quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Eça de Queiróz (O Tesouro)


Análise da obra

Eça de Queirós, romancista dos maiores, é também um contista que domina as artes de bem tecer uma narrativa breve.

Enredo

O conto O tesouro é uma história de astúcia e crimes. A ação concentra-se em torno de uma "viagem" de três irmãos pela floresta em busca de um tesouro perdido, tendo como tema principal a ambição desmedida e resumindo a moral da história ao sábio ditado popular "quem tudo quer tudo perde".

Tal como Shakespeare, também Eça nos conta uma história com humor, imaginação e alguma poesia, e também algo de trágico e amargo. No entanto, por detrás do trágico, há um prazer do lúdico, da dimensão onde se pode desvendar, através das personagens, uma visão negra da humanidade e das relações entre os indivíduos.

Ação

- Introdução (dois primeiros parágrafos): apresentação das personagens e descrição do ambiente em que vivem.

- Desenvolvimento (até ao penúltimo parágrafo): descoberta do tesouro, decisão de partilha e esforços para eliminar os concorrentes.

Conclusão (dois últimos parágrafos):
Situação final.

Se considerarmos a história dos "três irmãos de Medranhos", estamos perante uma narrativa fechada ; ao invés, se nos centrarmos sobre o "tesouro", teremos de considerar a narrativa aberta , dado que ele continua por descobrir ("...ainda lá está, na mata de Roquelanes.").

Por sua vez, o desenvolvimento tem também uma estrutura de três fases: 1. A descoberta do tesouro e decisão de o partilhar; 2. Rui e Rostabal decidem matar Guanes; morte de Guanes; morte de Rostabal; 3. Rui apodera-se do cofre e morre envenenado.

A articulação das sequências narrativas (momentos de avanço) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem regularmente a narração com descrições (espaço, objetos, personagens) e reflexões.

Personagens

Rui: Gordo e ruivo. Avisado, calculista, traiçoeiro.

Guanes: Pele negra, pescoço de grou, enrugado. Desconfiado, calculista, traiçoeiro.

Rostabal: Alto, cabelo comprido, barba longa, olhos raiados de sangue. Ingênuo, compulsivo.

Predomina o processo de caracterização direta, visto que a maior parte das informações nos são dadas pelo narrador. No entanto, os traços de traição e premeditação de Rui e Guanes são deduzidos a partir do seu comportamento (caracterização indireta).

As personagens começam por ser apresentadas coletivamente ("Os três irmãos de Medranhos..."), mas à medida que a ação progride, a sua caracterização vai se individualizando, como que sublinhando o predomínio do egoísmo individual sobre a aparente fraternidade.

Tempo

A referência ao "Reino das Astúrias" permite localizar a ação por volta do século IX, já que os árabes invadiram a península ibérica no século VIII (a ocupação iniciou-se em 711 e prolongou-se por vários anos, sem nunca ter sido concluída); por outro lado, no século X encontramos já constituído o Reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias.

A ação decorre entre o inverno e a primavera, mas concentra-se num domingo de primavera, estendendo-se de manhã até à noite. O inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono, a morte. E é no inverno que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência econômica, no isolamento social e na degradação moral (E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.). Por sua vez, a primavera tem uma conotação positiva, associa-se à luz, à cor, ao renascimento da natureza, sugere uma vida nova, enquanto o domingo é um dia santo, favorável ao renascimento espiritual.

A ação central inicia-se na manhã de domingo e progride durante o dia. À medida que a noite se aproxima a tragédia vai se preparando. Quando tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite surgindo (Anoiteceu.).

A ação estende-se do inverno à primavera e o seu núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A condensação de um tempo da história tão longo (presumivelmente três ou quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história). Nos momentos mais significativos da ação (decisão de repartir o tesouro e partilha das chaves, bem como a argumentação de Rui para excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (igual duração do tempo da história e do tempo do discurso), sem no entanto a atingir.

É possível também identificar no texto um outro processo de redução do tempo da história, que é a elipse (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história). A parte inicial da ação é localizada no inverno (...passavam eles as tardes desse Inverno...) e logo a seguir o narrador remete-nos para a primavera (Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo...).

Quanto à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica. Só na parte final nos surge um recuo no tempo, quando o narrador abandona a postura de observador e adota uma focalização onisciente, para revelar o modo como Guanes tinha planejado o envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma a natureza traiçoeira do seu caráter.

Freqüentemente, o recuo do tempo permite esconder da narração pormenores importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um suspense favorável à tensão dramática.

Espaço

A ação é localizada nas Astúrias e decorre, a parte inicial, nos "Paços de Medranhos" e, a parte central, na mata de Roquelanes. Somente o episódio do envenenamento do vinho é situado num local um pouco mais longínquo, na vila de Retorquilho.

O paço dos Medranhos é descrito negativamente, por exclusão (...a que o vento da serra levara vidraça e telha...), e os três irmãos circulam entre a cozinha (sem luz, nem comida) e a estrebaria, onde dormem, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas.

O fato de três fidalgos passarem os seus dias entre a cozinha e a estrebaria, os lugares menos nobres de um palácio, é significativo: caracteriza bem o grau de decadência econômica em que vivem. A miséria em que vivem é acompanhada por uma degradação moral que o narrador não esconde (E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.).

