quarta-feira, 18 de setembro de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVI


OTIMISMOS

Falas só por falar, não que a vida te doa,
não que o mundo te faça desejar um fim.
Quanta gente acharia a tua vida boa
e quantos sonhariam ter um mundo assim...

Tens mais que um rei - que importa se não tens coroa?
Tens teu lar, teu trabalho, e crianças no jardim...
Não andes por aí te maldizendo à toa,
nem a vida e tão má'... nem o mundo é tão ruim...

Falas só por falar... Pensa, a ficarás mudo
ao ver que te pertencem os maiores bens
do mundo, e que afinal a tua vida, é tua!

Basta olhar ao redor, tomar posse de tudo!
Ninguém, por mais que tenha, há de ter o que tens;
se tudo é teu: - o céu, o mar, a praia, a rua!

PALAVRAS

Ah! como me parece inútil tudo quando
sobre nós tenho escrito e hei de ainda compor...
não há verso que valha uma gota de pranto
nem poema que traduza um segundo de dor.

Nem palavra que exprima a singeleza e o encanto
de um pedaço do céu, de um olhar, de uma flor!
Ah! como me parece inútil tudo quanto
na vida, tenho escrito sobre o nosso amor.

Não devia existir a palavra... Devia
existir tão somente a infinita poesia
dos gestos e da luz, - que o amor do meu enlevo

quando o sinto, é profundo, indefinido e imenso,
mas se o chão tão grande quando nele penso
parece-me tão pouco se sobre ele escrevo!

PALAVRAS À TUA TIMIDEZ ...

Antes se arrepender de um gozo ja' vivido
mesmo tendo custado aflição e amargura,
do que o arrependimento de se ter perdido
o que podia ser, ventura . . . ou desventura.

Antes o coração ferido e a alma cheia
de imagens a emoções, de prazeres e amores,
que um destino vazio sobre um chão de areia,
- sem arvores, sem sons, sem fontes a sem flores.

Antes essa certeza amarga, mas sentida,
esse gosto de fel que é mais doce no fundo,
que a imensa solidão de quem fugiu da Vida
e covarde impressão de quem fugiu do mundo!
.......................

Por que temer a vida pelo sofrimento?
Por que preocupações inúteis te consomem?
- O mesmo amor que dói, causa contentamento,
e que falta faria o sofrimento ao homem!

Não transformes a vida em teu próprio degredo
nem queiras perguntar o que ninguém responde.
Abre os olhos, e avança! Abre os bravos, sem medo!
É na vida que a estranha resposta se esconde.

PARADOXO

A dor que abate, e punge, e nos tortura,
que julgamos as vezes não ter cura
e o destino nos deu e nos impôs,

- é pequenina, é bem menor, e até
já não é dor talvez, dor já não é
dividida por dois !

A alegria que às vezes num segundo
nos dá desejos de abraçar o mundo
e nos põe tristes sem querer, depois,

-aumenta, cresce, e bem maior se faz,
já não é alegria é muito mais,
dividida por dois.
..........

Estranha essa aritmética da Vida
nem parece ciência, parece arte,
compreendo a dor menor, se dividida,
não entendo, é aumentar nossa alegria
se essa mesma alegria
se reparte !

PARAÍSO PERDIDO

Penso isto: penso que devemos fugir para nos mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,
são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas
quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo
e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba
inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,
sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,
sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,
passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto : só a fuga para nos mesmos seria a salvação.
Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia
e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que
devemos voltar ao Paraíso,
ou jamais o reconquistaremos.

PIANO DE BAIRRO

Na rua sossegada onde moro, - à tardinha,
quando em sombras o céu lentamente escurece,
- um piano solitário, em surdina, - parece
acompanhar ao longe a tarde que definha...

Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha,
seus acordes pelo ar tem murmúrios de prece...
- Ah! Quem não traz como eu também, na alma sozinha,
um piano evocativo que nos entristece?

Há sempre um velho piano de bairro, esquecido
na memória da gente, - e que nas tardes mansas
sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido.

Seus monótonos sons, seus estudos sem cor,
repetem no teclado branco das lembranças
o inconcluso prelúdio de um longínquo amor!

POR QUÊ?

Por que não hei de colher a flor e o fruto
com uma só mão ?

Por que sempre este duplo gesto, no destino
das coisas bipartidas, se sou um só
e se és uma somente...

Por que serás a flor, hoje serás a flor,
e hei de colher o fruto noutro corpo
que nunca foi botão ?

Ah! se fosses flor e fruto, como outrora,
para que pudesse te colher como dantes
com o mesmo gesto fiel, e a mesma ânsia…

PRECE

Bendita sejas tu em meu caminho!
Bendita sejas tu, pela coragem
com que fizeste de um amor selvagem
esse amor que se humilha ao teu carinho!

Bendita sejas, porque a tua imagem
suaviza toda angústia e todo espinho...
Já não maldigo a insipidez da viagem,
nem me sinto só, nem vou sozinho...

Bendita sejas tantas vezes quantas
são as aves no céu; e são as plantas
na terra; e são as horas de emoção

em que juntos ficamos, de mãos dadas,
como se nossas vidas irmanadas
vivessem por um mesmo coração!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Lima Barreto (O Feiticeiro e o Deputado)


Nos arredores do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no município Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.

Conheciam-no no lugar, que, antes do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de Inhangá, por “feiticeiro”; o mesmo, certa vez a ativa polícia local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo de “feiticeiro”.

É bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de sua chegada e na extravagância de sua maneira de viver.

Fora mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas. Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e sem relações quase.

A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômodo de cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo, no sopé do morrete, em torno do poço de água salubre, as couves reverdesciam nos canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.

Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer coisa.

Toda a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:

— “Seu” Ernesto tem visto como a seca anda “brava”.

— É verdade.

— Neste mês “todo” não temos chuva.

— Não acho… Abril, águas mil.

Se lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.

À tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as tardes são longas, ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina Comédia, o Robinson e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.

A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois todo o sofrimento vem dele.

Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este que nos provoca a dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa amar plenamente…

Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar, que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.

Um dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:

— “Seu” Ernesto: viraram a cabeça de meu filho… Deu “pa bebê”… “Tá arrelaxando”…

— Minha senhora, que hei de eu fazer?

— O “sinhô” pode, sim! “Conversa cum” santo…

O solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre rapariga, disse-lhe docemente estas simples palavras:

— Não beba, rapaz. E feio, estraga—não beba!

E o rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.

Este incorrigível bêbado, a quem atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do “homem” um pássaro branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.

Com essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.

Houve mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o que era de outro; mas o escriturário do posto, “Seu” Almada, contrariava-o, dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um segundo!…

O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.

A opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.

Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.

Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança de ciência…

O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mané Bitu, a doce compaixão de sua alma terna e afeiçoada…

De manhã e à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar as utilidades de que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele município de Inhangá, hoje burocraticamente chamado – “Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista”.

Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um elegante senhor, bem-posto, polido e cético.

O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o vendeiro Bitu, representando o “capital” da localidade, receberam o parlamentar com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.

Mostraram-lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos porcos… Por fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de assessores, o doutor Chupadinho convidou:

— Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidados da ciência, em algum manicômio.

E o escriturário acrescentou:

— Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com que as outras idades fabricavam os seus santos.

E o Mané Bitu:

— É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso dizer dele.

O deputado, sempre cético e complacente, concordou em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.

O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na várzea, à beira da estrada.

O deputado olhou-o e o solitário, ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada, voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia procurar reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que pudesse o “feiticeiro” dizer qualquer coisa, correu até ele e abraçou-o muito e demoradamente.

— És tu, Ernesto?

— És tu, Braga?

Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.

Quando saíram, Almada perguntou:

— O doutor conhecia-o?

— Muito. Foi meu amigo e colega.

— É formado? indagou o doutor Chupadinho.

— É.

— Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizeram-me crer isso; o povo, porém…

— Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…

— Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.

