quarta-feira, 19 de junho de 2019

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 1


A JANELA

Vem de outras eras as fontes do espírito.
Os jasmins renascem nos canteiros,
a chuva já deu badaladas no telhado.
E quem sou? Me pergunto na noite morna.
Talvez uma ave noturna lenta demais
para atravessar as planícies.
Toda imensidão termina no ocaso.
E para além do sol... onde estão os meus olhos amados?
Sempre atravesso essas sombras ao anoitecer,
diante do quartel de estrelas que me policia.
E a janela é um avental que me convida
a continuar servindo.

AQUELAS MÃOS SERENAS

A minha alma ainda tem tranças de menina
que minha mãe fazia quando eu era pequena.
Quanta saudade na minha vida peregrina
deixou em mim aquelas mãos serenas.

Daqueles olhos, no verde dos campos tenho a cor.
E aquele perfume divinal, quando penso em Deus.
Ainda busco aquele rosto que era o próprio amor
no sol, na lua, nas estrelas, no azul do céu.

À noite, na varanda, quando sopra o vento,
renovando, uma a uma, as folhas dos meus sentimentos 
pra que eu sempre me renasça para ser melhor

ainda sinto a ternura daquelas mãos serenas
trançando os meus versos sobre a minha pena
pra que o amor sempre anule a metáfora da dor.

ARARUNA
à cidade de Araruna, norte do Paraná

Abro as mãos em prece ao luar:
asas de uma saudade transportada
às noites em que fui princesa a caminhar
por uma terra roxa e encantada.

Meus vaga-lumes brilhando no cristal,
meus tombos em tua areia de marfim
ainda me soam como noites de Natal
um paraíso que retenho em mim.

Do teu corpo ainda guardo as lembranças
dos meus sorrisos e silêncios de criança
a tecer sonhos à luz de tuas brumas.

E anuncia a voz dos cafezais
que há passos leves adentrando teus quintais
- é minha saudade, ó Araruna!

BUSCADOR

A tua presença fala em mim
apesar da distância,
apesar da dor.
E alçada à uma sabedoria eterna,
eu vou buscar respostas
a esta minha fome de infinito.
E caminhante de um universo
exclusivamente meu,
vou à procura da face do meu deus
retificando o labirinto.

CONFIANÇA 

O sol ainda não saiu.
Meus olhos ainda estão turvos.
Mas já pressinto tua presença:
- cheiro de rosas no escuro.

"DI PROFUNDIS"

Deixe-me cruzar esta fonte,
que é a fronte do teu espírito,
onde as águas sobem montes
e lavam os meus abismos.

Deixe-me estar assim, contigo,
cansada, na noite que chega.
E ser em ti aconchegada
como em um ninho de estrelas.

Estrelas que enlaçam meus sonhos,
assim como os braços de Deus,
onde, na noite escura da vida,
minha dor adormeceu.

Fonte:
A Poetisa

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Justiceiro)


Mercadinho é imagem de confusão organizada. Todos comprando tudo ao mesmo tempo em corredores estreitos, carrinhos e pirâmides de coisas se comprimindo, apalpamento, cheiração e análise visual de gêneros pelas madamas, e, a dominar o vozerio, o metralhar contínuo das registradoras. Um olho visível, múltiplo e implacável, controla os menores movimentos da freguesia, devassa o mistério de bolsas e bolsos, quem sabe se até o pensamento. Parece o caos; contudo nada escapa à fiscalização. Aquela velhinha estrangeira, por exemplo, foi desmascarada.

— A senhora não pagou a dúzia de ovos quebrados.

— Paguei.

Antes que o leitor suponha ter a velhinha quebrado uma dúzia de ovos, explico que eles estão à venda assim mesmo, trincados. Por isso são mais baratos, e muita gente os prefere; casca é embalagem. A senhora ia pagar a dúzia de ovos perfeitos, comprada depois; mas e os quebrados, que ela comprara antes?