De igual modo, o espaço exterior, a mata de Roquelanes, não é um simples cenário onde decorre a ação. As descrições da natureza têm também um caráter significativo. A "relva nova de Abril", manifestação visível do renascimento da natureza, sugere o renascimento espiritual que as personagens, como veremos, não são capazes de concretizar. Do mesmo modo, a "moita de espinheiros" e a "cova de rocha" simbolizam as dificuldades, os sacrifícios, que é necessário enfrentar para alcançar o objeto pretendido — são obstáculos que é necessário ultrapassar.

A natureza, calma, pacífica, renascente (...um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas.), contrasta com o espaço interior das personagens, que facilmente imaginamos inquietas, agitadas, perturbadas pela visão do ouro e ansiosas por dele se apoderarem, com exclusão dos demais. Enquanto isso as duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Esse contraste tinha já sido posto em evidência antes, depois dos três terem contemplado o ouro (... estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam...). E, quando Rui e Rostabal esperam, emboscados, o irmão, um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos, como se a natureza sentisse o horror do crime que estava para ser cometido. Depois de assassinado Guanes, os dois regressam à clareira onde o sol já não dourava as folhas.

Simbologia

À leitura do conto ressalta de imediato a referência insistente ao número três, de todos os números aquele que carrega maior carga simbólica.

Desde logo, são três os irmãos; e o três é também um símbolo da família — pai, mãe, filho(s). Mas aqui encontramos uma família truncada, imperfeita — nem pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos progenitores dos fidalgos de Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os substituísse), Rui, Guanes e Rostabal dificilmente poderiam desenvolver sentimentos humanos: vivem como "lobos", porque — imaginamos nós — cresceram como lobos.

Eles próprios não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do mesmo modo que os três, apesar dos laços de sangue e de viverem juntos, não formam uma família e sempre pela mesma razão: porque são incapazes de sentir o amor.

O tesouro está guardado num cofre . Um cofre protege, preserva, permite que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. A sua utilização é significativa do caráter precioso do conteúdo. Igualmente significativo é o fato de o cofre ser de ferro, material resistente, simultaneamente, à força e à corrupção.

Três fechaduras — novamente o número "três"! — preservam o conteúdo do cofre (Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?...), mas três chaves permitem abri-lo sem dificuldade. Note: nenhuma delas, só por si, mas as três em conjunto. O simbolismo aqui é evidente. Só a cooperação dos três proprietários permite aceder ao tesouro. É pela solidariedade, pela cooperação, pela convergência de interesses e esforços que é possível alcançar o "tesouro" por todos almejado. Foi apenas porque, momentaneamente, os três cooperaram, que lhes foi permitido contemplar o "tesouro". E porque não souberam manter esse espírito de cooperação, não lhes foi permitido possuir o "tesouro".

E quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número "três" volta a aparecer insistentemente (...três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho.), como que a sublinhar o irredutível individualismo que os vai conduzir à tragédia.

Por outro lado, o ouro, material precioso e incorruptível, é ele próprio símbolo de perfeição. Obviamente, para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos vivem mergulhados na decadência material e na degradação moral. Não se lhes conhece uma atividade útil, um sentimento mais elevado, um afeto. Vivem com os animais e como animais. Mas para eles, como para todo o ser humano, há uma possibilidade de redenção. O "tesouro" está ali, à sua frente, é possível alcançá-lo; mas, para isso, é necessário enfrentar dificuldades, largar a cobiça, vencer o egoísmo, criar laços de solidariedade e verdadeira fraternidade.

Frequentemente, na narrativa, a tragédia é anunciada antecipadamente por indícios, que as personagens ignoram, mas não passam despercebidos ao leitor atento. É o caso da cantiga que Guanes entoa ao dirigir- se à vila e continua a cantarolar quando regressa:

Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...

A "cruz" e o "negro luto" são referências claras à morte que Guanes planeia para os irmãos. Mas ironicamente prenuncia também a sua própria morte. Nenhuma das três personagens é capaz de reconhecer esse sinal.

Outro indício trágico são as duas garrafas que Guanes trouxe de Retorquilho. Rui estranha o fato, mas não suspeita da traição. Se as personagens fossem capazes de interpretar esses indícios poderiam fugir ao destino. Mas são incapazes disso e é desse lento aproximar do desenlace e da incapacidade das personagens para o evitar que resulta a dimensão trágica da narrativa.

Fonte:
Passeiweb

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 482)


Uma Trova de Ademar 

Uma Trova Nacional 

Do bom e do que sofri
no percurso das estradas,
resta a paz que eu adquiri...
O mais... são águas passadas.
–DOROTHY JANSSON MORETTI/SP–

Uma Trova Potiguar 

Sinto tristeza, arrepio,
minha alma chora, se afoga,
vendo o futuro sombrio
na vida de quem se droga!...
–ZÉ DE SOUZA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram 

Velhice é um tempo que encerra
saudades e desenganos.
Por isso é que Deus, na Terra,
só viveu trinta e três anos!
–ANTONIO ROBERTO/RJ–

Uma Trova Premiada 

2010 - Cantagalo/RJ
Tema:  REALIDADE - M/H

Na realidade, o pecado
que me faz vagar a esmo,
foi na vida ter amado
outro alguém mais que a mim mesmo!
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Simplesmente Poesia 

Aconchego
                         –SUELY NOBRE FELIPE/RN–

Quando partires do meu tempo,
Leva-me entrelaçada em teus braços,
Dividas comigo o teu novo regaço,
Deixe-me provar da leveza do teu céu,
Onde ali, repousada entre nuvens,
Desfiarei nossos melhores sonhos.
E, por entre os fios dos nossos cabelos
– Já não tão negros como a noite,
Confundiremos deliciosos segredos.
Pois, não tardará o tempo
Em que haveremos de desfiar
Capuchos de solidão.

