sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Artur de Azevedo (Útil inda brincando)


A Urbano Duarte


I

Uma noite o Leopoldo das Neves encontrou no Passeio Público o Viriatinho da Estrada de Ferro, um bom camarada que há muito tempo não via. E, como os dois amigos se encaminhassem para o terraço, o Viriatinho chamou a atenção do outro para uma bonita mulher que descia a escada em companhia de um sujeito gordo.

— Oh! diabo! é a Clotilde! exclamou o Leopoldo das Neves.

E, levando o amigo pelo braço, embarafustou com ele pela sombria alameda que contorna o lago.

— Que é isso? Foges daquela mulher?

— Como o diabo da cruz.

— Por que?

— Porque me amola; se me visse, eu seria amanhã obrigado a explicar-lhe o que vim fazer ao Passeio Público!

— Amola-te? Ora essa! Eis ali o caso de dizer que dá Deus nozes...

— Perdão, tenho muito bons dentes!

— Nesse, és difícil!

— A Clotilde não é o meu tipo.

— Pois é bonita como seiscentos diabos!

— Não nego! mas o meu ideal é outro. Quisera que a minha amante fosse alta, magra, loura, alva, de olhos azuis, e tivesse vinte e quatro anos, quando muito. Quisera também que fosse viúva, conhecesse um pouco a Europa, e, sem ser literata nem artista, gostasse das letras e das artes.

— Quiseras muitas coisas juntas!

— A Clotilde é o contrário de tudo isso: é mais baixa que alta, é mais gorda que magra, é morena, tem olhos castanhos, e já completou a idade exigida para a senatoria...

— Do Império?

— Não; da República.  É a digna esposa daquele negociante anafado e suarento que viste passar; adormece no Lírico ouvindo o Otelo; dá o cavaquinho pelos cromos de Guimarães Ferdinando, e delicia-se com a leitura de Xavier de Montepin, — traduzido, note-se, porque nem ao menos sabe francês!...

— E as tuas relações com ela têm tido caráter platônico... ou... positivo?

— Ah, meu amigo, eu dei-lhe, infelizmente, amplo direito de perseguir-me...

— Maganão!

— Quem principiou fui eu. Que queres?... a curiosidade... o vício... a poesia do adultério... Como isso foi? Não sei. Um encontro numa soirée familiar... um aperto de mão mais forte... uma valsa... durante a valsa uma troca de lenços... no lenço dela um perfume capitoso e enervante... uma carta minha que ficou sem resposta... outra... outra ainda...outra, que foi respondida afinal... uma entrevista concedida depois de uma luta homérica entre duas fomes de beijos...

— Bonito!

— Uma entrevista em casa de uma cartomante da rua da Assembleia... Duas horas de prazer, e quatro anos de cativeiro e arrependimento!

— Quatro anos?

— Sim, meu Viriatinho, há quatro anos que isto dura; há quatro anos hipotequei a minha liberdade, o meu sossego, e o meu bom humor; há quatro anos vivo aguilhoado a essa mulher, que se encontra comigo de oito em oito, de quinze em quinze dias, furtivamente, às pressas, mas que me escreve todos os dias, e me atormenta com protestos, exigências, lamúrias, ameaças!...

E Leopoldo das Neves interrompeu a lista das impertinências de Clotilde, batendo violentamente com a bengala na relva:

— Quatro anos! Há quatro anos — calcula! — tenho o coração nas mãos, receoso de que de um momento para o outro o marido descubra tudo, ponha-a na rua a pontapés, e eu seja obrigado a ficar com aquela trouxa às costas!...

— Vejo que já não a amas.

— Nem nunca a amei. Foi um capricho... Quinze dias depois da nossa primeira entrevista em casa da cartomante, já eu me sentia farto e aborrecido!

Os dois amigos encaminharam-se para o terraço.

A noite estava esplêndida. Não havia luar, mas os astros brilhavam intensamente na profunda escuridão do céu. As ondas, derramando-se na praia, pareciam alvíssimas rendas franjando uma enorme colcha azul.

— Queres um conselho, Viriato? Foge das ligações dessa espécie.

— Ah! de que me serve o teu conselho?

— Por que?

— Aqui onde me vês, estou ralado de inveja!

— De inveja?

— Sim, confesso-te que guardo dentro esse sentimento ignóbil. Invejo a perseguição de que te dizes vítima e, — palavra! — tenho ciúmes, ciúmes incoerentes, dessa mulher que não é minha, que não conheço, apenas entrevi... Eu dava dez anos de vida — vê tu lá! — pelo prazer de entrar com ela furtivamente em casa de uma cartomante misteriosa e hospitaleira!

Leopoldo das Neves encarou fixamente o outro, e, depois de uma grande pausa, perguntou-lhe, segurando-o por um botão do casaco:

— Viriatinho, és meu amigo?

— Certamente.

— Queres prestar-me um grande serviço?

— Qual?

— Um serviço que não te será desagradável.

— Que ordenas tu?

O amante de Clotilde recuou uns passos, apontou para o lado da rua, e declamou o verso de D. Salustio: De plaire à cette femme et d’être son amant! (
Para agradar esta mulher e ser seu amante!)
 
O Viriatinho soltou uma gargalhada tão cristalina e vibrante que chamou a atenção das pessoas que passavam.

— Não te rias! estou falando sério!...

— Mas isso é lá possível! Tirar-te do lance, eu!... E ela tão apaixonada por ti!...

— Conheço-a como as palmas das minhas mãos; dar-te-ei as instruções necessárias... Desde que estejas munido de todos os recursos estratégicos, desde que saibas como atacar a praça, a vitória não será difícil.

— Olha que sou um péssimo general!

— Deixa-te de modéstias! Vamo-nos embora... Pelo caminho irei te desenvolvendo o plano do ataque.

— Vamos lá!

Os dois amigos tomaram a direção da escada.

— Não calculas como vais ser útil! disse Leopoldo das Neves, descendo.

— “Útil inda brincando”, acrescentou Viriatinho, descendo também, e apontando para o desgracioso Cupido que desde 1783 dá de beber aos fluminenses.

II

Mês e meio depois desse encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e sentia um aborrecimento de morte. Era uma noite chuvosa e fria. Tentou escrever, e não conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés.

Tinham-se já passado quarenta dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de um tal comendador Freixo. Leopoldo tratara Clotilde com muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um major de engenheiros e um médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas.

Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e, na rua deram cinquenta passos ao lado um do outro sem falar.

Leopoldo quebrou o silêncio:

— Então, César? Chegaste, viste e venceste?

Por única resposta o Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo, dizendo:

— Vê se conheces este perfume.

— Bravo!... as coisas chegaram à cerimônia, meio maometana, da troca dos lenços?

— Tal qual como contigo. Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta...

Os dois amigos separaram-se, e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A correspondência de Clotilde cessou completamente.

Durante os primeiros dias ele sentiu-se feliz, aliviado — uf! — daquela pesada algema que durante quatro anos penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos. Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto.

Clotilde aparecia-lhe agora com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano. Depois, ele passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens! Agora, sim, agora sou o teu ideal!...

Naquela noite chuvosa e úmida, Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com certeza não saberia apreciá-la.

O ingrato monologava esta interrogação terrível: — Já teriam indo à rua da Assembleia? — quando ouviu bater à porta.

Foi abrir. Era o Viriatinho, que entrou alegre e radiante.

— Está chovendo: tinha certeza de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista... Fomos hoje à cartomante!...

Leopoldo estremeceu, teve um sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair.

— Arre! Custou! Escrevi nada menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi ela própria quem me indicou o bom retiro da rua da Assembleia... Talvez o mesmo quarto, hein?

— Talvez...

— Olha: sobem-se duas escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor… primeira alcova à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de fumos... É isso?...

As palavras de Viriatinho penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a pauladas, o seu substituto; mas — que diabo! — o culpado de tudo não tinha sido ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?... não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta espontaneamente por ele?...

O Viriatinho observou:

— Mas... valha-me Deus! acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido?

— Eu?... que ideia!... murmurou Leopoldo sufocado; que ideia!...

