quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Humberto de Campos (Zurtz)

Quando o professor Krause esteve no Rio de janeiro, em 1920, falou-nos, a mim e ao seu colega Dr. Fernando de Magalhães, em uma descoberta que estava revolucionando a fisiologia nas vésperas da sua partida da Alemanha. Tratava-se de uma comunicação feita à Academia de Ciências Médicas, de Berlim, pelo professor Zurtz, de Munich, o qual havia conseguido uma fórmula miraculosa para aumentar o crescimento do cabelo. O poder desse preparado era tão prodigioso que, posto pela manhã, o aumento constatado à tarde era de, pelo menos, meia polegada. Um destes dias, ia eu pela Avenida, quando encontrei, com grande alegria de coração e de espírito, o ilustre diretor da Maternidade, que me foi, logo, perguntando:

- Conselheiro, lembra-se daquela descoberta de que nos falou o professor Krause?

- Qual?

- A do professor Zurtz.

Eu fiz um esforço de memória, remexi, com os dedos do pensamento, no escaninho cerebral das minhas lembranças, e respondi afirmativamente.

- Pois, aquilo, - continuou o Dr. Fernando - é um fato. As revistas francesas, italianas, alemãs e inglesas que ultimamente recebi, falam, já, no prodígio.

- Deveras?

- É verdade. E com uma circunstância mais: aperfeiçoando o seu invento, o professor Zurtz conseguiu três modalidades do mesmo preparado, com diversas aplicações. A primeira serve unicamente para o cabelo, o qual pode crescer, com ele, dez centímetros por dia. A segunda é de aplicação zootécnica: faz crescer em poucas horas, com vantagem para a indústria, a lã dos carneiros. E a terceira, destinada à pecuária, faz nascer, com rapidez, os chifres aos bois, aos cordeiros, às cabras e a outros animais que os tenham atrofiados. A esse preparado deu o inventor o seu próprio nome, com diversas numerações: n. 1, n. 2, e n. 3, como os produtos químicos de Mme. Selda Potocka.

Nesse momento, um cavalheiro alto, magro, calvo, que estava perto, aproximou-se de nós, e, pedindo licença, indagou, respeitoso:

- Os senhores acreditam nisso?

O Dr. Fernando olhou-o de alto a baixo, e confirmou.

- Pois, eu, - tornou o desconhecido, sou uma prova da ineficácia desse remédio. Calvo, há muitos anos, mandei buscá-lo, usei-o, e veja!

E descobriu o crânio irregular, pelado como um ovo.

O Dr. Magalhães escorregou os olhos pela cabeça do homem, franziu a testa, mordendo o dedo, com aborrecimento. E, ao fim de um minuto, pediu:

- Diga-me uma coisa.

O indivíduo fitou-o.

- O senhor não tomou errado?

O careca desapareceu.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIII

A amizade verdadeira
não se apega à falsidade,
sobrevive à vida inteira
se embasada na verdade.
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A criança, pela idade,
fala e não pede segredo,
não teme a privacidade,
mas privada sente medo.
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A mais flagrante jactância
presente na humanidade,
tem menor protuberância
que a de crer na falsidade.
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A pior das excrescências
que inflama o radicalismo,
tem melhores consequências
que ostentar o pessimismo.
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A semeadura bem feita
nunca trai seu plantador,
gera uma farta colheita
se perfeita e com labor.
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A vida que nos foi dada
mesmo envolta à finitude,
não deve ser olvidada
mas, levada à plenitude.
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Da vida ouço um forte grito,
clamando por liberdade,
a ecoar sob o infinito
da inquieta humanidade.
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De que vale um rico teto
sobre estacas de metais,
se não brilhar nele o afeto,
entre os filhos e seus pais?
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Embora a noite não tenha
o mesmo brilho que o dia,
às trevas se esconde a senha
que aciona a nostalgia.
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Fonte de assombro e de medo
tal força vinda do além,
vê-se no impacto ao rochedo
o poder que a maré tem.
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Não bata a porta, esperando,
ser por alguém atendido,
mas, se o fores, vai pensando,
ser mais um agradecido.
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Não podemos nos prender
às respostas do passado,
mas ao que nos responder,
o porvir, se questionado.
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Nossa alma clama por paz,
verte em pranto se a não tem,
cônscia, busca-a e se compraz,
sempre que a buscar também.
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O final de qualquer linha
a casa se debilita,
o alicerce se definha
e o fim passa a ser visita.
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O mais fácil preferimos,
menos duro e proveitoso,
olhamos, mas confundimos,
rocha com solo arenoso.
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O perdão dá nova vida,
grande sedativo à dor,
que cicatriza a ferida
na enfermidade do amor.
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Pode ser que o justo caia
no abismo da ostentação
e assim a conduta o traia
conduzindo-o à perdição.
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Quando acontece um combate
é porque um ataque ocorre,
ninguém oprima, nem mate,
mas seja alguém que socorre.
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Que um gesto sincero e amigo
abra as portas da amizade,
nunca aquela de um jazigo
que conduz à obscuridade.
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Se à tua vida mentires
tu mesmo te enganarás,
pois, se a verdade omitires,
ao nada sucumbirás.
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Sempre que uma luta ocorre
numa batalha campal,
o afã de vencer não morre
ancorado no ideal.
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Sobre a mesa dos prazeres
o álcool não deve existir,
assim, sempre que o beberes,
nunca deves dirigir.
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Toda a justiça divina
não se assenta sobre a morte,
pode tardar, mas culmina,
por julgar o fraco e o forte.
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Toda a palavra bem dita,
é bendita se escutada,
mostra-se à vida na escrita
quando bem interpretada.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Versejando 118

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Com Verdelírio, no trem

Meados dos anos 1950. Na estação de Maringá embarquei no último vagão do “Expresso Verde”, uma boa maneira de ir a São Paulo naquela época. Antes mesmo de o trem partir, aproximou-se de mim um rapaz, que perguntou: “Você por acaso é o Assis?”. Respondi que sim, e ele se apresentou: “Meu nome é Verde – Verdelírio Barbosa. Te conheço de nome e de foto. Costumo ler o que você escreve nos jornais”. De imediato me lembrei também do nome dele. Era ainda muito jovem, porém já aparecia de vez em quando assinando textos na imprensa local e iniciava carreira no rádio.

Verde sentou-se numa poltrona a meu lado e a conversa foi longa e animada, cada um esmiuçando a vida do outro. Descobri até que ele, além de apaixonado pelo jornalismo, curtia também compor versinhos – sonetos e trovas.

A viagem era comprida, cerca de 20 horas até a capital paulista. Havia três opções: vagão de segunda, vagão de primeira e, de Londrina em diante, cabine em carro leito. Parava em um monte de estações: Sarandi, Marialva, Mandaguari, Jandaia, Apucarana, Arapongas, Rolândia, Cambé... Depois de Londrina parava menos. Em Ourinhos costumava trocar a locomotiva.

Para distrair o tempo, os passageiros achavam chique ir ao vagão-restaurante, onde se podia almoçar, jantar, comer um lanche ou simplesmente tomar uma cervejinha. A gente se sentia como se estivesse numa cena de cinema, esperando ver entrar a qualquer momento uma daquelas bonitonas de Hollywood com chapéu enorme e piteira na boca.