Estrofe do Dia 

Deus fez a relva sombria,
fez o tatu, à burguesa,
o campo da natureza
e a mais bela ecologia;
mas o homem de hoje em dia
não lhe procura zelar,
está poluindo o ar
pondo resíduo no leito,
Deus fez tudo tão bem feito
e o homem quer desmanchar.
–RAIMUNDO CAETANO/PB–

Soneto do Dia 

Aprendiz
                      –FRANCISCO MACEDO/RN–

Filosoficamente, tudo eu fiz...
Mas, não vi qualquer tese concluída,
e uma verdade, um dia concedida,
era pura ilusão, então refiz.  

Ao definir-me como um aprendiz,
e saber que sei pouco sobre a vida,
mas que busco encontrar uma saída,
ou melhor, uma porta, e ser feliz.

Procurei, inquieto, conhecer,
nesta busca incessante do saber:
Li, reli, estudei o “grande autor”.

Eu aprendi, com Ele, uma lição,
aí cheguei à grande conclusão:
A verdade absoluta... Só o amor!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor. Montagem da imagem com trova por José Feldman.

Trova Ecológica 76 – Wagner Marques Lopes (MG)


J. G. de Araujo Jorge (Maio: Um Tema e Duas Variações)


      Maio é um mês lírico. Ficaram em nós, através da herança cultural européia, ressonâncias primaveris.                                                                             

    “Maio: mês das flores”. Que  importa se nossa Primavera começa em setembro? Maio: Mês de Maria, mês das mães: a do céu; as da terra. Todas santas, pois que a maternidade é um estado de graça. Disse isso nesta quadrinha:

“Pureza maior que aquela
da branca e intocada flor,
é a da flor ainda mais bela
que vai dar frutos de amor”.

E nesta outra:

“Tens tanta pureza, tanta
minha mãe... que me enterneço
e chamo sempre de santa
a toda mãe que conheço!”

Os leitores que me distinguem com seu interesse hão de se lembrar de uma outra crônica: “O mais belo tema”. Recolhemos então as mais expressivas poesias sobre a maternidade, assinadas por  Belmiro Braga,  Constâncio Alves,  Hermes Fontes, Mauro Mota,  Mário de Andrade.

Sirvo-me,  agora,  da minha poesia  para a homenagem.  Flores silvestres, mais humildes, em todo caso, poesia, para o mesmo dia de festa. Tenho escrito muito sobre este tema.

Vou destacar, entretanto, apenas dois poemas: duas variações.  Um retirado ao livro “Cantiga do Só”, e outro, ao “Eterno Motivo”.

Começo por recordar aquele dia em que li num s uplemento literário,  a entrevista de um poeta brasileiro, dos mais festejados pela crítica comadresca. Respondia a perguntas sérias, ou superficiais. Uma delas, ingênua até.

O repórter queria saber qual a coisa mais feia do mundo. Pasmem com a resposta do poeta: -Uma mulher grávida. (Nada mais, nada menos).

Fechei  o  jornal.  E me  quedei  por segundos,  incapaz   de qualquer reação.  Mas, surdamente, as palavras começaram a germinar. Era um protesto contra a heresia. Fui à máquina, e escrevi o poema:

MULHER GRÁVIDA

Aquela beleza
aquela que fica para além dos olhos,
que independe de formas
está em teu corpo.

Durante nove meses,
silenciosamente,
Deus trabalha
em tuas entranhas.

Durante nove meses
- laboratório de Deus -
és um milagre acontecendo
em todas as suas fases.

Aquela beleza
aquela que fica para além dos olhos,
que as mãos não modelam
que os homens não sabem,
que as crianças não percebem,
que está em teu corpo.

(Não a beleza externa,
da flor,
mas, a recôndita,
da raiz;
não a beleza do adjetivo,
mas a beleza do verbo.

No começo, era verbo).

Até que, de repente,
Deus te revela em ti como um novo dia!

Então
não és apenas mulher - és símbolo, universo,
estrela...

E ao ver-te (e ao vê-la)
te sigo como o pastor
em direção da alvorada,
me curvo como o lavrador
sobre a terra já semeada,
me ajoelho como o crente
ante a imagem venerada,
me comovo como o Poeta
ao olhar doce da amada.
Prosterno-me
ante a mais simples e inédita
de todas as belezas,
(que importa se infinitas vezes repetida?)
e, humilde e ignorante,
(a alma por um mistério inefável possuída)
feito rei e pastor me maravilho
ouvindo a Vida cantar
no choro de teu filho!

          Ontem, vendo nas revistas, fotografias dramáticas de crianças vietcongues, entre os escombros da cidade arrasada de Huê, e junto a minha mãe, pude repetir mentalmente, em silêncio, como uma oração, os versos do poema

NÃO, MÃE, HOJE NÃO SAIREI...

Não, mãe, hoje não sairei... Quero ficar contigo,
quero ficar sozinho...

Não procures buscar além da minha face,
acharias estranho se te confessasse
minha angústia imensa...
Hoje... quero sentir que não morri,
quero ouvir que me falas, que vives, que está aqui,
quero me convencer da tua presença!