— Olha, se queres que te diga, acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!...

— Não te dizia? acudiu vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada!

— Sabes? não estou disposto a aguentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda brincando”.

Alguns minutos depois, o Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto.

Foi para o seu quarto de dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço, aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela.

Passou assim toda a noite.

III


Ela enviuvou há um ano. Eles casaram-se há seis meses.

Quando se encontram com o Viriatinho da Estrada de Ferro, fingem que o não conhecem.

Fonte:
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,

George Abrão (Poemas Avulsos) 1


A CRIANÇA QUE EU FUI


A criança alegre e travessa que eu fui,
que usava calça curta com suspensório,
camisa de morim branco, boné de pano de saco,
sempre de pés descalços ou de come-quietos;
que se encantava com flores, pássaros e borboletas,
que dava nome às nuvens pelos seus formatos,
a criança que nunca andava, sempre corria,
parecendo querer alcançar o tempo;
o menino levado que sempre estava aprontando:
fazendo guerra de mamona com os outros amigos,
ou descendo as ladeiras de carrinho de rolimã,
rasgando as roupas ou ralando joelhos e cotovelos;
que caçava as aranhas-segredo com cera em um fio,
que com um estilingue espantava os pássaros,
ou então procurava os seus ninhos entre os arbustos,
que caçava as belas borboletas multicores;
o menino que jogava bola no campinho improvisado,
que se banhava ou pescava nos riachos e nos rios,
que escalava as árvores em busca de seus frutos,
que empinava pipas no ventoso mês de agosto;
o menino que brincava nas ruas de terra
de pula-sela, paradinho, ou de esconde-esconde,
que incursionava nas matas procurando tesouros.
Essa criança que eu fui, ao invés de deixá-la
à margem da longa estrada da minha vida,
eu a trouxe sempre comigo por todo o tempo,
e embora, com certas limitações, está viva e feliz.
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EU QUERIA MUDAR O MUNDO

Eu sempre pensei em mudar o mundo,
não totalmente, mas de alguma forma.
Como o faria na minha pequenez,
com a minha humildade, com o que sabia?
E pensando assim passei a escrever,
a escrever palavras que me vinham à mente,
e as agrupando formando frases,
e dando sentido a elas de forma contínua,
até que gerei o meu primeiro poema.
Se eu gostei dele? Sim, era minha cria,
e como mãe coruja, li, reli, o adornei,
e como mãe coruja aconcheguei-o a mim,
e com muito medo que rissem dele,
que achassem feio o filho que gerei,
o guardei num lugar recôndito.
Mas continuei com a minha missão,
a usar o talento que Deus me deu,
até que um dia criei coragem
e mostrei a minha prole aos amigos.
Notei em alguns certos desdéns,
bem disfarçados para não ofender;
mas vi os olhos de outros brilharem,
e seus sorridos aflorarem às bocas.
Foi então que criei coragem
e com muita alegria os publiquei
sem pretensões, sem esperança,
pois se só um leitor gostasse,
eu estaria realizado.
Faça assim também e crie sua obra!
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FÊNIX REDIVIVA

Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia procuro renovar-me,
sobrepujando as minhas agruras,
vencendo os meus temores,
esquecendo as minhas decepções,
perdoando todas as ofensas,
ignorando os mexericos,
suplantando as adversidades.
Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia procuro voar mais alto,
observando os detalhes de tudo,
admirando o que julgava insignificante,
encontrando graça nas pequenas coisas,
tendo esperança de que tudo melhore,
desejando a paz e a felicidade de todos,
amando sempre e a cada vez mais.
Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia tenho a certeza de que
posso ressurgir quando quiser,
posso me redimir dos meus erros,
e procurar mudar minhas convicções,
ajudando a vida a ser melhor.
E como a fênix rediviva das cinzas,
posso a cada dia ser mais feliz!
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MARIA-FUMAÇA

Chegando, partindo,
trazendo, levando,
chegando, trazendo,
partindo, levando!
Soltando fumaça,
o apito soando,
queimando a lenha
formando o vapor;
trazendo alegria,
saudade deixando;
maria-fumaça,
Maria de outrora,
da infância distante
na terra natal;
maria-fumaça,
Maria de um tempo
de sonho e inocência,
que como fumaça
levada ao vento
o tempo levou!

Fonte:
Facebook do poeta.

Malba Tahan (8ª Narrativa das Mil Histórias sem Fim)


No país de Astrabad vivia outrora um rei perverso e mau chamado Balchuf. Não tendo filhos, era seu herdeiro um sobrinho — o príncipe Kabadiã —, moço desajuizado e turbulento que vivia a cometer toda sorte de loucuras e leviandades. Raro era o dia em que o futuro rei não praticava uma proeza qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhe a índole arrebatada e travessa, distraía-se com suas extravagâncias e ria-se quando ouvia contar alguma nova tropelia daquele a quem já chamavam o “Príncipe Louco”.

O povo de Astrabad antevia bem triste os dias que o aguardavam. Entregue a um monarca impiedoso e sanguinário, o país entraria fatalmente em completa decadência. Os estrangeiros já fugiam de Astrabad com receio das perseguições, e o comércio arrastava-se onerado e sem ânimo, coberto de impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendo que aquele estado de coisas levaria todos à ruína, resolveu conspirar contra o rei, proclamar a República e entregar ao mais digno a direção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas um miserável delator que se apressou em levar ao conhecimento do rei o plano deliberado pelos conspiradores. Enfureceu-se o soberano ao ter notícias de que alguns ricos súditos pretendiam subverter a ordem legal do país, e resolveu castigar implacavelmente os chefes daquele movimento republicano. Mandou degolar alguns, eliminando os mais influentes, desterrou outros, prendeu os suspeitos e confiscou os bens de todos os adeptos da revolução.

Esta vitória não lhe restituiu, porém, a tranquilidade que perdera. O fantasma da revolta continuava a povoar-lhe a mente, como um sonho mau.

“Uma tentativa destas”, pensava, “deixa terríveis germes nos corações dos descontentes e dos vencidos. Se eu não tomar uma providência enérgica, cedo terei de dominar outra rebelião. E encontrarei, porventura, quem me avise a tempo?”

Preocupado com tais pensamentos, resolveu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que ele não era tão ruim como os seus adversários faziam crer.

“Para isto”, refletiu maldoso, “vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meu sobrinho no trono. Tais loucuras há de ele praticar, tão frequentes serão os seus atos de tirania que quando eu voltar o povo respirará menos oprimido e verá em mim um soberano ponderado e justo.”

Ora, o rei Balchuf fora informado de que o Príncipe Louco dissera várias vezes a seus amigos e companheiros que quando subisse ao poder praticaria, de início, três façanhas espantosas: uma represa das águas do rio Gurgã; a construção de um castelo subterrâneo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligia ao país inteiro, esfregava as mãos de contente:

“O primeiro ato de meu tresloucado sobrinho levará o país às portas da miséria; o segundo à ruína completa; e o terceiro à revolução religiosa e à guerra civil!” E resolvido a por em execução, sem mais delongas, o plano diabólico, o rei Balchuf assinou um decreto em virtude do qual seu sobrinho Kabadiã o substituiria no governo pelo espaço de um ano. Ele — o rei — iria, durante esse tempo, fazer uma visita ao seu velho amigo Iezide II, sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo de Astrabad recebeu a nova da viagem do rei e a consequente ocupação temporária do trono pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressar dentro do prazo marcado. Preso, entretanto, por uma grave e prolongada enfermidade no longínquo país de Hajar, não pôde voltar senão quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longa ausência, notou que os seus domínios haviam progredido extraordinariamente. Um vizir que por ordem do governo veio esperá-lo na fronteira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

— Penso que Vossa Majestade não deve tentar reassumir o trono, pois o povo poderia revoltar-se e massacrá-lo.

— Como assim? — exclamou o rei. — Será possível que meus súditos prefiram ser governados pelo Príncipe Louco a ter-me no trono?