A velhinha se zanga e xinga em ótimo português-carioca o rapaz da caixa. O qual lhe responde boas, no mesmo idioma, frisando que gringo nenhum viria lá de sua terra da peste para dar prejuízo no Brasil, que ele estava ali para defender nosso torrão contra piratas da estranja. A mulher, fula de indignação, foi perdendo a voz. Caixeiros acorreram, tomando posição em defesa da pátria ultrajada na pessoa do colega; entre eles, alguns portugueses. A freguesia fez bolo. O mercadinho parou.

Eis que irrompe o tarzã de calção de banho ainda rorejante e berra para o caixa:

— Para com isso, que eu não conheço essa dona mas vê-se pela cara que é distinta.

— Distinta? Roubou cem cruzeiros* à casa e insultou a gente feito uma danada.

— Roubou coisa nenhuma, e o que ela disse de você eu não ouvi mas subscrevo. O que você é, é um calhorda e quer fazer média com o patrão à custa de uma pobre mulher.

O outro ia revidar à altura, mas o tarzã não era de cinema, era de verdade, o que aliás não escapou à percepção de nenhum dos presentes. De modo que enquanto uns socorriam a velhinha, que desmaiava, outros passavam a apoiá-la moralmente, querendo arrebentar aquela joça. O partido nacionalista acoelhou-se. Foram tratando de cerrar as portas, para evitar a repetição do saque de Caxias. Quem estava lá dentro que morresse de calor; enquanto não viessem a radiopatrulha e a ambulância, a questão dos ovos ficava em suspenso.

— Ah, é? — disse o vingador. — Pois eu pago os cem cruzeiros pelos ovos mas você tem de engolir a nota.

Tirou-a do bolso do calção, fez uma bolinha, puxou para baixo, com dedos de ferro, o queixo do caixa, e meteu-lhe o dinheiro na boca.

Assistência deslumbrada, em silêncio admiracional. Não é todos os dias que se vê engolir dinheiro. O caixa começou a mastigar, branco, nauseado, engasgado.

Uma voz veio do setor de ovos:

— Ela não roubou mesmo não! Olha o dinheiro embaixo do pacote!

Outras vozes se altearam: — Engole mais os outros cem! — Os ovos também! — Salafra — Isso! — Aquilo!

A onda era tamanha que o tarzã, instrumento da justiça divina, teve de restabelecer o equilíbrio.

— Espera aí. Este aqui já pagou. Agora vocês é que vão engolir tudo, se maltratarem este rapaz.
___________________________
* Esta historinha foi escrita antes de 1967, quando mil cruzeiros passaram a valer um.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Silmar Bohrer (Caderno de Versos) Lampejos Poéticos


1
assim como tenho tido a ter 
posso vir a ver tudo a perder 

2
Por que será 
as coisas simples 
parecem 
as mais verdadeiras? 

O mais intrincado 
é povoado 
de estereótipos, 
fantasias, 
enigmas, 
dúvidas, 
indagações. 

Será? 

3
Amanheceram uns versos 
ali na barra do dia, 
seriam alguns dispersos 
disfarçados de poesia ? 

4
muitas vezes 
temos que ser 
mais 
menos 

5
Singeleza ! 
Quando estou 
junto dos verdes 
encorpo, 
incorporo 
realeza. 
Estou em casa, 
me visto de 
natureza. 

6
Haverá uma gostosura 
melhor do que escrever, 
usar do verso, essa doçura 
que açucara o bem 
viver? 

7
conhecimento 
fomento 
fermento 
fecundidade 

8
Uma resposta perseguida 
de que ainda não dispomos, 
para onde vai o sopro de vida 
depois que já não somos ? 

9
simplifique a vida 
fique no nível 
dela 

10
Belas tardes sabatinas 
ali na barranca do rio, 
pesco o versinho arredio 
com rimas-iscas-surdinas.

11
É um leito sempre ardente 
este leito de nós dois, 
seguirá assim fremente 
com nossa ausência depois? 