O trem fazia também frequentes paradas nas caixas d’água, para reabastecer a caldeira. Verdelírio comentou: “O comum era ao lado de cada caixa d’água haver uma casa onde morava o responsável pelo serviço. Com o tempo, ali se construíam outras casas e o local virava uma aldeia. Foi por isso que, principalmente no trecho paranaense, se formaram tantas cidades distantes 10 ou 15 quilômetros uma da outra”.

Dia desses Verde e eu almoçamos juntos no Açukapê e no meio do papo essas lembranças vieram à tona. Éramos os dois, naquele tempo de pioneirismo, bem moços ainda, ele mais moço que eu, começando a labuta na imprensa e no rádio. Trabalhamos juntos em emissoras de rádio e em jornais. Depois ele teve intensa participação em programas de televisão, enquanto eu passei a me dedicar mais ao ensino, como professor em alguns colégios e finalmente na UEM, onde me aposentei. Hoje o Verde é o diretor do “Jornal do Povo” e desfruta de grande e merecidíssimo prestígio, não só em Maringá, mas em todo o Paraná e no Brasil.

Como o “Jornal do Povo” fica próximo de onde moro, frequentemente nos encontramos e cada encontro é uma nova oportunidade para a troca de abraços. Mais que colegas e velhos amigos, somos antes de tudo irmãos.

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/04/com-verdelirio-no-trem.html

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 2

ENCANTOS DA NATUREZA

Céu cinzento
Nuvens carregadas
A chuva cai...

O arco-íris dá sinais
De que amanhã
O sol voltará a brilhar.

Como é bom sentir o vento...
As mágoas são levadas,
A mãe natureza jamais nos trai.

Andorinhas gorjeiam
Em voos matinais
Num balé majestoso...

O crepúsculo desce no horizonte...
O sol encontra o mar num abraço caloroso
Com seus raios a bailar...
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ENCONTRO

Que eu não perca minha essência...
Mesmo quando a tristeza me abater.
Que eu não perca a magia
E o encanto que vejo nas pessoas...
Mesmo quando a decepção se apresentar.
Que eu não perca minha alegria...
Mesmo quando tudo parecer desmoronar.
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ENCONTRO (II)

Nessa espera sem fim
Busco algo dentro de mim.
Não sei ao certo o quê.
Talvez respostas
Ou perguntas...
Quem sabe alguns porquês?
Enquanto espero
Divago em pensamentos
Desejos contidos.
E nessa busca entendo
Que o que sempre esperei,
O que sempre busquei,
Está aqui.
Que bom que te encontrei...
Que bom que me achei...
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EU, POETISA

Sentir o romantismo em um
Fim de tarde no outono...
Permitir que o horizonte
Se misture com o mar...
Sorrir com o olhar...
Imaginar o sol se despedindo...
A poesia se fazendo presente
Em cada veia, em cada batida
Que meu coração dá.
É algo intenso...
Muito maior do que eu...
Um dom misturado a um sentimento.
Impossível de descrever...
Meus escritos expressam
Essa minha maneira de ser.
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INFINITO INSTANTE

Momentos preciosos, momentos só meus.
Somente um instante...
Onde o tempo parece parar.
A vida flui...
A caminhada tem que continuar...
Mas alguns momentos
É impossível deixar para trás.
Sinto relances através do meu olhar.
Vejo lembranças em um futuro
Que parece nunca chegar.
Desfazer os nós é dolorido, sofrido...
Necessário...
Uma alma sonhadora
De vez em quando sem chão...
Sou alegria, sou colorida,
Às vezes cinzenta,
Desprovida de emoção...
Mas sem jamais deixar de acreditar
Que dias melhores e felizes virão.
Sou o caos, sou a calmaria
Contidos no imenso frasco da solidão.
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INSONE MADRUGADA

Nesse silêncio
Essa quietude
Esse sentimento...
Essa vontade de me pertencer.

Mergulho
No inconsciente.
Sinto meu corpo
Amolecer, entardecer...

Percebo,
Com o dia clareando,
Que finalmente
Poderei adormecer.
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INTROSPECÇÃO

Hoje percebo que toda mágoa,
Todo ressentimento, se foi...
E sinto um alívio, uma paz,
Um sentimento bom.
Será esse o verdadeiro amor?
O amor puro, o amor que não fere,
O amor que simplesmente ama
Sem pedir nada em troca,
Sem exigir, sem sofrer, sem doer?
Talvez eu nunca saiba essas respostas...
Mas nesse instante
Eu sei que amo.
E sei que esse momento ficará eterno
Dentro de mim...

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Machado de Assis (Filosofia de um par de botas)

 
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit. (Deus fez esses lazeres para nós)

Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.

Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:

BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.

BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?

BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...

BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém nos vencia.

BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate... aquele par...

BOTA DIREITA.- O dos botões de madrepérola?

BOTA ESQUERDA.- Esse.

BOTA DIREITA.- O daquela viúva?

BOTA ESQUERDA.- O da viúva.

BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.

BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.

BOTA DIREITA.- Sempre te conheci pirracenta.

BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.

BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento era parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?

BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!

BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles frequentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias, não?

BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.

BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de política.

BOTA ESQUERDA.- Apoiado.

BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!

BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da viúva...

BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...

BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o que eu queria contar...

BOTA DIREITA.- Também conversaste?

BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.

BOTA DIREITA.- Agora me lembro: pisaste a bota do comendador.

BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho...

BOTA DIREITA.- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.

BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!

BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães...

BOTA ESQUERDA.- Et coetera (e o resto). E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.

BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.

BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...

BOTA ESQUERDA.- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites... Nós éramos as botas do curso...

BOTA DIREITA.- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim...

BOTA ESQUERDA.- Coisas!

BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava; não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranquila.

BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.

BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às mãos...

BOTA ESQUERDA.- Aos pés.

BOTA DIREITA.- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!

BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?

BOTA DIREITA.- Se te parece!

BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.

BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.

BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.

BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...

BOTA ESQUERDA.- Agora quê?

BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.

BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um não olha para suas ideias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil...

BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.

BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?

BOTA DIREITA.- Talvez.

BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota... Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?

BOTA DIREITA.- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...

BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?

BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.

BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.

BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? — aqueles mariscos? (olhando para mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?

BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas! (vaidades!vaidades!)

BOTA DIREITA.- Que dizes tu?

BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.

BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?

BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!

Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.

Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.

Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.

MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui...

EU (ao mendigo).- Mas, espere...

MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...

BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...

BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.

BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que quererá ele?

BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?

BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!

BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.