— Peço humildemente perdão a Vossa Majestade — recalcitrou o vizir. — Devo asseverar, porém, que Vossa Majestade está completamente equivocado. O príncipe Kabadiã está governando admiravelmente o país. Até hoje, não havíamos encontrado um chefe de Estado de mais ampla visão e sabedoria!

— É incrível! — protestou o rei. — E a represa do rio Gurgã? E o palácio subterrâneo? E a célebre abolição do véu feminino? Não teria o príncipe praticado nenhuma dessas tão prometidas loucuras.

O vizir explicou, então, ao rei Balchuf que tudo isso e muito mais havia feito o príncipe. A represa do rio Gurgã fora de consequências magníficas, pois as águas espalharam-se pelas terras vizinhas, fertilizando-as e tornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura, que logo se desenvolveu; o palácio subterrâneo, depois de construído, tornou-se grande atrativo, e milhares de forasteiros visitaram a capital unicamente para admirar essa nova maravilha, o que para o comércio de Astrabad fora manancial de grandes lucros, e para o país fonte de gerais prosperidades. A abolição do véu feminino fora outra medida de alcance admirável. As raparigas passaram a andar com o rosto descoberto: abandonaram a ociosidade dos haréns e puderam trabalhar livremente não só nos bazares como nas pequenas indústrias. Uma vez condenado o véu, teve o príncipe ocasião de observar que suas jovens patrícias eram belíssimas e resolveu casar-se. Escolheu para esposa uma menina, formosa e inteligente, filha de um grande sábio.

A nova princesa exerceu tão boa influência sobre o gênio de seu jovem esposo que o transformou radicalmente. Aconselhado pela fiel e dedicada companheira, o príncipe escolheu bons ministros, esforçados auxiliares, e, bem guiado e melhor secundado, soube modificar bastante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Até então não assinara uma única sentença de morte, nem mandara confiscar os bens de nenhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o rei Balchuf ficou pasmado e percebeu que havia perdido para sempre o direito ao trono; jamais poderia ele contar com o apoio de suas tropas ou com a antiga submissão de seu povo.

— Insensato fui eu — confessou ele ao vizir. — Insensato, pois não soube governar o meu povo como ele merecia! Insensato em escolher maus ministros e péssimos conselheiros! Louco era eu quando premiava os vis delatores e perseguia os bons patriotas!

— Agora é tarde para arrependimentos, ó rei — retorquiu com impaciência o vizir. — Volte Vossa Majestade para o país de Hajar e procure acabar lá sossegado os seus dias, que o povo de minha terra não poderá suportá-lo mais!

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras, o vizir afastou-se com a sua aparatosa comitiva, deixando o infeliz rei abandonado na estrada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para reconquistar o trono de seus avós, sentou-se o rei Balchuf, tomado de indizível tristeza, numa pedra à margem da estrada, e pôs-se a meditar nos espantosos erros de seu passado e na dolorosa expectativa que lhe oferecia o futuro.

— A morte — exclamou — é para o vencido o caminho mais seguro da reabilitação e do descanso. Devo, pois, morrer!

Um xeque desconhecido que passava no momento pela estrada, acompanhado de seus servos, ao ouvir as palavras de desespero do rei Balchuf, parou o camelo em que ia e assim falou:

— Ó desajuizado viandante! Por que te pões, para aí, como um louco, a falar em morrer quando, graças a Deus, há na vida remédio para todos os males? Vem comigo, pois estou certo de que acharei solução para o teu caso!

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puro
Das coisas que circundam este mundo,
Deixando à margem, voluntariamente,
Ideias más que vivem no inconsciente
Como rainhas nefastas do escuro. (1)


— Continua, meu amigo, a tua jornada — redarguiu secamente o rei. — O abismo que se acha diante de mim é intransponível! O problema do meu destino é inexplicável; os versos não me trazem alívio; os conselhos e advertências são, agora, para mim inúteis; os auxílios materiais nada poderão adiantar. Só a morte será capaz de tirar-me da negra situação em que me encontro.

— Estás enganado — contraveio o desconhecido. — Não sei ainda qual é a angústia que pesa sobre teus ombros; ignoro quais são os males que afligem a tua existência. Asseguro-te, porém, que já estive em situação muito pior do que a tua e que logrei salvação precisamente no momento em que decidira morrer. É preciso que a esperança exista sempre em nosso coração. Bem disse o poeta:

Esperança, ventura da desgraça, trecho puro do céu sorrindo às almas, na floresta de angústias e incertezas. (2)
 
“E por que não crês, ó irmão dos árabes!, na esperança? Serve a esperança de lenitivo para as dores mais torturantes e de bálsamo para as tristezas.”

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada:
nem é mais a existência resumida,
que uma grande esperança malograda! (3)


O xeque do deserto, vendo que o rei continuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

— Ouve a história de minha vida e verás se eu tenho ou não razão para confiar no futuro e exaltar a esperança.
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NOTAS
1 Versos do livro “Angústia dos Séculos”, de Adroaldo Barbosa Lima.
2 Versos de Aníbal Teófilo.
3 Do soneto “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho.


continua…

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 41

 

Aparecido Raimundo de Souza (Labirintos de passagens)


ENQUANTO PEQUENO, tudo bem. Nada de anormal ou qualquer situação fora de controle que carecesse maiores cuidados. Os embaraços tiveram início quando, aos cinco anos, entrou para a escola pública da comunidade onde nascera. Logo na primeira semana, se descobriu superior. Tinha dentro de si trinta diabinhos marotos. Quebrou a cara de um garoto. Os pais foram chamados. A partir daí outras desavenças reboaram (1). Em face de sangue nas guelras, brigas e confusões constantes, precisaram mudar de endereço e, de estabelecimento de ensino. Não adiantou. Os engasgos foram juntos, grudados na pele, arrimados na alma, misturados no sangue, acorrentados no coração.

Nova transferência de localidade e de educandário. E o guri, impertinente, sempre que lhe chamavam, fosse para participar de “peladas”, um simples papo descontraído entre amigos na pizzaria, aos domingos, ou para estudos na biblioteca, a confusão, de pronto, se fazia presente e, pior, cada vez mais forte e acirrada.  Chegou então a fase do distanciamento. A ponto de coisa séria. Com isso, ninguém lhe dirigia a palavra. Todos lhe viraram os rostos. As meninas que nutriam por ele um sentimento mais forte, em vista de seu aspecto elegante impressionar mais que cartão de crédito sem limite de gastos, acabaram dando atenção a outros moleques.

O recuo constante e inevitável, passou de forte e mirrado para um divórcio litigioso, sério e agravoso. Do fraco espaçamento, às peripécias desandaram para as sendas do insuportável. Com o passar dos anos, virou egressão (2) disjungida (3). E, como tal, o mal não estancou. Ao oposto, evoluiu. Se fez pesado, áspero, malfadado, azarento e obviamente sem nenhuma previsão de retrocesso ou de reocupação ao estado normal. Um dia, aos quinze, na constância de amigos os mais diversos, convivendo sobre o chão de uma nova matrícula em sequência aos aprimoramentos dos estudos, conheceu o Bira7. Um adolescente que diziam as línguas ferinas, vivia em sociedade com as margens da lei. Seria tão endiabrado que se dependuraria num trapézio da altura de um prédio de dez andares, e o faria pelos dentes, sem usar rede de proteção.

Por conta, para completar, o piá (4) vivia envolvido com armas pesadas e tráfico de drogas. O infeliz lhe vendeu uma Ponto 40. Com ela, se sentindo seguro e dono de si, colocou no vazio da cabeça, a maligna ideia que rezava na sua cartilha particular.  “Se alguém vier me “tirar sarro” ou me motivar “a sair do sério”, em consequência do ataque ao meu patronímico, mandarei o infeliz para a cidade dos pés juntos, com passagem só de ida para a estação final situada nos quintos do inferno”. Aos dezoito, depois de ter ganhado uma partida de futebol (verdade seja dita, o rapaz jogava melhor que o atacante Neymar), um mané lhe fez um convite cordial.

