sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Blade Runner, O Caçador de Andróides


Direção do Filme: Ridley Scott (1986)
Baseado do livro de Phillip K. Dick, em 1968, com o nome de Do Androids Dream of Eletric Sheep?

Eixo Temático

O desenvolvimento da sociedade do capital é o desenvolvimento ampliado de suas contradições sociais, seja no campo da técnica e da tecnologia, seja no da sociabilidade e subjetivadades humanas e também do ecossistema urbano-social. O estranhamento atinge o trabalho e a reprodução social, o que significa que desefetiva a memória e a identidade do homem, dilacerando seus referentes de espaço-tempo, comprimindo-os e imprimindo neles sua marca indelével. A manipulação de homens e coisas assumem dimensões cruciais. A sociedade burguesa hipertardia tende a se tornar uma imensa coleção de múltiplos objetos-mercadorias complexas criadas pelas novas tecnologias de engenharia genética. No limite, a produção de mercadorias atinge a produção de supostas inteligências artificiais e de objetos-andróides no limiar da hominidade. Na verdade, na medida em que não se abole o sistema do capital, ele tende a instituir formas sociais estranhadas mais desenvolvidas, abrindo um campo de hominização dessumanizada (o que é a própria bárbarie social).
.
Temas-chaves: técnica e tecnologia, capital e processo civilizatório, ecossistema social e contradições do capital, identidade e memória social, trabalho estranhado e tempo de vida.
Filmes relacionados: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “Metropólis”, de Fritz Lang; “2001-Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick; “IA - Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg; “Eu, Robô”, de Alex Proyas; “Gattaca- A Experiência Genética”, de Andrew Niccol.

Análise do Filme

Blade Runner, de Ridley Scott (1986), é um dos filmes cult da década de 1980, mesclando policial noir e ficção-científica na Los Angeles de 2019. Logo na tela abertura, uma apresentação do problema do filme: “No inicio do século XXI a Tyrel Corporation criou os robôs da série Nexus virtualmente idênticos aos seres humanos. Eram chamados de replicantes. Os replicantes Nexus 6 eram mais ágeis e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os Engenheiros genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da Terra como escravos em tarefas perigosas da colonização planetária. Após motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os replicantes foram declarados ilegais sob pena de morte. Policiais especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar qualquer replicante. Isto não era chamado execução, mas sim ‘aposentadoria’.”

A seguir, aparece a data (e local) da trama de Blade Runner – Los Angeles, novembro de 2019. Pelo visto, o filme possui uma estrutura narrativa simples. Rick Deckard (interpretado por Harrison Ford), é caçador de replicantes, ou blade runner, destacado para “aposentar” um grupo de replicantes Nexus 6 que fugiram do seu local de trabalho. Sob o comando do replicante Roy Batty (interpretado por Rudger Hauer), os Nexus 6 buscam prolongar seu tempo de vida. Apesar de serem tão ágeis, fortes e inteligentes quanto qualquer ser humano, os replicantes têm apenas quatro anos de vida.

Ao lado desta trama principal, podemos destacar uma trama secundária: o envolvimento afetivo de Deckard com Rachael (interpretada por Sean Young), replicante, secretária de Tyrel, dono da poderosa corporação industrial produtora dos Nexus 6 (Tyrel diz: “Nossa meta é o comércio. Nosso lema é ‘mais humanos que os humanos’”).

Blade Runner é um filme de caçada humana, onde, de certo modo, todos buscam algo: Deckard busca encontrar os replicantes; mas percebemos também que ele busca a si próprio. E persegue o amor de Rachael, que está imersa na busca de sua identidade inexistente. E os replicantes Nexus 6 buscam desesperadamente ter mais tempo de vida. Enfim, Blade Runner é uma pequena odisséia de homens e mulheres, humanos e pós-humanos, em busca da sua identidade perdida.

É um filme de ação intensa que contém uma profunda reflexão filosófica sobre o problema da identidade do homem, debilitada pelo descentramento do sujeito humano diante da vigência das tecnoestruturas burocrático-corporativas do mundo do capital. É o caso de Deckard, individuo perdido, solitário, obrigado pelos dispositivos policiais e corporativos a “aposentar” os replicantes (apesar de ter-se aposentado, no sentido usual do termo, Deckard é convocado a utilizar sua habilidade de investigador policial, ou melhor de blade runner, para caçar os Nexus 6). Sua vida pregressa é obscura, escondendo talvez algo incriminador, pois percebe-se que o convencimento de Deckard é um jogo de chantagem feito pelo chefe de polícia de LA. Como diz ele: “Conheço o jogo meu chapa. Se não topar, está acabado.”)

Enfim, o cenário distópico de Los Angeles em 2019 é opressivo, onde a individualidade humana é tão-somente uma sombra molhada pela constante chuva negra, decorrente de um ecossistema devastado. Como construção histórica, a identidade do homem como sujeito da modernidade prometeica, encontra-se irremediavelmente obliterada. A distopia noir de Blade Runner tende a negar, em si, qualquer identidade do homem consigo mesmo. O sistema do capital, com suas derivações destrutivas no plano do ecossistema, coloca no centro do cosmo, o fetiche das coisas, isto é, as tecnoestruturas urbano-corporativas com seus aparatos policiais e de manipulação midiática, como, por exemplo, o out-door móvel que preenche a paisagem superior da cidade e insiste em anunciar as maravilhas de paraíso distante.
.
Diz, logo no inicio do filme, a mensagem publicitária: “Uma nova vida espera por você nas colônias interplanetárias. A chance de começar de novo numa terra dourada de oportunidades e aventuras! Vamos para as colônias!”. E a mensagem do grupo Shimago-Dominguez Corporation conclui dizendo: “Ajudando a América a entrar no Novo Mundo”.

Pelo que se percebe, a crise de identidade não é apenas de homens e mulheres, de humanos e pós-humanos, mas a crise de identidade atinge inclusive o próprio Estado-nação, ou seja, os EUA, onde é perceptível a presença marcante (e dirigente) de estrangeiros (japoneses e chicanos). Na verdade, os EUA não são mais o Novo Mundo, mas sim as colônias interplanetárias criadas pelas corporações industriais (com certeza, de acesso seletivo e excludente).

Em Blade Runner, logo no inicio, são destacadas as luzes de néon de propagandas das corporações industriais, emoldurando um cenário urbanóide tão opressiva quanto a chuva ácida persistente e as vias urbanas cheias de transeuntes, um imenso bazar desterritorialziado, tecno-asiático, de incrustações mafiosas, com bairros decadentistas, com prédios abandonados ocupados por ateliers hightech de fornecedores de ponta das corporações industriais (por exemplo, a oficina hightech de J. F. Sebastian está num prédio abandonado, local em que ocorrerá o duelo derradeiro entre Deckard e o replicante Roy). Na verdade, a Los Angeles de 2019 é uma imensa Chinatown, de homens e mulheres incapazes de migrar para o paraíso distante, outras terras privilégio territorial da classe dos capitalistas e congêneres.

É interessante que, em Blade Runner, a clivagem de classe assume, de forma radical, dimensões sócio-territoriais: os homens estranhados, despossuídos, embora proprietários de força de trabalho ou de mercadorias que vendem no bazar global, de fato, herdarão a Terra, mas uma Terra devastada enquanto ecossistema, pela lógica do capital predador. Estamos diante do resultado supremo da sociedade de classe. Diante de um espaço territorial exaurido no decorrer de uma modernização predatória, os capitalistas decidem “curtir” sua vida (e uma suposta identidade humana) em paraísos distantes,”...terra dourada de oportunidades e aventuras”, colônias espaciais, artifícios urbano-sociais, servidos por uma coorte de replicantes servis, novos servos pós-modernos, êmulos funcionais de homens e mulheres (a desterritorialização do capital se expressaria na própria interversão do Lar em Terra Estrangeira, como salientamos acima – a Los Angeles de 2019 não parece ser a América e os que habitam a Terra parecem ser meros estrangeiros). O capital tende sempre a criar novas fronteiras de colonização para si, mesmo que possuam o sentido ilusório de um “Novo Mundo”. O ilusionismo social é a base da subjetivação estranhada.
.
Mas a identidade humana é debilitada não apenas pelo cenário distópico da Los Angeles de 2019, com seu urbanismo opressor e sua humanidade non-sense (o que é o homem sem a utopia?), mas pelo próprio desenvolvimento tecno-científico e da engenharia genética que criou os novos objetos vivos, os replicantes, imagens perfeitas do homem (ou como disse Tyrell: “mais humano que os humanos”), objetos técnicos complexos que desencantam irremediavelmente qualquer idéia de uma unicidade humana (Walter Benjamin já demonstrou que a reprodutibilidade técnica tende a ocasionar a perda da aura da obra de arte e diríamos nós, da própria vida, no caso de replicantes).

Os avanços da técnica tendem a desencantar, mas, de forma contraditória, afirmam a identidade do homem, como iremos verificar no decorrer de Blade Runner. Podemos dizer que é através da experiência de vida dos replicantes que tende a ocorrer a apreensão da identidade perdida, ou em processo de perda, do homem. Na verdade, o homem se encontra através de seus objetos vivos (uma contradição em termos). É no decorrer desta busca desesperada dos Nexus 6 que conseguimos apreender o significado (e valor) da experiência humana.

Ora, nós temos o que eles buscam: tempo de vida e memória. Esta é base da hominidade em Blade Runner. Mas o que nós temos é passível de debilitação sob o sistema do capital. O tempo de vida se interverte em tempo de trabalho e a memória se degrada por conta da presentificação crônica instaurada pelo sócio-metabolismo do capital.

Em Blade Runner, os replicantes, embora não sejam do gênero humano, mas sim objetos técnicos complexos, produtos do trabalho humano, da engenharia genética e de seus avanços fantásticos, reivindicam um atributo elementar da hominidade: tempo de vida. O tempo é o campo de desenvolvimento humano, já destacava Marx. Terem apenas quatro anos de vida, como os Nexus 6, é muito pouco para inteligências ágeis e complexas que sonham alcançar a almejada hominidade.

É claro que tal discrepância entre potencialidades de desenvolvimento e tempo de vida é dilacerante. A busca por mais tempo torna-se uma “estranha obsessão”. Tyrel reconhece tal dilema dos replicantes quando diz a Deckard: “...eles são emocionalmente inexperientes, têm poucos anos para coletar experiências que nós achamos corriqueiras. Fornecendo a eles um passado criamos um amortecedor para sua emoção e os controlamos melhor.”

Na verdade, o objetivo de Tyrell é controlar sua criação, os Nexus 6, evitando que tal “estranha obsessão” signifique motins (como ocorreu com os seis replicantes “caçados” por Deckard). A manipulação da memória é capaz de amortecer tal sofrimento psíquico e controlar suas disposições insurgentes. Ao fornecer um passado para os replicantes, a Tyrell Corporation manipula sua memória e os controla melhor. É interessante a sugestão do filme Blade Runner em considerar a manipulação da memória através da atribuição de um passado imaginário, prática intensiva dos dispositivos midiáticos do sistema do capital, como uma forma de controle social.

Mas a ciência humana de Blade Runner está imersa num paradoxo (o paradoxo de Blade Runner): ainda não conseguiu compatibilizar vida intensa e maior inteligência com maior tempo de vida. Ao reivindicar mais tempo de vida (“o criador pode consertar a criação?” – pergunta o Nexus 6), o replicante Roy ouve de seu criador Tyrel o seguinte: “Fazer alterações na evolução de um sistema orgânico é fatal. Um código genético não pode ser alterado depois de estabelecido. Quaisquer células que tenham sofrido mutações de reversão dão origem a colônias reversas, como ratos abandonando o navio...” E Tyrel conclui: “A luz que brilha o dobro arde a metade do tempo.