E os quatro voltaram em silêncio para a sede do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Paulo Leminski (L) "Depois de hoje"


Carolina Ramos (Os Três)


Eram três. Três marginalizados que a fatalidade confinou na mesma cela. E quando a vida, aranha traiçoeira, teceu sua teia, teve o cuidado de envolvê-los muito bem, com fios viscosos, de maneira que não mais se separassem.

Três: — "Bá", o gaúcho, bravo como o diabo, que acumulava no costado sabe-se lá quantas mortes! “Mengo", carioca, alma de cuíca gemedora, cumprindo pena sem saber se, fruto inocente da violência urbana, ou culpado, pela contribuição pessoal, para um todo violento, ainda que por interferência mínima. Certo, é que estava entre as grades, com maior ou menor culpa, a batucar nas paredes o protesto ritmado contra o peso excessivo da mão da lei, pousada sobre seus ombros. O terceiro era mineiro. Desconfiado, sim, entremeando estágios de mutismo, com fases de loquacidade desenfreada. Pagava o pecado, amargo, da cupidez incontrolada. Estupros vários. Um deles seguido de morte.

Eram três diabos, vindos de pontos diferentes, a arder na mesma fornalha da Pauliceia. Entendiam-se. Chegavam às confidências. Arquitetavam planos para o futuro. E desses planos a violência não constava.

A boa conduta dos três presidiários chegou aos altos escalões, com retorno satisfatório.

A notícia de que poderiam passar as festas natalinas em liberdade condicional, junto às famílias, foi recebida com particular entusiasmo pelo gaúcho.

— Bá! Presente de Pai Noel! Melhor, só a liberdade definitiva!

A alma queixosa do "Mengo" despertou como cuíca em Quarta-feira de Cinzas, melancólica, gemendo em surdina, num canto da cela.

O mineiro, ou "Mineirão", nome de guerra, introverteu-se. Deixou-se engolir pelo silêncio, no canto oposto.

Sem eco, a alegria do gaúcho esmoreceu como gaita murcha:

— E então?! — indagou, desafiante, aos dois vultos encolhidos.

A única resposta veio, soluçada, lá das bandas cariocas:

— Belo presente, meu! Mas, só mesmo pra quem tem sapato. Quem não tem família, fica como noix, no tanto faix, como tanto feix!

"Mineirão" nem deu sinal de vida. Enrustido em si mesmo, era cápsula, hermética, resguardando os próprios pensamentos. Ostra, fechada, preservando a pérola.

As lembranças das confidências trocadas fizeram-se presentes na cabeça eufórica do Bá. A verdade é que os dois companheiros de reclusão não tinham família e, portanto, não tinham, também, motivos para partilhar da alegria que lhe inflava o peito atlético.

— Duro não ter ninguém lá fora! Duro demais, tche!...

No ermo da cela, um raio de magnanimidade acoplou-se sobre os cabelos negros e lisos do gaúcho, que decidiu a questão:

— Nada de tristeza, amigos... os dois vão comigo. Tenho uma casa, tche... tenho uma guapa chinoca e uma guria que é uma beleza! Onde comem três... comem cinco! Estamos conversados.

Piscou o olho malicioso, acariciando os fartos bigodes:

— Vais provar o chimarrão, mineiro velho! E tu também, Mengão. Os dois vão conhecer os pampas, ao sentir o mate quentinho escorregar goela abaixo, até a cuia roncar de gozo. Barbaridade! não há coisa melhor no mundo! Só mesmo o beijo da minha chinoca consegue ganhar dessa gostosura! Bah!

Na penumbra da cela, dois pares de olhos ganharam brilho.

Ninguém interrompeu o devaneio gauchesco. Logo, havia festa antecipada, ao toque dos preparativos para a partida.

Presentes! Precisavam levar presentes. Ao menos, para a menina.

O mineiro, vasculhando os "trens", encontrou a caixinha de guardar badulaques, feita, por ele mesmo, de fósforos queimados. Trabalho paciente, que deveria agradar a chinoca do Bá.

Isto lembrou ao Mengo o porta-lápis, elaborado no seu lazer forçado, com palitos de sorvetes, que, com certeza, a guria do gaúcho não desprezaria, se pintada de cores vivas e adornada de desenhos.

Às vésperas do Natal, as portas do presídio do Carandiru abriram-se prazerosamente, dando passagem aos três amigos que, findas as festas e expirada a licença, assumiam o compromisso de retomar, para cumprimento do restante da pena.

Bem... o tempo não para...

A guria do "Bá" tinha já quinze anos, desabrochara. Por isso mesmo, o coração deslumbrado do Mengo chegou-lhe às mãos, dentro do porta-lápis, espremido, latejante de amor, desses tais amores que eclodem à primeira vista!

Com o "Mineirão" a coisa não foi diferente. Só que, por azar, a graça da chinoca é que lhe roubou o sossego. Ficou doidinho de todo, ao ver de perto o decantado beijo trocado pelo par gaúcho. Sentiu, a seco, o gosto doce do chimarrão, antes mesmo de tê-lo provado. Não o sabia amargo!

Na primeira oportunidade, atacou. Todos os seus impulsos reprimidos vieram à tona. A gaúcha, subjugada, cravou-lhe as unhas de gata brava, riscando-lhe a face, de alto abaixo, em linhas paralelas, que logo se tingiram de rubro.

Nada precisou ser dito para que o gaúcho, sem mesmo ter visto a cena, tomasse sentido do que se passara.

Uma bala certeira vingou-lhe a honra insultada,

"Mineirão" foi cumprir o resto da pena em terras mais quentes.

"Bá", inapelavelmente, dobrou a sua.

E “Mengo” ao transportar para cela uma esperança doce, tomou mais curtos e mais suaves seus dias de penitente. Nem "mermo" a mão da justiça parecia pesar-lhe sobre os ombros. Abafou dentro da alma a voz gemedora da cuíca. Trocou-a por outra, lírica e seresteira, de violão cantador!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Lição (2)

2a. parte do conteúdo do Folhetim Literato Desiderata - Tema: Lição

Sílvia Araújo Motta
Belo Horizonte/MG

A FOLHA CAÍDA


Aquela “Folha” quis mostrar caída
que era o momento certo para amar...
Quem sabe até, por ser também sofrida
quis dar a chance para a luz brilhar.

A folha seca pela dor vencida,
envelhecida veio às mãos, lembrar:
-Terceira idade pode ser querida
para envolver quem quer beijar, sonhar.

Beijos nas mãos selou adeus, que a lua
pode antever, por sua vez, soluços,
da alma, que também foi quase sua.

Fim da viagem, folha foi ao chão...
Quanta saudade! Sento e me debruço!
Computador já pode ver lição.
___________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Quando acaba a fantasia
e se busca a aprendizagem,
lição é sabedoria
que a alma acolhe, de passagem.
___________________________
Milton S. Souza
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS


No entrevero, metido, que alegria,
deixo a chuva molhar meu coração,
pois eu sei, esta chuva que desliza
traz na seiva esta paz de cada irmão,
e a palavra precisa que preciso
para ser bom aluno na lição.
_____________________
JB Xavier
São Paulo/SP


Meu pai me ensinou: ”Reflita!”
Nunca esqueci a lição:
“a velhice não se evita.
maturidade é opção!”
________________________________
Gilson Faustino Maia
Petrópolis/RJ

RENASCIMENTO


Nasce outra rosa no jardim florido,
nasce o perfume, o amor, a poesia,
tão logo raia o sol de um novo dia
e morre a madrugada sem gemido.

Levanto o meu olhar enternecido
e vejo um horizonte que extasia,
de luz e cores, tudo em harmonia,
cenário que me deixa comovido.