Tomar com os demais partícipes das peladas, “umas cerveja” no restaurante do Gilmar”. O restaurante do Gilmar ficava na entrada do bairro onde fora morar sozinho, depois que resolveu sair definitivamente da casa dos genitores. Aceitou, de pronto o convite. Todavia, ao chegar na porta do estabelecimento, àquela hora cenário de atividades frenéticas, o Luizão Pescoço de Girafa (justamente o técnico que procurava e preparava os novos jogadores), ao vê-lo espichando os olhos em procura dos demais membros da galera, sem querer ofender, de boa, o chamou para a “rodada” onde se achavam reunidos. O grito estridente que o Luizão Pescoço de Girafa emitiu, ecoou como uma pedrada certeira em sua parte desumana, apesar do salão imenso se fazer envolto num mar de conversas e gargalhadas entrelaçadas às nuvens das fumaças dos cigarros consumidos:

— Ei, estamos aqui. Vem pra cá, Noa.

Bailou a gota que deu o salto quântico em seu lado obscuro, fazendo transbordar o copo cheio de ódio que trazia dentro de si. No instante seguinte, da sua lareira interior, crepitou um fogo enorme. Embebido em seus intuitos maléficos, um resto de serenidade se fez verter em fúria repentina. À respiração colérica, puxou da Ponto 40 que carregava na cintura e abriu fogo. Apesar das hordas (5) dos curiosos, a debandada se fez iminente e inesperada. Por conta dos disparos, os amigos, em alvoroço, e diante de uma ameaça de maior porte, trivializaram a cena. Vazaram, como se homiziados (6). Aqueles que se achavam mais próximos dos acessos fáceis, se projetaram para a calçada como prisioneiros tentando escapar de uma rebelião organizada aos reveses do “salve-se quem puder”.  

Outros, aos tropeços, correram para os banheiros. Alguns pularam janelas e meia dúzia se enfiou como possível, por debaixo das mesas. Apesar disso, um dos projéteis acertou a cabeça de Luizão Pescoço de Girafa. O infausto caiu morto, a face alegre repousando em meio a uma enorme poça de sangue. Alguém chamou a polícia. Noa saiu preso e algemado conduzido por vários militares às barbas da delegacia. À autoridade de plantão, Noa explicou ao ser inquirido, “não aguentava mais. Estava, na verdade, cansado de ser chamado de “barquinho””. O adjunto olhou para Noa meio enviesado. Sem entender bulhufas, pediu esclarecimentos:

— Como assim, meu rapaz?  Não entendi a sua colocação. Barquinho?!

Nesse interregno, veio de outra sala, a escrivã que lavraria o flagrante. Com a voz rouquenha conduziu Noa pelo braço:

— Meu rapaz, o delegado vai lhe fazer perguntas.  Se quiser ligar para algum parente, ou advogado, fique à vontade. O doutor é gente fina, apesar de transmitir a aparência de um gorila enjaulado.  Sorriu e, em seguida, apontou uma cadeira ao lado da mesa onde seu depoimento seria levado à termo:

— Venha pra cá, Noa. Senta aqui e fique à vontade...

Noa foi à espadilha (7). Virou fera. Ao invés de se acomodar, pulou, furioso e possesso no pescoço da agente:

— Canoa, sua vagabunda... canoa é a senhora sua mãe.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Notas de rodapé:
1 – Reboaram – Ecoaram com estrondo, retumbaram de forma desordenada.
2 – Egressão – Afastamento, ou distanciamento.    
3 – Disjungida – Soltar, se desprender, se desanexar.
4 – Piá –  Moleque, criança, menino, guri.
5 – Hordas – Bandos de aventureiros, ou grupos de bêbados.     
6 – Homiziados – Aqueles que se escondem de alguma coisa, notadamente da justiça. 
7  – Espadilha – No sentido do texto, o personagem foi à espadilha. Foi à arma, partiu para o tudo ou nada. Termo usado por Gregório de Matos na “Crônica do Viver Baiano Seiscentista”, Editora Record, Rio de Janeiro 1992. O termo também se fez presente em “Várias histórias”, contos de Machado de Assis, em edição publicada em 1886.

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Caldeirão Poético LIV


Corina Rebuá

(1899 – 1957)

QUE INSÔNIA!

Como faz frio neste quarto agora!
A chuva bate em cheio na vidraça.
E o relógio da igreja, de hora em hora,
Soa. Há passos na rua... E a ronda passa...

Não consigo dormir. Como demora
Esta vigília que me torna lassa!
Se abro um livro, não leio. E lá por fora
Chove. Há passos na rua... E a ronda passa...

Dormes? Não creio... Eu sei que estás velando,
Porque eu pressinto que, de quando em quando,
Vem o teu corpo fluídico e me enlaça.

O relógio da igreja está batendo.
São quatro horas... Que insônia! Está chovendo.
Ouço passos na rua... E a ronda passa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Pedro de Alcântara Worms
Pinhal/SP

ALMOÇO DE NOIVADO...

"Bom partido", daí dona Consuelo
dar banquete ao noivado de Tereza,
usando essa conversa já modelo:
— ... “a noivinha é quem fez a sobremesa...”

E que celebração!... Quanto desvelo!...
Foi tudo do melhor e com largueza,
não houve um só senão... um atropelo,
até aquele instante — que beleza!...

A hora do brinde, o noivo, empanturrado,
elogia, gentil, o lauto almoço:
— ... "mas eu nunca comi com tal agrado,

mesa assim nunca vi!...” E, num endosso,
diz o filho caçula ao convidado:
— ... "nós também nunca viu, assim, seu moço!...”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Rosemar Pimentel
Niterói/RJ, 1905 –

PEQUENINO MORTO

Morreu. Vestiram-no de branco e veio
entre outras crianças rútilas, mimosas,
dar o corpinho emagrecido e feio
à tristeza das tumbas dolorosas.

As mãozinhas em cruz, postas no seio,
como duas saudades silenciosas,
tornavam-se mais lívidas, no meio
das grinaldas, dos lírios e das rosas.

Eu, que encontrei o féretro na estrada,
penso na dor de quem ficou sozinho
e vejo, pela aldeia desolada,

que quando passa o corpo desse anjinho,
enquanto os outros pais não dizem nada,
o coração das mães chora baixinho!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Waldir Neves
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007

VIVER

Vamos, querida, pelo mundo afora,
mirar os lírios brancos dos caminhos...
Vamos beber a luz pura da aurora,
embalados nos cânticos dos ninhos.

Vamos de perto ver a flor que chora,
pela fonte levada em torvelinhos...
Vamos colher as rosas, sem demora,
antes que murchem — sem ligar a espinhos.

Vamos buscar o belo onde ele exista,
sempre a sonhar, sonhando noite e dia,
que é com sonhos que o belo se conquista.

Vamos criar a mística de crer
que a vida é bela... é amor... é fantasia...
e há que sonhar e amar... para viver!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Zalina Rolim
Botucatu/SP, 1869 – 1961, São Paulo/SP

CAMPESTRE

Longe da estrada, à beira do riacho
que molha os pés relvosos da colina,
vejo-lhe o teto enegrecido e baixo
e a cancelinha baixa e pequenina.

Da chaminé desprende-se um penacho
de fumo branco. Levemente inclina
a verde palma sobre o loiro cacho
do coqueiro frondoso a aragem fina...

Faísca o sol. Do terreirinho à frente,
galinhas, patos, debicando o milho,
batem as asas preguiçosamente.

Nem um rumor de pássaros palpita;
e a roceirinha, adormecendo o filho,
canta lá dentro uma canção bonita.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Sammis Reachers (Gambá e o Gran Cassino Palha Seca)


Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu fabulário. O nosso Jardim Nazaré ou Palha Seca não foge à regra.

Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá, nos estertores finais da década de oitenta. Que o leitor me permita relatar aqui esta resenha na qual nosso Renato é tão somente um reles coadjuvante...

Em frente à minha casa morava com sua família cidadão de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa acepção do termo, ia sobrevivendo.

Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos (um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã), o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma “barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles pequenos comércios de bairro.

Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense, desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família, uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica purrinha, jogos que eram praticados à exaustão, indo por vezes madrugada adentro, e sempre valendo dinheiro.

Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga, sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua casa... Nosso anti-herói Renato foi um dos tais a escapulir – ou ser ejetado para a sarjeta da rua – liso, tesado e como veio ao mundo...

Bem, toda essa confraternização era regada à muita cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos. Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra um caldo ou mocotó.

Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má) sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada: Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O benemérito dissera ter matado três das galinhas do quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.

Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza, bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua própria sala – também se serviram a gosto.

Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir, na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali, um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém, sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes fornira com tão saboroso e farto repasto:

– Ô Gambá, você não vai comer não?

Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo alegou:

– Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava cozinhando. Tô legal...

– Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você chegou não comeu nada, e sempre come bem...

– Que nada, meu cumpadre, comi bastante em casa mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu, bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.

Ao longo de todo o seu período de permanência ali no “estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto, um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo) era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.

Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o embriagado Gambá, que passara da conta habitual valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida, emendou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de porco...

Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande e encardida panela, estando todos já afogados nos humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o argumento de Ciço:

– Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem um pedaço...

Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva eu diria, brincadeira:

– Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne que preparei para vocês não era bem das galinhas da mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que matei ali na Ponte Caída.

E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença pudessem manifestar suas máscaras características na audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel entregou a sordidez de alguns detalhes:

– Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na panela de pressão! – completou, explodindo numa gargalhada carnavalesca.

Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo. Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma grande brincadeira.

Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a única porta do casebre...

O que se seguiu foi uma prolongada sessão – desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel, medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais.

Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou forças para o linchamento; talvez do próprio Satã. Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na rua de chão.

Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais deveria passar pela rua principal do Palha Seca – justamente o único caminho que ele tinha para ir trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão dura – mas saborosa, alguns depois o confessaram – carne.

Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e anos andando não dois, mas (agora na direção contrária) coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula, onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.

Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma, nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de humor de seus antigos companheiros de jogatina...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 15


 

Nilto Maciel (Um Sonho Cartesiano)


O capítulo mais soberbo de Sonhos Ilustres, de Domenico Moravia, talvez seja aquele dedicado ao filósofo Descartes.

O autor nem sempre informa onde teria colhido o material para a elaboração de sua interessante e volumosa obra. Porém são os livros de memória a fonte principal de sua pesquisa. Não no caso de René Descartes.

Estranhamente, Moravia duvida da autenticidade do sonho cartesiano inserido e analisado em seu livro. Teria sido produto dos dons de ficcionista do pensador francês.

Para reforçar sua tese, o escritor noticia a existência de um romance deixado por Descartes. Inacabado embora, teria a mesma importância do Dom Quixote. Um exagero, certamente.

O livro de Moravia tem causado muita discussão. Chamam-no até de embusteiro, apesar da grandeza de Sonhos Ilustres.

Na verdade, é crença generalizada que o polêmico italiano inventou o tal sonho de Descartes. Se não, subtraiu a “história” das mãos de outro.

Porém a história da “criação” do sonho deixa de ter qualquer importância diante dele mesmo.

Resumidamente, é ele assim:

Descartes e outra pessoa conversavam. Ele falava, ela ouvia. Um aposento cheio de luzes e brilhos. Parecia um salão de palácio.

Quando a outra pessoa falou, o filósofo compreendeu finalmente tudo: conversava com a jovem rainha Cristina. A filha de Gustavo Adolfo, o falecido rei da Suécia.

Além deles, não havia mais ninguém no salão. A não ser as quase vivas figuras dos quadros colados às paredes. Maravilhas de Botticelli, Rembrandt, Rubens e outros.

Recordava Descartes episódios de sua infância. A casa onde nascera, os pais, Touraine. Sim, apesar de conhecer quase toda Europa, não conseguia esquecer Touraine.

A rainha ria. Seu riso, porém, era de deboche. Ora, Descartes só podia estar fantasiando. Deixasse daquilo. Mentir não ficava bem para um filósofo. Ela sabia perfeitamente nunca ter ele deixado a França. Nem Touraine.

Nesse ponto da narração, Domenico Moravia discorre sobre a Suécia dos séculos passados, esboça um retrato político e intelectual de Cristina e se refere à amizade dela com Descartes.

 No sonho, o francês, aborrecido, punha-se a passear pelo salão. As palavras reais o feriam e contrariavam. Devia ou não devia reafirmar que conhecia quase toda Europa? Talvez fosse mais cauteloso mudar de assunto. Sim, a rainha merecia seu respeito, sua amizade.

Acalmado, voltava ao sofá. Aquelas luzes o enfadavam. E a outra pessoa por que se calara? Buscava-a com os olhos. A pessoa continuava no mesmo lugar. Olhava com atenção para ela. Tratava-se, então, de Richelieu.

Explica Moravia não ter havido a transformação de uma personagem em outra. Igualmente não teria ocorrido a substituição física da rainha pelo cardeal. Na verdade, é como se Descartes estivesse sempre a conversar com Richelieu.

De fato, a conversa continuava a mesma de antes. Reatava-se. O outro reafirmava nunca ter Descartes saído de Touraine. E ia mais além: vivera até aquele dia preso na casa de seus pais.

Para não dizer grosserias, o filósofo se punha a andar pelo salão. Talvez Botticelli o acalmasse. Ora, lembrava-se muito bem das longas viagens pela Europa. Não podia esquecer os anos de estudos no colégio de La Flèche.

Como se ouvisse seus pensamentos, Richelieu o chamava de mentiroso. Jamais estudara com os jesuítas. Tudo invencionice. Além do mais, não sabia nada. Um falso pensador.

Disposto a mudar a opinião de seu interlocutor, René Descartes voltava ao sofá. E dava com a presença de Galileu. E era como se estivesse desde o início do sonho a conversar com este. No entanto, nem parecia o amigo de antes. Como ousava duvidar de sua sabedoria? Toda Europa já conhecia suas obras. Ou não lera ainda nada de sua autoria? Buscaria os livros.

Galileu ria, debochava de René. Não acreditava numa só palavra dele. Nunca escrevera nada. Nem sequer cartinhas familiares.

Enfurecido, Descartes corria a uma estante, arrebatava alguns livros e os jogava aos pés do outro. Eram tratados de sua autoria, escritos e publicados em latim.

Ria novamente Galileu. Aqueles livros não traziam nenhuma letra. Tudo em branco. Simples papéis.

Do meio do salão, Descartes fitava Francis Bacon, e não mais Galileu Galilei.

Como das outras vezes, não percebera qualquer transformação dos personagens. Nem também a substituição de um por outro. Como se estivesse durante todo o sonho a dialogar com Bacon.

Olhos fitos no inglês, René Descartes batia no peito e dizia ser um grande filósofo. Além das obras monumentais já escritas, pretendia escrever outras. Uma delas sobre a alma.

Discursava, a passear pelo salão. De vez em quando olhava, ufano, para o outro. O mundo inteiro ainda dependeria de suas ideias.

Falava, quase aos gritos.

Em dado momento, porém, o outro também gritou. Descartes assustou-se, parou no meio do salão. Olhou. O rei Gustavo Adolfo parecia enfurecido.

Segundo Domenico Moravia, também neste momento Descartes não percebeu qualquer transformação ou substituição de personagem. Como se, desde a rainha Cristina, estivesse a falar com Gustavo Adolfo.

Ordenava o rei silêncio. Nenhum homem, por mais filósofo que fosse, poderia jactar-se de sabedoria.

René Descartes talvez nem homem fosse. Ou não passasse de uma figura, como as de Botticelli.

Calado e parado diante do rei, o filósofo ouvia insultos. Talvez Descartes nem existisse.

Enquanto Gustavo falava, ele tentava olhar para as luzes, os quadros colados às paredes. Porém não conseguia mover-se, sequer dar um passo.

Tentava falar, mas sua língua parecia presa aos dentes.

E pensar?

Nem isso conseguia mais.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 3


A SÍNTESE DA VIDA


Nascer, sofrer, morrer, - eis a vida em resumo!
O mais é sonho vão e esperança falida,
ilusão que se esvai, como se esvai o fumo,
como as juras de amor de uma mulher perdida!