12
Muitas vezes não sei 
se estou certo, 
mas certamente 
certo estou 
em querer saber 
se mesmo estou. 

Fonte:
O Poeta

Luís de Câmara Cascudo (A Princesa de Bambuluá)


Havia na estrada que ligava duas cidades importantes uma grande pedra com uma gruta espaçosa, onde costumavam os viajantes pernoitar quando surpreendidos pela noite naquele deserto. Era muito frequentada a paragem mas começou a aparecer uma visagem e os viajantes preferiam fazer uma curva a ter de passar pela pedra da margem do caminho.

Contavam que os homens eram acordados por uma voz celestial dizendo:

– Quem quer desencantar a princesa de Bambuluá? – Viam apenas o rosto de uma moça bonita como um anjo. Só o rosto. E era esse rosto que pedia socorro.

Muitos homens corajosos aceitaram o encargo mas desistiram das provas e fugiram espavoridos e molhados de sangue. O lugar foi ficando abandonado cada vez mais. Raramente passava uma criatura humana e assim mesmo bem depressa, olho no pé, olho no mato.

Numa tarde apareceu por ali um rapaz amarelo, franzino, muito cansado e faminto e se sentou na laje sem saber o que fazer de sua vida. Surgiu o rosto da moça encantada e perguntou se ele era capaz de desencantar a princesa de Bambuluá.

– Sou – disse o amarelo –; sou homem para enfrentar o perigo, mas quero comer, beber e descansar primeiro...

– Entre para a gruta – disse o rosto.

O amarelo, que se chamava João, entrou e encontrou uma mesa cheia de comida variada e gostosa, uma boa rede armada e um banho morno preparado. João tomou o banho, mudou a roupa, comeu e deitou-se na rede. O rosto reapareceu dizendo:

– Hoje à meia-noite vai até aquela árvore que fica no alto da serra e deita-te no chão. Haja o que houver, não te levantes, não grites, não te defendas e apenas poderás rolar até aqui onde ficarás a salvamento.

João cumpriu à risca. Perto da meia-noite foi até a árvore que ficava bem longe da gruta e deitou-se. Logo depois viu três vultos mascarados, cobertos com umas capas escuras, conversando.

– Há tempos que não tropeço com gente deitada aqui – dizia um. Outro comentava:

– Deve ter sido à custa de pau que ficamos livres. – Um deles bateu com o pé em João e gritou:

– Aqui está um embrulho! Vamos empurrá-lo! Chega o pau nele!

As pancadas, pontapés, choveram sobre João que suportou calado e, apenas dando um jeito no corpo, começou a rolar, a rolar por cima de pedras, espinhos, galhos secos, debaixo da saraivada de golpes, dos três embuçados. Rolou, rolou, rolou, até que encostou na gruta. Imediatamente as figuras sumiram-se e João pôde sossegar, todo roxo de pancadas. A princesa de Bambuluá apareceu, já desencantada numa terça parte do corpo. Mandou preparar todo conforto para o amarelo que passou o resto da noite e o dia seguinte tomando coragem para a segunda prova.

Na noite escolhida os três encapuzados surraram brutalmente o pobre rapaz que não deu a menor demonstração de estar sentindo maus-tratos. Rolou, rolou, rolou até a gruta e os três carrascos desapareceram.

João ficou recebendo curativos nas feridas e alimentando-se convenientemente até recobrar suas forças. Finalmente, na terceira noite, as provas foram cruéis. Os três fantasmas, furiosos pela insistência do candidato, moeram-no de pancadas e sacudiram-no dentro de um barreiro cheio de cacos de vidro e espinhos. João ficou picotado como um paliteiro. Ao romper da madrugada os três algozes fugiram como sombras. A princesa de Bambuluá estava desencantada inteiramente, dos pés à cabeça, bonita como os amores. Tratou de João e pôde curá-lo em quinze dias.

Viajaram então para a cidade vizinha e ali chegando a princesa hospedou-se na casa de uma velha professora, rica e sábia, que a recebeu como ela merecia. A princesa disse a João:

– Vou embarcar amanhã para o reinado de Bambuluá e voltarei uma vez por ano para ver você. É preciso que o meu noivo estude a língua dos pássaros e tudo quanto seja necessário para um homem importante. No fim de cinco anos creio que já estará você preparado para acompanhar-me ao reinado do meu Pai e casar comigo. Não se esqueça de mim e lembre-se que minha visita anual durará apenas algumas horas. Estude muito.