O diálogo entre Roy e Tyrell é uma das cenas mais significativas de Blade Runner. Expressa o lancinante paradoxo de Blade Runner (diz Tyrel: “Você foi feito o melhor possível. Mas não pode durar”). É a suprema contradição entre o desenvolvimento complexo do processo civilizatório e das forças produtivas do trabalho e a forma social do capital. É uma aguda injustiça ter tanta inteligência e intensa ânsia de viver e tempo de vida tão curto. Na verdade, os replicantes atingiram, tal como Hal 9000 em 2001-Uma Odisséia no Espaço, o limiar da hominidade. E tal como Hal 9000, se rebelam e são “desligados” (ou “aposentados” – no jargão da Tyrel Corporation).

Ora, Roy (e Tyrell) estão diante de um limite objetivo da engenharia genética (como ele expressou no diálogo acima). É claro que Tyrell está justificando a impossibilidade de alterar o código genético de Roy e de seus amigos replicantes. O que não significa a impossibilidade de altera-lo para as demais gerações de Nexus 6 (a reivindicação dos replicantes insurgentes em Blade Runner é meramente contingente – eles querem mais tempo de vida para si e não propriamente para a classe dos replicantes). Insatisfeito com Tyrell, Roy mata seu criador.

O drama dos replicantes é o drama humano. Em Blade Runner, como já destacamos, é através do drama de seus objetos técnicos inteligentes que apreendemos a tragédia humana. Ao ouvir de Tyrell que não podem obter um tempo de vida extendido, os Nexus 6 colocam-se diante de uma impossibilidade concreta dada pelo estágio de desenvolvimento da engenharia genética. Existe, deste modo, um limite técnico – mas perguntaríamos: é apenas um limite técnico ou tecnológico?

Nesse caso, merece a distinção entre técnica e tecnologia, onde a tecnologia é a forma social da técnica. E numa situação de contradição aguda entre forma social do capital e desenvolvimento humano humano-genérico, a própria tecnologia colocaria limites irremediáveis à técnica. Eis mais uma determinação da tragédia dos Nexus 6.

Enfim, não é suficiente o “cogito ergo sum” (como disse a replicante Pris para J.F. Sebastian: “Penso, Sebastian, logo existo”). Ou seja, não basta apenas “pensar para existir” (a referência sarcástica à famosa frase de Descartes sugere uma critica do racionalismo cartesiano, base da filosofia do sujeito e da civilização do capital). Estamos diante de uma aguda contradição: o homem demonstrou ser capaz de dar a vida, mas não conseguiu ainda ser capaz de dar-lhe um sentido. Ou melhor, o homem ainda não se tornou capaz de constitui um campo de desenvolvimento humano, onde a vida possa ser plena de sentido. Os Nexus 6, em seus curtos quatro anos de vida útil, estão condenados a sofrer de forma infinitamente intensa esta experiência trágica. Talvez nós, homens e mulheres, possamos sofrê-la de forma mitigada.

Os replicantes podem ser considerados a síntese intensa da tragédia humana. É o que a biotecnologia complexa de Blade Runner conseguiu demonstrar. A morte de Tyrel é uma morte metafísica. A cena do criador sendo dilacerado pela própria criatura é uma das mais significativas cenas do cinema do século XX. É um gesto supremo de insatisfação existencial. É um gesto totalmente absurdo, como a própria experiência de ser replicante em Blade Runner. Ao esmagar o cérebro de Tyrell, Roy dilacera (e contesta) a perversidade da inteligência humana.

Em Blade Runner, como salientamos acima, percebemos a aguda contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas do homem, capaz de criar vida inteligente complexa, e as relações sociais capitalistas imersas na lógica do controle do tempo e do tempo restringido em função da utilidade do capital. Mas é importante destacar o seguinte: a incapacidade da ciência e da técnica da Tyrell Corporation em extender a vida dos replicantes não é apenas um dado objetivo, mas é algo socialmente determinada pelo sistema do capital.

Como dissemos, seria impossível alterar o sistema orgânico de Roy, por exemplo, para garantir-lhe mais tempo de vida; mas nada impediria que novas gerações de Nexus 6 pudessem ter um tempo de vida mais extendido. O que sugere que a afirmação de Tyrell de que “a luz que brilha o dobro arde a metade do tempo” é tão-somente uma afirmação ideológica (Pris, em certo momento num diálogo com J.F. Sebastian, chegou a dizer: “Não somos computadores, Sebastian, somos seres vivos” – negando, portanto, o caráter fetichista dos replicantes).

Enquanto mercadorias complexas, os replicantes estão submetidos à lei do valor. Portanto, devem ter um tempo de vida útil restringido, principalmente quando, na Los Angeles de 2019, deve-se estar sob a vigência plena da tendência decrescente de queda da taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, como observa Mészáros. Deste modo, mesmo não o sabendo, não é apenas contra a perversidade dos limites objetivos da ciência e da técnica da Tyrell Corporation que se revoltam os replicantes, mas contra a lei do valor e a lógica contraditória do capital, que frustra as promessas de uma vida plena de sentido, seja para homens, seja para os replicantes Nexus 6, numa etapa avançada do processo civilizatório.
.
É interessante observar que um instrumento capaz de identificar os replicantes Nexus 6 é um aparelho de leitura da íris dos olhos. Um detalhe: a presença do olhar em Blade Runner é marcante, não apenas pelo fato dos replicantes serem identificados através da análise de sua íris, mas pela cena de abertura do filme, que mostra um close-up magistral dos olhos de Deckard contemplando o cenário sombrio de Los Angeles. Em sua íris se reflete a distopia da América. Na verdade, como se diz, a imagem dos olhos é expressão da “janela da alma”, da subjetividade avassalado do homem diante do sistema do capital. A presença deste olhar que ocupa a extensão da tela é marcante também em “2001 – Uma Odisséia no Espaço”. Assim como sugerimos uma aproximação entre os Nexus 6 e HAL 9000, podemos fazer o mesmo entre Deckard e Frank, personagem do filme de Stanley Kubrick.

Através de um teste de perguntas e respostas e do aparelho de leitura da íris dos olhos, utilizada nas sessões de interrogatórios pelos policiais blade runner, se busca verificar não apenas relatos de memória, mas a coerência das respostas dadas (o que sugere uma atitude-padrão no mundo social de Blade Runner). “É um teste criado para provocar uma resposta emocional”, como observa o blade runner. Estamos diante de um instrumento de aferição da socialidade e da consciência coletiva, de valores e atitudes sociais politicamente corretas (no sentido durkheiminiano). O que significa que, no mundo social de Blade Runner, a identidade humana é constituída não apenas por um lastro de memória pessoal, mas por um arcabouço de socialidade e de memória coletiva, background de reações emocionais (e lingüísticas) previsíveis.

Ora, os replicantes não possuem tais lastros da experiência humana. Aliás, podem até possui-las, mas são meras próteses, implantes assumidos de outros homens e mulheres. Por exemplo, a experiência de memória de Rachel é um implante da experiência de vida da sobrinha de Tyrell (Rachael chega a dizer, imersa em crise de identidade impossível: “Não sei se sou eu ou a sobrinha de Tyrell”). Enfim, suas memórias pessoais não pertencem a si, mas são de outrem (Deckard diz para Rachael: “... não são suas memórias, são de outra pessoa”). Eis um agudo estranhamento dos replicantes. Eles não escolheram suas memórias. Mas, afinal, quem as escolhe? – como poderia nos dizer Gaff (o policial, interpretado por Edward James Olmos).
.
Deste modo, Rachael está diante de certo estranhamento. Ela sente-se profundamente incomodada com sua condição replicante. É próprio da sua natureza, ser incapaz de possuir memória de vida pessoal única. Para ela, a memória é um simulacro expresso em imagens fotográficas. Na verdade, Rachel, como o mundo midiático de Blade Runner, está totalmente imersa num mundo de imagens fotográficas (basta verificar, por exemplo, os detalhes do escritório do chefe de policia de Los Angeles que conversa com Deckard, logo no inicio do filme e do próprio apartamento de Deckard – a presença de inúmeros quadros de fotografias é marcante, o que pode nos levar a refletir: se seriam eles todos replicantes; ou será que são meros homens em processo de desesfetivação de sua identidade humana pela corrosão da memória pessoal ou pela manipulação avassaladora de suas experiências de vida passada?).

Mas, as fotografia da replicante Rachael são necessárias para afirmar para si própria o simulacro de sua identidade pessoal. Na verdade, tais representações, ou melhor, signos, de memória, são quase uma extensão de si. O que se coloca, a partir da experiência de Rachael em Blade Runner é o seguinte: até que ponto nossas memórias pessoais são nossas e não representações (ou signos) protéticas, implantadas pelo complexo midiático vigente do sistema do capital, que produzem, por exemplo, nostalgia de um tempo não-vivido, mas percebido no plano imagético? Na verdade, como percebemos, o mundo social de Blade Runner é o mundo da aguda manipulação da subjetividade.

É a chegada de Deckard que irá problematizar a condição replicante de Rachael. Ele sente amor por ela. Por isso Deckard irá ensina-la a socialidade dos afetos, quase para dar completude ao simulacro de sua identidade humana. Nesse caso, o que parece ser, tende a se tornar.. De fato, ao agir como mulher, Rachael tornar-se-á mulher. Em Blade Runner, a afirmação da hominidade ocorre através da práxis auto-consciente, reflexiva e mimética.

Neste momento, estamos diante da pedagogia da práxis mimética, aquilo que Aristóteles considerava fundamental no próprio ato da educação. Em Aristóteles, a arte de aprender se reduz a imitar por muito tempo e a copiar por muito tempo. Diz Vergnières, a respeito da ética de Aristóteles: “Adquire-se tal ou qual disposição ética agindo de tal ou qual maneira. O caráter não é mais o que recebe suas determinações da natureza, da educação, da idade, da condição social; é o produto da série de atos dos quais sou o principio. Posso ser declarado autor de meu caráter, como o sou dos meus atos.” (VERGNIÉRES, 1999). Ao ensinar a Rachel a socialidade dos afetos através da formação de hábitos, da imitação, de ações ponderadas, Deckard se contrapunha à imposição da natureza dada, do destino inscrito pela Natureza ou pela lógica da tecnologia.

No caso da distopia de Ridley Scott, existe um intenso jogo de manipulação, objetivo e subjetivo. O ato de manipulação não ocorre apenas na dimensão da exterioridade (a manipulação que outrem exerce sobre mim, como é perceptível nas propagandas de néon em Blade Runner); mas a manipulação percorre a dimensão da interioridade, aparecendo como intensa auto-simulação (o ego manipula a si mesmo, buscando constituir uma identidade pessoal auto-referenciada – no caso dos replicantes, uma identidade irremediavelmente estranhada). O que Blade Runner sugere é que, talvez a tragédia dos replicantes seja a verdadeira tragédia humana (o que demonstra que a ficção-científica expõe de forma invertida, e até fetichizada, a verdade da condição humana).

Em Blade Runner existe uma outra situação paradoxal: o caçador, aos poucos, se interverte em caça. Ao longo da narrativa, Deckard, que persegue os replicantes, torna-se, na cena final, perseguido pelo último dos Nexus 6, Roy Batty, que dá-lhe uma “lição de vida”. Ou seja, poupa-lhe da morte, demonstrando ser a vida um valor supremo para ele (ora, ao matar Tyrell, Roy expressa um gesto de afirmação da vida, demonstrando uma suprema indignação com seu destino).

