quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Fábulas (A Inveja do Grilo)


Certo grilo vivia num espaçoso campo, revestido de uma relva verde e cheia de viço e onde de tempo em tempo se viam flores silvestres de todas as cores, embelezando e enchendo de agradável perfume toda a vasta extensão daquele campo.

Numa ensolarada manhã primaveril, enquanto o Sol despontava fazendo brilhar com seus raios as gotas de orvalho que pendiam das pétalas coloridas, ele cochilava escondido entre as folhas de um arbusto espesso. De repente, despertou assustado com o esvoaçar ligeiro de um inseto que se aproximava. Era uma borboleta leve e graciosa que enfeitava o espaço.

- Que maravilha! - exclamou o grilo encantado - que asas delicadas e que colorido tão harmonioso que se distribui complementando o conjunto!

Diante de um quadro tão espetacular - uma borboleta cheia de beleza e graça beijando as flores orvalhadas - o pobre grilo, olhando o seu corpinho escuro e suas asas transparentes, sentiu uma vívida inveja e pôs-se a lamentar com amargura e descontentamento:

- Como sou feio! Malformado, incapaz de alçar um voo ágil. Gostaria tanto de possuir uma parcela do encantamento da borboleta, com sua leveza e seu colorido encantador. Quem me dera poder experimentar uma metamorfose que me transformasse e me fizesse feliz como a borboleta.

Enquanto o pobre grilo se angustiava nesse pensamento, chegou um bando de crianças que, vendo a linda borboleta que por ali voava, investiu contra ela na mais louca perseguição, sem tomar conhecimento da existência do grilo que, infeliz, lamentava-se na escuridão do arbusto.

Voa daqui, voa dali, e a borboleta, embora ágil, acabou mesmo sendo caçada pelo grupo de crianças. Vendo tão lindo inseto preso sem poder se defender diante de tamanha crueldade, foi que o grilo reconheceu:

- Afinal, é muito bom ser assim tão feio como sou. A borboleta perdeu a liberdade, e quem sabe a vida, só por ser bela!

Então, aliviado, o grilo voltou a cochilar no seu galhinho despreocupadamente.

(autoria desconhecida)

Frazão Teixeira (Poemas Diversos)


AMORZANDO

Este longo viver já me fatiga,
mas há o amor; o amor é uma serpente
que às delicias da carne nos instiga,
fazendo-nos de Adão impenitente.

De ti quero o milagre que consiga,
pela magia do teu corpo ardente,
— das cinzas, que renasça a chama antiga,
— do amor, que eu não me canse e não me ausente.

Por este amor eu luto bravamente,
enquanto houver no frasco dos desejos
a ânsia derradeira dos meus beijos,

que um dia há de exaurir-se finalmente;
e este animal que existe em mim se afasta
restando apenas amizade casta.
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BREVE ENTRECHO

Eis-me aqui, triste e só, onde moramos.
Neste palco de eterno encantamento,
o amor que nos ligou por um momento
foi breve ato que então representamos.

Neste cenário, os pássaros nos ramos
vinham de longe em busca de alimento;
além, no rio, o gado ia sedento,
e nós, artistas, quanto nos amamos!

Tu foste a estrela, bela, sem igual,
e eu o galã, indômito, sem medo,
na trama de uma história tão banal.

Porém não foi feliz o autor do enredo;
sem ao menos ter sido original,
o desenlace veio muito cedo.
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O MILAGRE DE UMA IMAGEM

Sem possuí-la, o que de mim seria?
Vivia sem ninguém, desesperado;
a mim nada de bom acontecia,
enfim, eu era um pobre desgraçado.

Ela veio, coberta, e ainda fria,
mas, logo, diante dela, já sentado,
revelou-se-me a imagem que eu queria,
como um corpo de fêmea desejado.

Gozei-lhe as formas, tão sensuais e belas,
com brilho e nitidez de um claro dia.
Foram horas vividas de alegria.

Porém, como acontece a todas elas,
a conserto mandei num caminhão
a minha "comercial" televisão.
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TEMPO

Não te apresses, não vás assim voando,
pois, preso em tuas asas, vou contigo,
és um corcel alado sem comando,
e em teus arrancos loucos há perigo.

Sê calmo como antigamente, quando
em minha infância foste meu amigo;
é mister que progridas lento e brando
neste breve caminho que ora sigo,

onde és prazo da vida, mensurável
no espaço que me resta tão precário.
A Morte sempre chega em seu horário

e cumpre seu destino inexorável.
Detém-te, Tempo, escuta o que te peço,
minha viagem não terá regresso!
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UMA MENINA E UM RAPAZ

Sempre via passando pela rua
a menina de encantos celestiais;
seu sorriso a beleza lhe acentua,
sua graça ela exibe até demais.