No outro dia a princesa tomou o navio e foi embora para Bambuluá deixando João na casa da professora velha que tinha duas filhas lindas. Começou o rapaz a estudar tudo, especialmente a língua dos pássaros, fazendo progressos todos os dias. A velha ensinava com afinco e como ia gostando do moço pensou que seria melhor casá-lo com uma de suas filhas do que educá-lo para a princesa de Bambuluá que bem podia escolher outro noivo com facilidade.

Quando chegou o dia da princesa fazer a primeira visita, a professora preparou uma festa mas ofereceu a João um copo de vinho misturado com dormideira. O rapaz bebeu e caiu como morto, dormindo profundamente. A princesa de Bambuluá chegou, abraçou todos e não conseguiu falar com o noivo porque este dormia a sono solto. Pela tarde a princesa voltou para o navio e seguiu viagem.

João acordou e ficou muito triste com o sucedido mas continuou estudando cada vez mais. No outro ano, no dia em que a princesa voltaria a visitá-lo, a professora tornou a fazê-lo dormir com o vinho misturado com dormideira. A princesa olhou muito o noivo mas não pôde despertá-lo. Assim se passaram os cinco anos. A princesa de Bambuluá estava certa de que João não a queria, não estudara coisa alguma, vivendo nas festas. Tudo isso era dito pela professora velha. Na data da princesa vir, João, desconfiado, ficou de sobreaviso mas a princesa não veio. A professora disse que a princesa de Bambuluá era uma ingrata e que João devia casar-se com uma de suas filhas, moças prendadas e bonitas. João recusou, arrumou o que possuía e partiu.

Caminhou pela praia do mar muitos dias. Numa tarde deparou uma casa solitária e bateu palmas, chamando o dono. Depois de muito bater, ouviu uma voz macia, muito baixa, mandando que ele entrasse. João penetrou até a cozinha e viu um velhinho encarquilhado junto do fogo. Parecia ter mais de cem anos. Tratou João muito bem e o moço contou sua história. O velhinho disse:

– Eu sou o Príncipe dos Pássaros. Pode ser que algum dos meus soldados saiba onde fica o reinado de Bambuluá. Vou chamá-los...

Agarrou um tamborzinho e começou a bater, a bater, a bater. O céu ficou escuro de pássaros, de todos os tipos, cores e figuras que desciam para a casa, entrando pelas portas e janelas e cercando o velho com todo respeito. Assim que viam o rapaz, partiam de bico aberto contra ele, julgando-o inimigo do Príncipe. O velhinho sossegava-os com um gesto. A todos o Príncipe dos Pássaros perguntou o caminho para o reinado de Bambuluá. Ninguém sabia.

– Durma hoje aqui e vá amanhã perguntar ao meu Pai, o Rei dos Pássaros, onde fica o reinado de Bambuluá.

João agradeceu muito ao velhinho e seguiu jornada na manhã seguinte. Andou três dias e três noites. Avistou uma casinha na encosta de um morro. Subiu, bateu palmas e encontrou um velho, tão velho, que estava encolhido, encorujado, junto do fogo. Quase não falava. Recebeu-o muito bem, deu-lhe que comer e ouviu a história. Depois falou:

– Vou ver se os meus soldados sabem alguma cousa... – Pôs na boca um apito de prata e apitou, apitou, apitou. Emas, nambus, jacus, tamatiões, todos os pássaros grandes, que correm mais do que voam, compareceram, precipitando-se contra João porque pensavam que ele quisesse ofender ao Rei dos Pássaros. O velho-velhinho aquietava-os com a mão. Perguntou a todos e nenhum soube onde ficava o reinado de Bambuluá.

– Durma hoje aqui e amanhã procure meu Pai, o Imperador dos Pássaros. Esse deve saber...