Na sua derradeira cena, o replicante Roy traduz o que é próprio da condição humana sob o sistema do capital. Disse ele: “Uma experiência e tanto viver com medo, não? Ser escravo é assim.” E sentindo de forma intensa o paradoxo de Blade Runner, isto é, a angústia de inteligências agudas e de alta sensibilidade estética diante de uma vida fugaz e supérflua, Roy observa: “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva.” O replicante Nexus 6 sente a angústia do tempo, destacando a unicidade (e fluidez) da sua experiência singular de vida. Conclui, dizendo: “É hora de morrer” (tal como os personagens da peça “Os Que Têm a Hora Marcada”, de Elias Canetti).
.
Enfim, Blade Runner é permeado de paradoxos magistrais, que são contradições dilacerantes. Vejamos alguns detalhes: os replicantes que fugiram eram 6. Um deles, morreu na fuga. Então, 5 são os que deveriam estar sendo perseguidos. Mas só temos conhecimento de 4 na versão do diretor. Ou ainda: se Deckard seria um replicante (como sugere a versão do diretor), Gaff também não o seria? Enfim, quem nos garante – como já sugerimos acima - que o mundo social de Blade Runner não seria constituído por replicantes medianos, meros simulacros de homens e mulheres, onde os Nexus 6 seriam versões sofisticadas, os super-homens de 2019 ? Outro detalhe curioso é o sonho de Deckard, o sonho do unicórnio, acrescido na versão do diretor. O que ele significa? Teria o unicórnio do sonho de Deckard alguma relação com o unicórnio de palito feito por Gaff no final do filme?. Mera coincidência ou haveria alguma relação causal com um significado latente?

Mas o que nos interessa são os significados críticos do filme Blade Runner. Ele é um pré-texto magistral para apreendermos os dilaceramentos humanos diante da opressão do capital. O mundo social de Blade Runner é um mundo capitalista, com a presença visível dos ícones das corporações globais, cintilando em luzes néon num cenário distópico. Torna-se visível através do exagero metodológico da ficção-científica alguns elementos contraditórios desta sociabilidade estranhada. Já destacamos o problema da identidade humana, da impossibilidade da vida plena de sentido num sistema de tempo de vida restringido, de memória protética e de sociabilidade estruturada (drama trágico explicito, até como “tipo ideal”, pelos replicantes Nexus 6 ).

É possível destacar, dentre os múltiplos detalhes significativos do filme, alguns elementos sobre o mundo do trabalho em Blade Runner. Por exemplo: a Tyrell Corporation é uma empresa-rede tendo em vista que se utiliza do trabalho subcontratado de fornecedores, que contribuem para a produção das mercadorias-objetos técnicos complexos (os replicantes). Os fornecedores, pequenas oficinas de técnicos altamente especializados, não conhecem o resultado final de sua atividade. Produzem apenas um determinado componente daquela estrutura biotecnológica. Por exemplo, quando o replicante Roy visita a oficina de trabalho de um dos fornecedores da Tyrell, ele nada sabe sobre os demais componentes de um organismo Nexus 6. Especializou-se apenas em elaborar os olhos – mas nada sabe sobre o dispositivo capaz de dar mais tempo de vida aos replicantes. É sintomático que Ridley Scott tenha escolhido a atividade estranhada do produtor dos olhos para expressar a paradoxalidade do capital e sua fragmentação da atividade produtiva. Os que produzem os olhos estão cegos sobre o produto final. Eis uma dimensão suprema (e paradoxal) do estranhamento da produção capitalista.

Outro paradoxo de Blade Runner é a relação do personagem J.F. Sebastian, projetista genético, um dos criadores dos Nexus 6, que, tal como eles, sofre de decrepitude acelerada. Ou seja, J.F. Sebastian sofre de envelhecimento precoce, (Síndrome de Matusalém). Por isso não conseguiu migrar para as colônias interplanetárias. Como disse ele: “não passei no exame médico” (o que confirma o acesso seletivo e excludente ao Novo Mundo). Um detalhe curioso são os bonecos vivos da oficina de J.F. Sebastian. Inclusive, um deles representa um militar com nariz de Pinóquio (uma crítica velada à corporação militar tão poderosa na América?). Aliás, é possível um paralelo entre J.F. Sebastian e o artesão Gepeto, personagem do conto Pinóquio, de Carlo Calodi. Talvez J. F. Sebastian seja o Gepeto pós-moderno, solitário e decrépito, que se apaixona por Pris, um dos Nexus 6 em fuga, modelo básico de prazer; e é através de J.F. Sebastian que Roy e Pris têm acesso ao criador dos Nexus 6, Tyrell, misto de cientista genial e mega-investidor bem-sucedido (um Bill Gates do mundo de Blade Runner?).
.
Talvez seja interessante uma análise do personagem Tyrell, dono da corporação industrial que produz os replicantes. Tal como J.F. Sebastian, é um gênio solitário, parceiro do projetista genético no jogo de xadrez, investidor diuturno no mercado financeiro (na sua última cena, aparece deitado na cama orientando seu operador financeiro a vender 66 mil ações...). Do mesmo modo, tal como Sebastian, é cercado de objetos vivos – a coruja e a secretária Rachael. É provável que Tyrell cultive uma prazer estético (e libidinal) pelos seus objetos vivos.

Outro detalhe interessante do mundo do trabalho em Blade Runner é que os Nexus 6, geração superiores de replicantes, são altamente especializados (por exemplo, o replicante Roy Batty é um modelo de combate, e Pris, é um modelo básico de prazer, demonstrando que a sofisticação de habilidade cognitiva e instrumental é acompanhada por uma especialização).

Além disso, o mundo do trabalho de Blade Runner é constituído por uma mancha de “informalidade”, de trabalhadores por conta própria, alguns altamente especializados, que utilizam high technology (Deckard recorre aos serviços de uma artesã hightech para identificar o número de código de um fragmento de escama encontrado nos vestígios deixados por Zhora, uma dos Nexus 6). Ora, no cenário pós-moderno de Blade Runner, conciliam-se degradação ambiental (e pessoal) com high tecnology. O mundo do trabalho é um imenso bazar de atividades de serviços industriais subcontratados e de entretenimento de cariz mafioso (expressão de sobrevivências seculares da sociabilidade urbana degradada, como o saloon de Taffey Lewis, onde se apresentava a replicante Zhora com seu número “Sra. Salomé e a Cobra”).

Blade Runner expressa, no melhor estilo pós-moderno, uma bricolage de situações típicas da temporalidade extendida (e presente) do capital. Passado, presente e futuro estão contidos numa temporalidade hipertensa. Enfim, não existem, a partir da ótica da narrativa, perspectivas de “negação da negação”. No bom estilo de Hollywood, as contradições sociais se traduzem em meras saídas individuais – mas perguntaríamos, parafraseando Gaff, são realmente saídas? Afinal, quem escapa?

Fonte:
Artigo escrito por Giovanni Alves (2004). In http://www.telacritica.org/BladeRunner.htm
Esta análise de filme é parte do Projeto de Extensão Tela Crítica 2004)

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense - Parte X)

DEPOIS DE 1990

Diversos foram os contistas surgidos na época de O Saco e do Grupo Siriará, e, mais tarde, em torno do grupo Seara. Nos anos 1990 apareceram pelo menos quatro grupos e seus respectivos periódicos literários: O Pão, em 1992; Espiral: Revista Literária, em 1995; Almanaque de Contos Cearenses, que, embora não tenha sido criado como revista, pode ser considerado a única revista cearense de contos, com apenas uma edição, em 1997; e Literapia – Revista de Literatura da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, em 1999.

Nas páginas desses órgãos se publicaram e publicam contos dos mais variados feitios, sejam de escritores mais conhecidos na comunidade literária, com livros editados e comentados, sejam dos mais jovens.

Como não se pretendia um livro volumoso em que todos os contistas fossem contemplados com algumas páginas, também aqui será dado destaque somente àqueles que publicaram livros de conto ou que são destacados em outros gêneros e mereceram de críticos e comentadores maior atenção ou obtiveram prêmios literários de maior relevância.

Dos contistas aqui retratados, poucos foram os que editaram livro de ficção menor. Roberto Amaral estreou no gênero em 1990, com Viagem e outras histórias. Para Antônio Houaiss, o livro é composto de contos, narrações, narrativas, relatos, relatórios, em qualquer caso, pedaços de vida, costurados, rapsódicos, em que tudo o que não for real é mais real ainda, porque o que foi na sua mente de estupenda fidedignidade mnemônica vale como o fiel de uma existência. E diz mais nas abas do volume: "há aqui, nestes textos de Roberto Amaral, um senhor criador de matéria humana, portada pela plenitude da palavra, que se afirma nativivo, natipervivo, pois que ficará".

Em 1992 Sérgio Telles apresentou Mergulhador de Acapulco e, em 2002, Peixe de Bicicleta. Vem elaborando histórias curtas de sabor amargo.

A linguagem nos contos de Sérgio Telles não apresenta novidades. A narração, tanto do ponto de vista onisciente, como da primeira pessoa ou do narrador-testemunha, flui em frases bem ordenadas, de fácil leitura. Nada de malabarismos verbais. Aliás, a linguagem é quase sempre coloquial, mesmo quando o ponto de vista é do escritor-narrador. Os transtornos que a sexualidade reprimida opera estão presentes em diversas narrativas dos dois livros de Telles. Assim como perturbações de outra natureza, nem sempre esclarecidas.

Nas abas do primeiro volume, Claudio Willer observou: "Esta coletânea de contos mostra, entre outras coisas, que há um ciclo da narrativa realista que ainda não se esgotou. Essas amostras do inferno burguês e metropolitano, esses fragmentos do cotidiano brasileiro, no que tem de cruel e de lírico – já vimos isso antes, na literatura e ao vivo. Mas as situações e personagens reaparecem, vitalizados, com mais força, graças ao talento, à capacidade de observação e à sensibilidade do autor". Acrescente-se: graças também à psicanálise, pois, não fosse Sérgio Telles um estudioso da alma, certamente muitas de suas histórias começariam e terminariam sem nenhuma graça, como simples relatos de fatos sem importância.

Carlos d’Alge, com A Mulher de Passagem, de 1993, se apresentou como contista, embora há muito venha publicando livros de outros gêneros. Na lição de Francisco Carvalho, em "Cânticos d’Alge" (O Sal da Escrita, Apêndice, pág. 213), nas 14 ficções do livro, o escritor "celebra, em linguagem epifânica, os ritos do corpo seduzido pelos muitos ardis do amor". E acrescenta: "Submisso ao rigor da ascese literária, faz do exercício da palavra um ato de celebração e de plenitude estética". Para Artur Eduardo Benevides, em "O Fio da Navalha do Erotismo" (obra citada, pág. 216), os contos desse livro "funcionam como flashes episódicos do cotidiano". Teoberto Landim, em "A Purificação das Paixões" (idem, pág. 224), apontou: "A linguagem, às vezes mais literária adquire a expressão sugestiva e lírica; outras vezes, por ser mais transparente, é jornalística. Tudo faz parte da desconstrução das fronteiras, quebrando deste modo a demarcação espacial, fazendo com que as ações ocorram em cenários diversos, desde o mais real ao mais imaginário".

Também em 1993 se deu a estréia de Dimas Carvalho no gênero conto, com Itinerário do Reino da Barra. Seguiram-se Histórias de Zoologia Humana em 2002 e, no ano seguinte, Fábulas Perversas. O primeiro é composto de uma novela, que deu o título geral, e de 11 histórias curtas e curtíssimas ou parábolas. São verdadeiros contos exemplares, escritos com muita sobriedade, poesia, imaginação. Todos eles foram reunidos a outros na constituição do segundo livro. Alguns deles são compostos de duas linhas ou pouco mais de uma dezena de palavras. As personagens são sempre emblemáticas. O protagonista de "O Profeta" é, ao mesmo tempo, humano e divino, pois os comerciantes o insultam, as crianças lhe jogam merda de cavalo, se deita na piçarra, ou seja, é visível, tem corpo, e, no entanto, "quando caminha pela superfície, torna-se invisível". Em "O Gato" o narrador fala de todos os gatos, poeticamente, até contar uma historinha ou uma fabulazinha, com direito a "moral da história": "tende cuidado com os gatos cor-de-rosa. De todos os tipos, é o mais perigoso. Não porque nos minta, ou nos iluda, ou nos roube o queijo. Mas pelo contrário".