Uma saudade logo se insinua
na lembrança sentida de um rapaz:
sua ausência mais triste fez a rua,
como tristes meus olhos ela faz.

Nos meus braços, à luz sutil da lua,
- sonho impossível — eu quisera tê-la,
mas Deus lhe deu para morada sua

o céu, onde é talvez errante estrela,
que vejo nos meus sonhos, clara e nua,
eu que daria um mundo para vê-la.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Fernando Sabino (Conversa de Botequim)


— Essa rainha da Inglaterra vai acabar entrando pelo cano.

— Por quê?

— Vir no Brasil uma hora dessas? Pau comendo solto por aí...

— Tem polícia pra proteger ela, que é que há?

— Polícia? A polícia mesmo é que está baixando o pau, armando bochincho...

— Psiu, fala baixo, crioulo. Tá querendo ir em cana? Meu chapa! Solta mais uma, bem gelada!

— Vi o retrato dela na capa duma revista: até que é uma coroa bem apanhada. Nós vamos tomar mais uma?

— Vamos. Te aguenta aí que quem paga sou eu. Hoje estou com o tutu.

— O rei também vem?

— Que rei?

— Marido da rainha.

— Tu é mesmo crioulo doido: o marido dela não é rei, é príncipe.

— Quem te disse isso?

— Vai por mim.

— Essa não! Marido de rainha só pode ser rei. Príncipe é filho.

— Pois o dela é príncipe. Deixa pra lá, tu não entende disso: é coisa de inglês.

— Um cara aí me disse que ela vai inaugurar a ponte Rio—Niterói.

— Só se for nadando: a ponte ainda nem começou!

— Diz também que ela quer ver o Pelé jogar.

— Cariocas e paulistas. Eu tou nessa boca.

— A gente devia ter uma também, até que seria bacana.

— Uma o quê?

— Uma rainha.

— Tu tá com essa rainha na cabeça, que é que há?

— Por que é que não pode ter?

— Porque aqui não é reinado, é presidência, só por isso. Essa já não tá tão gelada.

— Uma rainha era capaz de consertar essa joça. Pra te falar a verdade... Posso falar a verdade?

— Pode. Mas fala baixo, crioulo, que não tou pra entrar em fria. Olha o doutor aí na outra mesa ouvindo a gente. Acaba essa e vamos pedir outra mais gelada.

— E daí? Tou falando o que todo mundo sabe: que esse país tá uma joça. E tá mesmo.

— Pronto, começou a ignorância. Continua assim, que eu vou puxando.

— Só uma rainha pra dar jeito nessa gente, botar respeito. Enquadrar essa polícia, esses milicos.

— Com essa eu me mando. Garotão! Suspende a brama, traz a nota! Tu ainda vai se dar mal, crioulo.

— Pera aí! Não tou falando nada demais. Só tou falando que uma rainha mesmo de verdade ficava no trono até morrer, todo mundo respeitava ela, não tinha esse negócio de toda hora tirar o presidente e botar outro. Tou certo ou não tou?

— Tu tá é no fogo, olha aí: entornou a lourinha.

— No tempo do Getúlio não tinha dessas coisas: Getúlio era feito uma rainha.

— Não tinha? E o fim que ele teve? Para com essa conversa de comunista, crioulo, que tu ainda vai ver o sol nascer quadrado. A gente já não tivemos rainha? Princesa Isabel, Pedro II, essas coisas? E deu certo? Me diga se deu certo.

— Pede outra cerveja pra gente chulear a conversa.

— Então muda de assunto. Para de falar nessa rainha, que já tá enchendo.

— Então no que é que a gente vai falar?

— Sei lá. Melhor ficar calado do que ficar falando besteira.

— Mas tu concorda que nem conversa boa a gente pode ter mais.

— Ah, isso eu concordo. Olha aí, essa tá que é uma beleza de gelada.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 379

 


Arquivo Spina 6 (Solange Colombara)

 











Nota:

Ressuda epicédio = transpiração poética.

Stanislaw Ponte Preta (A Velha Contrabandista)


Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega — tudo malandro velho — começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

— Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

— É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez.

Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

— Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

— Mas no saco só tem areia! — insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

— Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a  senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora
está passando por aqui todos os dias?

— O senhor promete que não "espáia"? — quis saber a velhinha.

— Juro — respondeu o fiscal.

— É lambreta.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Poema 2, final


Paulo Corrêa Lopes
Itaqui/RS, 1898 – 1957, Porto Alegre/RS

POEMA

Quando eu falo ficas calada
e o teu silêncio põe um perfume de sonho
em minhas palavras.
Se eu pudesse te dizer
tudo o que anda nos meus olhos
depois que meus olhos te encontraram!

Se eu pudesse te dizer um pouco ao menos
do meu amor!

Se eu pudesse falar sobre o meu amor
verias sóis caindo sobre o mundo
verias mares estranhos terras distantes
cantando cantando!