Fonte:
Publicado originalmente em O Cruzeiro, 23 de abril de 1878.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Isabel Furini (Poema) 32: eu e Eu

 

Baú de Trovas LIV


Errar nunca foi demérito,
e eu também estou sujeito.
– Nem mesmo o velho pretérito
é totalmente perfeito.
A. A. de Assis – PR
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Na tarefa que lhe cabe,
Deus trabalha com você;
mas, por você, já se sabe,
Deus não faz nem diz por quê.
Amilton Maciel Monteiro – SP
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Sem fazer-me de rogada,
só persiste uma verdade:
poesia em mim fez pousada,
sem ter qualquer leviandade.
Andréa Motta – PR
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Quis colher o sol e a lua,
Depô-los no teu regaço,
Quis cantar de rua em rua,
Os versos que já não faço.
Antonio Barroso - (Tiago) - Portugal
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Família é um livro lindo,
obra de muitos autores,
é um livro jamais findo
de risos, choros e amores.
Cesar Sovinski - PR
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Trovas devem ser escritas
com bastante inspiração,
passando em frases bonitas,
mensagens do coração.
Cláudio Morais - SP
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– “Mas, mamãe, se é gravidez,
que remédio é sugerido?”
– “Arranjar, com rapidez,
algum trouxa, pra marido!”…
Darly O. Barros – SP
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Não há palavra nenhuma
tão grande quanto “saudade”
que em sete letras resuma
a dor e a felicidade.
Diamantino Ferreira – RJ
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Quando chegaste ao portão
para saber quem batia,
batia o meu coração
que de saudades morria.
Domingos Freire Cardoso - Portugal
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Das ofensas de um irmão
não guardes nenhum rancor,
que um minuto de perdão
vale uma vida de amor!
Domitilla Borges Beltrame – SP
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Sou livre, sem restrição,
mas afinal, para quê?
Mil vezes a escravidão…
mas juntinho de você.
Dorothy Jansson Moretti – SP +
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Seja de que modo for
e sem qualquer preconceito,
na casa onde mora o amor,
mora também o respeito.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho – MG
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Pelo calor castigado,
vou seguindo tão sozinho
neste sertão demarcado
pelas cruzes do caminho.
Edweine Loureiro – Japão
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Refletia a luz da lua,
o orvalho da noite fria;
sobre o menino de rua,
que na calçada dormia.
Edy Soares – ES
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De armas, não precisaste.
palavras brutais, somente…
com elas apunhalaste
meu coração, friamente!
Ester Figueiredo – RJ
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As pedras do meu caminho
vou transpondo-as com ardor,
e cada dia um trechinho
vira caminho de amor.
Flávio Roberto Stefani – RS
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Malandro vive sem grana,   
é um eterno vadio.
Sua pinta de bacana
esconde o bolso vazio.
Francisco Gabriel – RN
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Embora o tempo me marque
com várias rugas na tez,
se um dia voltar ao parque
serei criança outra vez.
Francisco José Pessoa – CE +
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Refém de ti, não recuo,
réu do amor que me corrói:
cada sonho que construo,
tua apatia destrói…
Gilvan Carneiro – RJ
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O mar é o mais doce amante
pois não cansa de beijar,
num lirismo alucinante,
toda praia que encontrar!
Gislaine Canales – RS +
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O “ser feliz” nesta vida
está na simplicidade,
um só carinho, querida,
traduz a felicidade!
Glória Tabet Marson – SP
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Esta  frase  refletida
leva  a  conceitos  profundos:
" Perca  horas  e  horas  na  vida,
mas  nunca, a  vida  em  segundos"!...
Henrique Eduardo – CE
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Um cenário me devasta:   
a garrafa de champanhe,
duas taças, vela gasta
e ninguém que me acompanhe.
Jérson Brito – RO
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Mesmo se é pobre a mobília
e às vezes falta alimento,
é na casa da família
que a esperança encontra alento.
Jorge Fregadolli – PR
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Ao contrário da mentira,
é reta a sinceridade;
aquela desperta a ira,
esta, a credibilidade.
Lairton Trovão de Andrade – PR
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Antes, a família à mesa,
em sagrada comunhão.
Hoje, silêncio e frieza,
por conta da evolução.
Leonilda Yvonneti Spina – PR
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De tanto viver sonhando,
levo o meu barco, a sorrir,
tranquilamente aguardando
mais sonhos em meu porvir!
Lucília Trindade Decarli – PR
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Foi no tempo da janela
e do namoro à distância
que a vida, muito mais bela,
tinha tão grande importância!
Luiz Carlos Abritta – MG +
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Em meu livro da memória
há uma página refeita,
que mudou a minha história…
A rasura… foi perfeita!
Luzia Brisolla Fuim – SP
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Por te amar tanto é que a vida,
embora dure um segundo,
possui o espaço e a medida
das horas todas do mundo!…
Mara Melinni – RN
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Felicidade: ei-la aqui,
aponta pra cima a seta.
Basta que todos daqui
entendam essa indireta!
Maria Cristina Cacossi -SP
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Maria Danusa Almeida,
Nunca mostres apatia
diante da luta na vida,
mas brinda com simpatia
e a inércia será vencida!
Maria Luíza Walendowski – SC
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Quando a dúvida se instala
dentro de um peito infeliz,
não importa o que ela fala,
já se sabe o que ela diz!
Maria Thereza Cavalheiro – SP +
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Meu caminho é o teu caminho!
Se a morte nos separar,
quem chegar no céu sozinho
chora até o outro chegar.
Milton de Souza – RS +
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O amor que escolhi um dia
expõe-me à língua do povo?
Dane-se o povo! Eu faria
a mesma escolha, de novo!
Newton Vieira – MG
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Escute, esta é a voz do vento
que me traz doces cantigas,
invadindo o pensamento
de lembranças tão antigas.
Nilsa Alves de Melo – PR
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O sonho, eterna magia,
ao retratar o passado,
mostra a doce fantasia
de estar, ainda, a teu lado.
Olga Maria Ferreira – RS
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Olhando o escorregador,
palco da infância sem pressa,
filosofa o trovador:
 – Os anos passam depressa!
Olympio Coutinho – MG
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Tudo na vida tem preço
e prazo de validade…
Quando tu vais, não te esqueço:
pago teu preço em saudade!
Renato Alves – RJ
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Meu amor deu-me um pacote
embrulhado com barbante...
Eu logo vi que era um trote :
Lindo vidro de laxante!
Renato Benvindo Frata – PR
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Áureo outono, que beleza…
Nada abate o teu fulgor!
A esplêndida natureza
te fez tão encantador.
Roberto Pinheiro Acruche – RJ
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Na praia deixei meus sonhos
e, junto às ondas do mar,
pousei meus olhos tristonhos
à espera de te encontrar.
Sarah Rodrigues – PA
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O canto ensina que a vida
encanta em qualquer momento.
Mesmo a luta mais renhida
traz nela o seu próprio alento!
Sinclair Casemiro – PR
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Quem se concentra no estudo
vence o mundo, sem esquema.
Leva consigo um escudo:
– Enfrentar qualquer problema.
Vânia Ennes – PR

Aparecido Raimundo de Souza (Encrenqueiros)

NA HORA do intervalo para o recreio, Jujuba se aproxima do colega Brucólio. Puxa conversa. Na verdade, Jujuba não gosta de Brucólio, porque ele está de olho na sua irmã Josefina.

Jujuba:
— Estava te observando de longe, Brucólio. Como você é baixo. Não sei o que a minha mana viu em você!

Brucólio:
— Olha quem fala. Despeitado. Como se você fosse alto o suficiente...

Jujuba:
— Pelo menos vejo meu tênis nos pés mais longe que você enxerga os seus... se é que enxerga.

Brucólio:
— Tá me tirando?