E eu choro a minha humana imperfeição
diante do esplendor da natureza,
sem sentir do Universo esta lição:

se o passado morreu, viva a certeza
de um novo amor que invade o coração
matando a dor, o pranto e a tristeza.
______
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


O fim do mundo receio,
e acabe tanta beleza,
que o dirigente anda alheio
à lição da natureza.
___________________________
Carlos Drummond de Andrade
Itabira do Mato Dentro/MG, 1902 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

ENTRE O SER E AS COISAS


Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.
______________________
A. A. de Assis
Maringá/PR


A história, através dos anos,
ensina a grande lição:
– o destino dos tiranos
será sempre a solidão!
____________________________
João Felinto Neto
Mossoró/RN

DISLATE


Talvez minhas palavras sejam tolas,
minhas ações, inconsequentes;
as minhas brincadeiras, ironia;
eu próprio seja falho e negligente.
O meu discurso seja sátira;
minha seriedade, uma piada.
O meu humor seja mau gosto;
o meu dislate, permanente.
Meu riso entre dentes, atimia;
a minha faina seja ociosa;
meu pranto, uma lição jocosa
e o jeito infantil, idiotia.
Talvez a minha vida seja um fracasso;
meus versos, um engodo imoral.
Em epítome, sou um gracejo nefasto.
Meu desejo, um esboço anormal.
_____
António José Barradas Barroso
Paredes/Portugal

Quando me falam de glória,
cada vez mais me convenço
que a guerra, na nossa história,
é lição pra ter bom senso.
__________________________
Guerreiros Mura
Manacapuru/AM

A SEDUÇÃO DO BOTO COR-DE-ROSA


Todo o meu pecado
Foi amar uma linda sereia do mar
E como lição herdei a maldição
De viver nas águas contemplando a solidão
Os mistérios e as mágoas dos rios a imensidão

Mas o feitiço das escuridão
Quebrou-se ao luar
O boto cor-de-rosa emergiu
Dele o encanto surgiu
De boto a um lindo rapaz
Astucioso e sagaz
Do fundo do rio Solimões
Uniu-se dois corações

Veio seduzir a cirandeira bela
Dançarina, dançarina
De sua paixão
Com fitas brancas e amarelas
Dança a dança, dança a dança
Da sedução

Está se deslumbrando senhor
Uma linda estória de amor
Com a cirandeira bela fogosa
Amor do boto cor-de-rosa.
__________________________
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


Ao seu filho, desde cedo,
ministre a boa lição:
em vez de armas de brinquedo,
ponha um livro em sua mão!
______________________
Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: ninguém o pode resolver senão tu!
Friedrich Nietzsche
(Röcken/Lutzen/Alemanha, 1844 – 1900, Weimar/Alemanha

______________________
Prof. Garcia
Caicó/RN


Trago uma lição comigo
que aprendi desde criança:
Quem tem um cachorro amigo,
não perde nunca a esperança!
______________________
Desconhecido

NADA É POR ACASO


Se as coisas fossem perfeitas
Não existiriam lições de vida
Não haveriam arrependimentos
E nem descobertas...
Se tudo fosse perfeito
Mãos não se uniriam
E sonhos não seriam valorizados.
Se tudo fosse perfeito
Olhares não se completariam
E gestos passavam despercebidos.
Se tudo fosse perfeito
As lágrimas não existiriam
As palavras seriam perfeitas.
Se tudo fosse perfeito
Eu pularia no abismo
Sem medo da morte
Pois asas eu ganharia...
Se tudo fosse perfeito
Eu atravessaria o oceano
Sem medo de ser levada pelas ondas
Sem receios de me perder em suas profundezas.
Se tudo fosse perfeito
Dores não existiriam
E a cura não seria procurada...
Se tudo fosse perfeito
Não haveria a busca pela perfeição...
Nada é por acaso
Pois nem o destino
É Perfeito.

Na vida nada acontece por acaso.
O que você faz hoje,
pode fazer a diferença
em sua vida amanhã.

Arthur de Azevedo (Em Sonhos)


– Ora, sempre há sonhos muito esquisitos! – exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

– Com quem sonhaste? – perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!

– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

– Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.

– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!

– Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!… Eu não queria!… D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!…

– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .

– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!…

– Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!

– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!…

– Sim, tens razão, César… Sonhos são sonhos… uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.

– Ora, ainda bem que te chegas à razão!.

E não se falou mais nisso: a discussão passou… como um sonho.

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.

– Que é isto? – perguntou César despertando. – Ergueste hoje mais cedo?

– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

– Sim?… Com quem sonhaste?.

– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.

– Sonhei; que tem isso?… Que culpa tenho eu?

– Conta-me o teu sonho.

– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

– Margarida! Nunca esperei que tu…

– Deixa-te disso!… Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!.

O César saltou da cama furioso:

– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

– Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Isabel Furini (Palestra em Maringá, dia 24 de setembro)


Em 24 de setembro, a partir das 15h30m, na 38º Semana Literária do SESC & Feira do Livro, Maringá, PR, a poetisa e educadora Isabel Furini ministrará uma palestra sobre produção poética. Também serão lidos poemas de poetas maringaenses.

O evento será na UEM (Universidade Estadual de Maringá)  Bloco E 46 - Sala 07, as 15h30.

Serão abordados os seguintes assuntos:

- A Linguagem Poética

- A Poesia como receptáculo

- A teoria dos anéis

- Reflexão sobre a Poesia nas redes sociais.

Na continuação, serão lidos poemas de poetas de Maringá, e leitura de dois poemas de autoria de Isabel Furini. Também serão lidos poemas curtos de poetas de Curitiba: Daniel Mauricio, Jandira Zanchi, Decio Romano, Elciana Goedert, Neyd Montingelli e Geraldo Magela, além de Maria Antonieta Gonzaga Teixeira, de Castro e da poetisa Fla Quintanilha.

Após o recital, serão sorteados entre os presentes, livros dos autores lidos.

No final do evento, os maringaenses, poeta Jaime Vieira e poeta trovador José Feldman receberão Medalhas de Mérito Cultural pelo trabalho que realizam em prol da Literatura.

SÁ de Carvalho (Poemas Escolhidos) 2


ANJO

Senti o meu coração estrangulado...
Desorientada e assustada quebrei-me igual galho seco,
verguei-me sob o peso da dor!
Nesse funesto momento surge,
com sua luminosidade, um vulto que se põe a me afagar,
a tecer em mim a rede da esperança,
a ligar os elos da confiança e a envolver-me no anel da segurança!
Tal ser segura as minhas mãos e me conduz!
Ao embalar meu espírito e aquietar a emoção,
combate o meu medo!
Iluminada criatura, creio que sua missão
é enveredar-me na caminhada por paz!
Não sei como viveria se meu anjo partisse...
Ao derramar sua magnificência sobre mim
acolhe-me, aconchegadamente, sob suas asas protetoras;
enche o tempo e o espaço, hora vazios, com amor angelical!
Eu lhe dou o nome de amigo...
Eu o chamo de amor...
Nele reconheço o anjo que veio me ressuscitar!

CONSUMIÇÃO

Roço, ao passar por você, no seu braço,
sinto na alma uma energia flâmea,
um incontido desejo de abraçá-lo...
Imagino o meu corpo ardente ao seu entrelaçado,
um no outro, num abraço apertado,
coração com coração, num dueto compassado,
almas flamejantes à procura do passado!
Ah, esse incontrolável tremor excitado
estigma desses lábios ansiosos,
lábio sedentos os meus , os teus...
(os teus enganosos, displicentes, cínicos, maldosos),
negam-me uma tênue ternura latente,
aumentam, em mim. essa dor pungente.
O tempo passa acelerado
e em breve não mais o verei...
Contento-me com parcas migalhas:
olhares furtivos e rápidos toques de mão...
Mergulho nesse olhar azulado
perdendo-me na dor dessa infindável solidão!

domingo, 15 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 72


Monteiro Lobato (Vidinha Ociosa)


APÓLOGO


O velho Torquato dá relevo ao que conta à força de imagens engraçadas ou apólogos. Ontem explicava o mal da nossa raça: preguiça de pensar. E restringindo o asserto à classe agrícola:

— Se o Governo agarrasse um cento de fazendeiros dos mais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquele canto e uma floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse uma mesa com papel, pena e tinta, e lhes dissesse: “Ou vocês pensam meia hora naquele papel ou botam abaixo aquela mata”, daí a cinco minutos cento e um machados pipocavam nas perobas!...

A MESMICE

Um coronel inglês suicidou-se “tired of buttoning and unbuttoning” — cansado de abotoar e desabotoar a farda.