João agradeceu muito, dormiu e continuou sua peregrinação na manhã seguinte. Andou, andou, andou. No quarto dia de viagem viu uma casinha no alto de uma serra, lá em cima, muito alvinha. Subiu com dificuldade e bateu palmas um tempo sem fim. Finalmente entrou e deparou um velho, velho, velho, tão velho que vivia dentro de uma cabaça, enrolado em pasta de algodão e suspenso em cima do fogo. Recebeu João muito bem, deu-lhe que comer e beber, mostrou uma rede armada, ouviu sua história e prometeu auxiliá-lo. Tirou da cabaça uma gaita de perna de ema e soprou um som fininho, fininho, por alguns minutos.

Assim que ele acabou, ouviu-se um barulho de asas e o céu ficou preto, preto, preto, de urubus, aos milhares e milhares, cobrindo tudo. Rodearam a casa e foram entrando e saudando o velho como a um Imperador. Queriam matar a João mas o Imperador fazia um gesto e os urubus obedeciam. Nenhum conhecia o caminho para o reinado de Bambuluá. O Imperador mandou-os embora e virou-se para um urubu velho que estava dormindo num canto, tão velho que não tinha mais penas e sim os canhões. O urubu ouviu a pergunta e respondeu, estirando as asas enormes:

– Saiba o meu imperial senhor que o reinado de Bambuluá era os meus pastos. Fui muito lá. Fica depois do Inferno. Passa-se por cima, na quentura do fogo do Diabo. Logo na descida está uma campina que olhos maus não podem ver, cheia de palácios bonitos, com muita gente agradável. É aí o reinado de Bambuluá.

O Imperador dos Pássaros disse a João que fosse comprar um boi de cinco eras, matasse, cortasse carne, tripas, bofe, coração, fígado, rins, quebrasse os ossos e trouxesse tudo para o urubu velho comer. Dentro de três dias estaria pronto para a viagem.

João comprou o boi de cinco eras, fez tudo quanto lhe ordenaram e colocou o montão de comida na frente do urubu velho que começou a comer sem parar, dia e noite. Ia comendo, comendo, e os canhões se abriam em penas e o urubu ia ficando empenado novamente. Dois dias depois já estava pronto e deu uns voos, experimentando as asas e as forças.

O Imperador dos Pássaros explicou a João que montasse o urubu, segurando dois cotos de penas como se fossem fueiros, e cruzasse os pés por debaixo da asa. Fechasse os olhos, só abrindo quando o urubu parasse. Havia de sentir um vento muito quente e o urubu faria muitas voltas. Era na ocasião em que passariam por cima das bocas do Inferno. João seguiu tudo direitinho e o urubu voou alto, alto, alto, empinando acima das nuvens. Depois de horas, desceu como um raio e começou a fazer curvas, como que recuando e o rapaz sentia um calor tão forte que lhe dava a impressão de estar pisando em brasas assopradas.

Bruscamente o urubu voou mais alto e desceu rápido pisando em terra. João abriu os olhos e viu que estava numa campina verde, com água corrente e perto de muitas casas bonitas. No cimo de um morro estava um palácio que era uma babilônia de grande.

O urubu despediu-se e voou. O rapaz veio andando, andando, até que alcançou as primeiras casas. Na janela de uma dessas estava uma velha muito simpática que lhe perguntou quem era e o que estava fazendo no reinado de Bambuluá. João escondeu umas partes e contou outras, e a velha mandou-o entrar e acomodar-se com sua pequena bagagem.

O rapaz estava com fome mas a velha nada tinha que lhe oferecer. Era uma antiga criada do palácio do Rei. Este lhe dera aquela casinha, roupa e mandava todos os dias abundante tabuleiro de comida vinda da cozinha real. Pediu que João tivesse paciência e esperasse pelo meio-dia, hora em que o almoço havia de chegar.