Jujuba:
— Não, só estou dizendo que você é miúdo. Parece aqueles cachorrinhos da raça Chihuahua que não crescem.

Brucólio:
— Você tem mãe, Jujuba?

Jujuba:
— Você sabe a resposta... que pergunta mais besta. Está até querendo que ela venha a ser futuramente a sua sogra. Se depender de mim...

Brucólio:
— Me responda, seu verme. Você gosta dela?

Jujuba:
— Dela quem? Da minha mãe? Claro. Amo! Por?

Brucólio:
— Me faz um favor. Vai cantar as suas idiotices nos ouvidos dela. Deixa eu aqui quietinho no meu canto.

Jujuba não dá a mínima e segue colocando defeitos em seu colega.

Jujuba:
— Olha para isso! Até seu sanduiche é mirrado. E o refri? Não tinha uma garrafinha maior?

Brucólio:
— Jujuba, seu filho de uma égua. Vai torrar a paciência de outro. Olhe em sua volta. Tem tanto piá dando sopa. Por que implica logo comigo?

Jujuba, com ar de deboche:
— Por dois motivos. Um. Você está de olho comprido na Josefina. Dois. Seu aspecto amorrinhado me lembra do Guran, aquele pigmeu que vive no Trono da Caveira, junto com o Fantasma.

Brucólio:
—  Amorrinhado, pigmeu e Fantasma é o seu pai...

Jujuba:
— Meu pai tem quase dois metros de altura.

Brucólio:
— Jujuba, me deixa em paz. Vai ver se estou no banheiro fazendo xixi na sua carcaça...

Jujuba cai em estrondosa gargalhada.
— A sua paz pelo menos é grande?

Brucólio acaba perdendo as estribeiras. Parte para o ataque. Atira o seu lanche no rosto de Jujuba. Jujuba se esquiva a tempo e ridiculariza:

— Errou. Ta vendo? Até a sua direita é fraca. Você não acerta nem mosca. Boboca, boboca, bobocaaaaaa...

Em face de não ter atingido o alvo, Brucólio se enfurece ainda mais. Vocifera:

— Vou te pegar, seu idiota...

Das palavras parte para a ação. Se arma, em contínuo, de uma vassoura e pula com tudo para cima de seu opositor. Jujuba dispara em ziguezague espiralando em meio de outros albergados. O pátio da escola é enorme e Brucólio não consegue acompanhar a velocidade do seu desafeto.

Jujuba:
— Nem correr sabe – troça o Jujuba, galhofando. Parece uma barata tonta. Vem, vem, vem...veemmmmmm...

Brucólio:
— Quando você sentir na pele a minha raiva, a sua mãe não vai reconhecer a sua fuça. Eu te mato...

Jujuba:
— Do jeito que você corre, me lembra o Zangado...

Brucólio:
— Quem é Zangado?

Jujuba:
— Um dos “anão” da Branca de Neve...

Brucólio:
— Filhote de verme... vou fazer você engolir tudo o que está me dizendo...

Jujuba:
— Vai ser fácil. Suas palavras são tão atrofiadas que engolirei numa só abocanhada. Venha, venha, venha, venhaaaaaa... aproveita e monta na vassoura...

A correria desordenada acaba quando ambos esbarram na professora Sofia, coordenadora e diretora do estabelecimento.

Em decorrência, a jovem tropeça numa galera de pernas e braços que igualmente voava atrás dos tresloucados, em apavorantes gritarias. A professora cai de costas e se estabana no chão de cimento.

Professora Sofia:
— Ei, vocês dois, que diabo está acontecendo aqui?

Os ajuntados oriundos de outras dependências se aglomeram em volumosa curiosidade. Abrindo caminho em meio ao furdunço, serventes acorrem em socorro da professora Sofia, enquanto educadores seguram os travessos encrenqueiros.

— Os dois, na minha sala, agora...

Jujuba e Brucólio imediatamente são impedidos de voltarem aos seus locais de estudos. Os pais chamados. Cada um dos brigões toma suspensão de três dias e a promessa solene de serem expulsos se outra mazorca* tornar a criar vida e forma.       
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* Mazorca = baderna, tumulto

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 7 de agosto de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 11

 

Leandro Bertoldo Silva (A literatura é uma escada muito alta)

Uma das condições que nos faz ser humanos é a nossa capacidade de ler. Ser leitor é estar inserido, não em um universo, mas em algo maior, uma espécie de pluriverso que é, ainda, mais vasto. Gosto dessa palavra: “Vasto”. Lembro-me de Drummond ao escrever: “Mundo, mundo, vasto mundo. Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução”. Bem, não me chamo Raimundo, mas supondo ser esse o nome de todos os alunos e alunas que dizem ter horror à leitura por não entenderem como, ao ler, somos transportados aos vastos mundos, conscientes e inconscientes, reais ou imaginários, busquemos a solução com licença ao poeta.

Antes, o que nos faz verdadeiramente humanos em nossa experiência leitora é perceber que não lemos somente as palavras. Há algo a mais nessa experiência que reflete a nossa condição lúcida de seres racionais dotados de uma inteligência superior. Sempre digo: precisamos aprender a ler a verdadeira natureza íntima de todas as coisas. Eu, como escritor, gosto dos leitores que leem os cheiros, os sabores, as lembranças, as saudades, as esperanças, as suposições… As letras são materializações do que sentimos, mas não devemos ficar presos nelas, pois se assim acontece, ficamos na superficialidade, no espelho das águas e perdemos a oportunidade de desfrutar o encontro das profundidades. É como a árvore; vemos o seu tronco, galhos, folhas e frutos, mas não enxergamos o mais importante: suas raízes. Na escrita se dá o mesmo. É preciso ler as raízes, o que está “escondido”, pois são elas a sustentar sua existência.

Mas deixemos as digressões. Até porque estava nelas quando um aluno levantou a mão no meio da sala.

— É o seguinte, fessô, — disse ele coçando a cabeça. - Eu sei que o senhor é escritor e fala essas coisas aí, mas eu não consigo entender essas paradas de ler o que não tá escrito. Como isso é possível?

— Ora, Raimundo, você ouviu o que eu falei sobre a árvore?

— Ouvi, fessô, mas isso tudo é poético demais… Falando assim até dá pra entender, mas sei lá…

— Certo. Vou te explicar de outra forma. Vamos fazer uma pequena viagem mental.

— Fazer o quê?

— Um faz de conta, vou contar uma história e você vai se vendo dentro dela.

— Pô, fessô, maneiro. A galera pode vir junto?

— Pode. Mas você precisa se concentrar, pode ser?

— Pode crer.

— Vamos lá. Imagina que você está indo para uma cachoeira com alguns amigos.

— Maneiro.

— Porém, durante o trajeto e ao chegar lá o sol foi se escondendo e dando lugar a um tempo nublado e até com alguns pingos de chuva, poucos, mas suficientes para turvar a água e impedir a sua bela visão cristalina.

— Pô, fessô, sacanagem…

— Concentra, Raimundo.

 — Vai nessa.

— Se algum de seus amigos falasse para você pular na água de cabeça, você pularia?

— Com a água turva? Tá doido, fessô, de jeito nenhum!

— Ora, e por quê?