Se eu pudesse falar sobre o meu amor
ouvirias clarins de guerra
longe vibrando entre montanhas!

Se eu pudesse te dizer
tudo o que anda nos meus olhos
depois que os meus olhos te encontraram,,.
****************************************

Noel Nascimento
Ponta Grossa/PR, 1925 – 2013, Curitiba/PR

O POEMA DO BEM

Não consta em antologia
ou num livro de poesias
o mais belo dos poemas.

Poema no ar,
revoada de palavras
— arco-íris nas asas —
anunciando a nova primavera.
Bálsamo aramaico
de arabescos milagrosos,
verso bíblico
de palavras semeadas
e frutificando amores.
Perene poesia
de bem-aventurança
e glória dos humildes.
Poema puro,
poema santo,
forma de esperança.
A fé faz ouvi-lo
e compreendê-lo,
repicam-no os sinos,
cantam-no os pássaros,
poema eterno,
Ruem os impérios,
mas permanece a poesia
do Sermão da Montanha.
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Alziro Zarur
Rio de Janeiro/RJ, 1914 -1979

POEMA AO DEUS DIVINO

O Deus que é o Perfeito, e que ora eu tento
Cantar em versos de sinceridade,
Eu nunca O vi, como em nenhum momento
Vi eu o vento ou a eletricidade.

Mas esse Deus, que é o meu eterno alento,
Deus de Amor, de Justiça e de Bondade,
Eu, que O não vejo, eu O sinto de verdade,
Como à eletricidade, como ao vento.

E O sinto na ânsia purificadora,
Na manifestação renovadora
Do Belo, da Pureza, da Afeição.

Com ele falo em preces inefáveis,
Envolto em vibrações inenarraráveis,
Que me trazem clarões da Perfeição.

Pois creio é nesse Deus imarscecível
Que ampara a Humanidade imperfeitíssima;
Deus de uma Perfeição inacessível
A humana indagação falibilíssima.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.

Arthur de Azevedo (A Praia de Santa Luzia)


Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa contra vida conjugal. Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia para a repartição às nove horas, e às quatro estava em casa, invariavelmente. Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a. Adorava-a, mas um dia...

Não! não precipitemos o conto; procedamos com método:

Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o bondinho que contornava parte do morro do castelo, e ia despejá-lo no Carceler, perto da repartição. Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com tão rigorosa
pontualidade.

Num dia as montanhas da outra banda pareciam desfazerem-se em nuvens tênues e azuladas, confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte pedregosa do Arsenal de Guerra, — tudo isso encantava o nosso Maurício pelos seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense — moça faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques.

E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital fronteiro! A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se, mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e consoladora impressão do espetáculo da vida.

Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá dentro.

Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe, depois de olhar para o Necrotério:

— Três hóspedes!

Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa, de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a cor dos anjos do céu.

Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos, como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia.

Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena.

Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se estabelecesse ligeira familiaridade. uma dia a moça teve um gesto de cabeça, quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por diante nunca mais deixou de cumprimentá-la.

Quinze dia depois, ela acompanhou o cumprimento por um sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele, que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de aspecto. Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os dois lábios curvados por uma simpatia irresistível, - e se os dois jovens já se não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem sorrir um para o outro.

Um dia o cumprimento mudou inesperadamente de forma; ela disse adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem cerimônia, como o faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo. quase inconsciente.

Estavam as coisas neste ponto — o fogo ao pé da pólvora — quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta à Maurício.

— Esta que Sinházinha mandou.

O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega.

“Me escreva e me diga como chama-se em que ano está e cuando se forma, e quero saber se gostas de mim por passatempo ou se pedes a minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mãy e um irmão. Desta que lhe ama, - Adélia.”

Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça ideias de namoro, amava muito sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um acessório do seu panorama.

Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: — Quando te casas comigo? — ou a ermida da Glória lhe dissesse: — Pede-me a papai!...

Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de seção, que o apreciava muito. Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe:

— Que devo fazer?

— Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau!

— Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha! A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me parece indispensável à existência; Por amor de Deus, não me prive da praia de Santa Luzia.

— Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado.

— Dizer-lhe... Mas como?

— Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la, mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá.

Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu perfeitamente a grossa aliança de ouro.

Mas no dia seguinte a moça esperou-o ainda mais satisfeita e risonha que na véspera - e o moleque, trepando pela segunda vez à plataforma do carro, entregou a Maurício outra cartinha.

— Que diabo! pensou ele, guardando a epístola. Ela sorria. Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse despeitada. As mulheres são assim. Faço ideia da descompostura que aqui está escrita!

Enganava-se:

“Meu amor — Vejo que você já comprou sua Aliansa e eu também ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nem çei o teu nome. Tua até morrer, Adélia."