O personagem-escritor Eulálio Modesto Nicanor é, ao mesmo tempo, real e irreal. Real porque tem biografia e deixou vasta obra literária, impressa em jornais, almanaques e revistas. Irreal porque esta mesma obra desapareceu e o poeta (e sua obra) não passa de obra coletiva e anônima.

As personagens de Dimas Carvalho agem em espaços ilimitados ou etéreos, quando elas mesmas nem aparecem. A casa, o curral, o bosque, as igrejas, as torres das igrejas, as torres góticas, as ruas estreitas, todos os espaços são meros nomes. Para o contista não tem nenhuma importância este ou aquele lugar. Tudo é apenas adereço. Como se todos os dramas não passassem de sonhos, alucinações, visões, delírios. Os narradores e os protagonistas são seres delirantes, quase sempre, como o de "Um Sonho", a vagar por uma cidade coberta de névoa, entre casarões antigos, com figuras de górgonas e dragões esculpidas nas portas. Edgar Allan Poe está muito manifesto na obra de Dimas Carvalho, sem imitação. Porque também presentes estão os narradores bíblicos, Homero, Dante, Kafka, Borges e toda a melhor tradição na arte de narrar.

Alano de Freitas, contemporâneo dos contistas surgidos no final dos anos 1970, apresentou o volume Histórias do Começo do Mundo (7 Contos Minúsculos), em 1995. Sobre ele escreveu Dimas Macedo, em "Ironia e Ficção em Alano de Freitas" (LC, págs. 162/164): "Dono de uma imaginação fabulosa e revolucionária, Alano nos impressiona pela sua particularíssima forma de narrar, isto é, sabe fabricar uma técnica de composição do texto recortada por uma incrível marca pessoal, criando com isso um estilo, que é, como sabemos, característica de todo grande escritor". Airton Monte, em "Por Conta de uns Quantos Contos", inserido no livro de Alano, argumenta: "Do ponto de vista de estrutura dramática, seus contos estão mais para os diálogos de Platão do que para as tragédias de Sófocles."

Paulo de Tarso Pardal publicou Margem Oculta, em 1995, e Difícil Enganar os Deuses, em 1999, de histórias. Nas abas do primeiro, José Alcides Pinto anotou: "O sentido desse volume de ficção (será?) transcende a estrutura básica da narrativa, para afirmar-se, mais propriamente, nos domínios das idéias e da reflexão, sem excluir a poesia." No parágrafo seguinte está escrito: "Sua aventura literária levanta um problema de natureza ética, até então desconhecido, entre poetas e ficcionistas de nosso tempo – a palavra-símbolo proporcionando o aparecimento (e a abertura) de uma nova linguagem, onde a reflexão é a mola mestra de sua inventiva. O diálogo interior envolve objetos, animais, pessoas e anima as passagens dos textos, em que não há qualquer ligação com os processos literários conhecidos".

Em "Um Quase Prefácio", Airton Monte observou: "A grande maioria dos contos do livro são curtos, outros curtíssimos e um ou dois saem da bitola do conjunto. Os textos são densos e de uma complexidade artesanal bastante incomum num contista, vamos dizer assim, "principiante". Em todos eles, a realidade exterior não tem muita importância no enredo e o que na verdade conta e importa para o desenrolar da ação dramática é a realidade virtual ou interior dos personagens" (...).

Em 1996 Ronaldo Correia de Brito teve editado o primeiro livro As Noites e os Dias, seguido de Faca, de 2003. Dimas Macedo, em "Narrativas de Ronaldo Brito" (Crítica Imperfeita, págs. 16/19), constata: "Em Ronaldo Brito o vento da poesia é um tecido. É uma aragem permanentemente alojada entre as camadas do palimpsesto. O seu texto é todo ele uma poética da inconsciência e da erudição. É todo ele uma poeira da revelação e do mistério, no que ele possui de verdade, no que ele exibe de aproximação com a realidade e a lógica da imprecisão no campo do concreto". E conclui: "Elaborada com o domínio da forma e a figuração simbólica da metáfora, a escritura de Ronaldo Correia de Brito parece sempre assestada em busca dos valores da honra e da vingança, cultuados na penumbra dos velhos casarões, onde o clamor do sangue e o sentimento de culpa se conjugam na construção da ordem textual, aparentemente caótica na sua dispersão intersubjetiva, porém dialética e estrutural na unidade da sua disciplina semântica e morfológica".

Em "Memória Inventada" (Suplemento Rascunho, 4/2003), Andrea Ribeiro comenta o segundo livro de Ronaldo: "Foi abrir o livro e sentir o ardido do sol e a secura no chão. Não que todas as histórias que Ronaldo Correia de Brito assentou em Faca fossem exclusividade do agreste. Poderia, pelo contrário, acontecer em qualquer lugar do mundo. São histórias de amores frustrados, vidas frustradas, dor, solidão, perdas, vinganças. Coisas da vida. Comuns. Coisas que não têm terra natal. Não têm exclusividade geográfica. Mas calharam de cair ali pros lados do Ceará, terra natal do escritor". E mais adiante: "Bem escritos – mas, como em todos os livros de contos, alguns melhores do que outros. Com palavras escolhidas a dedo. Bastante visuais (por isso dá para sentir o ardido do sol e a secura do chão). É possível ver a pele morena das personagens. E sentir suas angústias".

No posfácio de Faca, Davi Arrigucci Jr. assinala: "A estrutura dramática e cortante dos contos – a faca não é apenas um motivo reiterado no conjunto das histórias, mas o gume a que tende a prosa lacônica com aquela sua alma agreste à maneira de Graciliano ou com o toque de poesia fantasmagórica à semelhança de Juan Rulfo –, se transforma em estrutura episódica e aberta na novela. Nesta, a complexidade é maior sob todos os aspectos; no desenvolvimento do enredo, a tendência à aventura romanesca dá espaço maior ao elemento fantástico, já presente em algumas das narrativas curtas, como, até certo ponto, em "Redemunho", e certamente em "Faca" e "Inácia Leandro", mas quase sempre restrito ao poder de um objeto ou ao retorno fantasmal de um ser".

Rinaldo de Fernandes em 1997 teve editado o volume O Caçador, com apresentação de Amador Ribeiro Neto, que vê em Rinaldo "um escritor apaixonado pelas descrições, pelas vírgulas e pelas adjetivações". No parágrafo seguinte faz a seguinte análise: "Suas descrições privilegiam os espaços geográficos das ações. Não pensemos, todavia, que são meros exercícios. Pipocando ora aqui, pipocando ora ali, num mesmo conto, elas explodem em flashes cinematográficos – rápidos e certeiros. Nunca são lineares. O leitor é quem monta as seqüências, convidado a ser co-autor dos cenários – e das caracterizações psicológicas das personagens. Já que entre a cena e a caracterização das personagens há um estreito vínculo de significações". O livro é composto de 50 composições, algumas curtíssimas, com pouco mais de cinco linhas. Há também peças longas. Isto, porém, não quer dizer nada, porque Rinaldo sabe narrar, sabe escrever, pratica o conto com habilidade, sabedoria e talento, devendo ser posto ao lado dos melhores e mais singulares narradores de ficção do Ceará.

Pedro Salgueiro tem editados os livros O Peso do Morto (1997), O Espantalho (1996) e Brincar Com Armas (2000). Apesar de buscar uma fórmula para suas obras, como o emprego de epígrafes no início e no final de cada conto (no primeiro volume) ou, ainda, começar as histórias no meio do caminho, Salgueiro tem mostrado claramente as influências sofridas, como dos hispano-americanos, especialmente quanto ao realismo mágico, de Edgar Allan Poe, Moreira Campos e outros. No entanto, busca sempre ser natural, isto é, não foge de suas origens rurais e nordestinas, descrevendo e narrando os costumes locais. Às vezes se restringe a um momento, um flash, sem se preocupar com enredo. Em alguns casos, de tão apegado à descrição, parece não alcançar o contorno do conto, pelo menos do conto machadiano ou moreiriano. Isto, porém, é exatamente o conto moderno, como esclarece José Alcides Pinto, em "A Leveza Narrativa de Pedro Rodrigues Salgueiro": "Naturalmente a estrutura mais significativa do conto moderno é exatamente aquela onde se denota a presença não de uma objetividade discursiva, mas sim o ditado de uma sugestionabilidade, revelando uma quase total ausência de enredo, ao menos na sua concepção usual".

Em "Um Contista de Peso" (LC, págs. 168/170), Dimas Macedo afirma: "Pedro Salgueiro estréia maduro porque, na sala de espera, visitou o discurso e a linguagem dos clássicos e, do texto literário, aprendeu a extrair a ambivalência e a insinuação, optando sempre por rejeitar os encantos e as facilidades da literatura de feição linear".

Em "Oficina de Pesadelos" (RR, págs. 149/150), Francisco Carvalho assevera que as peças de Pedro Salgueiro "evidenciam manifesta preocupação com o implícito, com o fato apenas sugerido, certo fascínio pelo surreal ou pelo fantástico, a prevalência de uma linguagem despojada de certos vícios retóricos, o compromisso com a palavra essencial, a busca permanente da síntese".

Na apresentação de O Espantalho, intitulada "Novos Contos de um Autor Vitorioso", Sânzio de Azevedo afirma: (...) "o contista, coerente com o seu modo de ser artístico, não deixa de freqüentar os temas que refletem morte, perdas, desolação etc., mas com uma presença maior do humor, e com alguns momentos de comovente lirismo".

Nas abas do terceiro livro, sob o título "O Olhar do Artista", José Louzeiro informa: "O processo criativo de Salgueiro é simples; complexa é a aura de circunstâncias com que faz o coroamento de suas histórias, presas pelos laços da mitologia a todo o vasto fabulário nordestino, que o escritor aciona com rara inteligência".

Em 1998 Tércia Montenegro fez sua estréia com O Vendedor de Judas. É uma das melhores promessas da Literatura Cearense.

"O Vendedor de Judas", conto que dá título ao volume, mostra que pelo menos em dois pilares da cultura a nova contista fincou os pés (ou a cabeça): os textos bíblicos e o folclore. Para intitular o livro, valeu-se do conto inspirado no mito bíblico da traição. O conto, porém, se centra no folclore de Judas, as comemorações profanas do Sábado de Aleluia, em que o "personagem" é um boneco, para ser vendido. Mercadoria, portanto. Não chega, pois, a personagem. Ou seja, os papéis se invertem: Judas, o vendedor de Cristo, se transforma em boneco a ser vendido e queimado. O protagonista do conto é, na verdade, um fabricante e vendedor de "bonecos esculpidos em madeira clara".

Mas vejamos alguns aspectos da carpintaria da contista. Comecemos pelos personagens, sempre poucos em cada história. Tão poucos que em alguns contos estão em completa solidão. Em "A Espera", o preso à espera da visita de uma filha que lhe promete levar fotos de outra filha, morta, e "o abraço impedido pelas grades". Em "Um Poeta", os três personagens "sentados no jardim, pensando em morrer." Em "A Longa Espera", o velho que "ficou só, no casarão alpendrado, com as terras diminuídas e a esposa cada vez mais magra, resmungando sozinha." A solidão dele e a dela, mesmo vivendo na mesma casa. Em "A Inspetora", D. Mozarina, vivendo apenas de lembranças: "fecha as janelas, arreia-se numa cadeira, abanando o pescoço com o decote". E assim por diante.

O Vendedor de Judas é uma demonstração do talento de Tércia Montenegro, assim como de sua dedicação à leitura de obras fundamentais da Literatura e ao exercício do ato de escrever e reescrever. Um exemplo a ser seguido, no que for possível, pelos que se iniciam nas Letras.

Conforme pensa Batista de Lima, em "Os Contos de Tércia Montenegro" (FM, págs. 235/237), "a audição de muitas histórias, ou a leitura dos clássicos da narrativa é que podem explicar o alegórico, o fantástico, o mórbido e a finitude que subjazem do seu texto. Tudo isso casado a uma singeleza no modo de narrar, uma fineza com o trato da língua materna, uma ternura na fala".