— Por quê?! Cê tá doido mesmo! Com a água turva não dá pra ver o fundo e nem onde as pedras estão. É perigoso pacas!

— Pedras? Mas que pedras? Eu não falei em pedras! Além do mais, você nem as viu! Como sabe que tem pedras?

— Ô, fessô, se liga! Cachoeiras são lugares de pedras a contar pelas que existem nas margens. A gente pode até não tá vendo, mas isso porque a chuva que o senhor falou fez mexer as paradas lá embaixo da água e a lama subiu pra superfície. Mas que tem pedra, ah isso tem. E vai que tem uma exatamente onde eu pularia…

— Hummm… Sabe o que você fez, Raimundo?

— Me livrei de uma?

— Isso também. Mas você acabou de fazer uma leitura perfeita da natureza e das suposições.

— Hã?!

— Sim, Raimundo, percebe! Você leu a água, a lama, a chuva… E não havia palavras aí, ou seja, as pedras. Você enxergou o que não estava visível, exatamente como devemos fazer em uma leitura: ler nas entrelinhas, nos espaços vazios onde as palavras já não são necessárias… Entendeu?

Nem era mais preciso perguntar. A sua expressão disse tudo. Ele ficou satisfeito com a explicação. Eu mais ainda por ter, talvez, despertado mais um leitor crítico. Ao vê-lo com seu ar alegre e orgulhoso de si mesmo e em meio à algazarra da turma que o saudava, fiquei a pensar… É, a literatura é mesmo uma escada muito alta e para se chegar ao topo é preciso subir degraus.
__________

Pois é, essa é uma fala corriqueira minha. Quem me conhece sabe disso. Infelizmente, tem muita gente adepta ao salto à distância e quer alcançar, de um pulo só, o último degrau. Vemos isso muito nas escolas quando “obrigam” alunos a lerem autores e obras que ainda não estão preparados e, além de não prepará-los, ainda dão prova de livros, prática que eu nunca fui adepto, pois acredito mesmo que há muitas outras maneiras de se avaliar uma leitura… E você, o que acha disso?

Fonte:
Texto enviado pelo autor, disponível no blog Árvore das Letras.
https://arvoredasletras.com.br/2022/05/21/a-literatura-e-uma-escada-muito-alta-2/

Caldeirão Poético LII


Caio de Melo Franco
Montevidéu/Uruguai, 1896 – 1955, Paris/França

EVANGELHO DA VELHICE

— "Quando a Velhice te bater à porta,
queres ouvir nosso Evangelho? — escuta:
Abre de manso e trêmula perscruta
aquela face que a tristeza corta.

Olha-a de frente... e uma alegria morta
verás em cada sulco que a labuta
deixou, fundo, ficar da insana luta,
que não nos confortou, nem nos conforta!...

Enxugarás o olhar inconsolado...
E ficarás pungentemente olhando,
de mãos postas, a orar para o Passado...

E assim, velhinha e triste, e eu triste e velho,
viveremos tremendo... mas rezando
a saudade sem fim desse Evangelho..."

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Carlos Guimarães
Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997


ÚLTIMO SONETO


Este soneto — o último que faço —
põe um ponto final em nossa história,
que, hoje, termina de maneira inglória,
sem um beijo de adeus, sem um abraço.

Peço, apenas, que guardes na memória,
qual de nós teve culpa do fracasso;
quem primeiro deu mostras de cansaço,
reduzindo a farrapos nossa glória...

Pedes que eu parta e eu cedo. Indiferentes,
teus lindos olhos nem me seguirão...
Trilharemos caminhos diferentes,

porque temos Destinos desiguais:
— Tu vais feliz, em busca de ilusão,
e eu carregando um desengano a mais!

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Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

MANHÃ GLORIOSA


Cintila em ouro o sol pelos caminhos,
no esplendor da manhã que vem raiando;
ouve-se, além, o murmurar dos ninhos
e cruzam-se no espaço asas, noivando.

De em torno a um velho cocho, atropelando
inocentes e mansos cordeirinhos,
anda um poldro, a saltar. Passam riscando
o céu — flechas de neve — dois pombinhos.

E toda a terra que de luz se banha,
despe-se, enfim, das pérolas do orvalho,
para a luta da vida, intensa e estranha.

Obscuro e cruento o embate principia,
e tudo vibra à orquestra do trabalho,
na conquista do pão de cada dia...

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Cícero Acaiaba
Cambuquira/MG, 1925 – 2009, Varginha/MG

MINHA SOMBRA

Depois de te esperar inutilmente
na esquina desta rua abandonada,
eu volto mais sozinho e, lentamente,
marcam meus passos versos na calçada.

O coração, de súbito, se sente
liberto dessa angústia exasperada,
ao ver que minha sombra, obediente,
arrasta-se a meus pés, escravizada.

Ao menos, a que sempre me acompanha,
sombra fiel de tantas confidências,
mártir da mesma dor, do mesmo espinho,

ouve em silêncio minha voz estranha,
e vai beijando as longas reticências
das lágrimas que deixo no caminho.

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Cidoca da Silva Velho
São Luís do Paratinga/SP, 1920 – 2015, Jundiaí/SP

POENTE DA VIDA

É impossível voltar ao tempo antigo,
com tudo começando novamente!
Mesmo assim, quero ser o teu abrigo,
nesta fase da vida de sol poente!

Quantas horas perdemos, meu amigo,
na escalada dos tempos, tristemente!
E passou a ilusão que hoje eu bendigo,
por ver-te em minha estrada, frente a frente.

Foge do vento frio dos caminhos!
Escondido nos galhos farfalhantes,
vê quanto amor existe pelos ninhos.

Há de florir em versos palpitantes
o nosso amor, só feito de carinhos,
num turbilhão de rimas delirantes...


Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Eduardo Affonso (Chá de revelação)

Os amigos vão chegando. Alguns, avessos a modismos, não escondem o desconforto.

– Mas precisava mesmo fazer chá de revelação? Antigamente não tinha nada disso.

– Não tinha, tia Cotinha. Agora tem. Os tempos são outros.

Grupinhos se formam pelos cantos, sem ninguém se aproximar muito da mesa de comidas, em cujo centro há uma caixa envolta em celofane. Pelo protocolo – a coisa podia ser novidade, mas já tinha protocolo – comidas e bebidas só serão servidas depois do estouro do balão.

– E tem chá mesmo, ou é só modo de dizer?

– Só modo de dizer, tia. Não é porque é chá que tem chá. Igual chá de cadeira, chá de sumiço.

– Pelo menos uns biscoitinhos eles podiam adiantar, né?

Tia Cotinha estava de dieta, e não tinha interesse em revelação nenhuma. Só e tão somente em poder comer sem moderação, fosse o que fosse, enquanto as atenções estivessem voltadas para outra coisa.

– Sabe que cores vão usar?

– Não faço ideia. Pelo jeito, melhor não esperar nada convencional.

– Convencional é a última coisa que espero aqui.

– Só falta ser bege e dourado, e a gente que adivinhe o que cada cor quer dizer.

Alguém se aproxima da mesa dos salgados, pede silêncio, desembrulha a caixa, e dela salta um balão bege preso por uma fita dourada.