Encontro-me só, debruçado à janela,
daqui a pouco, bem sei, virás me perguntar:
- “Estás doente, meu filho? Com uma noite tão bela
por que não vais passear?”

Não, mãe, hoje não sairei... Quero ficar contigo,
embala-me nos teus braços como em tempos de então...
Não tenho febre, e até tenho dormido bem,
não te preocupes, mãe... não tenho nada, não.

Chegaste, oh! Minha mãe, - e ao ver-te eu murmurei:
Que doce a luz dos teus olhos!
Que suave e belo o seu brilho!
- Nossa Senhora da Paz!

E então me perguntaste:
- “Que crianças são essas no jornal, meu filho?”
- Órfãos, órfãos da guerra, minha mãe, crianças
perdidas, sem esperanças,
crianças tristes sem pais!

Sobre a minha cabeça a tua mão pousaste
e um minuto, em silêncio, os dois ficamos...
Eu sei que ambos pensamos
nos soldados que morrem, nas mães que soluçam,
nas crianças sem abrigo...
Tão bom, oh! Minha mãe, eu sentir-me ao teu lado!
Tão bom, oh! Minha mãe, eu ter-te ainda comigo!

(Eu nunca me encontrei com o espírito estranho e perturbado assim,
- quem sabe se a alma errante de um soldado morto
que longe dos seus caiu, sem carinho e conforto,
não se encarnou em mim?

Por absurdo e inverossímil que esta idéia apareça
senti na tua mão sobre a minha cabeça
o carinho de todas as mães que não conheço
nem nunca me conheceram,
como se pelo seu gesto elas todas se expressassem,
e com ternura afagassem
os filhos que morreram!)

Não, mãe, hoje não sairei... Pensando em todos os órfãos
cujos rostos estão nos clichês dos jornais,
quero ficar contigo, e ter certeza que vives,
ter certeza que vivemos e ainda somos felizes
e ainda estamos em Paz!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Espaço Cultural (Inauguração 18 de Fevereiro no RS)

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Fonte:
Felipe Daiello

Paulo V. Pinheiro (Quem é Você?)


Toda manhã, para quase todas as pessoas, há um noticiário que repete as mesmas notícias para que se tenha certeza que todos os que ouviram repetirão uniformemente aquelas verdades que interessa que sejam repetidas.

Em cada prato do almoço, dos que tem sorte em almoçar, se espera que haja apenas aquilo que foi programado como o prato do dia, seja o que for.

Entre o café da manhã e o almoço não importa muito quem é você, desde que você repita as notícias sem refletir no porque e que faça o que tem de fazer; trabalhando, estudando ou...

Quando você fez tudo o que esperam de você, que te pagam pra fazer, a programação prática foi executada, você justificou a sua vida naquele dia.

Sabe quem é você? Pois é!

Eu e você sabemos que não deveríamos nos horrorizar com as guerras, maldades, vícios e coisinhas asquerosas do tipo. Sabemos também que existe uma necessidade absurda de que estejamos entretidos, alheios, superficiais, consentidamente alienados.

Desculpe, você consegue se ver neste quadro? Se você não está nele parabéns, mas se você consegue perceber que o modelo social onde vivemos conta com este tipo de obediência, já é um começo ou a finalidade deste texto.

Sei que está muito resumido, mas se eu detalhar demais ficará muito cansativo, e secretamente conto com tua inteligência. Porém, se você se sentir confuso, por favor, reinicie a leitura e a faça bem de vagar.

As demandas sociais tem de ser controladas, sempre controladas e não resolvidas; para que resolvê-las se os clientes são cativos?

Sabe, no próximo café-da-manhã enquanto o rádio berra notícias, ou um jornal entreaberto estiver a nossa frente, ou uma televisão estiver gritando meio verdades, será bom a gente se perguntar se as catástrofes do dia não é a repaginação das de outras datas, e se devem ser levadas a sério, se elas se repetirão com outra roupagem, talvez amanhã ou depois. É isso que esperamos todos os dias e é isto que se nos dão.

Não se sinta diferente se você ver as coisas diferentes do que querem que você veja. Isso não te fará mal. Surpreenda a todos, pense por si mesmo e saiba que o sistema não espera que isto ocorra espontaneamente e por isso investe em tanto lixo cultural e (des)notícias e rocamboles novelescos. No meio disso tudo estou eu e você.

Fonte:
Exercícios de Palavras e Expressões
http://paulovinheiro.blogspot.com/2012/02/quem-e-voce-paulovinheiro-080112.html

Academia Formiguense de Letras (Convite para Sessão Magna)

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Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 1



Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras


AO LEITOR 

Este trabalho quer mostrar que os mitos e lendas hileanas não morreram, eles estão aí, escondidos nas sombras das cidades, esperando que a fantasia retorne numa noite qualquer, entre uma falta de energia elétrica e um conserto do aparelho de televisão.

O que apresento aqui, é o fruto de minhas horas de lazer e espero que seja, de algum modo, prazeroso também a você que o tem em mãos. Não é obra de um erudito ou esperto no assunto. Assim, se houver dados ou informações que queira corrigir ou acrescentar, use e abuse das margens deste volume e terei o máximo prazer em lhe dar um outro novo em troca do seu riscado. 