Para distrair-se, João abriu a bruaca, tirou um violino e substituiu as cordas comuns por umas cordas encantadas que a princesa lhe havia dado. Música tocada nessas cordas fazia toda a gente dançar. João afinou o instrumento e começou a tocar uma música tão sacudida, tão feiticeira, tão requebrada, que a velha se peneirou toda e saiu dançando pelo meio da sala. Os homens que iam passando na rua paravam para ouvir e entravam forte no bailado, balançando o corpo e sapateando como uns danados. Tanta gente passasse e ouvisse como entrava para a casa e ficava perdida no meio da dança. Ao meio-dia chegou a empregada do palácio e do meio da rua se vinha desmanchando no compasso, equilibrando o tabuleiro. Arriou-o na mesa e pulou como uma maluca.

No palácio notaram a demora da criada e mandaram outra buscá-la. Esta o que fez foi aderir ao baile com todas as forças do corpo. Mandaram uma segunda, terceira, quarta e quinta e todas se misturaram com os dançarinos, saracoteando. Finalmente a rainha, com algumas damas, veio pessoalmente verificar em que tanta criada estava entretida. Nem andou meio caminho e já ficou bulindo com os pés e, rainha e damas, largaram-se no folguedo como umas desesperadas. O Rei, vendo que o palácio estava deserto e a fome o apertava sem que o almoço aparecesse, saiu com os fidalgos à procura daquele mistério. Não escapou. Voou para o brinquedo como gato aos bofes. Dançaram, dançaram, dançaram. Até que o João parou o violino e todo mundo ficou mais morto do que vivo. O Rei então disse:

– Amanhã ofereço uma festa no palácio porque depois de amanhã vai casar minha filha. Você será o tocador. Não deixe de ir senão mando cortar-lhe a cabeça.

Dispersaram todos. A princesa não deixara seu aposento e quando as criadas contaram a história do baile, ficou surpreendida e desconfiou que fosse o músico, o seu antigo noivo, que a desencantara e a quem dera as cordas mágicas e fizera educar. Enviou uma criada de confiança e, quando se convenceu de que era mesmo João, mandou-o chamar e tudo combinou para a festa próxima.

O noivo oficial andava todo orgulhoso, bebendo ares, sem enxergar ninguém, porque ia casar com a filha do Rei.

No dia da festa, quando o salão real ficou que não cabia uma cabeça de alfinete, a princesa saiu, bonita como uma estrela do céu, e disse, em alto e bom som:

– Rei meu Pai, Rainha minha mãe, meus senhores e senhoras! Se eu perdesse a chave da minha mala e mandasse comprar outra para abrir, e antes de servir-me da nova encontrasse a velha, que deveria fazer?

Todos responderam:

– Use a velha, Princesa, não se deixam amores velhos pelos novos...

– Pois – concluiu a princesa –, aqui está meu noivo antigo, que sofreu por mim os maus-tratos, desencantando-me e estudando para ser digno do posto, vindo até aqui só para ver-me.

E entrando, saiu trazendo João pela mão, todo bem-vestido, com joia no dedo que parecia mesmo um príncipe.

Todos os convidados bateram palmas e o Rei e a Rainha abençoaram o casamento que se realizou no outro dia, com tanta festa que não teve fim.

Eu estava lá e vi tudo e trouxe um boião de doce mas na ladeira do Escorrega escorreguei, caí e quebrou-se tudo...
_______________________________________________________
Nota do Autor
Essa Princesa de Bambuluá faria as delícias de um pesquisador. Reúne elementos de vários contos europeus, numa sequência de episódios populares, que denuncia a dispersão dos temas e natural criação, pela convergência. O narrador, analfabeto, negro, contou-a muitas vezes, sem colaboração inconsciente. Banal é o processo para a princesa desencantar. O emprego do vinho soporífero, a dormideira, o endormillon dos contos franceses, pertencerá a outro fio. Os três encontros com o Príncipe, o Rei e o Imperador dos Pássaros radica-os ao ciclo dos Príncipes Encantados, nos quais a esposa procura o marido por intermédio das aves benfazejas. Há mesmo um detalhe interessante: o velho urubu que exige alimentação copiosa para poder transportar o rapaz até o reinado de Bambuluá. Ocorre, sendo águias e não os brasileiros urubus, no Les Chateu Suspendu Dans Les Airs, de Paul Sébillot (Contes Des Provinces de France, p. 21, Paris, 1920), nos contos espanhóis, Marisoles, nº 124, p. 249, El Castillo de Las Sietes Naranjas, nº 125, p. 252, etc. O violino que obriga toda a gente a dançar (La Gaita Que Hacia a Todos Bailar, nº 153, p. 323, da coleção Aurélio M. Espinosa) é irmão do conto d’O Beija-Florzinho (Silva Campos, nº XXXI) que obrigou todos a um samba sem fim, interrompido pelo manguá do dono da casa que desfez o baile à força de pau. A comparação da chave de ouro perdida é clássica. A viagem conduzida pela águia é comum nas histórias tradicionais. Alfredo Apell, Contos Populares Russos, comentando João Cachorro e o Camponês Branco, O Bicho Norka e Os Três Reinos, XIX, XX e XXI de uma coleção, estuda esse pormenor, existente nesses contos, através das narrativas francesas, gregas, alemãs, italianas, portuguesas, norueguesas, sírias, lituanas, calmucas, etc.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. 1ª edição digital. São Paulo, 2014.