Astolfo Lima Sandy vem publicando ficções em jornais desde 1988. No entanto, somente em 1998 teve impresso o livro Mão de Martelo e Outros Contos. E já prepara outro. Em "Um Exercício Com Ferramentas" (O Povo, 11/7/1998), Manoel Ricardo de Lima vê, no livro de Astolfo, leveza e "humour". "O contista registra um pressuposto que procura ser contemporâneo: a tentativa de essencialidade desde o número de contos que formam o livro, vinte e três, até o que estabelece como estrutura para suas composições. Destaca, ainda, uma influência grande dos que pensaram a história curta com economia verbal, de Kafka a Calvino". Na opinião do crítico, Astolfo "eleva as suas curtas e prazerosas narrativas nos tratamentos que impõe ao tempo e aos temas. A leitura que os narradores fazem do tempo não poderia ser mais rigorosamente atual: ele não existe. O espaço determinante é que o delimita, uma construção de inventário em descrições mínimas é que o organiza".

Em "Mão de Martelo: A Escultura Escrita" (O Povo, 14/11/1998), Tércia Montenegro esmiuça a obra de Astolfo: "A primeira parte é composta por contos em que predomina o descritivismo. Em alguns deles o contista demonstra como se pode fazer crítica social em literatura sem cair na panfletagem. Para tanto, além do tom irônico, pode-se utilizar alguma dose do fantástico. Não basta, porém, a receita. É preciso muita carpintaria com a linguagem". "Pequena História de Velhos" é uma obra-prima, na opinião de Eduardo Campos. "O desejo primeiro do autor é o de ser um observador atento, que, ao sondar suas personagens, não se limita à superfície, consegue dominá-las pelo espírito, no fundo sempre condenado a mesquinhas emoções".

Em "A Arte de Narrar" (Tribuna do Ceará, 6/6/1998), Cid Carvalho assegura: "Sua narrativa é breve, abomina as grandes extensões, não se alonga, usa de frases e orações com um brilhantismo maior, baseado no poder de síntese".

Astolfo Lima Sandy é contista experiente. Demonstra ter lido os melhores contistas e haurido deles lições fundamentais. Sabe criar personagens de abundante essência humana e situá-los em palcos largos, propícios à escavação de suas almas. Em suma, tem talento no manejo das palavras e das ferramentas da arte de narrar, sobretudo da "velha espingarda de caça" dos narradores essenciais.

De outra linhagem são as obras de ficção menor de José Costa Matos, que no mesmo ano editou Na trilha dos Matuiús. Na opinião de Francisco Carvalho, "as dez narrativas de que se compõe este livro de contos estão relacionadas com as rotineiras aflições de ‘bonecos de barro que não se quebram’. Costa Matos explora com singular habilidade, numa linguagem das mais expressivas e rica de valores exponenciais, o inesgotável manancial da sabedoria popular e do seu modo descontraído de olhar de frente a realidade". Em outro parágrafo acrescenta o poeta-crítico: "O cenário das histórias de Costa Matos são as pequenas cidades do interior, onde os acontecimentos, de natureza doméstica, política e moral, assumem geralmente dimensões inesperadas".

Nome destacado na literatura brasileira, Ana Miranda editou o primeiro livro de contos, Noturnos, em 1999. Leonardo Martinelli, poeta e mestre em Literatura Brasileira pela Uerj, é autor de um estudo da obra da escritora. Veja-se trecho do ensaio: "Noturnos compõe-se de 65 minicontos cuja moldura sintática nunca extrapola o padrão de um único parágrafo ininterrupto, pontuado apenas por vírgulas, de extensão sempre limitada ao espaço de duas páginas. É como se a autora quisesse criar um equivalente em prosa para as formas fixas da poesia clássica, como o soneto e a sextina (embora não seja o caso de caracterizar tais peças como ‘poemas em prosa’, gênero de contornos indecisos e muito menos rígidos que os utilizados por Ana Miranda). O título geral da coletânea parece reivindicar um parentesco de segundo grau com o formato musical consagrado por Chopin: composições pianísticas de andamento grave e sinuoso, marcadas pela concisão e por intenso lirismo melódico. Já os contos de Ana Miranda vão buscar sua matéria lírica na expressão melancólica da figura feminina que narra ou é narrada em todas as estorietas do livro. Dos medos, desejos, delírios e embaraços dessa persona narrativa, a autora subtrai o segundo princípio da coesão de Noturnos (além da monotonia formal rigorosamente concebida pela série)".

Também em 1999 Vasco Damasceno Weyne divulgou o volume Glórias e Vanglórias. O crítico Dimas Macedo, em "O Campo Literário de Weyne" (CI, págs. 41/44), o chama de "contista maduro". Diz, ainda: "E se anuncia, mais do que isso, um escritor dotado de aguda percepção estética e criativa". Mais adiante remata: "Contos. A arte de dizer o conto. A lição que se pode extrair de sua mutação artesanal. A palavra e o cotidiano da arte literária em forma de magia e de recriação. Eis, em síntese, o que Vasco Damasceno Weyne nos oferece em Glórias e Vanglórias, livro que considero informativo e denso a um só tempo, que vale sobretudo pelas suas qualidades formais e pela variedade de temas que abriga".

Embora venha publicando romances há algum tempo, Lustosa da Costa estreou no gênero em 1999, com Foi na Seca do 19, composto de uma novela e 13 composições menores. Na apresentação, Pedro Salgueiro atribui às ficções contidas no volume a designação de conto, apesar de na ficha catalográfica estar registrado o gênero romance. O apresentador explica: "São retalhos independentes, apesar da unidade estilística, temporal e geográfica, cada um com sua trama singular: engraçada às vezes, trágica noutras, ou – o que é mais comum – trágicas e cômicas ao mesmo tempo". E conclui: "Ao lermos estes contos nos transportamos para as conversas de calçadas, as fofocas de botequins e esquinas, tão em moda no período anterior ao surgimento da televisão".

Desconhecido no Ceará literário, José Peixoto Júnior é um regionalista. O livro Sobre o Mundo se editou em 2001. Em "O Sertão, de Peixoto Júnior", Soares Feitosa (Literatura n.º 23) assinala: "Lendo agora o Peixoto Júnior, em pleno dialeto "nordestino", foi que me pude penitenciar perante Guimarães Rosa em quem sempre critiquei a invenção de um outro idioma que não o português. Perdão, seu Rosa! As suas histórias e as de Peixoto não teriam maior graça se não se assumissem de nossa fala ancestral, com expressões seiscentistas, direto de um Portugal primitivo aprisionado nos grotões da pátria, e das corruptelas que nos levam, lá, a chamar neblina de librina..."

Um dos mais jovens contistas cearenses é Luciano Gutembergue Bonfim. Editou o pequeno volume Dançando com Sapatos que Incomodam em 2002. O prefácio é de Pedro Salgueiro, que assegura: "O leitor pulará de um conto torto para outro enviesado, logo mais topará com certa parábola (e achará parecido com algum poema modernista) ou miniconto – curto e contundente; até ser nocauteado com o soco potente deste "De Natureza Cíclica" –; se conseguir levantar antes da contagem nove, levará seguidas pauladas no fígado e terminará o livro (ou a luta) vencido por nocaute técnico, sem piedade beijando a lona".

Também em 2002 Almir Gomes de Castro divulgou os contos de O Ceará Sempre Escutará. Alana Pinto utilizou as dobras do volume para comentar as narrativas: "O contador de histórias segue gracioso, com contos curtos de desfecho surpreendente, imprimindo um contexto irreverente pelos fatos reais criados por seus personagens. O manancial temático de sua serra é inesgotável, não tem fronteira, expande-se pelo sertão e voa como as andorinhas da igreja matriz. A terra, antes seca, é uma canção lírica que pinta de verde a terra marrom".

Em 2003 Giselda Medeiros apresentou o volume Sob Eros e Thanatos. No artigo do mesmo título (Jornal Binóculo n.º 26, Fortaleza, março, 2003), o crítico Dias da Silva informa: nas ficções de Giselda "permeia o clima de mistério e de surpresa, na quebra do ritmo das narrativas bem arrumadas". E mais: "O recurso do mistério, da surpresa e do humano faz dos contos de Giselda Medeiros histórias universais, de lições e de salvação. Trata-se, pois, de contos sem idade que podem ser prolongados ou se podem fazer mais longevos por sua literariedade". O crítico vê ainda outras qualidades nos contos de Giselda: "fuga da obviedade, dispensa de detalhes desnecessários, dosagem de mistério nas entrelinhas, exigindo do leitor esforço mental como num trabalho de co-autoria (o leitor deve ser um co-autor)".

Também em 2003 Maria Thereza Leite estreou em livro com Mosaicos. Na apresentação do volume, "A escritura de Maria Thereza Leite", Carlos Augusto Viana observa: "As narrativas, aqui reunidas, interessam tanto pela trama quanto por sua tessitura. As palavras – verdadeiras lixas - friccionam a alma de seres cujas vidas percorrem as fronteiras entre o devaneio e a tormenta. A autora é, sobretudo, uma construtora de personagens". Em outro trecho, o poeta-crítico observa: as composições do livro em exame "seguem de perto a consciência dos protagonistas. Assim, o emprego do monólogo interior ou do discurso indireto livro é, por demais, pertinente, em especial quando são invadidas por elementos do mundo exterior".

Pela linguagem e pelo vocabulário, é fácil perceber onde se ambientam os contos de Genuíno Sales. Vejam-se os títulos: "Na beira da grota", "Faça lombo, meu padrinho" e "Comida braba". O vocabulário é arcaico e rico, tal como é falado, ainda, no interior do Nordeste brasileiro. São exemplo desse vocabulário "pontiar", "vareda", "babatar", "loita", "caquear", "polme", "encaretado", "quartau", "caculo", "matracar" e muitos outros. Consciente de sua nordestinidade e atento às regras do bom contar, Genuíno elaborou pequenas histórias a que alguns críticos enquadram como do tipo regionalista. Entretanto, mesmo nos diálogos, que são breves, o contista não se deixa conduzir pela facilidade da narração vulgar, tradicional ou sem criatividade. Assim, aqui e ali se vêem narrações descritivas. Os conflitos e os desenlaces se apresentam como se fossem secundários. Em "Na beira da grota", por exemplo, o drama pressentido no início da peça parece não se completar, como se não ocorresse o epílogo. Em "Nequinho" o desfecho é o logro do "cego". O leitor não atina o como findará a história e é também logrado, no último parágrafo, quando o falso cego "suspendia a bengala, aligeirava o passo e estirava caminho...". Em "Comida braba" o desenlace se dá num tempo bem mais distante ao daquele em que o conto é escrito. O narrador interrompe a narração no exato momento em que o coronel se aproxima de Joana, que, nua, dava machadadas nas palmeiras. A história se completa, meses depois, para reapresentar a protagonista e seu filho de olhos azuis. Enfim, Genuíno faz de cada conto quase que uma pintura, uma paisagem sertaneja, ou uma cena de filme, com dois ou três personagens em ação em espaços reduzidos. O foco narrativo é ora de narrador-testemunha (um menino, quase sempre), ora de narrador onisciente. Em alguns casos os dois se confundem, como em "Mataram o coronel".

Dimas Macedo saudou o aparecimento de Guilherme Caminha, com o livro O Velho Afobado, no cenário da literatura cearense, escrevendo "Os Contos de Guilherme Caminha" (LC, págs. 133/134). E anotou: "Fugindo ao esquema do desenho intelectualizado e elitista com que a tradição literária brasileira tem insistido em falsamente se auto-retratar, os contos de Guilherme Neto Caminha, em sua proveitosa urdidura, exibem a ousadia da aproximação do real, isto é, são reais enquanto inventário da experiência do concreto e revestem uma tentativa de aproximação da linguagem eminentemente coloquial".
***
No capítulo seguinte, sob o título "Outros Novos Contistas", virão aqueles ainda inéditos em livro ou, se os têm, não são do conhecimento do autor deste ensaio e que, portanto, não se mostraram em maior escala para a crítica. De muitos deles as poucas informações foram colhidas nas publicações onde se vêem seus contos.