O que importa é viver, mantendo a alma a prumo,
nos dias de ascensão, na fase de descida.
Nascer, sofrer, morrer, - eis da existência o rumo,
e a síntese fatal da misérias da vida!

Feliz é quem, no afã de galgar o Infinito,
liberto Prometeu do Cáucaso maldito,
busca apoio na fé e abrigo na Esperança.

E feliz também é quem nada mais espera,
mas que, no apego ao Bem, insiste e persevera
em sempre desejar o que nunca se alcança!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A VIDA

A vida é qual deserto imensurável,
onde o Simum* veloz dos desenganos
faz da ilusão mais forte e mais durável
imensas dunas de infernais enganos.

É um cálido areal indecifrável
onde sofremos dias, meses, anos...
Lustros de dor por dia desfrutável,
horas de fé por séculos profanos.

Vida! Extertor de lágrima a sorrir!
Recordação de alguém reverberando
na alma do sonho que não quer partir.

Ânsia enorme de amor no amor surgindo.
Terna saudade que nasceu chorando
de uma esperança que morreu sorrindo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 
Simum = vento muito quente que sopra do centro da África em direção ao norte.
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O MUNDO E EU

Fui sempre triste assim! Mas não por mim, por tudo
qe de triste e de mau no mundo tenho visto.
Nos meus dramas pessoais quase sempre sou mudo,
mas vendo a alheia dor, calado não resisto!

Tal como um cavaleiro andante, sem o escudo,
de Quixote e de Sancho eu sou talvez um misto.
Da humana incompreensão suporto o golpe agudo,
e por amor ao Bem sou soldado de Cristo!

Detesto a prepotência e abomino a injustiça!
E embora crente em deus, mas faltoso na missa,
meu pobre coração, a fé defende...

Entre as mágoas que sofro e o alheio sacrifício,
se calo a minha dor, aumento o meu suplício,
se falo do que sinto, o mundo não me entende!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SER OU NÃO SER

(To be or not to be. That is the question! - Hamlet - Shakespeare)

Talvez que além da Vida e além da Morte,
lá nos confins remotos do Infinito,
se encontre solução para o conflito
entre o Ser ou não Ser da humana sorte!

Deuses de barro, esfinges de granito,
pirâmides e torres de alto porte,
preces de Paz, rugidos de Mavorte*,
templos pagãos e túmulos do Egito,

Do Ser e do não Ser eis o dilema!
O controverso e milenar problema
que desafia os crentes e os ateus...

O insondável mistério da existência,
e a mesquinhez da humana inteligência,
em gemidos de dor - clamam por Deus!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Mavorte = Marte, deus romano da Guerra.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 
 SHANGRI-LÁ

Eu tentei construir meu castelo de sonhos
na eterna Shangri-Lá que remoça e conforte,
num reino de esplendor,
onde jamais a dor,
como o corvo de Poe batesse à minha porta!

Eu tentei construir meu castelo dourado
junto de um lago azul, de ondas ternas e mansas,
com cisnes de alvas plumas,
brancos como as espumas,
e a imaculada cor da alma das crianças!

Eu tentei construir o meu lar de poeta
num recanto feliz de uma terra florida,
num país de delícias,
de sonhos e carícias,
onde não morre o amor, eterno como a vida!

Eu tentei construir o meu ninho de artista,
lá bem perto do Céu, na Shangri-Lá bendita,
onde somente há sonhos,
alegres e risonhos
como o rosto feliz de uma mulher bonita!

Eu tentei construir meu palácio encantado,
numa encosta ideal do País das Quimeras,
onde jamais se morre,
e a vida corre
no mágico esplendor de vinte primaveras!

Tudo, porém, foi em vão! Um sonho, querida,
que a alma me fez sangrar, cheia de desenganos.
Sonho louco de quem,
por muito querer bem
ousa sonhar além dos limites humanos!

Foi um sonho fugaz de errante beduíno,
que a contemplar no Céu a luz da lua cheia,
triste como um dervixe,
entre o fumo do haxixe
vai erguendo no ar seus castelos de areia.

Fontes:
Athos Fernandes. Ofir. 1977.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.

Solon Saldanha (Zé Carioca é octogenário)


Ele apareceu pela primeira vez em 1942, no filme Alô, Amigos. Mas na realidade fora gestado um ano antes, em 1941, durante viagem que Walt Disney e um grupo de desenhistas e animadores do seu estúdio fizeram ao Brasil. Eles ficaram no Rio de Janeiro, entre os meses de agosto e setembro, primeiro com o objetivo de divulgar o até então maior sucesso do grupo, que foi o filme Fantasia (1940), como também para conhecer melhor nosso país, uma vez que existia um projeto de alcançar maior penetração nos países latinos. Tanto que depois a turnê seguiu para a capital da Argentina, logo na sequência.

No retorno para os EUA foi criado o personagem brasileiro, para integrar a "Turma do Mickey". Inicialmente os desenhistas Norman Ferguson e Franklin Thomas, que foram encarregados da missão, apresentaram a sugestão de que ele fosse um tatu-bola. Depois terminaram optando pelo papagaio, acreditando que ele, sendo mais extrovertido e alegre, seria a personificação mais próxima do povo brasileiro. Isso porque concluíram que os adjetivos que identificavam melhor os cariocas que conheceram seriam simpático, feliz e festeiro, além de preguiçoso e malandro. Foram apenas esses dois últimos um tanto pejorativos, talvez porque a viagem se deu em época na qual o Rio de Janeiro era mais provinciano e não nos tempos atuais. Mesmo assim, os roteiristas da atualidade estão operando mudanças, reduzindo a malandragem e substituindo o seu caráter duvidoso por uma personalidade otimista, mesmo sendo ele um "ferrado na vida". Cativante a figura continua sendo.

Precisa ser destacado que aquele interesse manifestado pelos Estúdios Disney não foi fundamentado apenas na busca de consolidar mercados. Havia grande incentivo do governo do seu país, em termos de política externa, que o levava a subsidiar generosamente iniciativas dentro da "Política de Boa Vizinhança", que fora idealizada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, ele viria a falecer em 1945. Ela tinha como objetivo "fidelizar" o apoio dos países latino-americanos aos Estados Unidos, durante os conflitos da Segunda Guerra Mundial. Tanto que o filme produzido conta ainda com a participação de Gauchinho Voador (que representa a Argentina) e Panchito (personagem mexicano). Os três países de maior importância da região foram os contemplados.

No Brasil, Walt Disney manteve contato com Heitor Villa-Lobos e outras das nossas "celebridades intelectuais" daquela época. Mas se encantou mesmo com Paulo da Portela, um sambista que se destacou por muito tempo na cena carioca, tendo ele ajudado muito na construção do Zé Carioca. Assim, nos primeiros desenhos o papagaio apareceu de paletó, gravata e chapéu, como era característica de muitos sambistas, que com isso tentavam se livrar do estereótipo de marginal, que os acompanhava. O samba era criminalizado, assim como a capoeira e toda manifestação que descia do morro com os negros.

Depois de Alô Amigos, Zé Carioca voltou às telas ao lado de Carmem Miranda, em 1944, com Você já foi à Bahia?, que trouxe a música de Ary Barroso e João de Barro. E participou de alguns episódios de uma série de televisão apresentada nos EUA. Mas a verdadeira explosão mundial de sua popularidade ocorreu quando chegou aos quadrinhos. No início isso veio em tiras semanais, desenhadas por Bob Grant e Paul Murry, a partir de roteiros de Bill Walsh. Em todas as histórias Zé era aquele sujeito que escapa dos problemas cotidianos usando um "jeitinho", que ainda nos identifica pelo mundo afora. Foi nesse período que também apareceram seus companheiros de aventuras: a namorada Rosinha, o melhor amigo Nestor e o antagonista Zé Galo.