A vida em Oblivion é um perpétuo “buttoning and unbuttoning” que não desfecha no suicídio.

Salvam-na a botica e o jogo. A botica, porque nela há uma sessão permanente de mexerico, e o mexerico é a ambrosia dos lugarejos pobres. E o jogo, porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra, e quem ganhou vai alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. Dessa forma escapam todos ao cansaço da mesmice.

A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticário do interior para uso de sua cidade-aldeia, onde correm os dias tão iguais e parecidos que só por meio dela podemos distinguir uma segunda duma terça ou quarta-feira.

Um só dia tem feição própria: o domingo. Assinala-o a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que surge pelas ruas a tomar sol no corpo de toda gente.

Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente extramuros dão ares de sua graça. Há mercado cedo, missas até as onze; depois, pelo resto da tarde, continuam a assinalar o Dia do Senhor caboclos e negros encachaçados, aglomerados pelas vendas. Vendem elas mais pinga nesse dia do que durante a semana inteira. Todos voltam para casa mais ou menos chumbeados. Os “de cair” dormem na cidade. Os de pinga exaltada, no xadrez. E assim transcorre o belo domingo sem necessidade de irmos à folhinha para sabermos que dia é.

TOURADAS

Transformaram o antigo velódromo em circo de touros; metade das arquibancadas virou Sombra, a mil-réis; e a outra metade, Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de cetim amarelo e verde está um inteligente pegado a laço e imensamente bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso; cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som completo — e o povo ri-se.

Toureiro de verdade há um, o Antônio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completam a cuadrilla.

A cada passinho Corajoso berra para o inteligente: “Dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquilo”. E o pobre-diabo se vê tonto para conciliar uma burrice inata com os deveres do cargo.

O povo vaia ou aplaude num tom amolecado que é toda a graça da festa. Reles, mas divertido. “Feche a boca, negro! Está com fome?” (isto para um toureiro mulato). “Recolham esse canivete aleijado!” (para um zebuzinho preto muito magro). “Hu! hu! Tira leite dessa vaca, ó canudo de pito!”

Uma farpa fere um boi na veia; o sangue começa a correr. Enternecimento geral. Para-se a tourada para remendar-se o boi. Laçam-no, cosem-lhe a ferida — operação demorada que consome vinte minutos. Tomado de piedade, o povo não consente que farpeiem os restantes.

Há palhaço — um palhaço que faz jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Moleza. Tem preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a correr. Lá quando a banda de música ataca a valsa Amoureuse, o ladrão atravessa a arena dançando. Mas dança com tamanha preguiça que o povo rompe num berreiro: “Lincha o cínico! Mata!”. E chovem-lhe em cima toda sorte de desaforos — e cascas de pinhão...

Remata a festa a “pantomina”, como diz o programa. Consiste no Pançudo, figura de um cômico prodigioso. Tem tanto de largo como de alto. Perfeita esfera encimada por uma cabeça e “embaixada” por dois pés. É um homem acolchoado. Mal aparece, em passinhos miúdos e lentos, uma voz o denuncia: “É o Zé de Mamã! Aí, negro safado!”. E toda a gente morre de rir, adivinhando o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investe, marra-o, arremessa-o longe. Os toureiros reerguem-no. Nova investida, novo rebolar. E assim até que o touro, desconfiado, se recuse à pagodeira. Soa por fim o toque de recolher e, todo esburacado, com a palhaça à mostra, lá vai para os bastidores o pobre Zé de Mamã, rolado qual uma pipa.

A ENXADA E O PARAFUSO

Cada terra com seu uso. O nosso teatrinho sempre usou campainha para as chamadas. Campainha é eufemismo. Havia lá dentro uma enxada velha, pendurada de um arame, com um parafuso de cama, cabeçudo, ao lado. Os sinais eram batidos ali.

Veio um mambembe pernóstico e calou a enxada, substituindo os seus sonidos por três pancadas no assoalho.

No primeiro dia o povo da plateia entreolhou-se ao ouvir aquilo, e lá pelo poleiro houve risadas e assobios. O delegado resolveu intervir.

— Este mambembe parece que está mangando conosco!

Explicações. O empresário provou que aquele sistema era a última moda de Paris. Os espectadores remexeram-se, desconfiados. Estavam nessa indecisão, quando o major dirimiu a pendenga com o peso de sua autoridade:

— Mas isto aqui não é Paris!...

— Bravos! Bravos!

E a velha enxada sonorosa voltou a ser tangida com o parafuso de cabeça.

RABULICES


Nos dias de júri reúnem-se os advogados e rábulas na antessala do tribunal, os primeiros a virem, os últimos a saírem, como gente que procura gozar, bem gozado, um ambiente poucas vezes fornecido pelas circunstâncias. E, como peixes n’água, à vontade, dão trela à comichão mexeriqueira da rabulice, esquecendo-se em interminável prosa sobre processos, atos judiciários, movimento forense, nomeações, negócios profissionais, pilhérias jurídicas. As cabeças estão abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e fatos jurídicos, de modo a só tomarem conhecimento das relações entre o fato e a lei escrita, e nunca entre o fato e a lei natural — o que é próprio do filósofo. Na natureza só veem coisas fungíveis, infungíveis, móveis, imóveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de enfiteuse — a carne e o osso, enfim, da propriedade. Essa janelinha que o artista e o filósofo trazem aberta para a natureza bruta, ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão de forças em perene esfervilhar, outra como oceano de paixões onde se debate o Homo — animal filho da natureza, todo ele vegetação viçosa de instintos irredutíveis —, o homem de leis abre-a para a rede de fios que a Lei trama e destrama, fios que atam os homens entre si ou à Natureza convertida em propriedade.

E toda a maranha velhaca que isso é engloba-se dentro da mais bela concepção do idealismo — a Justiça.

PÉ NO CHÃO

Fica no extremo da rua o Grupo Escolar, de modo que a meninada passa e repassa à frente da minha janela. Notei que muitas crianças sofriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a uma delas:

— Que doença de pés é essa? Bicho arruinado?

O pequeno baixou a cabeça com acanhamento; depois confessou:

— É “inconomia”.

Compreendi. Como nos Grupos não se admitem crianças de pé no chão, inventaram as mães pobres aquela pia fraude. Um pé vai calçado; o outro, doente de imaginário mal crônico, vai descalço. Um par de botinas dura assim por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado, transfere-se a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em funções. Destarte, guardadas as conveniências, fica o dispêndio cortado pelo meio. Acata-se a lei e guarda-se o cobre.

Benditas sejam as mães engenhosas!

BARQUINHA DE PAPEL

Quando chove, logo que passa o aguaceiro e o enxurro transforma a rua num sistema de rios e riachos lamacentos, começam a derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque-chefe da rua, vira estaleiro. Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha de frente também deita, a medo, a sua; e quem seguir esta barquinha verá o rapaz moreno, que mora na outra esquina e está à janela, correr à sarjeta, apanhá-la e ler risonho a mensagem a lápis da sua namorada...

O HEREGE

Os filhos do capitão Zarico brincam todos os dias debaixo da minha janela. É a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora. A preta Esméria fica o tempo todo com o caçula ao colo, vigiando-os. Ainda hoje estava lá, às voltas com o pequerrucho.

— Quem tirou o toucinho daqui?

— Foi o gato.

— Que é do gato?

— Está no mato.

— Que é do mato?

— O fogo queimou.

— Que é do fogo?

— A água apagou.

— Que é da água?

— O boi bebeu.

— Que é do boi?

— Está dizendo missa...

— Credo! — resmungou a preta. — Tão pequenino e já herege como o pai...

JUQUITA

É Juquita o terror da bicharia miúda. Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã encontrei-o a brincar com um sanhaço semimorto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando passei.

— Não viu o meu sanhaço? — perguntou-me.

— Com certeza algum gato o pegou — sugeri.

— Gato! — e Juquita riu-se com a maior comiseração da minha ingenuidade. — Não há gato que tenha coragem de chegar perto de mim.