PREFÁCIO

Em outubro de 1987, realizou-se em Belém o VI Congresso Brasileiro de Parapsicologia e Psicotrônica, durante o qual foi apresentado uma espécie de painel de mitos e lendas da Amazônia. Colaborando na organização desse Congresso, coube-me pesquisar o folclore oral e o panteão mítico regional e, assim, nasceu o presente painel do lendário amazônico, porém, numa forma mais singela e resumida; bastante resumida para ser franco! Mas, apesar de nossos esforços, aquele livreto despretensioso não saiu do projeto, mas a idéia ficou se embalando na rede dos meus pensamentos, espicaçando-me de vez em quando, e a cada espicaçada eu comprava um livro sobre o assunto; recolhia material, pesquisava...

E com isso, aquele opúsculo humilde, quase cordel, foi-se lentamente encorpando; cevado pelo gosto à pesquisa iniciada e pelo xodó à cultura popular, ao nosso folclore. Esse xodó, no entanto, vem desde 1969, quando ingressei na equipe do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, no Estado do Rio de Janeiro.

O IHGNI é uma entidade particular, sem fins lucrativos. Foi fundada e mantida por um pequeno grupo de amigos preocupados em preservar a memória cultural e histórica do município iguaçuano. Desde a sua fundação, no início dos anos 60, teve como seu presidente o Professor, Historiador e Arqueólogo WALDICK PEREIRA, que faleceu em 1984, quando assumiu a presidência outro fundador, o também Historiador, Arqueólogo, Professor e Advogado NEY ALBERTO GONÇALVES DE BARROS.

Pelas mãos desses dois grandes amigos fui levado a compreender, respeitar, valorizar e defender as demonstrações culturais de nosso povo e suas raízes.

A eles, então, devo este trabalho e minha eterna gratidão.

PRIMEIRA PARTE

FOLCLORE


É comum a confusão entre o que é mito e o que é lenda. E visto que os limites entre um e outro termo são praticamente inexistentes, procuramos uma definição adequada que estabelecesse a fronteira entre lenda e mito:
        
LENDA - Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, no qual os fatos                                    históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação                                    poética.

MITO - (Mytho- gr = relato, fábula) Narrativa dos tempos fabulosos ou                              heróicos. Narrativas de significação simbólica, geralmente ligada à                              Cosmogonia e referente a deuses encarnadores das forças da natureza e                             (ou) de aspectos da condição humana. Representação dos fatos ou                             personagens reais, exageradas pela imaginação popular, pela tradição.

Como é fácil de perceber, a tarefa não foi coroada de êxito; ao contrário, acentuaram-se as semelhanças (mais adiante voltaremos a elas), o que nos permite agrupar as duas definições, fundindo-as numa expressão mais apropriada, um estilo de narrativa fantástica que visa transmitir uma lição, um ensinamento; explicar um fenômeno ou orientar uma decisão. Podemos chamá-la de "lendas mitológicas", afluente do vasto rio da cultura popular que denominamos Folclore.

Folclore, literalmente, significa "saber popular" (folk = povo e lore = saber); é um vocábulo de origem alemã criado por Willians J.Thons e surgiu em 1846 na revista The Atheneum (A). Para o eminente e erudito Luís da Câmara Cascudo, folclore "... é a mentalidade móbil e plástica, que torna tradicionais os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato".

O poeta e jornalista paraibano Orlando Tejo1, em seu memorável trabalho sobre o cantador e repentista Zé Limeira, apresenta um conceito para Folclore que parece mais holístico e menos erudito. Diz ele:

“A maquinária que faz surgir hábitos, costumes, alimentação, gestos, superstições, lirismo, sátiras, Indumentárias, tudo aquilo que os grupos sociais participantes assimilam, é folclore."
                                  
“Folclore é a cultura popular, feita normativa pela tradição natural, compreendendo utilitárias técnicas e processos que emocionalmente se ampliam e se valorizam."

O folclore, além do seu valor na ciência das tradições populares, é, como afirma Leite de Vasconcelos2, ”objeto de curiosidade para o povo, porque contém sua obra". E Carlos Brandão3 afirma que  “na cabeça de alguns, folclore é tudo o que o homem do povo faz e reproduz como tradição. [...] Na cabeça de uns, o domínio do que é folclore é tão grande quanto o que é cultura"

Para encerrarmos esse breve capítulo sobre folclore, recorramos a lira poética do grande Patativa do Assaré:4


"Você, caboclo, que cresce,                      
Sem instrução nem saber,
Escuta, mas não conhece
Folclore o que quer dizer,
Folclore é um pilão,
É um bodoque, um pião,
Garanto que também é
Uma grosseira gangalha
Aparelhada de palha
De palmeira catolé.
- Posso lhe afirmar também
Folclore é superstição
O medo que você tem
Do canto do corujão
Folclore é aquele instrumento
Para seu divertimento
Que chamamos berimbau
É também a brincadeira
Ritmada e prazenteira
Chamada Mineiro-pau.

O MITO, A MITOLOGIA E O SÍMBOLO

O obscuro fantasma criado pela poesia mitológica evaporou-se perante a luz brilhante de um conhecimento científico das leis naturais.
(Ernesto Haeckel)

A palavra mitologia não se aplica apenas às invenções imaginadas por um povo para tentar explicar um fato tido como inexplicável ou sobrenatural, mas, também identifica a disciplina que pesquisa e estuda esse fato, ou seja, mitologia é o estudo dos mitos.