Maurício tomou — pudera! — a heroica e sublime resolução de se privar da praia de Santa Luzia.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Belém/PA: UNAMA. Domínio Público.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 378

 


Arquivo Spina 5 (Antonio Queiroz)

 


Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dezesseis


SONO INVULGAR

ARTEROSCLEROSO FOI FLAGRADO enquanto dormia na sala de aula. Boca aberta roncava e babava. Vez em quando, restrugia, tempestuando uns sons que estalejavam acima do normal. Os colegas, em vista disto, dispostos em derredor de sua ociosa prostração, algazarravam imitando o desditoso moleque. A tia Virgínia, professora de português, a certa altura, quase a perder o fio de meada e, sobretudo, furiosa, face aquela falta de atenção de seu aluno, e por conta dele, a classe inteira descaseada em alvoroço, achou por bem acordá-lo e, ato contínuo, mandá-lo para casa. Como era a primeira cochilada, apesar de muitíssimo aperreada com a falta de modos do garoto, daria uma chance.

Perdoaria o moleque não tomando nenhuma decisão mais drástica, como encaminhar o dorminhoco para a diretoria, ou o que considerava mais incisivo que isso, advertir os pais com um bilhete para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido. Assim que Arteroscleroso saiu de cena, a mestra, à promessa de uma compensação a ser observada na próxima aula, pediu para que os demais esquecessem aquela cena objetivando que a notícia não virasse chacota e vazasse, ou fosse parar nos ouvidos dos responsáveis pelo moleque cansado. Quanto a isto, tudo transcorreu dentro da normalidade esperada. E o caso, de fato, caiu arquivado no esquecimento.

Ao contrario, a mãe do moleque, dona Ximanga, vendo o filho mais cedo em casa, ficou com a pulga coçando atrás da orelha, além de obstinadamente cabreira. Resolveu tirar a história a limpo assim que ele cruzou o portão de entrada:

— Ar, — perguntou, de chofre. — Por que chegou antes do horário previsto?

O piá se fez evasivo e peremptório:

— Não cheguei, mãe!

Dona Ximanga insistiu resoluta:

— Como não? Seu horário é às cinco da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso tão repentino?

Arteroscleroso teimoso como uma mula, rebateu na tecla do que havia dito:

— Estou dentro do meu horário, mãe.

A mulher começou a dar sinais de impaciência diante daquela lorota arguciante:

— Não minta...

O guri desconversou embaiado num logro que se fazia visível:

— Seu relógio é que está errado, mãe.

Dona Ximanga bateu com a mão esquerda sobre o tampo da mesa. Um vaso que sobre ela estava, à guisa de enfeite, com uma flor de plástico entubada, deu um salto, como se tivesse, de repente, se assustado:

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

Arteroscleroso seguiu reservado no inalterado da sua resposta una:

— Não estou lhe tirando...

Dona Ximanga embrabeceu o tom da voz:

— Está sim. Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

O Filho procurou uma vez mais mostrar uma calma inexistente prestes a escorregar pelo ralo da sua palidez:

— Não, senhora!

A mãe arrochou o cerco pegando carona nesta brecha:

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou mais cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em perpetuar um erro ostensivo querendo se fazer de idiota. Você não é um pateta. Seu nariz vai crescer. Está lembrado daquele menino do livro que pegou outro dia na biblioteca onde um tal de Timóteo...?

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome da criatura não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Está bem mãe. Eu conto — obtemperou a fisga de uma nova paparrotice. — A tia Virgínia, minha professora de português me pegou beijando a Glorinha...

— Aonde?

— No banheiro das meninas...

— Em que lugar foi o ato, mocinho?

— Ah, sim. A senhora não explica! Na boca... Onde mais poderia ser?

Dona Ximanga, ao saber dessa proeza do filho, saltitou.  Pulou de alegria. Todo seu ego se satisfez orgulhoso:

— Puxou seu pai. O cachorro do seu pai...

— E por que chama papai de cachorro?

— Porque quando começamos a namorar, o danadinho me cobriu de beijos.

— Não sabia! Onde, mãe?

— Não vem ao caso...

Sem esperar por outra indagação, a jovem mãe se achegou de seu querido filho e o cobriu carinhosamente num forte e afetuoso abraço apertado:

— Graças a Deus, Ar. Temos a perpetuação da espécie. O mais novo machão do pedaço. Pensei que a tia Virginia, a sua professora, houvesse surpreendido você de boca aberta, dormindo e roncando na aula dela. Pior, babando. Ai meu querido, a sua mãe iria perder a esportiva e ficar muito louca da vida. Talvez até lhe desse uns bons tabefes. Glorinha? Legal! Ótima notícia. Safadinho, hein? — Agora vá tirar o uniforme e lavar as mãos. Vou preparar um lanche bem gostoso para nós.  
   