O JESUÍNO

Quando os juízes de fato se fecham (ou são fechados) na sala secreta, ficam à porta de guarda os dois oficiais de justiça. O único interessante é o Jesuíno, mulato velhusco, grandalhão, lento no falar como um carro de boi ladeira acima.

Desfila o seu rosário de aventuras, onde ele sempre trunfa às avessas. Tem absorvido muita pancada, e até cargas de chumbo. Como é homem da lei, não reage senão por meio da lei. É comezinho ir citar um caboclo na roça, ser hospedado a guatambu e vir dar conta ao juiz da façanha com vergões pelo corpo, galos na testa, e às vezes descadeirado. Considera a pancada um osso do ofício. Conta de um soco tão violento que o derribou a duas braças de distância.

Como os valentões exageram as proezas, Jesuíno exagera os martírios que padeceu a bem da lei.

Isso no fundo é ganância de gorjetas. A parte por amor da qual levou pancada paga-lhe os galos.

Mas nesse caso do soco há um apêndice — para os colegas, onde não há de vir gorjeta. Conta que mal se ergueu, meio tonto, e se aprumou, o escachameirinho veio-lhe para cima de porrete e o desancou sem dó. Mas ele afinal atracou-se ao bicho e conseguiu ferrar-lhe as munhecas no gasnete. Deitou o “sojeito” no chão, socou um joelho na boca do estômago, e leu-lhe na cara o mandado. Só não disse com que mão tirou do bolso o papel (pois as duas estavam ferradas no pescoço do intimado). Mas é pormenor sem importância esse. Depois fugiu a cavalo. Diz que a arma do oficial de justiça é a pena. O “sojeito” puxa pela garrucha; o oficial puxa da pena, tira o papel do bolso, e — Espere aí! Vá berrando e pregando tiros enquanto eu escrevo; vamos a ver quem pode mais!

Carlyle esqueceu de incluir no seu livro famoso esta categoria do herói obscuro da intimação judicial.

Para realce da sua grandeza de alma, contraposta à ferócia do “sojeito”, Jesuíno conta como este lhe apareceu no dia seguinte ao pega. Jesuíno disse consigo: “Vou mostrar como se recebe um inimigo com civilização”. Fê-lo entrar, mandou vir café e não tocou na sova. A folhas tantas o homem quis explicar a sua loucura da véspera. Jesuíno interrompeu: “Eu nada tenho contra o senhor, porque o senhor agravou e esbofeteou mas foi o doutor Juiz e é com ele que tem de avir-se”.

Com esta sutileza vai traspassando ao meritíssimo a bordoeira velha — porque afinal, como “homem”, nunca levou pancada. “Queria só ver esse peitudo que erguesse a mão para mim! Ia parar no inferno!”

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sábado, 14 de setembro de 2019

Lição (1)

Os versos a seguir são integrantes do Folhetim Literário Desiderata n. 10 - Tema: Lição
 

Josafá Sobreira
Rio de Janeiro/RJ


Certa lição da vovó
coube ao meu pai me ensinar:
"Nunca, filho, corte um nó
que tu possas desatar!"
______________
Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

LIÇÃO


Em cada dia que nós vivemos
aprendemos uma lição...
A família nos ensina a ter sempre
um bom coração, gentileza e educação.
Assim estaremos prontos
para quem nós vamos encontrar
em nosso peregrinar...

A lição que a vida nos dá,
muitas vezes nos complica,
mas se temos sabedoria,
o coração não implica,
com facilidade resolve o dilema
e bom senso nos dá à dica.
A calma e a paciência
nos ajudam na tarefa
qualquer situação, resolvemos
a desavença, com calma e gentileza

Se observamos a natureza
muitas lições nos ensina...
tudo universo tem equilíbrio,
tudo roda e movimenta no silêncio...
a árvore cresce sem barulho,
a semente na terra brota,
o rio corre para o mar
contorna as pedras sem reclamar!

Mas, sempre terá algumas feridas
provocadas das lições...
que não foram bem cumpridas
deixando grandes arranhões...
Todas as rosas mais perfumadas
têm espinhos em profusão!
___________________________

Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ


A formiga na labuta,
nos dá profunda lição:
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
__________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

LIÇÃO DE PAI


Meu filho, toma atenção,
tens que saber a lição
e a tabuada de cor,
faz a cópia com cuidado
e, na escola, preparado,
vai mostrar ao professor.

Verás que fica contente
por te saber diligente,
com vontade de saber,
se a lição não entenderes,
acabando os teus deveres,
vem depois comigo ter.

Repara, filho, que a vida
pra se levar de vencida
é com trabalho e atenção,
e apesar da pouca idade,
precisas de ter vontade
pra aprenderes a lição.

Num tempo já mais distante,
quando te achares diante
do que tu julgas saber,
lembra-te do que ensinei
“eu só sei que nada sei”,
que é lição para aprender.
______________________
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Nunca digas com certeza:
-não comerei deste pão!
Cada instante é uma surpresa,
cada dia é uma lição.
______________________
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN


Da ingratidão praticada
eu tirei uma lição:
Perdoar, não pesa nada,
pesado…É pedir perdão!

_______________________________

Gabriela Pais
Almada/Portugal

LIÇÃO COM PROVA


A vida é uma lição
que por vezes faz tremer,
tanto oprime o coração  
como mostra o alvorecer.

A vida é uma lição,
um livro de matemática
de fundamental didática,
de rigor e exatidão,
apresenta a solução
a cada dia que passa,
se erro não acha, este grassa.

Vida abrigo temporal
alentos de ventos brandos,
de silêncios cerrados,
livro de leitura real
de função estrutural
uma lição pra refletir,
no bem ou mal a existir.

É óbvio e comum o error
Tanto se pode refazer
ou deixar o rio correr,
rosa com espinho, a dor,
intuir a lição primor,
Um passo de cada vez
a tratar com sensatez.

Todos os dias aprendemos
voamos pelo Universo
com um destino diverso
e a lição murchos revemos
um sonho real queremos,
um destino generoso
mas às vezes tão penoso.
________________________
Valdereis de Jesus Ururahy
Rio de Janeiro/RJ


A lição que mais ensinou,
nos foi dada por Jesus,
que ao seu algoz perdoou,
mesmo pregado na cruz !
___________________________
Amadeu Rodrigues Torres
Viana do Castelo/Costa Verde, 1924 – 2012, Braga/Portugal

PROESEMAR FACILIDADES


Métrica, rima, ritmos, a parafernália
Usual, secular caiu de escantilhão
Nalguns, acaso e sorte tentam ritmação,
Mas os versos protestam como em represália.

Prosa e verso já calçam a mesma sandália
E aplaudem Mallarmé só por embirração
Co´a diferença e leis de discriminação,
Não obstante as lições da Fonte de Castália.

Mas quem quer lição hoje de outrem, afinal,
Se o raso quer assentar praça em general
E o poetrasto bisonho é Camões em Constância?

Fazem-me rir a crítica e a sua bitola:
Muita vez, não se sabe quem lidera a bola,
Se a amizade, a nesciência, a cor, a petulância.
______________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Aprender, durante a vida,
com mestres, toda a lição,
era a forma garantida
duma linda educação.
____________________________
Nemésio Prata
Fortaleza/CE

PRA QUEM QUER FAZER SONETO!


Soneto, peça rara da poesia,
tem rima, ritmo, métrica e estrutura,
motivo muitas vezes de agonia
pra quem, fazer soneto, se aventura.

A rima dá o tom da “melodia”,
a métrica mostra sua “escultura”,
no ritmo está sua “sonoplastia”,
e na estrutura a sua “assinatura”!

Composto de tercetos e quartetos,
depois dos dois quartetos, atenção,
os dois tercetos fecham o soneto.

Aviso: pode o Poeta, nos tercetos,
ser livre pra rimar. Pronta a “lição”,
agora é só botar no branco o preto!
_____________________________
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

Há uma lição que sem cola
pelo estudante é sabida:
na vida a melhor escola
é a grande escola da vida.
___________________________
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

LIMERIQUES URBANOS III


Professor, é com letra de mão?
Sim! cursiva nesta lição.
Quem escreve de pé
tendo no aluno fé,
é professor de profissão.
____________________________
Eliana Dagmar
Amparo/SP


Só o amor sabe de cor
esta divina lição:
– nenhuma ofensa é maior
que a grandeza do perdão!