– Não falei que ia ter bege e dourado?

– Já pode pegar os salgadinhos?

– Não, tia, precisa estourar o balão primeiro.

Sobe a música. É “My way”, em ritmo cigano.

– E eu achando que o dourado era o pior que podia acontecer…

– Essa música é enorme e ainda repete. Tem mesmo que esperar até o fim pra pegar a comida?

Como se Deus ouvisse os apelos da tia Cotinha, a música é interrompida ainda na primeira parte, bem no “The record shows, I took the blows / But I did it my way” e uma voz anuncia:

– Dona Cotinha, sendo a senhora a tia favorita, queremos convidá-la a estourar o balão e…

Tia Cotinha não se faz se rogada. Com agilidade inusitada, toma a agulha das mãos do mestre de cerimônias, posiciona-se o mais perto possível dos pães de queijo, se inclina em direção ao balão, e puff! voam quadradinhos cor de chumbo por sobre a mesa de salgados.

Ecoam discretos aplausos e alguém aumenta de novo o som do celular – os Gipsy Kings agora na parte do “I ate it up and spit it out / I faced it all and I stood tall”.

Tia Cotinha se apossa da bandeja antes que outro parente mais afoito o faça.

– Papelzinho cinza significa o quê? – pergunta, com um pão de queijo pela metade, ao moço de terno preto que comanda o evento.

– Cremação. Se fosse enterro seriam papeizinhos roxos.

– Ah, tá.

A sobrinha, prima do morto, só percebe quando o segundo pão de queijo já foi devorado e o resto da travessa está bem embiocado no fundo da bolsa.

– Tia Cotinha!

– Vamos embora, Maria Alice. E no meu, por favor, contrata um bufê melhorzinho, que o pão de queijo tá borrachudo. E nada de cinza e roxo, pelamordideus! Quero púrpura e prata. Púrpura, tá entendendo, Maria Alice? Púrpura!

Fonte:
Blog do autor.
https://tianeysa.wordpress.com/2020/09/30/cha-de-revelacao/

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 25

 

Altino Afonso Costa (Macucos II)

Um dia resolvi visitar, após longos anos, a vila onde nasci.

Cheguei com o coração batendo forte, de saudade e emoção, ao lugar dos meus sonhos de infância.

Idealizei encontrar uma terra só minha, o meu Shangri-lá, onde pudesse de novo repousar os meus olhos cansados, numa paisagem imutável, que o tempo houvesse conservado egoisticamente só para o menino romântico de um passado distante.

E o que vi?

Destruição do lugar dos meus sonhos...

Ânsia incontida de revê-lo, como uma pintura que não envelhece e vejo apenas a moldura envelhecida daquilo que eu amava.

Macucos da minha infância, não consigo conter a minha emoção.

Sei muito bem que o tempo corrói e consome as coisas, e eu e tu somos essas coisas que o tempo consumiu.

Mas, por que temos que assistir ao ocaso da nossa existência com tanto realismo e com essa dor que nos maltrata tanto?

Valeu a pena termos uma infância feliz e agora uma velhice tão desconcertante?

Nunca nos veremos como fomos outrora, ruínas de nós mesmos, sonhos desmoronados como pedras caídas da muralha de uma cidadela edificada com tanto trabalho rude...

Minha vila querida que me viu sorrindo inocentemente, andando a esmo pelas tuas ruelas poeirentas, pela tua praça cercada de antigas paineiras, fica um pouco na fantasia de um sonho desfeito…

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro enviado por Dinair Leite.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVI


DESTRUIÇÃO


Ainda ontem se ouvia lá na serra
a juriti cantar saudosa e triste,
mas hoje devastada toda a terra
nenhuma juriti, sequer, existe...

Quem manda é o lucro que provém da guerra,
o mundo cambaleia e mal resiste
lutando pela vida que se emperra
numa ganância infame que persiste.

A Humanidade inteira está perdida,
a esperança acabou, está vencida,
pois cada dia surge um golpe novo.

E muitos que se dizem ser senhores,
não passam de ladrões e usurpadores
surrupiando o pão do nosso povo!
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DEUS

Contemplo a Natureza fascinante,
e vejo um Deus de Amor e de Brandura.
Um livro aberto, imenso, edificante,
com lições de Bondade e de Ternura.

Mesmo que a mágoa assalte o caminhante
e o prostre sobre o chão em desventura,
a Fé, que vem de dentro, é uma constante,
- um bálsamo na dor da criatura.

Creio num Ser Supremo, um Ser bendito,
num mundo de mistérios em que habito
e me faz refletir os sonhos meus...

Porque depois a vida continua
na evolução da Fé que se cultua
sob a regência do maestro, Deus.
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ELEITA

Nunca mais eu voltei àquela rua
onde ficava sempre à tua espera.
Por testemunha aquela mesma lua
que me inspirava versos de quimera.

E chegavas com uma voz só tua,
- doce ternura que eu jamais tivera.
Hoje meu coração que te cultua
nunca esqueceu aquela primavera.

Mas o tempo passou... Nossos destinos
seguiram por caminhos peregrinos,
nunca mais eu te vi nem tu me viste.

E se me visses hoje, certamente,
perceberias meu olhar ausente,
porque sem teu amor, fiquei mais triste
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ENGANO

Quando jovem pensei que a vida fosse
aquele mar de rosas e venturas,
por algum tempo, então, ela me trouxe
um paraíso cheio de aventuras.

A vida com sabor de um arroz-doce
feito à canela, leite e outras doçuras,
que imaginei pudesse ser um doce
embrulhado em papéis e sem misturas.

Mas o tempo passou como um covarde
matou meu sonho sem fazer alarde,
sem respeitar meu pobre coração.

E agora já no fim da caminhada,
uma verdade eu vejo escancarada;
- amar demais foi minha perdição.
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FALSA PROMESSA

"Nunca vou te esquecer". Ela me disse
e foi partindo triste e lentamente.
Um grande amor repleto de meiguice
não pode terminar assim pungente.

Partiu... Não sei se foi por criancice,
mas sei que dói no peito cruelmente,
e tudo não passou de uma tolice
levada a sério tão injustamente...

Quanto tempo passou... Percebo agora
que um pensamento apenas me apavora:
- não soubeste, na vida, o que é amar...

Pois vejo que a promessa que fizeste
foi somente a desculpa que me deste,
porque bem sei, jamais hás de voltar!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Irmãos Grimm (A salada mágica)

Era uma vez um jovem que saiu um dia a caçar. Sentia-se feliz e despreocupado e, enquanto caminhava, ia assobiando uma canção. Nisto, encontrou-se com uma velhinha, muito feia, que se dirigiu a ele:

- Bom dia, querido caçador! Vejo que estás alegre e satisfeito, enquanto eu sinto fome e sede. Dá-me uma esmola.