Aqui entre nós a valorização maior do personagem aconteceu durante a década de 1970, quando a Editora Abril passou a publicar histórias que eram produzidas por brasileiros. Apenas nessa época ele superou a "contaminação" que carregava devido à visão externa do nosso modo de ser. Isso se deve muito ao trabalho de Moacir Rodrigues Soares, que o assumiu ainda em 1973. Até 1990 o Zé era um fenômeno, estando ele presente em cerca de um terço da produção editorial: sozinho, vendia 70 mil revistinhas por semana. Hoje, afetadas principalmente pelo advento dos celulares e a mudança no foco de interesse do antigo público que consumia HQ, a queda foi brutal. O que não nos impede de continuar reverenciando esse agora senhor de 80 anos de idade, mas que permanece tão jovem quanto nossas memórias.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 01

 

1º Concurso de Trovas da Retomada da UBT-Seção São Paulo (Prazo: 31 de março de 2023)


A finalidade deste Concurso é a produção e divulgação da Trova. Para participar do mesmo, tenha em mente que só será considerada trova, um poema de quatro versos, todos heptassílabos (sete sílabas poéticas), contadas até a última sílaba tônica de cada verso, com sentido completo, rimando o terceiro com o primeiro verso e o quarto com o segundo (ABAB).

Permite-se até 02 (duas) Trovas inéditas por tema para todos os âmbitos e modalidades.

As Trovas devem ser enviadas no idioma português.

A palavra-tema do Concurso não precisa constar no corpo da Trova, mas a ideia deverá ficar
evidenciada.

MODALIDADES:

Lírica ou filosófica (L/F)

TEMAS (L/F):

Nacional / Internacional (Veteranos) = RESILIÊNCIA

Nacional / Internacional (Novos Trovadores) – RENASCER

Estadual – (Veteranos) = PERSISTIR

Estadual - (Novos Trovadores) = RESGATAR

Municipal – (Estudantil) – JOVEM/JUVENTUDE


NOVO TROVADOR – Entende-se por Novo trovador - aquele que até a data da divulgação do presente regulamento, não classificou em 03 (Três) concursos oficiais da UBT, em âmbito Nacional entre os 5 (cinco) primeiros colocados.

Envio por email:

CONCURSO NACIONAL

- Fiel Depositária – Regina Rinaldi

E-mail – reginarinalditrovadora@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

CONCURSO ESTADUAL

- Fiel Depositário – Jerson Brito

E-mail - jersonbrito.pvh@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

CONCURSO MUNICIPAL (Estudantil)

- Fiel Depositário – Alberto Valença Lima

E-mail - concursoubtestudantil2022@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

LEMBRETES:

1 - O tema, a trova, categoria, âmbito, nome, endereço completo, e-mail e telefone, deverão constar no corpo do email. NÃO ANEXAR ARQUIVO.

2 – Acima das trovas colocar o âmbito, o tema e a categoria

3 - Abaixo das trovas colocar NOME, ENDEREÇO COMPLETO, E-MAIL e TELEFONE COM O
DDD.

4 – Para o Concurso Municipal (só para estudantes do Município de São Paulo – SP), deverá ser
acrescentado aos dados acima, o nome do colégio e o do(a) professor(a) de português da(o)
participante.

Prazo = só valerão as trovas que chegarem até às 23h 59 do dia 31.03.2023.
******************
OBSERVAÇÕES:

1. As trovas recebidas por e-mail serão copiadas para o coordenador da Comissão Julgadora, sem o nome nem o endereço do concorrente.

a) O simples envio dos trabalhos autoriza a publicação das trovas que tenham sido classificadas pela Comissão Julgadora, e a aceitação tácita de todo este regulamento.

b) Trabalhos com palavras de baixo calão, pejorativas, preconceituosas, ofensivas, em qualquer contexto, serão automaticamente desclassificadas.

c) Não serão aceitas trovas escritas em caixa alta nem iniciando os versos com letra maiúscula, exceto o verso inicial ou em algum caso que justifique a maiúscula.

d) Só se aceitam rimas perfeitas*.

e) O não cumprimento de quaisquer dos itens acima descritos implicará na desclassificação automática da trova.
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* Rima perfeita: Em que há correspondência total de sons a partir da última vogal tônica, havendo repetição tanto dos sons vocálicos como dos sons consonantais.

Exs: falado/cantado; presente/ausente; particularidade/dificuldade; pior/major; diz/nariz; amanhã/afã

Pedro Aparecido de Paulo (Pétalas de Versos) 1


ANFITRIÃ SEM TETO


Que fazes tu, menina moça
na esquina da amargura,
belo corpo cinturado
uma elegante postura,
em todos lanças um olhar
de entusiasmo e ternura.

Gente que passa depressa,
nem nota a sua presença,
porém nem todos tem pressa,
percebem a sua existência.
Seu pensamento intercala
dividindo a consciência.

Deslumbra a sua magia,
tem no olhar a conquista,
malabarista da vida,
meio vulgar, meio artista,
um sonho um tanto estranho
de ser capa de revista.

A ignorância de uns,
de outros o mau olhado,
aqueles que a criticam
com olhares renegados,
ao fim de sua jornada
rende graças ao conquistado.
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MEU PAI, NA MEMÓRIA

Meu pai, que fatalidade!
É com imensa saudade
que me lembro de você,
há hora em que imagino
se existe o tal destino
tão difícil de entender!

Pai! Um dia do mês de julho,
você, com alegria e orgulho,
viu-me chegar a este mundo.
Bem sei que fui bem vindo,
foi um momento tão lindo
de um sentimento profundo.

Pai! Iniciei a vida...
Com sua mão estendida
guiou-me no bom caminho.
Caí, você me levantou,
os meus erros você perdoou,
nunca me deixou sozinho!

Pai! Sabe aquele dia
que, com imensa alegria
você via-me nascer?
Justamente, neste dia
com imensa tristeza e agonia,
eu via você morrer.
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O HOJE DO MEU AMANHÃ

Vendo você do outro lado,
num quadro imenso pintado
pelas mãos do Criador,
vejo o céu todo estrelado,
fico pasmo deslumbrado,
contemplo com muito amor...

Divagando pela vida
vejo a pessoa querida,
na nuvem branca que passa,
vejo você… pai querido,
que por você fui nascido,
quem tem você não fracassa..

Vejo a luz do seu olhar,
que parece se orvalhar
no sereno matinal.
Hoje eu vi você partindo,
mas com o semblante sorrindo,
a um passeio triunfal...
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SORTE OU DESTINO

Não sei se existe o destino,
mas há coisas engraçadas,
é muito bom ser honesto,
não fazer coisas erradas...

Faço juízo da vida,
tentando entendê-la a fundo,
mas parecem brincadeiras
o que acontece no mundo...

Quando meu pai se casou,
foi uma festa bonita
e recebeu como a esposa
a minha mãe Benedita...

Hoje meu pai está velho,
parece que a vida é escrita,
três mulheres cuidam dele
por sorte três Beneditas...
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TEMPO DE CRIANÇA

Pai! Esta cadeira será sempre sua,
e a vida continua,
e o barco vai rodando,
nem veleiro pouco vento
nem motor roncando lento
mas você vai continuando...

Pai! O tempo nos ensina,
nesta vida de rotina
a seguir a vida afora,
estanca como riacho,
por cima ou as vezes por baixo,
estoura e vai-se embora...

Pai! De forma até engraçada
a lembrança eternizada
fica gravada na mente,
o tempo lindo da infância
vai ficando na distância
corroendo dentro da gente.

Pai! Lembro-me da capelinha,
pequena bem simplesinha
e um sininho a tocar.
A fé era tão imensa
Deus Pai quanta recompensa
íamos todos rezar...

Pai! Você com sua vontade
nos ensinou a verdade
neste mundo turbulento.
Quando criança esta vida
é tranquila e colorida
mas é só neste momento...

Pai! Eu ia a escolinha,
modesta, bem pequenina,
aprender o be-a-bá,
pensando um dia quem sabe
irmos morar na cidade
e a faculdade cursar...

Pai! Pensava eu ser um doutor
a curar a imensa dor
de alguém que estivesse sofrendo,
mas nem você eu curei,
sua dor não aliviei,
e eu vi você morrendo...