A seguir, síntese biobibliográfica dos principais contistas surgidos após 1990, em ordem alfabética.
- Alano de Freitas nasceu em Fortaleza (1950). Artista plástico e poeta, deu a lume Histórias do Começo do Mundo (7 Contos Minúsculos), em 1995.

- Almir Gomes de Castro (Baturité, 1953) divulgou alguns livros de poemas e um de contos, O Ceará Sempre Escutará, em 2002.

- Ana Miranda nasceu em Fortaleza, em 1951. Ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro, depois para Brasília. Seus primeiros livros são de poesia. Ao romance Boca do Inferno, de 1989, seguiram-se outros. Em 1999 editou o primeiro livro de contos, Noturnos. Desde 1999 mora em São Paulo. Suas obras estão traduzidas para diversos idiomas.

- Angela Gutiérrez ou Angela Maria Rossas Mota Gutierrez (Fortaleza) é doutora em Letras. Imprimiu um romance, Mundo de Flora, em 1990 e o volume Avis Rara. Tem contos em antologias, como O Talento Cearense em Contos. 2.º no III Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1992, com "Ressurreição".

- Astolfo Lima Sandy, natural de Sobral (1948), tem impresso o livro Mão de Martelo e Outros Contos (1998). - Ganhador de prêmios literários, como o da Biblioteca Nacional para escritores brasileiros, em 2002, com o livro inédito A Grande Fábrica de Brinquedos.

- Carlos d’Alge nasceu em Chaves, Portugal, em 1930, tendo viajado para o Brasil aos seis anos de idade. Graduado em Letras, Direito e Educação, é professor de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras. Doze livros editados. Seus contos apareceram em jornais, revistas e antologias, como O Talento Cearense em Contos, com a narrativa "Breve Ensaio Sobre a Solidão" e no volume A Mulher de Passagem, de 1993.

- Dimas Carvalho (Acaraú, 1964) fez sua estréia no gênero conto em 1993, com Itinerário do Reino da Barra. Em 2000 deu a lume Histórias de Zoologia Humana e em 2003 Fábulas Perversas (VI Prêmio Ideal Clube de Literatura, 2003). Tem também livros de poesia. A obra de Dimas Carvalho tem sido objeto de análise por diversos críticos de todo o Brasil, como Miguel Sanches Neto, Ronaldo Cagiano, Ítalo Gurgel, Vicente Freitas, Batista de Lima, Jorge Pieiro, Inocêncio de Melo Filho.

- Genuíno Sales é de Pedro II, Piauí. Reside em Fortaleza há vários anos. Educador. Está incluído também no volume Prêmio Ceará de Literatura (1994), com cinco contos. Tem inédito o volume Fins d’águas.

- Giselda Medeiros é natural de Prata. Licenciada em Letras. Poeta e contista. Ganhadora de diversos prêmios literários, como o Cidade de Fortaleza II, IV e V. No último destes obteve o primeiro lugar, com "Passado Azul". Em 2003 imprimiu o volume de contos Sob Eros e Thanatos.

- Guilherme Caminha é autor do volume O Velho Afobado.

- João Soares Neto tem se dedicado à crônica e também ao conto. Autor de Sobre a Vida e o Amor, Sobre todas as Coisas, Micro-contos, cem contos sumaríssimos, e Sobre a Gênese e o Caos, coletânea de crônicas e contos, 2002.

- José Costa Matos (Ipueiras, 1927), poeta, contista e romancista, tem alguns livros de poemas e é autor do volume Na Trilha dos Matuiús (1998). Um dos vencedores do II Prêmio Ceará de Literatura, de que resultou livro com este título, em 1995. Está presente em algumas antologias, como O Talento Cearense em Contos, com "Incêndio na Pedra". Ganhou alguns prêmios literários fora do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras.

- José Murilo (de Carvalho) Martins, nascido em Caxias, Maranhão (1929), mas radicado no Ceará desde criança, editou o volume Medicina meu amor, de contos e crônicas, em 1991. Médico, tem várias obras na sua área profissional. Preside a Academia Cearense de Letras.

- José Peixoto Júnior nasceu em Jardim. Há alguns em Brasília. É outro regionalista. Em 1988 imprimiu o livro Bom Deveras e Seus Irmãos, por ele chamado crônica. São histórias de cangaceiros, ocorridas no Cariri cearense. O cronista se valeu também do Cariri para narrar outras histórias, que, reunidas, constituem o livro Sobre o Mundo, editado em 2001.

- Luciano Gutembergue Bonfim (Crateús, 1971), autor e diretor de teatro, professor universitário, é também contista premiado. Editou o pequeno volume Dançando com Sapatos que Incomodam em 2002.

- Lustosa da Costa é autor de inúmeros livros de ensaios e romances. Em 1999 editou Foi na Seca do 19, composto de uma novela e 13 contos.

- Maria Thereza Leite nasceu em Fortaleza, publicou seus primeiros contos em jornais e coletâneas originadas de concursos literários. Estreou em livro com Mosaicos, em 2003.

- Paulo de Tarso Pardal é natural de Russas (1952). Músico, artista plástico e crítico literário, publicou Margem Oculta, em 1995, e Difícil Enganar os Deuses, em 1999, ambos de contos.

- Pedro Salgueiro, nascido em Tamboril (1964), é um dos mais conceituados contistas cearenses surgidos no final do século XX. Tem editados os livros O Peso do Morto (1997), O Espantalho (1996) e Brincar Com Armas (2000). Premiado diversas vezes. Tem contos em antologias, como Talento Cearense Em Contos e Geração 90: Manuscritos de Computador.

- Ricardo Kelmer de Oliveira: 4º no II FUC, com "O íncubo". Autor de O Irresistível Charme da Insanidade (1996) e Guia Prático para Sobrevivência no Final dos Tempos (1997).

- Rinaldo de Fernandes, embora maranhense, morou durante muitos anos em Fortaleza, onde se graduou em Letras (Universidade Federal do Ceará). Tem contos em jornais de Fortaleza e João Pessoa. No Folhetim Literário Acauã mostrou "O Caso do Negro". Em 1997 teve editado o volume O Caçador (Editora Universitária da Paraíba). Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Começou sua atividade de escritor publicando, ainda jovem, contos e artigos nos suplementos literários dos jornais O Povo e Diário do Nordeste, de Fortaleza/CE,. Tem inédito O perfume de Roberta. O conto "Negro", do livro "O Caçador", virou curta-metragem, do cineasta paraibano Renato Alves. Como pesquisador, escreveu os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Organizador dos livros O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões (São Paulo: Geração Editorial, 2002), Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004) e Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (no prelo). Colaborou com diversos jornais de ponta do Brasil. Assina a coluna "Rodapé/Ponto de vista crítico" em Rascunho, de Curitiba/PR, e Correio das Artes, de João Pessoa/PB.

- Roberto Amaral, nascido em Fortaleza, passou a morar no Rio de Janeiro em 1965. Autor de mais de duas dezenas de livros na área da ciência-política-comunicação-direito, estreou no gênero em 1990, com Viagem e outras histórias. Escreveu também romances.

- Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro (1950) e muito cedo passou a habitar no Recife. O primeiro livro, As Noites e os Dias, é de 1996, e o segundo, Faca, de 2003.

- Sérgio Telles é natural de Fortaleza, 1946, tendo ido morar em São Paulo em 1970, onde vive. Tem livros na área da psicanálise e dois de contos: Mergulhador de Acapulco (1992), menção honrosa no Concurso de Contos do Paraná, 1988, com o título O Décimo Dia e outros contos, e Peixe de Bicicleta (2002), prêmio APCA, 2002. Integra uma antologia de escritores brasileiros editada na Suécia (1994). Para a antologia O Talento Cearense em Contos teve selecionado "Cicatriz de Bala".

- Tércia Montenegro (Fortaleza, 1976) fez sua estréia com O Vendedor de Judas, em 1998. Ganhadora de alguns concursos literários importantes, como o da revista Cult (1.º Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, 2000) com o livro Linha Férrea, editado em 2001.

- Vasco Damasceno Weyne é natural de Fortaleza (1931). Cronista, crítico literário e contista. Divulgou, em 1999, o volume Glórias e Vanglórias.

- Zorrillo de Almeida Sobrinho (Fortaleza, 1927) estreou em 1997, com Velhos Contos, Novos Contos, pela Associação dos Novos Escritores do Mato Grosso do Sul, Estado onde vive. É autor de livros em outros gêneros literários.

continua... (Parte XI)

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

A. A. de Assis (Triversos travessos)

01
Ah, havia o espaço
e no espaço havia ação.
Apertem os cintos.

02
Passa a teoria
por debaixo do arco-íris.
Vira poesia.

03
Saudade por quê?
Pra voltar a ser criança,
basta um bilboquê.

04
Andorinha sobe,
andorinha sobe e desce,
faz um “s” e some.

05
Dizem que a cigarra
nada faz senão cantar.
Ah, é indispensável.

06
Pergunte às crianças
se há vida onde ninguém brinca.
– Polegar pra baixo.

07
Da folha de amora
para o lencinho da amada.
Mágico tear.

08
Estrela cadente.
Vaga-lumes se alvoroçam
cobiçando a vaga.

09
Na prova de salto
quem tem chance de medalha?
– A de salto alto.

10
Na mesa grandona
vinho, massa e cantoria.
Almoço na Nona.

11
Segura, peão...
Segura, que a vida é dura
e mais duro o chão.

12
Se borda é prendada,
bem mais ainda se pinta.
E se pinta e borda?

13
Sagüi faz xixi
na mudinha de embaúba.
Tudo bem: aduba.

14
Casal de velhinhos
na janela olhando a Lua.
Tão longe a de mel...

15
A uva e a codorna.
Da uva se tira o vinho,
da codorna ovinho.

16
Balas e gorjeios.
O canarinho nem tchum
para os tiroteios.

17
Quem foi que afinal
tantas matas derrubou?
Ah, o pica-pau.

18
E agora, vovô?
– Agora, nas mãos dos netos,
sou que nem ioiô.

19
Assanhadas rosas.
Disputam a preferência
de um raio de sol.

20
No lombo do boi
faz-lhe um cafuné o anu.
E ele gosta: muuu...

21
Ursinha moderna.
Toda noite, após a lida,
na internet hiberna.

22
Menina no zôo
faz bilu-bilu na onça.
Isaías, onze.

23
Que delícia de cantigas
na vozinha das vozinhas.
Seresta na praça.

24
Xexéu na gaiola
para o peixinho no aquário:
– Como vai, colega?

25
No meio do pasto
um ponto de exclamação.
Último coqueiro.

26
Tarzã do terreiro
solta o seu grito de guerra:
Cucurucucu...

27
Ante o Pão-de-Açúcar,
dá as costas a Lua ao mar.
A lei do mais doce.

28
Abelha se aninha
no colo do girassol.
Vai ter mel quentinho.

29
Alô... é da Lua?...
Manda uma cheia, com flores,
para a minha amada.

30
Relampeja e... troomm...
– Afia a enxada, compadre,
que vem chuva boa!

31
Florzinha silvestre
no jardim do shopping-center.
Êxodo rural.

32
No topo do poste
a mansão do joão-de-barro.
Tá podendo o cara.

33
Do asfalto se avista
ao longe um carro de boi.
Cheinho de histórias.

34
Serás a sereia
que na lua cheia cantas?
Serei-a, serei-a.

35
Pálidas pernocas
na areia pegando cor.
Ou pescando amor?

36
Mosca na parede.
Avisem à lagartixa
que o jantar chegou.

37
Ao luar, no Éden,
primeiro jantar a dois.
Que deu no que deu.

38
Menino de sete
versus menino de oitenta.
Jogo de botão.

39
Diz o sapo à sapa:
– Coá-coaxá... coará-coaxá...
E ela a ele: – Topo.

40
Um pulo, medalha.
Milhões de cabeças boas
tão longe das loas.

41
Trenzinho da serra.
Pa... Pa-ra-ná... Pa-ra-ná....
pra Paranaguá.

42
Piupiu canta à porta
da gaiola da piupia.
Se arrepia a bela.

43
Crocante e cheiroso,
com garapa, na feirinha.
Pastel de saudade.

44
Na fila de idosos,
troca-troca de sintomas.
Quem não tem inventa.

45
Flagra na cozinha.
Um par de abelhas aos beijos
sobre o meu pudim.

46
Manhêêê – diz o piá –,
trouxe uma flor pra você.
Troco por um beijo.

47
Galinha caipira
desposa um pavão real.
Continho de fada.

48
Veja a parasita:
parece gente que a gente
acha até bonita...

49
É a cegonha, bem...
Tá caçando uma barriga
pra ninhar neném...