Antigamente, apenas a grande novela dos deuses e heróis gregos e romanos, conhecida como Mitologia Clássica, merecia a distinção de verdadeiros mitos. Hoje o conceito de mito sofreu sensível mudança (B), se ampliou, e a palavra adquiriu uma condição de adjetivo pomposo aplicado geralmente às pessoas de grande notoriedade e fama, como é o caso, por exemplo, de Pelé, Charles Chapim, Marilyn Monroe, Picasso e outros.
Nesse "stricto sensu" podemos citar, também, outras conotações modernas, como o chamado "mito econômico", produzido pela febre da borracha, nos lustros de 1900, e que, segundo Eldorfe Moreira5, converteu a Amazônia numa "Califórnia" (sic.), numa alusão à corrida do ouro acontecida naquele estado norte-americano. Na verdade, sob esse prisma, há mitos para todos os gostos. É o que Víctor Jabouílle6 chama de "mitos do cotidiano"; símbolos de outros símbolos (C), resultante da amálgama cultural (moral, religião, filosofia, ciências e artes)  que  contextualiza  o  homem  contemporâneo;  e  também  da  natural e atávica tentativa de compreensão das coisas extraordinárias, das coisas que assumem um caráter fabuloso e que, ao correr do tempo, "criam e fazem durar esta mitificação".

Para Albert Goldman, famoso biógrafo de John Lennon e de Elvis Presley, "os líderes sociais são símbolos de nossa sociedade e não há melhores símbolos do que aqueles que a sociedade elege espontaneamente como seus heróis". Elvis e Lennon, para Mr. Goldman, "são arquétipos de nossa era".

Com ou sem exageros, o senhor Goldman nos mostra que toda sociedade carece de seus mitos porque são seus símbolos, suas mandalas; encarnam suas qualidades e atributos; servem de referencial à própria sociedade que os criou (ou recriou) e, de certa maneira, funcionam como elementos de ligação entre os membros dessa sociedade.

Claro está que mitos são símbolos, e como todo e qualquer símbolo, encerram uma mensagem ou uma informação codificada, inteligível apenas para os que conhecem o código, a decodificação. Alguns são universais, outros restringem-se a uma região, porém, todos são expressões da necessidade humana de registrar e transmitir uma descoberta, um conhecimento ou uma lição. Os mitos - diz-nos Ralph M. Lewis7, ex-imperador da Antiga e Mística Ordem Rosa Cruz (AMORC) -"... São criados espontaneamente ou assimilados. Nascem para suprir uma necessidade criativa individual ou de um grupo". Creio que os mitos constituem ou consolidam a cosmovisão ou cosmoconcepção que cada indivíduo possui.

A função social do mito apresenta-se bem delineada no capítulo 5 do livro "Mitos y Sociedad":8

"Cada sociedad ségun su modo de ser, concibe de una manera peculiar su unidad, y al expresarla toma conciencia de su existencia;... Ni um rey, ni una bandera, ni niguma otra cosa puede ser la encarnación de un grupo como le es el mito."

Ainda no mesmo parágrafo, o autor recorre a Nicholas Corte, um dos muitos autores citados na sua enciclopédica bibliografia, para explicar que "el mito fue el símbolo unificador del grupo social en cuyo seno fue elaborado. Satisfacia en ese grupo la necesidad intelectual de saber y de compreender, y servia de base a la religión. El mito mantenia de esta manera una especie de disciplina social".

O caos que a sociedade atual vivencia pode ser devido ao permanente processo mitogênico e mitofágico que o progresso provoca. O progresso é mitofágico, mas o ser social é mitogênico, porque é através do mito que ele procura estabelecer uma ordem, da mesma maneira que ele se utiliza de uma mandala para promover o equilíbrio em seu caos interior.

Felizmente o progresso, em sua voracidade, não atinge a todos os lugares ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Assim, ainda é possivel encontrar lugares que preservam suas raízes culturais quase intactas, quase inalteradas através dos séculos, apesar de tudo. Há, na Amazônia, regiões onde o progresso não penetrou de todo, onde mal se ouve um rádio, onde a maioria dos moradores não têm acesso a um aparelho de televisão, alguns sequer já viram um. São regiões cada vez mais reduzidas, pois, como previu Marshall McLuhan na década de 60, o mundo está se tornando, cada vez mais, uma "imensa aldeia global"; graças à televisão e à antena parabólica.

Lá, dentro das matas, à beira dos inúmeros lagos, rios, igarapés, furos, paranás, etc., ainda existem aqueles que acreditam nos deuses e demônios, nas histórias que falam de estranhas e incríveis metamorfoses de gente em bicho, histórias que falam de pessoas que possuem o poder de invocar os caruanas, que são as entidades protetoras e auxiliadoras dos pajés e feiticeiros amazônicos; enfim, lá nesses recantos esquecidos pelo consumismo, ainda é possível conversar com aqueles que acreditam no sobrenatural e naquilo que a imaginação cabocla cria.
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Notas:

1 TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1980. Coleção Machado de Assis, 38.0
2 LEITE DE VASCONCELOS apud BITENCOURT, Gastão de. O folclore no Brasil. Salvador: Livraria Progresso, 1987, p. 87.
3 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982~. p. 23. (Coleção Primeiros Passos).
4 PATATIVA DO ASSARÉ. Cante lá que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
                   Patativa do Assaré é o pseudônimo do cearense Antonio Gonçalves da Silva, nascido em Assaré, em 1909.
5 MOREIRA, Eldorfe. Obras completas. v. VI, p. 26.
6 JABOUILLE, Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Cadernos Culturais. Lisboa: Inquérito, Ltda,  1986.