Pai! Desculpe meu fracasso,
pois tudo fiz, nada faço,
que se perco a esperança
não posso retroceder
tenho que tentar viver
como nos bons tempos de criança…

Fonte:
Pedro Aparecido de Paulo. Pedras e pétalas. Maringá/PR: Ed. do Autor, 1995
Livro enviado pelo poeta.

Mia Couto (As cartas)


Marcelo foi transferido para Mutarara, cidade que ficava para além de todo outro lugar. A mulher, Nurima, ficou sozinha, tomando conta das coisas e da restante vida. A espera é uma tecedura, a gente cria presenças com materiais de ausência. Os dedos de Nurima desinventavam dias, em desconto de saudades. A esposa: habituada, não habitada.

Até que, uma certa tarde, chegou de Mutarara a inesperada visita. Era Florlinda, familiar sem parentesco certo. Entrou, sentou, espraiou aqueles silêncios que antecedem as grandes falas. Depois, disse:

— Quero lhe avisar: há cartas.

Nurima não entendeu mas aparentou impavidez. Não é de bom tom reclamar faltas de entendimento. Mandam as boas normas que se aguarde, pondo silêncios em fila indiana. Nurima esperou que a visitante se explicasse. Florlinda, de fato, prosseguiu: que havia cartas circulando entre as mulheres de Mutarara. Essas cartas relatavam sobre Marcelo, o solitário marido.

— Marcelo? E o que dizem essas cartas?

— Nem deseje saber, Nurima. Essas cartas são uma ameaça para a senhora e sua pessoa.

Então, ela versou sobre o conteúdo das missivas: pedia-se nesses escritos que as mulheres, as mais belas de Mutarara, amassem o dito Marcelo. Pedia que o tratassem nas palmas e nas mãos, que lhe adocicassem a vida e lhe entornassem as mais melosas ternuras. Nurima enxugou a garganta mas não exibiu gesto nem desgosto. No fim de uma pausa, inquiriu:

— E Marcelo, ele sabe dessas cartas?

— Do que posso testemunhar, a vida dele é serviço e casa, tudo a horas pontuais.

E as duas, tu-aqui, tu-ali, se colocaram a par. O tempo se antecipou e a noite encerrou a conversa. Nurima, na despedida, deixou sussurrar uma ansiedade:

— Me avise, se encontrar caso disso.

— Vou pensar numa maneira de travar essas cartas. Fique tranquila.

Nurima lhe segurou o pulso querendo, quiçá, confessar alguma intimidade. Mas ela ficou às portas do corpo, sem chegar a dizer nada. E a visitante se adentrou na noite.

Passaram-se semanas e Florlinda revisitou a amiga. Beberam chá, pilaram assuntos de nenhuma importância. Fingiam não haver um tema, ignoraram o nó em suas gargantas. Até que Florlinda, resoluta, lhe expôs o seu plano para eliminar a pouca vergonha de tais cartas. Ela relatou suas maquinações, divertindo-se com detalhes.

Nurima não acompanha o entusiasmo da amiga, estranhamente ausente. Até que interrompeu Florlinda:

— Não faça nada disso.

— Mas, então, e Marcelo, seu marido?

— Não faça nada, lhe peço... Deixe as cartas sossegadas.

— Mas como posso deixar?

— Eu lhe explico. Fui eu que escrevi essas cartas.

— Você, Nurima?

— Sim, fui eu que as envelopei e as enviei, por mão de um qualquer miúdo, a todas essas mulheres.

— Você? E porquê fez isso?

— Porque o meu Marcelo é um homem bom. Tão bom, tão doce que não merece castigo de ausência.

— E se ele escorregar com alguma dessas inavergonhadas?

— Se isso acontecer ele irá descobrir, no final, que nenhuma mulher lhe ama tanto como eu.

Florlinda está indeferida para juízo. Ela despondera, sacode a cabeça, encolhe os ombros. À despedida, confessa:

— Nurima: quero dizer uma coisa. Mas prometa que não se zanga.

— Zangar? E porquê?

— Porque eu fui essa mulher, a primeira a receber a carta fui eu. E eu, Nurima... nessa noite mesmo, eu dormi com seu marido.

— Eu já sabia, Florlinda. Soube isso desde sua primeira visita.

— Eu vim porque.. .

Nurima, maternamente, lhe cola o dedo sobre os lábios. Um mando de silêncio, para que a outra não prossiga. Mas tudo desempenhado com carinho como se não restasse senão oculta gratidão.

— Eu sei por que você veio...

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

domingo, 16 de outubro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 29

Livro enviado pelo autor
 

Rubem Braga (As luvas)


Só ontem o descobri, atirado atrás de uns livros, o pequeno par de luvas pretas. Fiquei um instante a imaginar de quem poderia ser, e logo concluí que sua dona é aquela mulher miúda, de risada clara e brusca e lágrimas fáceis, que veio duas vezes, nunca me quis dar o telefone nem o endereço, e sumiu há mais de uma semana. Sim, suas mãos são assim pequenas, e na última noite ela estava vestida de escuro, os cabelos enrolados no alto da cabeça. Revejo-a se penteando, com três grampos na boca; lembro-me de seu riso e também de suas palavras de melancolia no fim da aventura banal. Eu quis ser cavalheiro, sair, levá-la em casa. Ela aceitou apenas que eu chamasse um táxi pelo telefone, e que a ajudasse a vestir o capote; disse que voltaria...

Talvez telefone outro dia, e volte; talvez, como aconteceu uma vez, entre suas duas visitas, fique aborrecida por me telefonar em uma tarde em que tenho algum compromisso para a noite. “A verdade” — me lembro dessas palavras de uma tristeza banal — “é que a gente procura uma aventura assim para ter uma coisa bem fugaz, sem compromisso, quase sem sentimento; mas ou acaba decepcionada ou sentimental...” Lembrei-lhe a letra de uma velha música americana: “I am getting sentimental over you.

Ela riu, conhecia a canção, cantarolou-a um instante, e como eu a olhasse com um grande carinho meio de brincadeira, meio a sério, me declarou que eu não era obrigado a fazer essas caras para ela, e dispensava perfeitamente qualquer gentileza e me detestaria se eu quisesse ser falso e gentil. Juntou, quase nervosa, que também não lhe importava o que eu pudesse pensar a seu respeito; e que mesmo que pensasse o pior, eu teria razão; que eu tinha todo o direito de achá-la fácil e leviana, mas só não tinha o direito de tentar fazê-la de tola. Que mania que os homens têm...

Interrompi-a. Que ela, pelo amor de Deus, não me falasse mal dos homens; que isso era muito feio; e que a seu respeito eu achava apenas que era uma flor, um anjo “y muy buena moza”.

Meu bom humor fê-la sorrir. Na hora de sair disse que ia me dizer uma coisa, depois resolveu não dizer. Não insisti. “Telefono.” E não a vi mais. Com certeza não a verei mais, e não ficaremos os dois nem decepcionados nem sentimentais, apenas com uma vaga e suave lembrança um do outro, lembrança que um dia se perderá.

Pego as pequenas luvas pretas. Têm um ar abandonado e infeliz, como toda luva esquecida pelas mãos. Os dedos assumem gestos sem alma e todavia tristes. É extraordinário como parecem coisas mortas e ao mesmo tempo ainda carregadas de toda a tristeza da vida. A parte do dorso é lisa; mas pelo lado de dentro ficaram marcadas todas as dobras das falanges, ficaram impressas, como em Verônica, as fisionomias dos dedos. É um objeto inerte e lamentável, mas tem as rugas da vida, e também um vago perfume.

O telefone chama. Vou atender, levo maquinalmente na mão o par de luvas. A voz é de mulher e hesito um instante, comovido. Mas é apenas a senhora de um amigo que me lembra o convite para o jantar. Visto-me devagar, e quando vou saindo vejo sobre a mesa o par de luvas. Seguro-o um instante como se tivesse na mão um problema; e o atiro outra vez para trás dos livros, onde estavam antes.

Santiago, outubro de 1955.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.