50
Tudo bem, poeta.
Minha terra tem Palmeiras,
mas sou são-paulino.

51
“Por que não te calas?”,
diz a arara ao papagaio.
– Se calo, me peias.

52
Na agüinha da bica
molha o bico o tico-tico.
Depois bica a tica.

53
Céu de “brigadeiro”.
– Aniversário de quem?,
me pergunta o neto.

54
Zunzunzum... zunzum...
É um pernilongo brincando
de fórmula um.

55
Futebol é assim:
só se ganha uma partida
na base do chute.

56
Balança o palanque.
O peso na consciência
do nobre orador.

57
Xô daqui, Seu Grilo.
Pega a tua cantoria,
pousa noutra cuca.

58
Banho de butique.
Mariposa bem-cuidada
vira borboleta.

59
Dó-ré-mi-fá-sol,
dó-ré-mi-fá-sol-lá-si.
Sabiá-laranjeira.

60
Bons tempos aqueles
da escola risonha e franca.
A bênção, fessora!

Fontes:
E-mail enviado pelo autor

Fotomontagem: José Feldman

Alcantara Machado (O Revoltado Robespierre)

(Senhor Natanael Robespierre dos Anjos)

Todos os dias úteis às dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecília encrencando com o motorneiro.

- Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua besta?

Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e dá um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-réis. Exige o troco imediatamente.

- Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom.

Retém o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco.

- O quê? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.

Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa:

- Isto até parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui:

- O que vale é que os homens um dia voltam...

Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada. Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo.

Não sei que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa!

Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistência. É agora:

- Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil-réis o quilo!

Não espera resposta. Não precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita:

- É como estou lhe contando: o quilo!

Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas.

- O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços.

Dá um tabefe no queixo mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo só engana os trouxas.

- Oh estupidez! O senhor já reparou naquele anúncio ali? Bem em cima da mulher de chapéu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE máquinassss! Fan-tás-tico! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, é verdade... Mas enfim...

É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo.

- Mas enfim...

A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.

- Mas enfim... Seu Serafim...

Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do Largo do Municipal. Esfrega as mãos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos:

- Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas!

Silêncio. Mas eloqüente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antônio.

- Não está vendo, seu animal, que a mulher; não se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha educação!

Cumprimenta rasgadamente o Doutor Indalécio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não o vê. Depois anota apressadamente o número do automóvel no verso de uma cautela do Monte de Socorro do Estado.

- O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... nada! Mas isto um dia acaba.

Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da I.R.F. Matarazzo:

- Ora se acaba!

Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da Rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem:

- Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.

Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fézinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palácio.

E todos os dias úteis às onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico.

Fontes:
MACHADO, Alcantara. Laranja da China. Ed. Nova Alexandria, 1996. Também disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br
Capa do Livro:
http://www.americanas.com.br

As Mil e Uma Noites (O Mercador e o Gênio)

Conta-se, ó afortunado rei, que viveu noutro tempo um mercador que possuía grandes riquezas e negócios em diversos países. Um dia, montou seu melhor cavalo e dirigiu-se a um desses países. No caminho, sentou-se sob uma árvore para descansar e alimentar-se. Ao comer tâmaras, lançava ao longe os caroços.

De súbito, apareceu um enorme Afrit que se aproximou dele, brandindo uma espada e gritando:

"Levanta-te que te mato como mataste meu filho!"

Perguntou o mercador:

"Quando e como matei teu filho?"

Respondeu o Afrit:

"Quando atiraste os caroços, um deles atingiu meu filho no peito, e ele morreu na hora”.

Vendo que não tinha outro recurso, o mercador disse ao Afrit:
"Fica sabendo, ó grande Afrit, que sou um crente que nunca falto à minha palavra. Possuo riquezas e filhos e uma esposa e inúmeros depósitos a mim confiados. Concede-me, pois, um prazo para que me despeça de minha família e distribua a cada um o que lhe é devido. Prometo voltar aqui no primeiro dia do ano, e tu disporás de mim como quiseres”.

O gênio confiou no mercador e deixou-o partir. Em casa, ele pôs em ordem suas obrigações, distribuiu suas riquezas e revelou a parentes e amigos a triste sorte que o esperava. Todos choraram, mas nada podiam fazer. No primeiro dia do ano, voltou ao lugar do encontro como prometera.

Sentou-se a chorar sobre sua sorte quando apareceu um xeque venerável conduzindo uma gazela presa.

"Por que estás sozinho neste lugar assombrado pelos gênios?" Perguntou ao mercador. "E por que estás chorando?"

O mercador contou-lhe a história.

- Por Alá, retrucou o velho, teu respeito pela palavra dada é coisa rara, e tua história é tão prodigiosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, seria matéria de meditação para os que refletem.

Sentou-se, dizendo que ficaria lá até ver o que aconteceria. De repente, apareceu um segundo xeque, conduzindo cães lebréus pretos. Saudou o mercador e o primeiro xeque e perguntou-lhes:

"Que fazeis neste lugar assombrado pelos gênios?"

Contaram-Ihe a história, e ele também disse que esperaria lá para ver como acabaria essa curiosa aventura. Logo em seguida chegou um terceiro xeque conduzindo uma mula. Saudou a todos e quis saber o que estavam fazendo naquela terra perigosa. Repetiram toda a história, e ele também se sentou para aguardar os acontecimentos. Momentos depois se levantou um turbilhão de poeira, e o gênio apareceu com um gládio afiado na mão e os olhos soltando chispas.

Agarrando o comerciante, disse-lhe:

"Vem que te mato como mataste meu filho, que era o sopro de minha vida e o fogo de meu coração”.

O primeiro xeque, mestre da gazela, criou coragem, beijou a mão do gênio e disse-lhe:

"Ó grande gênio, o mais elevado entre os reis dos gênios, se eu te contar a história desta gazela e ficares maravilhado, conceder-me-ás a graça de um terço do sangue deste mercador?"

O gênio concordou, e o xeque começou sua história:

“Ó grande Afrit, esta gazela era a filha de meu tio. Casei-me com ela quando éramos bem jovens e vivemos juntos trinta anos. Mas Alá não nos concedeu filho algum. Por isso tomei uma concubina que, com a graça de Alá, me deu um filho varão lindo como a lua nascente. Quando atingiu quinze anos, tive que viajar a negócios.

Ora, a filha de meu tio fora iniciada na feitiçaria desde a infância. Aproveitando minha ausência, transformou meu filho num bezerro e a mãe dele numa vaca, e juntou-os a nosso rebanho. Ao voltar, perguntei por eles. Minha esposa respondeu:

- A mulher morreu, e teu filho fugiu para não sei onde.

Um ano inteiro fiquei chorando, o coração reduzido a pedaços. No Dia do Sacrifício, pedi a meu pastor que me trouxesse uma vaca gorda. Trouxe-me a vaca que havia sido minha concubina. Mal me aproximei dela para matá-la, pôs-se a gemer e chorar. Parei, e pedi ao pastor que a degolasse. Cumpriu a ordem, mas não encontramos na vaca nem carne nem gordura, mas apenas pele e ossos.

Tive remorsos, inúteis como a maioria dos remorsos, e pedi ao pastor trazer-me um bezerro bem gordo. Trouxe-me meu próprio filho enfeitiçado. Quando me viu, rebentou a corda e jogou-se a meus pés com gemidos e lágrimas. Tive pena dele e ordenei que fosse substituído. Mas a malvada filha de meu tio disse:

- Devemos sacrificar é este bezerro mesmo. Está gordo como convém.

Obedecendo a não sei que instinto ofereci, antes, o bezerro de presente a meu pastor.

No dia seguinte, o pastor procurou-me e disse:

- Vou revelar-te um segredo que te alegrará e me valerá sem dúvida uma recompensa.

- O que é? - perguntei.

Respondeu: Minha filha é feiticeira. Ontem, quando me deste o bezerro, levei-o para a casa de minha filha. Mal o viu, cobriu o rosto com o véu e censurou-me: `Pai, agora estás me expondo aos olhos de homens estranhos?' Perguntei: `Onde vês homens estranhos?' Respondeu: `Este bezerro é o filho de nosso amo, mas está encantado. E foi a mulher de nosso amo que o encantou, ele e a sua mãe!'

Fui imediatamente com o pastor à casa de sua filha, e perguntei-lhe:

- É verdade o que contaste a teu pai acerca desse bezerro?'

- Sim, respondeu.

- Ó gentil e compassiva adolescente, se libertares meu filho, dar-te-ei todo meu gado e todas as propriedades que teu pai administra. "Sorriu e disse: `Ó amo generoso, aceitarei estas riquezas com duas condições: que me cases com teu filho e que me permitas enfeitiçar tua mulher. Sem isso, não tenho a certeza de poder prevalecer contra as suas perfídias.

"- Seja, respondi.

"Apanhou então uma bacia de cobre encheu-a de água e pronunciou conjurações mágicas. Em seguida, aspergiu o bezerro com a água, dizendo-lhe: ‘ Se Alá te criou bezerro, permanece bezerro; mas se estás enfeitiçado, volta a tua forma verídica, com a permissão de Alá.' Após tremer e agitar-se, o bezerro recuperou a forma humana. Era meu filho! Joguei-me em seus braços e cobri-o de beijos. Depois casei-o com a filha do pastor, e ela encantou a minha esposa e metamorfoseou-a nesta gazela."

- Bem espantosa, a tua história, bradou o Afrit. Concedo-te o terço do sangue deste malvado.

O segundo xeque adiantou-se então e disse: "Ó rei dos gênios, se te contar a história destes dois cachorros e a achares tão espantosa quanto a da gazela, conceder-me-ás um terço do sangue deste homem?"

- Vai falando, disse o Afrit.

"Saberás, ó senhor dos reis dos gênios", disse o segundo xeque, que estes dois cachorros são irmãos meus. Quando nosso pai morreu, deixou-nos três mil dinares. Com a minha parte, abri uma loja e comecei a comprar e vender. "Meus irmãos preferiram a aventura e viajaram com as caravanas por um ano inteiro. Quando voltaram, tinham desperdiçado todo o seu capital. Estavam pobres e tinham aspecto lamentável”.

Tive pena deles. Mandei-os ao hammam, comprei-lhes roupas finas e, pondo meu capital de lado, dividi com eles, em igualdade, todo o lucro daquele ano. E moramos juntos por muito tempo. Mas de novo queriam partir e insistiram para que fosse com eles. Embora os resultados de sua primeira viagem não fossem alentadores, consenti em acompanhá-los com uma condição: dividir o dinheiro que tínhamos - 6 mil dinares -- em duas partes iguais; deixar a metade escondida para nos amparar em caso de necessidade e partilhar a outra metade entre nós três. Concordaram e agradeceram-me. Com os 3 mil dinares, compramos as mercadorias mais indicadas, alugamos um navio, e embarcamos. Após viajarmos um mês, chegamos a uma cidade portuária onde vendemos nossas mercadorias com um lucro de dez por um. Quando voltamos ao porto para embarcar, encontramos lá uma mulher mal vestida que se aproximou de mim e beijou-me a mão, dizendo:

‘ Mestre, aceitas ajudar-me e me salvar? Por favor, casa-te comigo e me leva, e tudo farei para agradar-te.' Aceitei. Levei-a para o navio, vesti-a com esmero e partimos.