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.      Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poliniz - Arte)


- Me dê a  a mão - pediu a planta trepadeira -
A uma roseira exuberante  e delicada,
Que, prontamente, a atendeu, lisonjeada
Com aquele afago de uma amiga tão... faceira.

Mas a plantinha, que a princípio aparentava
Uma ternura tão sublime e envolvente,
Fez do carinho, um abraço intransigente,
Que... mansamente... a roseira... sufocava.

Suas ramagens tão sutis... mas tão nocivas,
Se transformaram em algemas e cipós
Que entrelaçaram-se na... amiga... em fortes nós,
Com suas garras passionais e possessivas.

Brotos, botões e as flores mais   maravilhosas
Foram, aos poucos,  definhando, entristecidas...
Um jardineiro, preocupado em criar vidas,
Por um instante percebeu a dor das rosas...

E com cuidado, doce afeto e gratidão
Às flores lindas  que enfeitavam  seu jardim,
Desenlaçou-as das amarras, pondo fim
Àquela cena de tortura e de prisão .

Essa liana leviana e intransigente
Foi conduzida ao habitat de onde viera
Porque a planta que é ruim, sempre se esmera
Em destruir, desde que brota da semente.

Qual trepadeira de  aparência  inocente
Há muita gente que usa o outro e o destrói
Sem nem saber o quanto o abandono dói
Porém  dói mais,  sermos usados...  falsamente.

A ingenuidade dos que têm algum encanto
Porque produzem, com amor, a criação,
É uma flor que poliniza a emoção
Até com as gotas mais sutis do próprio pranto.

E toda vez que algumas plantas venenosas
Nos despetalam, por inveja ou desamor,
Os nossos polens sempre fazem nossa dor
Se transformar na brotação de novas rosas.

Quem te abandona...após usar-te... é  assim:
Sorri contigo e te elogia...  mas te cobra.
Só  não consegue compreender que a tua obra
É só uma flor que ainda brota em seu jardim.

Fonte:
Facebook do poeta

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Assim Começou o Albergue


Meados de 1958. Manoel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”), parou diante de minha casa montado numa motocicleta e armado de máquina fotográfica. Pediu-me que subisse à garupa e o acompanhasse numa visita sem aviso prévio a uma instituição então conhecida como “albergue noturno”, que funcionava em Maringá por conta de um órgão do estado, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FATR. Era uma hospedaria sem nenhum conforto, destinada a acolher migrantes que chegavam de várias origens atraídos pela fama do novo Eldorado, e que ali permaneciam enquanto procuravam emprego.

Dava medo só de olhar. Camas quebradas, colchões rasgados, percevejos, baratas, mau cheiro. E os albergados espalhados no meio daquela sujeira toda.

O funcionário que nos recebeu ficou meio assustado, deu algumas tímidas explicações, disse que a verba era curta, pouca gente ajudava... Só ele e mais dois ajudantes para cuidar da limpeza, da cozinha, do dormitório. No dia seguinte “A Tribuna” soltou a matéria em primeira página, com larga manchete, denunciando aquela coisa horrível. A repercussão foi imediata.

Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro bispo de Maringá, havia chegado à cidade fazia pouco mais de um ano. Alertado pela reportagem, foi conhecer a situação de perto. Deu uma olhada geral nas instalações, fez algumas perguntas ao encarregado e conversou longamente com os migrantes. Saiu de lá chorando e prometeu dar um jeito naquilo o mais rápido possível. Logo em seguida entrou em contato com autoridades do governo estadual.

Após as negociações necessárias, conseguiu que o estabelecimento fosse transferido para a diocese. Oficializada a documentação, Dom Jaime de pronto mandou fazer uma ampla faxina, reformou os sanitários e colocou camas e colchões novos.

No início de 1959 a instituição foi reinaugurada, passando a chamar-se Albergue Santa Luísa de Marillac, inicialmente dirigido por três irmãs vicentinas: Sebastiana, Ivone e Delfina.

Pouco depois, assumiu a direção do Albergue uma santa e heroica vicentina, Irmã Vicenza, fervorosa devota de São José. Lembro-me bem de uma entrevista que publicamos na revista “NP” com o título “São José resolve tudo”, na qual a querida irmãzinha contava como conseguia resolver os problemas de manutenção da casa. Se, por exemplo, faltava feijão, ela dava um “aperto” em São José e sem demora aparecia algum bondoso doador trazendo um saco do produto.

Após alguns anos, já velhinha e sem condições de saúde para continuar a cuidar dos seus pobrinhos, Irmã Vicenza passou a direção a outra pessoa maravilhosa, Irmã Salomé.