André Kondo (O Jardim)


O prior do templo de Daitoku, em posição meditativa, aguardava o discípulo que havia cometido a profanação. No Daisen-in, estava cercado pelo venerável jardim zen. A brisa soprava, dando a impressão de que era ela quem ondulava os pedriscos que formavam a seca paisagem. Enquanto isso, um vento já corria pelos corredores do santuário, carregando a tempestuosa sentença que pesava sobre o discípulo: a morte.

Daitoku-ji não era um templo qualquer. Fundado aproximadamente em 1325, havia prosperado na época de Nobunaga e Hideyoshi, os maiores senhores da guerra que o Japão já havia testemunhado. Ambos eram duros na arte da guerra, porém, suaves na arte do chanoyxi. Dois guerreiros aficionados pela cerimônia do chá, que atingiu o requinte da perfeição em Daitoku-ji. Havia sido neste templo que mestre Sen no Rikyu recebeu o seu treinamento zen, elevando o simples ato de beber chá a uma requintada arte, um ritual para elevação da alma.

Há relatos, alguns dizem lendas, de que a fama e a importância de Sen no Rikyu elevaram o seu ego. Rikyu ostentou uma imagem de si próprio no alto do Sanmon, um dos principais portões do templo. Tal atitude custou-lhe a vida. O senhor de todo o Japão, Toyotomi Hideyoshi, guerreiro de humilde origem que havia chegado ao topo por sua sagacidade, ordenou que Rikyu extinguisse o seu ego. Condenado à morte, o seu chá esfriou, para sempre.

Ao profanador discípulo havia sido escolhida a mesma pena. Uma sentença assim proferida por um senhor da guerra até era esperada, porém, ordenada por um prior budista? Todos os monges do templo eram contra a pena de morte, porém, respeitavam sobremaneira o velho prior. Confiavam em sua sabedoria. Assim, observaram, impassíveis, o discípulo a caminho de seu fim.

O que fizera o infrator para merecer tal sentença? A profanação do sagrado jardim zen de Daisen-in, do complexo de templos de Daitoku, era o motivo.

Ante a chegada do condenado, o prior se levantou.

— Primeiro, gostaria de explicar, mais uma vez, a importância de nosso jardim — disse o prior.

O discípulo ruborizou. Mais uma vez, teria que se confrontar com seu ato de vandalismo, sua vergonhosa ação.

— Veja, este jardim não é apenas um monte de pedriscos esparramados pelo pátio, como muitos leigos o veem. Em cada elemento de nosso jardim encontramos uma íntima relação, que demonstra o nosso lugar no universo. Nas ondas desenhadas com os pedriscos, podemos ver o nosso vínculo com a natureza e o destino. Tudo está neste jardim: mutável, imutável, efêmero, eterno… E tudo deve fluir... em equilíbrio...

Com o coração apertado, o discípulo ouvia com atenção.

— Estamos diante do Grande Oceano... Além, no fim da jornada, podemos ver a árvore Bodhi, debaixo da qual o satori foi alcançado e o Buda abençoado com a iluminação.

O vasto pátio coberto de pedriscos, cuidadosamente dispostos como ondas de um grande oceano era um importante local de meditação. Após algumas horas naquele recanto, o prior pediu que o discípulo o acompanhasse pela lateral do Hojo, levando-o até outra parte do jardim: o Mar Interno.

Ali, demoraram-se por mais algumas horas, meditando. Em seguida, se dirigiram para outro canto, onde uma "cascata" de pedriscos brancos descia de uma rocha que representava o mítico Monte Horai. Circundando o sagrado monte, outras rochas representavam o céu e a terra.

Todos os pedriscos do jardim pareciam fluir, naturalmente, como a água: o Grande Oceano, o Mar Interno, a Cascata... o Rio da Vida. Ao chegar nas proximidades deste seco rio, o discípulo passou a se sentir mal. Estava próximo da prova de seu crime, de seu ato de leviandade que o condenara. Prior e discípulo demoraram-se por mais algumas horas diante de uma rocha em forma de barco que singrava o rio de pedriscos. Finalmente, com mais três passos apenas, depararam-se com algo que quebrava a harmonia de todo o jardim.

— E isto, creio que você poderia explicar melhor o que seria — disse o prior ao discípulo.

As mãos trêmulas, os olhos lacrimosos, o coração palpitando, a vergonha, a profanação, o indigno ato... O discípulo caiu de joelhos, diante de sua falha realizada por puro capricho do ego. Em meio a correnteza do rio de pedriscos, represada pelo "Muro", que representa o ponto em que todas as humanas dúvidas convergem, havia um elemento alheio que destoava de tudo. Atravessando o muro, os pedriscos voltavam a fluir no Rio da Vida, mais largo...

Porém, antes do "Muro", o ego.

— Compreendeu o seu ato? Compreendeu que tudo neste jardim é a representação pura da realidade que nos cerca? — perguntou o prior.

— Sim, mestre.

— Sabe que todo ato gera uma consequência...

— Sim.

— Está preparado para morrer? Extinguir o seu ego?

O discípulo, com lágrimas nos olhos, concordou com a cabeça, compreendendo a sabedoria do prior. E cumpriu a sentença, simplesmente, apagando o próprio nome, traçado com o dedo nos pedriscos do jardim.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLIX) "O olho da rua vê"


Cecy Barbosa Campos (o Bom Ladrão)


Pensava em suas crianças. Magrinhas e famintas não davam sossego à mulher que, de jovem viçosa e decidida, passara a uma sombra do que fora, com os olhos sem brilho, desgastada pela lida com os sete filhos e três abortos.

As palavras do Zé ecoavam em seus ouvidos: "Olha cara, tu é bobo. Pega um carro, leva pra oficina do Manolo, que ele te dá um dinheiro bom pelo desmanche".

Hesitava. Afinal, nunca fizera nada grande. Só pequenos furtos, quando pegava uma carteira distraída em cima do balcão, umas frutinhas no supermercado. coisas pequenas que o deixavam em perigo e não resolviam nada. Tinha, sim, que ter coragem e fazer alguma coisa que melhorasse a sua situação.

Enquanto pensava, tomou uma pinga e observou o casal que chegara no Monza cinza, estacionado quase em frente ao bar, em local proibido.

O homem começava a ficar embriagado, e a mulher, rindo muito, parecia mais "alegre" do que ele.

Saindo do bar, parou para olhar o carro e viu que a chave estava na ignição. Achou que era um sinal, e que não poderia perder a oportunidade.

"Pegar o carro e levar pro Manolo. Tudo ficaria resolvido em pouco tempo".

O motor estava bom, e o Monza, apesar de velho, funcionava perfeitamente. Empolgado, pisou no acelerador sentindo-se um herói até que, quase chegando, assustou-se com um choro de criança.

Num primeiro impulso, achou que era um dos seus filhos e, olhando para trás, verificou que, deitado no banco, estava um bebê que acordara assustado, provavelmente, pelos solavancos da estrada e as curvas bruscas que o motorista fazia.

Firmino parou o carro imediatamente. Deixou a direção e pegou o bebê, embalando-o carinhosamente. Como pai experiente, verificou que a fralda precisava ser mudada e, olhando melhor, viu que no carro havia uma sacola. Abriu-a e encontrou o que necessitava para a limpeza e troca. Acabada a função, deu conta do que acontecera: o casal resolveu beber e deixou a criança sozinha no carro. Revoltado, pegou no celular e chamou a polícia informando que deixaria o carro naquele local, a estrada que levava ao Buraco do Bode, e que o resgate devia ser rápido, pois havia uma criança no carro.

Ajeitou o bebê o mais confortavelmente possível e saiu correndo, pois não poderia ser encontrado por ali.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Caldeirão Poético XXXIII


AFONSO LOPES DE ALMEIDA
(1888-1953)

VOLTA À TERRA


Abre os braços, do Céu, à minha alma, o Cruzeiro...
Abre os braços de luz... Vou chegar! Vou chegar!
O vento já me traz das florestas o cheiro,
E é um balanço de berço o balanço do Mar...