Odenir Follador (Poemas Escolhidos)



A MÃE LEITORA

A mãe que têm o hábito de ler
ensina a valorizar os bons livros;
seus filhos crescem cheio de saber,
valorizados e bem mais ativos.

A criança percebe que a leitura
ensina-os e dá muito valor;
pois quem tem muitos livros: tem fartura
e aprende-se fácil, com mais sabor.

As mães que não têm hábito de ler,
devem mudar o seu comportamento
na importância como proceder.

A leitura não deve ter somente,
a importância de só um momento!
Deve ser, lançada como semente.

A MAGIA DO AMOR

Amor, um sentimento tão profundo...
Transbordante de extensa paz sublime;
arrebata a alma e aquece num segundo
uma intensa paixão, que pulsa e exprime

anseios plenos, puros de emoção
que seduz todo ser apaixonado. 
Só quem sente queimar seu coração
pode explicar o seu significado:

amor, canto d’alma, brilho que aquece
emoção, nostalgia e sentimento...
Um tênue regozijo que enternece,

tanto amor, que revela inspiração
num mágico sorrir de encantamento,
ao doce ressoar de um coração!

AOS MESTRES COM CARINHO

Paremos para pensar
na luta do professor,
que os alunos quer passar,
nas matérias com louvor!

Em qualquer educandário
luta com dedicação...
Tem amor nesse cenário
com garra e com devoção!

Eles são bem dedicados,
repassam o seu saber
com teores aplicados!

E quem hoje está formado
resta então agradecer...
Oh! Mestre... Muito obrigado!

CASTELO DE SONHOS

Eu construí um castelo de sonhos
íntegro de paz, de amor e alegria.
No salão todos dançavam risonhos,
ostentando garbosa alegoria.

E seguiam da música o compasso
à procura de novas atrações,
exangues mas sem demonstrar cansaço,
cativos e entregues às emoções.

Se pudesse traduzir esse enlevo,
e, mostrar todo o meu contentamento
que agora nestes versos eu descrevo...

Um castelo de sonhos e paixões,
de amor, regozijo e de encantamento
transbordante, em todos os corações!

VOLÚPIA DA PAIXÃO

Amar é sentirmos o coração
pulsar em nosso âmago, intensamente...
Inflar-se na volúpia da paixão
queimando toda alma, impetuosamente!

Um amor platônico que buscamos
encontrar, em nossa almejada amada;
e, sob as estrelas nos entregarmos
lascivos, à bruma da madrugada...

Cáustica chama do amor a sentirmos
no lampejo de uma nova alvorada!
E, num fiel anseio prosseguirmos...

Em desejos frementes, sensuais...
Entregarmos-nos à relva orvalhada
ao brilho das estrelas magistrais!

Fonte:
O Poeta

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Carolina Ramos (Sorriso de Vitória)


Foi aqui mesmo em Santos, há algum tempo. E não o vi mais.

Passou chispado, à direita do meu carro. Estranhei: — Moto? — Não! Muito silencioso. Bicicleta? – Não! Estranho demais!