Desde então, com o apoio da comunidade e a proteção contínua de São José, o albergue Santa Luísa de Marilac, hoje aos cuidados de dedicados irmãos franciscanos e num prédio bem equipado e com amplos espaços, continua prestando extraordinário serviço a milhares de carentes, que ali encontram abrigo, alimento e amor.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03-9-2020)

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/09/assim-comecou-o-albergue.html

domingo, 13 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 377

 


Arquivo Spina 4 (Valéria Gurgel)

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 8


Amanheceu azul a cambraia celeste.

Ventinhos vivaces. As galharias farfalham levemente. Canarinhos sonoros na quirerinha. Eis que nuvens escuras surgem não sei de onde. Ventos trazem mormaço e as trovoadas. Vem a chuva.

A orquestra da vida também toca em tons variados e variáveis. Vê-se e se ouve que pessoas têm adoecido por conta do mal que assola o mundo e transformou (transtornou) tanta coisa inimaginável. Momento de calma.

Há males passageiros que temos que suportar. Essa pandemia passará e voltaremos ao normal. Muitas atividades mudarão de rotina, mas o importante é que a vida segue.

Lembremos Domenico de Masi - filósofo e escritor, além de educador - que no início dos anos 2000 revolucionou as ideias com o conceito chamado "ócio criativo", apregoando que num futuro próximo as pessoas iriam trabalhar em casa. A evolução tecnológica iria mudar as formas de trabalho. Viria o tempo para o ócio criativo, quando as pessoas trabalham em casa e têm também tempo para o ócio ligado ao lazer, ao estudo, ao lúdico. Premonição?Vaticínio? Ou visão? Chegamos a este tempo?

Ideias de adaptação vão clarear e até inspiração para o "home working" surgirá.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) IV


CONTO DE FADAS

Todo mundo fala
Que conto de fadas não existe,
Mas eu posso mudar tudo
E inventar um só pra nós dois.

Tem gente que fala
Que o amor é coisa triste,
Que tem medo de se entregar
E deixa tudo pra depois.

Mas eu posso te mostrar
Que o amor pode nos dar
Asas pra voar até o céu,

Basta você se entregar
Que eu posso te mostrar
Que o amor tem o sabor do mel,

E se, mesmo você não aceitar,
Vou pedir um anjo cupido pra flechar seu coração
E trazer você pra mim,
Pra ser a rima dos meus versos
E a melodia da minha canção.

(Celso Malzotti / Edy Soares)
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FIM DE ESTAÇÃO

Quando acabar a guerra,
Não precisa mais munição.

Quando acabar a dor,
Não precisa mais compaixão.

Quando acabar o amor,
Os mortos estarão mortos,
Os corpos sobrepostos
E a alma sem salvação.

Quando acabar a esperança,
Terá acabado a razão.

Quando não tiver mais quem lute,
Estará dominada a nação.

Os abutres continuarão com fome,
Sem como explorar mais os homens,
Terá chegado o fim da estação.

Quem produzia fora exterminado;
Quem explorava, condenado
A não ter mais quem lhe dê o pão.

Os virtuosos foram dizimados;
Do fruto do trabalho, despojados
E destruídos por quem conduziu o mundo
À ultima estação.
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REINO DE AVILAN

Frívola cúpula, travestida,
Consciente de que é despudorada,
Se iguala a qualquer prostituta,
Não se importa em ficar mal falada.

Se vende a qualquer vagabundo,
Acompanha qualquer delinquente,
Não tem moral para ser respeitada.
É vulgar e envergonha sua gente.

Se vendesse apenas seu corpo,
Poderia ser, talvez, perdoada.
Mas entrega barato sua prole,
Para ser também explorada.

Não tem cura, é pecadora,
Dá- se assim desde menina,
Não é de hoje que se lambuza
Num prostíbulo de gente grã-fina.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro gentilmente enviado pelo poeta.

sábado, 12 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 376

 


Arquivo Spina 3 (Marilice Cavalli de Oliveira)

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 4, 5 e 6


A HÓSPEDE IMPORTUNA

O joão-de-barro já estava arrependido de acolher em casa a fêmea que lhe pedira agasalho em caráter de emergência. Ela se desentendera com o companheiro e este a convidara a retirar-se. Não tendo habilidades de construtor, recorreu à primeira casa de joão-de-barro que encontrou, e o dono foi generoso, abrigando-a.

Sucede que o joão-de-barro era misógino, e construíra a habitação para seu uso exclusivo. A presença insólita perturbava seus hábitos. Já não sentia prazer em voar e descansar, e sabe-se como os joões-de-barro são joviais. A fêmea insistia em estabelecer com ele o dueto de gritos musicais, e parecia inclinada a ir mais longe, para grande aborrecimento do solitário.

Então ele decidiu pedir o auxílio de um colega a fim de se ver livre da importuna. O amigo estava justamente tomando as primeiras providências para fazer casa. “Antes de prosseguir, você vai me fazer um obséquio”, disse-lhe. “Vamos até lá em casa e veja se conquista uma intrusa que não quer sair de lá.”