Longe como eu do ninho, é para o ver primeiro
Que aquela ave levanta o vôo e sobe no ar.
Volta agora este Mar das terras de Janeiro,
Onde rio se fez, para as poder entrar!

É meu, todo, este Céu! É meu este braseiro
Em que se queima o Sol à luz crepuscular!
És meu, vento de terra, amoroso e fagueiro!

Na lua que desponta, olhai! vem o meu luar!
E abro os braços também, como faz o Cruzeiro,
A esta Lua, a este Céu, a este Vento, a este Mar!

ALCEU WAMOSY (1895-1923)

DUAS ALMAS


Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

AUTA DE SOUSA (1876-1901)
NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

LEGADO


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

GILKA MACHADO (1893-1980)

NONA REFLEXÃO


Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos!)...
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens, para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.

Desilusão tristíssima, de cada
momento, infausta e imerecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser amada!

Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a Morte!...

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969)

SILÊNCIO

Silêncio - voz do amor, voz da alma, voz das coisas,
suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas;
quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas,
do bando singular das lentas mariposas!

Silêncio - alma da dor de pálpebras enxutas;
reino branco da paz, dos círios e das lousas;
quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas
falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas!

Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem
com que se fala a Deus! Meu coração selvagem
segreda-te a impressão que à flor da alma resvala:

e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste
que te faz a mudez de tudo quanto existe,
porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala!

JORGE DE LIMA (1893-1953)

PAIXÃO E ARTE

Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O Verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum amor inocente, (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.

MARTINS FONTES (1884-1937)

ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA


Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro
De prata. E, entre cem joias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E ao fim beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.

Arthur de Azevedo (Duas Apostas)


Quando apareceu o primeiro número d’o Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:

– Isto não tem vida para um mês!

– Por que, papai? – perguntou a senhorita Esmeralda.

– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.

A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:

– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!

– Por que, minha filha?

– Porque tem.

– Veremos.

Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Sousinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.

– É muito cedo para pensarem em casamento! – sentenciara ele.

Mas, voltando a O Século:

– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?

– Já te disse que sim!

– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lá para papai; se viver… no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Sousinha.

O comendador soltou uma gargalhada e disse:

– Pois está dito!

Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Sousinha acompanhavam a vida d’O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.

– Então O Século ainda vive?

– Ainda, e não parece disposto a morrer!

– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!

No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.

Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:

– Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!

A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:

– Vamos fazer uma aposta, papai?

– Que aposta?

– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas… se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno… ou da pequena…

Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.

O outro dia ela chegou-se ao pai, e disse:

– Vamos fazer outra aposta?

– Qual?

– Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário…

– Nada! nada! não me apanhas! O tal Século tem vida para… um século!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 71


Carolina Ramos (A Boneca)


Primeiros dias de férias, Cristina ajeitou a boneca na mochila, deixando para fora a cabeça loira – encaracolada. Deu a mão ao avô, que a deixaria na casa da coleguinha. Levava consigo a vontade de partilhar com a amiga a intensa alegria das primeiras horas de folga.

— Cuidado com a boneca. Aí onde está é fácil perdê-la.

— Pode deixar, vô. Está bem presa. Não vou perdê-la, não.

Cristina e o avô davam-se às maravilhas. Conversavam como dois adultos, brincavam como duas crianças.

Os dois quarteirões, que os separavam da residência procurada, não exigiam condução mais rápida que um par de sapatos cômodos e pés dispostos a caminhar.

Mãos dadas, a tagarelar, avô e neta não tinham pressa de chegar. Um vulto suspeito, seguia-os de perto.

Magro, barba crescida, mãos nervosas, o homem não deixava oculto o interesse pela cabecinha loira-encaracolada, que ultrapassava a boca da mochila presa, aos ombros da menina.

Por várias vezes, estendera a mão trêmula, num gesto fortuito de intenção não consumada. O sinal vermelho favoreceu-lhe o intento, aglomerando os pedestres à beira da calçada. Na alma do homem, brilhou luz verde. Num átimo, tinha nas mãos a bonequinha loira que, pressionada, gritou fanhosa: Mamã!

Nada mais foi preciso para que a "mamã", alertada, se debulhasse em lágrimas: — Roubaram a minha boneca!!!

Nem o peso da idade e nem mesmo os excessos de peso acusados pela balança implacável, impediram aquele avô de atirar-se, impulsivamente, ao encalço do larápio, tão logo captou o desespero da neta. Mas, foi a dor aguda da angina que lhe tolheu a arremetida, logo aos primeiros passos.

Parou, levando a mão ao peito. A ira prosseguia crescente, na perseguição ao fugitivo, pouco adiante, seguro por mãos justiceiras.

A ternura do avô afagou a cabecinha da neta que soluçava sem parar, desprezando os esforços consoladores.

Sabia bem o quanto aquela boneca representava para a neta! Fora difícil a procura e mais ainda a escolha da menina. Visitas, sucessivas, a várias lojas de brinquedos, sem que nada satisfizesse a pequena. Era como se a cada dia fossem a novo berçário para escolher, a dedo, o bebê que se integraria aos sonhos da família.

O aniversário de Cristina avizinhava-se, quando, afinal, acontecera o milagre. Os olhos da menina cresceram, iluminados, ao vislumbrarem, na vitrina, aquela boneca! Um verdadeiro encontro de almas, se alma tivesse aquela coisinha fofa, loira-encaracolada.

Satisfeito com a decisão, o avô, cheio de júbilo, nem regateara o preço. Costumava dizer: ~ Pedido de neta é lei!

Pagou alto, pagou com gosto!

Pacote nos braços, haviam saído da loja duas crianças radiantes, sem que fosse possível constatar qual das duas a mais feliz!

Um mês depois, tudo mudava. Os fatos ali estavam; — Dois homens, e seus íntimos conflitos, defrontavam-se. Um, subjugado por mãos hostis, cabisbaixo, derrotado. Outro, tinindo de raiva, sopitando a custo o impulso de distribuir tabefes,

A pontada no peito não impediu o avô de inquirir furioso: — Seu cretino! Vagabundo! Não tem vergonha de arrancar uma boneca dos braços de uma criança?! É o cúmulo! O fim do mundo!

Para abastecer a raiva, estirou o olhar furibundo até a neta que, enternurada, abraçava a boneca, devolvida por alguém que testemunhara a cena.

O olhar do larápio acompanhou o seu.

— E então? — inquiriu ainda agressivo — o que tem a dizer?

Vencendo a emoção, o homem subjugado conseguiu protestar: — Não sou vagabundo, não senhor. Estou desempregado... Não consigo trabalho... não sei mais o que fazer!

– E isso lhe dá direito de causar tanto mal a uma criança?

Pausa constrangedora antes que o homem, submisso, cabeça baixa, gaguejasse, buscando dentro de si uma atenuante:

— É que o Natal está chegando… e eu também sou avô!…

A bordoada das palavras entrecortadas de emoção, abateu-se sobre a fúria do avô de Cristina. Num instante, a raiva desceu a zero!

Constrangido silêncio e logo a capitulação:

— Tudo bem… tudo bem... Podem soltá-lo. Não vou dar queixa, não.

Vasculhou os bolsos, estendendo um cartão ao homem que o fitava agradecido:

— Procure-me neste endereço. Talvez lhe arranje trabalho.

Mais alguns dias e chegava o Natal. Festivo e bimbalhante de amor! Com ele, uma linda boneca, irmã gêmea daquela que encantara Cristina, foi bater à porta de uma casa modesta, onde a luz da esperança começava a renascer. Lar singelo, onde um outro avô e uma outra neta aprendiam a rir e a brincar juntos, como duas crianças felizes!

A brisa, a insinuar-se pelo arvoredo, soprava flautas invisíveis e a música suave parecia repetir em surdina: "Paz na terra aos homens de boa vontade.”