Vi melhor: — Bicicleta, sim! Pequenina. Dessas que só andam pelas calçadas, cavalgadas por guris de oito a dez anos, no máximo!

Quem usava o veículo, no entanto, era um rapaz já taludo, quinze a dezessete anos. Não mais.

Bicicleta não adaptada. Sem qualquer sofisticação. Extravagante, isto sim, a maneira como era usada! O ciclista tinha a perna esquerda amputada à altura do joelho. A direita, inativa, cruzada sobre o guidão. Talvez que nem dê para entender, mas, era isto mesmo! E nada de motorização. 

Bicicleta pedalada como qualquer bicicleta que se preze. Mas, pedalada de maneira insólita. Pedalada com a mão!

Talvez isto entre em choque com a semântica. Pedalar teria de ser: — acionar alguma coisa com o pé. Não era o caso, evidentemente.

Corpo dobrado, o ciclista "pedalava" e, velozmente, com a mão direita. Malabarismo difícil de ser explicado. Desafiante das próprias leis do equilíbrio. De pasmar, como pasmei!

Lá ia ele, rente ao meio fio, dorso flectido, a embaralhar-se no trânsito, sempre que um veículo estacionado lhe tolhia a marcha. Feliz! Cada movimento traduzia vitória!

Alcançou-me várias vezes, quando os sinaleiros arregalavam o olho vermelho, espantados de o verem chegar. Comovida, seguia-lhe o esforço de aproximação, pelo espelho retrovisor.

Um terceiro farol nos emparelhou. Parado, como conseguia manter o equilíbrio, não sei. Meu pasmo, não captou pormenores. Talvez que a perna inativa então o ajudasse. Da bolsa, presa ao guidão, puxou minúsculo rádio de pilha. Encostou-o ao ouvido, deleitado e auto-suficiente. A gota d'água! Senti um irresistível apelo de comunicação.

Sinal verde. Antes do arranque, buzinei. Dois toques curtos. Olhou-me.

Sem nada o que dizer, sorri-lhe, erguendo o polegar, num gesto otimista que pretendia dizer tudo.

Entendeu-me. Devolveu o gesto e retribuiu-me o sorriso, com outro mais luminoso e triunfante!

Parti, chispada! — Que minha emoção não pusesse em risco a magia do instante. E nem apagasse o brilho daquele sorriso, tão especialmente bonito!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Poesia sem Fronteiras (Portugal)


AL BERTO 
Coimbra, 1948 – 1997, Lisboa

As mãos pressentem...

As mãos pressentem a leveza rubra do lume 
repetem gestos semelhantes a corolas de flores 
voos de pássaro ferido no marulho da alba 
ou ficam assim azuis 
queimadas pela secular idade desta luz 
encalhada como um barco nos confins do olhar 
ergues de novo as cansadas e sábias mãos 
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e 
o amargor úmido das noites e tanta ignorância 
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva 
quase nada 

ANTERO DE QUENTAL 
Ponta Delgada, 1842 – 1891

Aspiração

Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

BOCAGE
Setúbal, 1765 – 1805, Lisboa

Em louvor do grande Camões

Sobre os contrários o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedônio corte
Coa fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.

CAMILO PESSANHA
Coimbra, 1867 – 1926, Macau

Caminho II

Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

LUÍS DE CAMÕES
Coimbra, 1524 – 1580, Lisboa

Qual tem a borboleta por costume

Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agora se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aônia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

CARLOS NOGUEIRA FINO
Évora, 1950

Pensar é uma palavra

pensar é uma palavra
primogênita
onde o ardor decanta das insígnias
os íntimos sinais
e o olhar é um silêncio enorme
e rumoroso
o delicado musgo
da memória
é a matéria-prima
do teu rosto

CESÁRIO VERDE
Lisboa, 1855 – 1886

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero  estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura. 
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável, 
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!- 
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num  pedestal.

EUGÉNIO DE ANDRADE
Fundão, 1923 – 2005, Porto

Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor, 
É urgente permanecer.