(A)"As suas páginas mostraram amiúde o interesse que toma por tudo quanto chamamos, na Inglaterra, 'Antiguidades Populares', 'Literatura Popular', embora seja mais precisamente um saber popular que uma literatura, e que poderia ser mais propriamente designado com uma boa palavra anglo-saxônica, Folk-lore, o saber tradicional do povo)..." - Trecho da carta de W. J. Thons.

(B) NOTA DESTA EDIÇÃO: Em 1993 o pesquisador lusitano Victor Jabouille reuniu e publicou sob o título “Do Mythos ao Mito, uma introdução à problemática da mitologia” (Ed. Cosmos, Lisboa) algumas palestras que proferiu em 1989. Em 1997 o livro me chega às mãos e verifico, prazeirosamente, que esta minha observação, expressa de forma leiga e simples, tem ressonância no pensamento deste cientista. Em dado trecho da p. 16, lemos: “Hitler é um mito. Esta afirmação tem em conta a construção da imagem do político, a sua personalidade criada e explorada, bem como toda a construção narrativa enquadrante. Eusébio, ontem, ou Futre, hoje, também são por vezes classificados como mitos. Porque? Porque são capazes  de realizar grandes feitos...no futebol. A palavra mito vai-se abastardando, acabando por designar qualquer coisa de extraordinário,  o que parece ir além do razoável, o que não é real, qualquer coisa que não é verdadeira ou que não é lógica, algo exagerado ou, até, impossível. Mas, paralelamente, é nos nossos dias que o mito recupera credibilidade.”

(C) Symballein, gr = comparar

7 LEWIS, Ralph M. Introdução à simbologia. s. l.: AMORC, 1982.
8 SAGRERA, Martin. Mito y sociedad. Barcelona: Labor, 1967, p. 6~7O.

Cosmovisão ou cosmoconcepção é a compreensão que um indivíduo tem a respeito do Universo, do Homem e da História Humana. (N.A.)
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continua...

Ialmar Pio Schneider/RS (Monotonia Salutar)


Um casal de pardais se banha agora
na poça d’água rente da calçada...
O sol a pino... faz calor nesta hora...
É meio-dia e a tarde começada.

Vem do mar uma brisa que me agrada,
olho a paisagem nítida lá fora.
Estou à sombra e penso em quase nada:
assim minh’alma não sorri nem chora.

Ficar sentado aqui sem perspectiva,
ouvindo a voz das aves e o marulho,
nesta monotonia cansativa;

contudo salutar a quem deseja
fugir do turbilhão e do barulho
para buscar a calma benfazeja...


Praia do Pinhal - 14.2.84
Canoas, 10 de janeiro de 1985 - Página 10 - RADAR


Fonte:
http://ialmarpioschneider.blogspot.com/

Pedro Malasartes (Pedro se vinga do Fazendeiro)


Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este último era tão astucioso, vadio e inteligente que todos o chamavam de PEDRO MALASARTES. Como era gente pobre, o filho mais velho, João, saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacaria, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de serem compridos. João trabalhou quase um ano e voltou para casa quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro, o Malasartes, ficou furioso e saiu para vingar o irmão. 

Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. O fazendeiro disse que o empregava com duas condições: 

Primeiro, não enjeitar serviço e segundo, quem ficasse zangado primeiro tirava uma tira de couro do outro. 

Pedro não pensou duas vezes, de pronto aceitou as condições impostas pelo patrão. 

No primeiro dia foi trabalhar numa plantação de milho. O patrão mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. E disse: Só pode voltar pra casa quando a cachorra voltar. 

Pedro meteu o braço no serviço até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que a cachorra era treinada e que aquilo era uma artimanha do Patrão, Malasartes deu uma grande paulada na cachorra que saiu ganindo e correndo até o alpendre da casa. O Malasartes, para surpresa do velho patrão, voltou e almoçou. A tarde ele nem precisou bater na cachorra, fez só o gesto e a cachorra com medo voou pelo caminho em direção a casa do fazendeiro. 

No outro dia o fazendeiro escolheu uma outra tarefa e o mandou limpar a roça de mandioca. Malasartes arrancou toda a plantação, deixando o terreno completamente limpo. Quando foi dizer ao patrão o que fizera este ficou com a cara feia e Malasartes perguntou: 

– Zangou-se, meu amo e senhor? 

O Patrão a contragosto pra não perder a aposta respondeu: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

No terceiro dia o patrão acordou Malasartes bem cedinho e disse: 
– Pegue o carro de boi e me traga mil estacas de um pau liso, linheiro e sem nó. 

Malasartes não contou conversa, cortou todo o bananal, explicando ao patrão que bananeira era o pau que liso, linheiro e sem nó. O patrão fez uma careta de raiva e Malasartes perguntou: 

– Zangou-se, meu amo e senhor? 

O patrão, para não perder a aposta disse: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

No dia sequinte, quarto dia de trabalho do Malazartes na Fazenda, o patrão mandou que ele levasse o carro e a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha bem perto, sem passar pela porta. E para atrapalhar ainda mais, fechou a porta e escondeu a chave. 