O caçador teve pena da velhinha, meteu a mão no bolso e deu o que lhe permitiam suas posses. Depois quis continuar seu caminho, mas a velha o deteve, dizendo-lhe:

- Ouve, meu caçador, o que tenho a dizer-te. possuis um coração generoso e por isso vou te dar uma recompensa. Segue adiante e chegarás a uma árvore onde estarão pousadas noves aves que seguram nas garras uma capa e brigam por sua posse. Aponta-lhes a espingarda e atira no bando, soltarão a capa, e uma das aves cairá morta. Apanha a capa e leva-a contigo, pois trata-se de uma veste mágica. Quando a puseres nos ombros é só pedir que te transporte ao lugar que desejares e no mesmo instante lá estarás. Retira, depois, o coração da ave morta e engole-o inteiro. Daí em diante, ao te levantares pela manhã, encontrarás, sempre, uma moeda de ouro embaixo do travesseiro.

O caçador agradeceu a velhinha, pensando com seus botões: "Belas coisas me prometeu, com a condição de que tudo seja verdade..."

Mas, depois de andar uns cem passos, ouviu gritos e pios de aves, tão fortes que o fizeram erguer a cabeça. Avistou um bando de pássaros que puxaram, com as garras e os bicos, uma capa e brigavam como se cada um estivesse disputando a sua posse.

- Estranho! - exclamou o caçador. - Parece que está acontecendo o que me disse a velhinha.

Tirou a espingarda dos ombros, fez pontaria e disparou a arma no meio do bando, fazendo com que penas voassem. imediatamente os pássaros fugiram, menos um, que caiu morto no chão, com ele despencando também, a capa. O caçador fez, então, como lhe dissera a velha, abriu o corpo da ave, procurou o coração e o engoliu inteiro, Depois apanhou a capa e voltou para casa.

Quando acordou na manhã seguinte, lembrou-se da promessa e quis certificar-se da verdade. Levantou o travesseiro e eis que ... ali estava, brilhando, a moeda de ouro. Desse dia em diante, todas as manhãs encontrava uma ao levantar-se. Juntou um montão de dinheiro, mas por fim, acabou pensando: "Que me adianta todo o meu ouro se fico em casa? Vou sair a correr mundo."

Despediu-se dos pais, apanhou a mochila de caçador, a sua espingarda e partiu.

Certo dia chegou a bosque espesso e, depois de o atravessar, avistou, na planície à sua frente, um grande castelo. Numa das suas janelas debruçava-se uma velha acompanhada de lindíssima jovem. Essa velha, que era bruxa, disse para a moça:

- Lá no bosque vem saindo um rapaz que traz consigo um tesouro maravilhoso. temos de nos apossar dele, filhinha querida. Nós o merecemos mais do que esse pateta. Um dia engoliu o coração de um pássaro encantando e, por isso, todas as manhãs encontra uma moeda de ouro embaixo do travesseiro.

A seguir, recomendou à moça o que esta devia fazer e, com um olhar ameaçador, avisou-lhe:

- Se não me obedeceres, vais arrepender-te.

Quando o caçador se aproximou e viu a jovem, pensou: "Já faz muito tempo que ando caminhando por aí. Agora vou entrar nesse belo palácio para descansar. Dinheiro, tenho que chegue." Mas o verdadeiro motivo desse resolução era o de se haver enamorado da moça.

Entrou no castelo e foi recebido amavelmente e atendido com toda a cortesia. Pouco depois, estava tão apaixonado pela moça que já não pensava mais noutra coisa e só tinha olhos para ela. Assim, de boa vontade ia fazendo tudo o que ela exigia.

A velha, então, disse:

- Agora temos de nos apossar do coração da ave. Ele não notará sua falta.

Começou a preparar uma bebida e, depois de pronta, encheu com ela um cálice, que deu à jovem para que o oferecesse ao caçador. Disse-lhe, a moça:

- Meu querido, bebe à minha saúde!

Ele pegou o cálice e, mal havia acabado de beber, o coração da ave lhe saltou da boca. A jovem o apanhou à escondida e depois o engoliu, pois a velha assim lhe ordenara. Daí por adiante o caçador não achou mais a moeda de ouro embaixo do travesseiro. Em vez de aparecer ali, surgia agora sob o travesseiro da moça, de onde a velha a recolhia todas as manhãs.

O rapaz, porém, estava tão apaixonado e cego que nada mais pensava senão em estar ao lado de sua querida.

Um dia a velha feiticeira disse:

- Agora que temos o coração do pássaro, devemos tirar-lhe, também, o manto mágico.

Respondeu-lhe a moça:

- Deixemos-o com ele, já basta ter perdido a sua fortuna.

Mas a velha retrucou, furiosa:

- Um manto desses é uma coisa maravilhosa e muito rara no mundo. eu quero e hei de obtê-lo.

Deu as instruções à filha, ameaçando-a  de que, se não lhe obedecesse, seria castigada. Diante disso, a moça resolveu cumprir a ordem e um dia pôs-se à janela, fingindo  olhar à distância, com um ar tristonho.

- Por que estás tão triste? - perguntou-lhe o caçador.

- Ora, meu bem, - respondeu ela - ali em frente está o Morro dos Rubis, onde há as mais belas pedras preciosas do mundo. Tenho tanta vontade de possuir alguma que fico triste só de pensar nelas. Mas...como chegar lá? Isto só podem as aves que sabem voar, uma pessoa jamais o conseguiria.

- Se é esse o motivo da tua tristeza, - disse o caçador - logo te alegrarei o coração.

Cobriu-a com sua capa e desejou ser transportado com a moça ao Morro dos Rubis. No mesmo instante ambos se encontraram no lugar desejado. Ali havia pedras preciosas por toda parte, refulgindo que dava gosto ver. Escolheram e juntaram o que havia de mais valioso e bonito. Acontece, porém, que a velha, usando de sua arte diabólica, fizera com que o caçador sentisse os olhos pesados de sono. Por isso ele disse à jovem:

- Sentemo-nos um pouco para descansar. Sinto-me tão fatigado que mal consigo estar de pé.

Os dois sentaram-se e ele, deitando a cabeça no colo da moça, adormeceu. Em seguida, ela tirou-lhe o manto dos ombros, colocou-o nos seus e, recolhendo as pedras preciosas, desejou-se de volta à sua casa.

Ao despertar, o caçador viu que sua amada o havia traído, deixando-o sozinho naquela montanha deserta. Aflito, exclamou: - Oh, quanta falsidade há neste mundo!

Durante  muito tempo ficou ali sentado, triste, cheio de preocupações e sem atinar com o que deveria fazer. A montanha pertencia a uns gigantes selvagens que ali viviam. Não demorou muito, viu três deles se aproximarem. Deitou-se no chão como se estivesse ferrado no sono. quando chegaram os gigantes, o primeiro tocou-o com o pé e disse:

- Que espécie de verme é esse?

Disse o segundo:

- Esmaga-o com teu pé.

O terceiro, porém, falou em tom de desprezo.

- Não vale a pena. Deixem-no viver. Aqui não poderá ficar e,  se subir até o cume, as nuvens o carregarão.

Dito isto, seguiram adiante. O caçador, no entanto prestara muita atenção às suas palavras e, assim que se haviam afastado, levantou-se e subiu até o topo da montanha. Depois de estar sentado ali um momento, veio uma nuvem, flutuando, que o apanhou e por alguns instantes o conduziu pelo céu afora. A seguir, baixou sobre uma horta, cercada de um muro. Ali foi ele depositado, suavemente, no meio de couves e outras verduras.