O segundo joão-de-barro atendeu ao primeiro e, no interior da casa deste, cativou as graças da ave. Achou-se tão bem lá que não quis mais sair. Para que iria dar-se ao trabalho de construir casa, se já dispunha daquela, com amor a seu lado?

Assim quedaram os três, e o dono solteirão, sem força para reagir, tornou-se serviçal do par, trazendo-lhe alimentos e prestando pequenos serviços. Ainda bem que construíra uma casa espaçosa — suspirava ele.
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A LANTERNINHA

Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive ideia de fazer a experiência de luz errante. A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.

A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.

A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
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A MELHOR OPÇÃO

Todos começaram a dizer que o ouro é a melhor opção de investimento.

Fernão Soropita deixou-se convencer e, não tendo recursos bastantes para investir na Bolsa de Zurique, mandou fazer uma dentadura de ouro maciço. Substituir sua dentadura convencional por outra, preciosa e ridícula, valeu-lhe aborrecimentos. O protético não queria aceitar a encomenda; mesmo se esforçando por executá-la com perfeição, o resultado foi insatisfatório. O aparelho não aderia à boca. Seu peso era demasiado. A cada correção diminuía o valor em ouro. E o ouro subindo de cotação no mercado internacional.

O pior é que Fernão passou a ter medo de todos que se aproximavam dele. O receio de ser assaltado não o abandonava. Deixou de sorrir e até de abrir a boca.

Na calçada a moça lhe perguntou onde ficava a rua Gonçalves Dias. Respondeu inadvertidamente, e a moça ficou fascinada pelo brilho do ouro ao sol. Daí resultou uma relação amorosa, mas Fernão não foi feliz.

A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram íntimos, arrancou-lhe a dentadura enquanto ele dormia, e desapareceu com ela.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Poema, 1


Apollo Taborda França
Curitiba/PR, 1926 – 2017

O POEMA

Germina o poema
Da intenção do poeta
Aferindo-se na emergente inspiração
De um momento desperto
Esclarecido

Arrisca o tema
Vai
insiste
Concatena
Debate-se no aluvião do estro

Compõe-se
Amolda-se
Alonga-se
Recua na medida
Incorpora imagens
Situações
Discursa o conteúdo
Define-se

Recebe o sopro final
Ganha vida
Existe
Prontifica-se
****************************************

Leonardo Henke
Curitiba/PR, 1906 – 1986

POEMAS DE AMOR

Poemas de amor, direis, que descalabro...
numa época em que o amor é quase morto,
é semear lírios em selvagem horto,
as rosas de recife, ou volutabro*…

Entanto, o coração aos versos abro,
e lhe trazem — batéis a escuro porto,
as claridades que lhe dão conforto,
as luzes de um celeste candelabro.

Poemas de amor, mas desse amor divino
que as almas reconduz, igual a um hino,
a céus distantes, sem jamais perdê-las.

Poemas de amor, daquele que, de rastros,
a lua impele ao ósculo dos astros,
e leva ao sol, o beijo das estrelas…
______________________
* Volutabro = lamaçal.
****************************************

Hélio de Freitas Puglielli
Curitiba/PR

POEMA DO AMOR NECESSÁRIO

Lágrimas e proclamações de posse
ciúme e olvido abraços e distâncias
na ardência da paixão
palavras combustíveis
queimando

Ninguém cantou o amor necessário

Ninguém cantou este impulso
grave
de seres que se completam
Ninguém cantou o amor sem adjetivo
começo e fim de si mesmo
este círculo fechado
na profundeza do desejo, entre a carne
e a dor esperanças e futuros
lado a lado
este amor tão terra, e pó,
e vida.

O amor em sua própria duração
compulsão fecunda sem metáforas,
violenta serenidade,
este amor eu canto.
****************************************

Antonio Salomão
(Altinópolis/SP, 1921) Curitiba/PR

POEMA

Há nesse alpendre uma cadeira antiga
onde o silêncio não fazia alardes,
onde sentava sem supor fadiga
a meditar na calidez das tardes.

Era meu pai, aquele pai amigo
que ali vivia a meditar em mim
e parecia até falar comigo
que o grande amor não tem limite ou fim.

Ai que saudade das benditas horas
em que meu pai na solidão se via,
a imaginar e a me dizer tu choras
sem perceber que já chegou meu dia.

E este diálogo formoso e belo
se interrompeu definitivamente,
mas na minha alma por maior anelo
saudade é flor de uma lembrança quente.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Fábulas (O Tigre)


Um filhote de tigre fora criado entre cabras. Prenhe e balofa, sua mãe passara vários dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal adotaram a débil criatura; amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito.

A princípio teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.

Certa noite - quando o órfão, crescido entre as cabras, já havia alcançado a idade da razão - o rebanho foi atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-o estupefato. Passado o primeiro impacto, começa a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.

