a grande literatura consegue: abarcar o mundo, tocar a universalidade. Um pintor assombrado pelas imagens que cria, um herói traído, uma mãe que cuida do filho recém-nascido após a sua própria morte, uma deusa infeliz… 

Com uma linguagem sublime capaz de desvelar os mais secretos significados, Yourcenar aponta diretamente ao âmago da natureza humana e a noções tão fundamentais como a vida e a morte.

A Salvação de Wang-Fô inspira-se num apólogo taoista da velha China; 

O Sorriso de Marko e O Leite da Morte provêm de baladas balcânicas da Idade Média; 

Kali Decapitada deriva de um inesgotável mito hindu, precisamente o mesmo que, interpretado aliás em moldes completamente diferentes, forneceu a Goethe O Deus e a Bailarina e a Thomas Mann As Cabeças Trocadas. 

Por outro lado, O Homem que Amou as Nereidas e A Viúva Aphrodissia (O Chefe Vermelho, na edição original) têm como ponto de partida pequenas notícias locais ou superstições da Grécia de hoje, ou melhor, de ontem, porquanto a sua redação situa-se entre 1932 e 1937. 

Em contrapartida, Nossa Senhora das Andorinhas representa uma fantasia pessoal da autora, nascida do desejo de explicar o nome singelo de uma capelinha nos campos da Ática. 

Em O Último Amor do Príncipe Genghi, as personagens e o quadro da narrativa foram colhidos não num mito ou numa lenda, mas num grande texto literário do passado, no admirável romance japonês do século XI Genghi-Monogatari, da romancista Mourasaki Shikibu, que relata em seis ou sete volumes as aventuras de um Don Juan asiático de grande estilo. Mas, com uma delicadeza muito característica, Mourasaki «escamoteia» por assim dizer a morte do seu herói e passa do capítulo em que Genghi já viúvo decide retirar-se do mundo para aquele em que o seu próprio fim é um fato consumado. A novela que acabaram de ler pretende, se não preencher essa lacuna, pelo menos permitir imaginar o que teria sido esse epílogo se a própria Mourasaki o tivesse composto. 

O Fim de Marko, narrativa que, desde há anos tencionava escrever, só em 1978 foi redigida. O conto toma como ponto de partida um fragmento de uma balada sérvia que evoca a morte do herói às mãos de um circunstante misterioso, banal e alegórico. 

Em A Tristeza de Cornelius Berg, o protagonista leva uma vida pacata, longe dos áureos tempos em que todos os rodeavam, insaciáveis das empolgantes histórias vividas nos quatros cantos do mundo. Apresenta-se-nos decadente, sem interesses na vida, ignorado pelo mundo. Seu único amigo é um apreciador de flores. Não um verdadeiro amigo, pois apenas o convidava para saber a sua opinião acerca da sua nova joia, vulgo flor. Num destes encontros, Berg relembra o passado e como aquilo que um dia viu e sentiu se distancia do que ele é e sente neste momento.

Pintor de profissão notamos ao longo da leitura o desgaste que a transposição da natureza humana para a tela teve nele. Não mais vê o Homem como um ser belo e derradeira criação divina na Terra. Para ele, este não passa de um devaneio, de uma distração do Supremo, enquanto “moldava” as paisagens do Mundo.
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Marguerite Yourcenar, pseudônimo da escritora francesa Marguerite de Crayencour (1903-1987), Yourcenar é um anagrama de Crayencour, nascida em Bruxelas e que veio a naturalizar-se americana. As suas Memórias de Adriano,1952, tornaram-na internacionalmente conhecida.

Fontes:
Excerto do texto de Tiago Martins para o Clube de Artes e Ideias. 6 janeiro 2008.
Excerto do texto de Ernesto Luz para o Trade Stories