O caçador olhou em redor e falou para si mesmo:

- Se ao menos tivesse algo para comer. Estou faminto e assim não posso continuar andando. Não vejo uma triste maçã, pera ou outra fruta qualquer, só há hortaliças.

Finalmente lhe ocorreu uma ideia: "Em último caso"- pensou - "posso comer dessa alface, não é lá uma delícia, mas me fortificará um pouco".

Escolheu um pé e começou a comer as folhas tenras. Mal, porém, havia engolido uns bocados, sentiu uma sensação estranha, como se seu corpo estivesse se modificado. Cresceram-lhe quatro pernas, uma cabeça, grande duas orelhas compridas. Naquele momento viu, horrorizado, que se transformara num burro. Mas como, além disso, a fome continuasse a torturá-lo e a salada - agora de acordo com sua nova natureza - lhe apetecia, continuou comendo avidamente. Chegou, por fim, a uma outra espécie de alface e, nem bem a tinha provado, produziu nele nova transformação e ele voltou à sua forma humana anterior.

Deitou-se no chão e adormeceu, pois estava muito cansado depois daquelas transformações. Quando acordou, no dia seguinte, apanhou um pé da alface maligna e outro da boa, pensando: "Isto me ajudará a chegar até os meus e também a castigar a deslealdade."

Guardou as hortaliças, saltou o muro da horta e pôs-se a procurar o castelo de sua amada. Depois de alguns dias, finalmente o encontrou. Passou no rosto uma tinta que o deixou bem moreno e o modificou de modo que nem sua própria mãe o teria reconhecido. Feito isto, entrou no palácio e pediu pousada.

- Estou  tão cansado - disse - que não posso ir adiante.

Perguntou-lhe a bruxa:

- Quem é o senhor e que anda fazendo por aqui?

- Sou o mensageiro do rei, - respondeu ele - e fui incumbido de encontrar a alface mais saborosa que existe debaixo do sol. Tive a sorte de encontrá-la e a levo comigo, mas o sol é tão forte  que a deliciosa verdura está aponto de murchar e receio não chegar com ela em condições.

A velha, quando ouviu falar na preciosa salada, sentiu desejo de comê-la e disse:

- Meu bom homem, deixe-me provar essa alface maravilhosa.

- Por que não? -  respondeu ele. - Tenho dois pés . Posso dar-lhe um.

Abriu o saco e alcançou-lhe a que era maligna. A bruxa, que de nada suspeitava e já sentia água na boca, foi ela mesma, até à cozinha para prepará-la. Depois de pronta, não podendo esperar a hora de servir, apanhou umas folhas que meteu na boca. Mal, porém, as tinha engolido, perdeu sua figura humana e desceu para o pátio, em forma de burro. Nisto, entrou a criada da cozinha, viu a alface pronta para ser servida e quis levá-la à mesa. A caminho, porém, não resistiu ao antigo hábito de provar os pratos e comeu, também, umas folhas. Imediatamente o dom mágico da salada se fez notar e a moça se transformou, por sua vez, num burrinho que foi juntar-se à velha no pátio. O prato de salada caiu no chão.

Nesse meio tempo, o suposto mensageiro estava sentado junto à formosa jovem, a qual, vendo que ninguém aparecia com a salada e sentindo, igualmente, um desejo grande de prová-la, disse:

- Não sei o que há com essa alface.

O caçador pensou: "Na certa já fez seu efeito", e, voltando-se para a jovem:

- Vou até à cozinha informar-me.

Ao chegar embaixo viu os dois burrinhos andando pelo pátio e a salada no chão. "Muito bem", - disse para si mesmo - "essas duas já receberam sua parte". Apanhou o resto das folhas, colocou-as, de novo, no prato e as levou para a jovem.

- Eu mesmo sirvo esta deliciosa salada, - falou-lhe - para não teres de esperar mais tempo.

A moça comeu e logo após se viu privada, como as outras duas, da sua figura humana, indo passear no pátio em forma de burrico.

O caçador, depois de lavar o rosto para que as mulheres enfeitiçadas o pudessem reconhecer , desceu no pátio e lhes disse:

- Agora vocês terão o prêmio que merecem pela sua falsidade.

Prendeu as três a uma soga e as levou a um moinho, Ali chegado, bateu a uma das janelas e o moleiro apareceu para perguntar-lhe o que desejava.

- Tenho aqui três animais tão maus que não quero mais ficar com eles. Se quiser cuidar destes bichos e tratá-los como eu lhe disser, pagarei o que me pede.

- Por que não? - respondeu-lhe o homem - Mas como devo tratá-los?

Disse-lhe, então, o caçador, que o burro velho - que era a bruxa - desse uma vez de comer e três surras cada dia; ao do meio - a criada - três vezes de comer e uma surra e, ao mais novo - que era a moça - três vezes de comer e nenhuma surra, pois apesar de tudo, ele não tinha coragem de maltratá-la. Depois voltou ao castelo, onde encontrou tudo quanto necessitava.

Passados alguns dias, apresentou-se o moleiro para comunicar-lhe que o burro velho, que só tinha recebido surras e comida apenas uma vez, estava morto. " Os outros dois" - falou o homem - "ainda vivem e recebem sua comida três vezes por dia. Mas andam  tão tristes que decerto não vão durar muito".

Compadeceu-se o caçador e, sentindo que lhe passara a raiva, disse ao moleiro que os trouxesse de volta. Quando chegaram, deu-lhes de comer da alface boa e, no mesmo instante, recuperaram sua forma humana.

Aí, então, a bela jovem ajoelhou-se diante dele e implorou:

- Ah, meu amor, perdoa-me o mal que te fiz, obrigada por minha mãe. sempre agi contra minha vontade, pois eu te quero de todo coração. Teu manto mágico está pendurado no guarda-roupa e, quanto ao coração do pássaro, tomarei logo uma bebida que o fará saltar-me pela boca.

O rapaz porém, tinha mudado de opinião e lhe disse:

- Fica com ele, pois quero casar-me contigo e não importa qual de nós dois o possua.

Casaram-se e viveram felizes até a hora de sua morte.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 1

Fonte da imagem e trova: Facebook
 

Sammis Reachers (A terrível infante)

Era meu único filho, e sua morte aos doze anos despedaçou o que me restava de família, talvez de sanidade.

No enterro, me chamou a atenção uma menininha, a que jamais vira; não por sua presença, que talvez fosse amiga de escola de Mateus, mas por aparentar estar sozinha.

A tarde caía. Me distraí entre pêsames e rostos e a perdi de vista, logo de memória.

Ao fim do funeral, fiquei sozinho, e vaguei pelo cemitério, desolado, destruído, como um bêbado – embebedado pela dor e o nonsense de minha tragédia.

No meio de uma alameda de túmulos, sozinha, divisei a menina. Ela não me vira; estava sentada sobre uma lápide, olhos fitos no chão.

Me aproximei.

– Você está sozinha, e num cemitério? Onde está sua mãe?

Ela sorriu.

– Nunca tive uma mãe. Mas meu pai está por aí, me vigiando.

– Já está escurecendo. Você não tem medo da noite?

– Como temeria a noite, se sou sua emissária?

E, saltando da lápide, correu por entre seus mortos.

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Texto enviado pelo autor.