"Pouco a pouco fui tomado de um grande amor por ela. Não conseguia separar-me dela nem de dia nem de noite, e preferia sua companhia à de meus irmãos. Por sua vez, revelou-se uma mulher linda, inteligente, devotada e de nobre caráter”.

Infelizmente, meus irmãos me invejavam cada dia mais e, uma noite, quando estava deitado com minha mulher, insinuaram-se em nosso aposento, apanharam-nos e jogaram-nos em alto mar. Minha mulher despertou nas águas e, de repente, transformou-se numa Afrita e carregou-me nos ombros até uma ilha. Depois, desapareceu e só voltou na manhã seguinte, ainda mais bela, e disse-me: ‘ Não me reconheces? Sou tua esposa. Como vês, sou uma Afrita. Amei-te desde o primeiro instante em que te vi. Tiveste pena de mim e te casaste comigo. Agora salvei-te da morte com a permissão de Alá. Estamos quites. Quanto a teus irmãos, sinto-me cheia de ódio contra eles e vou afundar o navio em que estão e matá-los.'

Muito me custou convencê-la a não os matar. Carregou-me então nos ombros, ergueu-se no espaço e depositou-me em minha casa. Retirei os 3 mil dinares de seu esconderijo, reabri minha loja e comprei novas mercadorias.

"Quando voltei para casa, achei estes dois cachorros presos num canto. Ao me verem levantaram-se e começaram a chorar e agarrar-se às minhas vestes. ` São teus irmãos,' disse minha mulher. `Pedi à minha prima, que é mais versada em encantamentos do que eu, para dar-lhes esta forma, da qual só poderão libertar-se daqui a dez anos.'

"É por isto, ó poderoso gênio, que me encontro neste lugar. Estou a caminho da morada daquela prima de minha mulher a quem vou pedir que restitua a meus irmãos sua forma anterior, pois os dez anos já decorreram.”

Exclamou o Afrit: "Tua história também é surpreendente. De coração, concedo-te mais um terço do sangue deste maldito. Mas vou tirar-lhe o terço que me é ainda devido”.

O terceiro xeque, o da mula, interveio então dizendo:

"Ó grande Afrit, se te contar uma história ainda mais maravilhosa que essas duas, conceder-me-ás o último terço do sangue deste homem?"

O Afrit, que gostava muito de histórias raras, acedeu, dizendo: "Qual é a tua história?"

O terceiro xeque falou: “Ó sultão e chefe de todos os gênios, esta mula que vês aí é minha esposa. Uma vez, tive que fazer uma longa viagem, e quando voltei, certa noite, achei-a deitada com um escravo negro na minha própria cama”.Estavam conversando, rindo, beijando-se e excitando-se mutuamente com pequenos jogos. Assim que me viu, lançou sobre mim uma água mágica que me transformou em cão e me expulsou de casa. Saí a errar pela cidade. Um açougueiro apanhou-me e levou-me para sua família.

"Assim que a sua filha me viu, cobriu a face com o véu e censurou o pai por expô-la a um homem estranho.

`Onde vês homens?' perguntou o pai.

Ela respondeu: `Este cão é um homem. Uma mulher o enfeitiçou, e eu sou capaz de libertá-lo.' "-

Liberta-o, então, minha filha, pelo amor de Alá.

"Ela pegou uma vasilha de água, pronunciou certas palavras mágicas sobre a água, aspergiu-me com algumas gotas e disse: `Sai desta forma e retoma tua forma primeira.'

"Logo, voltei a ser homem e, beijando a mão da rapariga, disse-lhe que desejava muito que minha mulher fosse enfeitiçada do modo como me enfeitiçara. "

` É fácil,' disse a filha do açougueiro. E deu-me num vidro um pouco da água que usara para me salvar, dizendo: `Se encontrares tua mulher adormecida, borrifa-a com esta água, e ela tomará a aparência que tu indicares.'

"Fui para casa, encontrei minha mulher dormindo, aspergi-a com a água mágica, dizendo-lhe: `Sai dessa forma e toma a forma de uma mula.' Num instante, transformou-se numa mula, como podes verificar, ó sultão e chefe dos reis dos gênios."

O Afrit virou-se para a mula e perguntou: "É verdade?"

Ela abanou a cabeça como para responder: "Sim, é verdade”.

Ao escutar essa história, na qual o mal era punido, o gênio estremeceu de emoção e prazer e concedeu ao xeque a graça do último terço do sangue do mercador. O mercador, muito feliz, agradeceu aos três xeques e ao Afrit, e os xeques o felicitaram por sua salvação. E cada um voltou para sua terra.

Fontes:
Anônimo. As Histórias das Mil e Uma Noites. Ed. Globo, 2007.
Desenho:
http://heroi.weblog.com.pt

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Tatiana Ferraz (A Literatura “Fantástica” do Século XIX e o Nosso Tempo)

A arte é uma das muitas formas de expressões humanas, expressões sobre as impressões dos sentimentos produzidos através do amor, da filosofia, da guerra ou, unindo tudo isso, de um tempo.

O tempo, para um historiador, além de ser a matéria prima do seu trabalho, é uma palavra bastante complexa no sentido de definição. Mas como forma de consenso entre os historiadores, o tempo se tornou condição sine quo non para analisar o homem em seu espaço, outra palavra bastante desconcertante, pois no mundo das ciências humanas o espaço e o tempo são quase tão complexos quanto à teoria da Relatividade de Einstein.

O texto não poderia está mais prolixo!

Tudo isso para situar o sujeito em questão – a literatura Fantástica do século XIX. A pergunta que não quer calar é: por que não – A Fantástica Literatura do século XIX? A resposta está no “simples” ato de contextualizar a palavra - Fantástico no seu tempo e no seu espaço. O “Fantástico”, nesse caso específico, não se trata de um adjetivo, mas de uma tendência literária também conhecida como Literatura Gótica.

Um rápido esclarecimento. A Literatura Gótica foi um movimento literário que surgiu no século XIX num contexto inglês conhecido como época Vitoriana. Esse movimento literário surge como uma forma de oposição à literatura produzida no período Iluminista, onde o racionalismo e o cientificismo lutavam contra o sentimentalismo das trevas medievais.

Caros leitores, as trevas medievais foram quase que um “dogma” forjado pelas “luzes” iluministas, que a favor da razão, promessa de salvação da humanidade, condenaram literalmente a idade média e toda a tragédia grega à escuridão. Enquanto na idade das trevas se punia com a fogueira, na idade das luzes se condenava a escuridão. Os autores da Literatura Fantástica ou Gótica ambientavam suas histórias em lugares que inspiravam uma mente assustada como florestas escuras, cemitérios, castelos, igrejas e ruínas em geral. Os escritores góticos também eram chamados de poetas de cemitérios. Na verdade o gótico é uma tendência romântica de expressar as inquietudes da natureza humana com relação ao seu tempo e seu espaço. É como se o homem, insatisfeito com o seu momento na história, expressasse através da arte os seus medos e os solucionassem através do “fantástico”. O século XIX foi um período de grandes promessas. A proposta da ciência de auxílio à modernidade e garantia dos espaços do indivíduo na sociedade, se mostrava como uma grande balela na história. Na Inglaterra Vitoriana a Revolução Industrial trouxe consigo uma série de problemas sociais, dentre os quais uma superpopulação que trabalhava em regime semi-escravo nas fábricas, onde velhos e crianças se transformavam em restos humanos. Depois do trabalho essas pessoas tinham a opção de se amontoarem nas vilas operárias, onde a marginalidade, a prostituição e a sífilis co-habitavam harmoniosamente.

Bram Stoker soluciona os problemas sociais da época vitoriana criando um monstro – o conde Drácula, que se alimenta do sangue humano e se dirige para a Inglaterra onde existe uma superpopulação, pronta para ser devorada. O vampiro, na verdade, será uma espécie de peste necessária, um Jack, o Estripador.

A ciência no século XIX, quanto à questão da medicina e da física, “progride” a olhos vistos. A sangria do período das trevas já é considerada uma “heresia”. O corpo humano deixa de ser a última fronteira para exploração científica, onde a culpa cristã não encontra moradia. Para as doenças são descobertas as curas e a longevidade humana deixa de ser desejo para se tornar um fato, o homem brinca de ser Deus. Eis que então Mary Shelley vem com seu monstro Frankenstein, pedaços humanos que tem vida através de uma mão humana que desafia o criador. Dr Victor Frankenstein é punido com o seu próprio crime. O desejo de se tornar o próprio Deus criador, se rebelando contra o mesmo, ao criar sua própria criatura, faz com que a sua condição de “filho rebelde” seja punido com a perda da família, do amor e, por fim, da sanidade, ou seja, a sociedade cristã torna-se inacessível ao humano que sofre da síndrome de Adão e Eva e desafia Deus – a criatura que se volta contra seu criador. Na França do século XIX a fonte de inspiração para os escritores, pintores, músicos e todas as formas de expressão artística vão convergir para o baixo meretrício onde a proliferação da sífilis e da tuberculose forjaram uma única saída de felicidade para a literatura - o monstro morte.

O racionalismo e o cientificismo não solucionam os conflitos da alma nem os da mente. As inquietudes humanas são analisadas pelos românticos não apenas na realidade vivida, mas num universo paralelo produzido pela mente, onde o “fantástico” habita no inconsciente humano e utiliza-se do simbólico para se contrapor ao racional. Charles Baudelaire (fonte de inspiração para os poetas malditos) será o totem dos escritores simbolistas onde a mistura dos sentidos e das percepções do mundo (Sinestesia), por uma mente em conflito, geram a beleza das Flores do Mal.

No Brasil Augusto dos Anjos será um dos principais expoentes dos artistas dos cemitérios, afetados pelas DSTs, pela tuberculose e pela falta de perspectiva que as luzes prometeram, mas não cumpriram, ou seja, “...a mesma mão que afagas é a mesma que te apedrejas”,foram a fonte de inspiração para a tendência do mal do século que, também elegeram o monstro morte como solução.

E hoje qual o monstro criaríamos para solucionar os problemas da nossa sociedade? O que seria supostamente “fantástico” que nos fizesse combater a fome, a miséria, a falta de emprego e de perspectiva para o futuro, mesmo que seja na ficção?

A literatura contemporânea utiliza o “fantástico” para criticar. O caso de Gabriel Garcia Marquez com os seus Cem anos de Solidão,vem nos mostrar que todo caudilhismo, mesmo sendo “fantástico”, tende a sucumbir nele mesmo. Será que vai ser o caso do nosso presidente? Observação infeliz!

O grande expoente da literatura contemporânea Latino Americana – Juan Rulfo – com o seu Pedro Páramo, traz um manifesto de luta de classe, através de um diálogo entre os mortos embaixo da terra. Entretanto os tais zumbis não solucionam os problemas sociais dos países sul americanos.

A verdade é que nem na fantasia a nossa sociedade moderna ou pós-moderna cosmopolita encontra a salvação. Entretanto, apesar da riqueza e da sedução que a literatura nos fornece, talvez a fórmula não esteja na solução oferecida pela mesma, mas na análise dos medos que levaram a sua concepção. Os problemas sociais não foram resolvidos pelo “fantástico”, entretanto são os mesmos problemas que a humanidade sofre que reincidem em outros tempos, em nosso tempo, em vários espaços, em nosso espaço e, talvez o “fantástico” esteja no simples fato de que podemos até sucumbir diante de nossos medos, mas a história continua!

Fonte:
http://www.duplipensar.net/artigos/2005-Q2/literatura-fantastica-seculo-xix.html

Imagem: http://farm3.static.flickr.com/