De repente, o poderoso intruso pergunta:

- Que fazes aqui entre as cabras?! Que estás mastigando?!

A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:

- Por que emites este som estúpido?!

E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazê-lo recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela Lua.

- Vê estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando seres um cabrito? Por que berras? Por que mastigas pasto?!

O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância, mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:

- Come! Engole!

O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago.

Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono - uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre.

O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:

- Agora sabes quem realmente és?

E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:

- Vem! Vamos caçar juntos pela selva.

Moral da Estória:
Isso é o que acontece com todos nós.
Nós somos tigres, nós nascemos tigres, mas fomos educados sendo cabras.
Só nós podemos nos conscientizar de que não somos cabras e então decidir dar um rugido e assumir nossa condição de tigre.
Esta é a única chance de resgatar a nossa face original de tigre.


Fonte:
Heinrich Zimmer. Filosofias da Índia.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 375

 


Arquivo Spina 2 (Ana Luzia Moura) Em Mim, Um Turbilhão de Palavras!


Fonte:
SPINA (Nova forma poética) – Grupo do Facebook
https://www.facebook.com/groups/623841465028682


Fábulas (A Árvore Solitária)


(autoria desconhecida)

Era uma vez um velho carvalho que já vivia há muito tempo na floresta.

Muitos anos antes, uma grande tempestade varrera a floresta, deixando o carvalho quebrado e feio. Não era mais altivo e belo como as outras árvores.

A primavera cobria sua feiura com novas folhas verdes; no outono, as folhas se transformavam num belo manto carmim. Mas os ventos na floresta sempre sopravam, carregando o manto de folhas para longe. E, assim, nada restava para disfarçar sua feiura.

Passaram-se muitos e muitos anos e o carvalho começou a se sentir meio vazio por dentro. Sentia o coração também ferido, como o corpo. Quando ele já estava muito, muito velho, um vento de outono passou suspirando. O carvalho acabou se lamentando.

- Ninguém me quer. Não tenho mais nenhuma utilidade no mundo.

Tac, toc, to-ro-roc-toc, toc!

Era o senhor pica-pau-cabeça-vermelha, bicando o tronco do velho carvalho.

Toc-toc!

Foi martelando e furando, até que fez uma portinha de entrada para sua residência de inverno, numa parte oca da árvore. Ele havia encontrado um salão pronto, cheio de bichinhos para ele e sua família comerem, quando chegasse o frio. As paredes da casa eram quentinhas, tudo muito arrumadinho e aconchegante.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido!

Cantou o senhor pica-pau-cabeça-vermelha.

Schuip! Schuup!

Era o bobby esquilo. Ficou correndo pelo tronco do velho carvalho, até que achou um buraco redondo, que seria sua janelinha da frente. Bobby esquilo espiou para dentro. Ah! Como era confortável e aconchegante a casinha que ele viu!

Forrou-a com musgo, e nas protuberâncias que formavam prateleirinhas amontoou pilhas e pilhas de nozes, prontas para os banquetes quando chegasse o frio. Ia ser ótimo morar lá, agasalhado no seu casaco de peles e bem alimentado.

Ficaria seguramente abrigado até a chegada da primavera.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido! - tagarelou Bobby esquilo.

Então, uma coisa estranha aconteceu com a árvore. As asinhas do passarinho batendo animadas e o coração do esquilinho aqueceram-na por dentro.

O coração do velho carvalho inchou de alegria.

Em vez de suspirar com o vento, seus ramos cantavam de felicidade.

As gotas das chuvas do outono, já congeladas, pendiam de seus dedos de galhos como refulgentes diamantes. A neve cobriu seu corpo com um magnífico manto branco.

À noite, a luz das estrelas e, de dia, os raios de Sol mantinham uma brilhante coroa sobre sua cabeça.

Em toda a floresta, não havia árvore mais feliz nem mais bela que o velho carvalho.

Moral da Estória:
Ser útil. Ter o coração hospitaleiro. A beleza realmente está dentro.


Fonte:
Universo das Fábulas

Carla Rejane Silva (Meu Gatinho de Estimação)


Meu gatinho a quem tinha tanta admiração e carinho, fugiu. Não sei para onde. Fugiu. Foi embora. No seu lugar, ficou uma saudade enorme, pesada e dolorida.

Uma saudade descomedida e fria, que dói, que machuca, que me esmaga os ouvidos, os sentidos, como se fosse um látego martirizante.

Seus miados ainda estrondam em minha cabeça: Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu...

Às vezes tenho a impressão de que ele está aqui. Escondido, brincando com a minha dor de não tê-lo por perto. Mas esta impressão não passa de confusão desenfreada da minha mente. No final de tudo, é isso mesmo, Tudo o que vivo agora, não passa de desmazelos da minha vida cheia de curvas

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.