Malasartes agarrou um machado e fez o carro em pedaços, em seguida matou e esquartejou os bois e os sacudiu, carnes e madeiras, pela janela, para dentro da sala. O patrão quando viu fez uma careta de raiva e Malasartes perguntou: 

– Ficou com raiva, meu amo e senhor? 

O patrão, mais uma vez, para não perder a aposta respondeu: 

– De jeito nenhum, meu caro. 

A noite o patrão ficou pensando como pegar aquele cabra tão vivo. Levantou-se de supetão, foi até a rede onde Malasartes estava dormindo, o acordou, ordenando: 

– Você vai agora mesmo vender meus porcos lá na feira. 

Malasartes não contou duas vezes e levou mais de quinhentos porcos para vender na feira. Antes porém de fazer o grande negócio, cortou todos os rabos dos porcos. Vendeu os porcos bom um preço muito bom, além do preço que pagavam no mercado, dizendo ser aqueles porcos de uma raça muito especial. Voltando para casa, enterrou todos os rabos num lamaçal e chegou na casa do fazendeiro aos gritos de desespero dizendo que a porcada toda estava atolada no lameiro. O patrão desesperado correu para ver a desgraça. Malasartes sugeriu cavar com duas pás. Correu para a casa e pediu a mulher do fazendeiro para lhe entregar duas notas de dinheiro para comprar as pás. A velha, que também era tão ruim quanto o marido, não queria dar mas Malasartes para mostrar a ela que era verdade perguntava através de gestos ao patrão se devia levar uma ou duas pás, e o patrão aos gritos respondia: - Traga duas e entregue logo, velha rabugenta. 

Obedecendo as ordens a velha deu as duas notas para Malazartes que tratou de esconde-las nos bolsos que trazia dentro das calças escondidos. Voltou para o lameiro, reclamou da surdez da velha mulher do patrão que não lhe entregou as pás, entrou no lameiro e começou a puxar os rabos dos porcos que dizia estar enterrado, e ia ficando com todos nas mãos. O Patrão fez uma careta horrível de raiva e Malazartes perguntou: 

– Está zangado, meu amo e senhor? 

E o patrão, fulo de raiva, mas sem querer perder a aposta, respondia: – De jeito nenhum, meu caro, de jeito nenhum. 

De noite, sozinho, pensando no que estava ocorrendo e vendo que a cada dia aquele empregado o deixava mais pobre, o fazendeiro resolveu o matar o mais rápido possível, de um modo que ninguém desconfiasse e que ele não tivesse problemas com a justiça. Pensou, rolou na cama, e pronto, já tinha o golpe certo, tão certo que Malasartes nunca vai descobrir, pensou erradamente o patrão assassino. Levantou-se aos gritos chamando Malasartes e esse como um raio entrou pela porta e já estava bem na frente do patrão. 

– Pois não, meu amo e senhor. 

O patrão olhou bem para o seus olhos e disse: – Meu filho, como sei que você é muito eficiente e como estou muito satisfeito com o seu trabalho, vou lhe incumbir de uma tarefa muito difícil e árdua. 

Malasartes respondeu. 

– Diga logo, meu amo e senhor, estou pronto a lhe servir da melhor maneira possível, como sempre fiz. 

O patrão quase morreu com um acesso de tosses. Respirou e disse a Malasartes. 
– Ultimamente anda rondando a minha casa e me roubando um ladrão desconhecido. Tome aqui essa arma. Eu fico vigiando primeiro, já tô sem sono, quando for de madrugada, antes do galo cantar, você vem me render. 

A idéia do derrotado patrão, era atirar em Malasartes e dizer a polícia que tinha se enganado, pensando que era o ladrão. 

De madrugada, assim como tava combinado, Malasartes olhou pelo buraco da fechadura e viu encostado na cerca, armado até os dentes, o patrão. Deu volta pelo oitão da casa grande, entrou pela porta da cozinha, subiu para o quarto do velho e começou a acordar a velha, dizendo que o seu marido a esperava lá fora no curral, e que era melhor ela levar a espingarda dele, que tava bem carregada, pois se ela visse o ladrão podia plantar chumbo nele. 

A velha pegou a espingarda e saiu. Quando chegou bem perto da cerca do curral, o patrão pensando que era o Malasartes começou a atirar na velha, acertando um tiro bem no peito. Pensando que tinha matado o Malasartes e só para se certificar da conclusão do trabalho, foi chegando para perto para olhar. 

Qual não foi o seu espanto ao ver a sua velha mulher estatelada agonizando no chão. Naquela hora, Malazartes chegou por traz dele, chorando e o acusando de ter matado a mulher e dizendo: 

– Vou agora mesmo contar a polícia que o senhor é um assassino. O patrão num aperreio danado, não sabia se acudia a mulher ou se tentava convencer a Malasartes para não o denunciar. Malasartes, olhou pra ele e perguntou com uma cara chorosa e safada. 

– Tá com raiva, meu amo e senhor?

O patrão respondeu: 

– De forma alguma, meu caro, porém me diga logo quanto quer pra ficar calado e quanto quer pra sumir da minha fazenda e da minha vista? 

Malazartes cobrou muito caro, pegou muito dinheiro, deixou o fazendeiro liso e pobre e voltou rico, vingado e satisfeito para casa de seus pais, cantando: 
Sou mala sem ser maleiro
sou ferro sem ser ferreiro
sou nordestino e brasileiro, 
eternamente herdeiro
do meu passado estrangeiro.