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Tiago (Poemas Escolhidos)


SE UM DIA…

Se um dia...
a nuvem que chora
ficasse, não fosse embora,
e chorasse sempre assim,
eu bebia as suas águas
pra lavar todas as mágoas
que trago dentro de mim.

Se um dia…
a estrela cadente
que risca o céu, num repente,
caísse, do seu destroço
eu formaria fiadas
dessas contas prateadas,
pra te enfeitar o pescoço.

Se um dia...
beber licor
ao beijar, com muito amor,
os teus lábios sensuais,
serei mais que viciado,
um eterno embriagado
lutando sempre por mais.

Se um dia...
ao nascer do sol,
não ouvir o rouxinol
nos seus gorjeios de tenor,
rogo à brisa, peço ao mar,
que vão, junto a ti, cantar
meus versos feitos de amor.

Se um dia...
num ar vaidoso,
quiseres o corpo formoso
vestido pra me agradar,
pedirei à natureza
só tecidos de beleza
com fiapos de luar.

Se um dia...
já não puder
dizer tudo o que souber
deste grande amor por ti,
sentirás meu coração
a pulsar na tua mão,
estou vivo, mas já morri.

Se um dia...
a brisa viesse
dizer-me que, se eu quisesse
morrer, bastava um desejo,
num gesto desesperado,
morreria de bom grado
pelo sabor dum teu beijo.

Se um dia...
a morte chegasse
e, pra sempre, te levasse,
meu amor, não choraria.
Por te amar como a ninguém,
eu morreria também
pra te fazer companhia.

UM INSTANTE DE AMOR

Foi apenas num momento, num instante,
que o amor surgiu entre nós dois,
tu me olhaste com desvelo,
e eu depois,
senti-me tão feliz, tão radiante,
que acariciei o teu cabelo.
Quando, por fim,
te aninhaste no meu peito,
bem juntinha de mim,
senti-me comovido e satisfeito
por sentir todo o teu calor.
E os teus olhos, tão embaciados,
estavam, de tal forma, enamorados,
que só me falavam de amor,
com a suave luz duma sinceridade pura.
Eu sei que tu me queres como eu te quero,
que me olhas sempre confiante,
sem cansaço, sem fadiga,
com o mesmo carinho e com ternura
que me mostraste naquele instante,
minha doce cadela! Minha amiga!

LUAR

O sol já lá vai, chega o luar,
Dá boa noite, ajeita os prateados,
Promete cobertura aos namorados
Com sombras oportunas p’ra os tapar

De olhos profanos que andem a espreitar
Esses incautos pares, tão enlaçados,
Que, sem pudor, se beijam, descansados,
Confiantes na proteção lunar.

E a lua vai rodando em toda a terra,
Corre pelos vales, trepa à serra.
Na sua eterna ronda de vigia.

E, enquanto vai sorrindo, de prazer,
Ela aguarda, com calma, o amanhecer,
Para entregar, ao sol, a poesia.

DOCE VISÃO

Vejo o mar, ao longe, calmo e tão lindo
Como azul de arco-íris na tempestade,
Mar que é tão grande, um oceano infindo
Que leva e traz mensagens de saudade.

Beija as praias que as águas vão cobrindo
De ondas mansas a espumar vaidade,
Deste meu país onde o sol vai sorrindo
Em todas as manhãs de claridade.

As areias coloridas de dourados
Ocultam, de olhares, os namorados
Que ali se refugiam de quem passa,

Por isso, não me canso da cambraia
Das ondas que este mar rola na praia,
Este mar, este mar que nos abraça.

António José Barradas Barroso [Tiago] (1934)

António José Barradas Barroso - nome literário António Barroso ou Tiago, nasceu em 1934, em Vila Viçosa, Portugal, filho de Joaquim Barroso e Amélia Ema Barradas Barroso. Reside em Parede/Portugal.

Estudou no Instituto Militar dos Pupilos do Exército, donde transitou para a Academia Militar para frequentar o curso de Administração Militar.. Oficial do Exército (coronel) reformado, com 12 anos de comissões militares em África (Angola, Guiné e Moçambique).

Quando regressou de Moçambique, em 1974, se dedicou a poesia. Em 2007, começou a enviar poemas para concursos e jogos florais, tendo, durante cinco anos, obtido cerca de 140 prêmios, em Portugal, Brasil, Itália e República Dominicana com poemas, quadras, trovas e contos. Possui poemas em centenas de cirandas e antologias.

Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras, em Cachoeiro do Itapemirim; Academia Rio-Grandina de Letras em Rio Grande e sócio do Clube dos Poetas Livres, em Florianópolis, membro da AVSPE – Academia Virtual Sala de Poetas e Escritores; associado do Clube da Simpatia, em Olhão.

Livros de poesia:
- Memórias do tempo que passa
- Devaneios de Outono
- Último Fôlego
- "... antes que chegue o inverno "

Nilto Maciel (A Odisseia de Carlos Mago)


Havia um homem. Depois se fez capitão, cavalariano. Chamavam-no, quase sempre, Carlos Mago. O que o irritava profundamente. Talvez por entender magro, magricela, esquelético.

Ora, havia outros Carlos na cidade. Dezenas e dezenas. De importância, no entanto, somente dois. Ele, Carlos Mago, e Carlos Gordo. Ambos galistas, pais-de-família respeitáveis, cidadãos de bem, etc. Diferenciava-os, apenas, o espaço que ocupavam no Universo. Um, magro como um pau de vassoura; outro, gordo como um porco. A razão de serem assim parecia de fácil entendimento. O primeiro, eterno perdedor de apostas fraudulentas presididas por outro Carlos, deixava de se alimentar para cuidar de seus doze galos. Tratamento à base de aveia, girassol, lingofex intramuscular, pantetonato de cálcio, nicotinamida, vitamina K, ferro, fósforo e iodo.

(Corrija-se informação anterior: eram três e não dois os Carlos importantes da cidade. E o terceiro, com certeza, encabeçava a lista. Primeiro, por ser chefe político, cacique, raposa velha. E também por ser dono do único rinhadeiro da região.)

Carlos Gordo, o sempre ganhador das apostas, amigo, parente e correligionário do terceiro Carlos, seria gordo por isso mesmo.

A explicação do Mago de Carlos parece plausível. Além do mais, mago, no linguajar nordestino, é corruptela de magro. De outra forma, mago seria o Gordo.

Havia também um animal. O quadrúpede, o condutor do capitão, o cavalo, “um alazão famoso, bralhador e galopante, tão enorme quanto um cavalo de imperador, rei ou guerreiro”. Chamavam-no Carlos Galo.

(Corrija-se informação anterior: eram quatro e não três os Carlos importantes da cidade. E o quarto, com certeza, encabeçava a lista, como encabeça esta história.)

Montado em Carlos Galo, o cavaleiro desaparecia no meio das crinas esvoaçantes. Mais parecia um simples e mínimo adorno humano. Na estrada, somente se via o cavalo. Os mendigos cegos, no entanto, enxergavam um cavalo e seu cavaleiro. Os demais habitadores daquelas bandas só viam um cavalo fantasma, a atravessar, nu, os caminhos e as veredas, relinchando e bralhando. Às vezes cantando como um galo na madrugada. Não se sabe, daí, quem o apelidou de Galo, se o dono, se o povo.

Não, um cavalo não podia cantar – negavam os mais incrédulos. O canto fluía da garganta de Carlos Mago. Toadas de entristecer as pedras, a caminho ou descaminho das rinhas. Perdedor sempre, nunca chorava – cantava. Cantigas chorosas.

A lenda falava ainda de um fenômeno horroroso: a simbiose dos dois seres, enquanto cavaleiro e cavalo. Não seriam dois, mas um só bicho nos ermos: metade homem, metade cavalo. Sempre a cantar. Galo quadrúpede.

Estudiosos do romance de cavalaria veem em Carlos Magno a origem do nome do cavalo de Carlos Mago. Brasilianistas vislumbram Charles de Gaulle. Humoristas brasileiros, porém, veem apenas uma estreita relação entre o homem Carlos Mago e o cavalo Carlos Galo. Um seria Ma(g)no; outro, galo, gaulês. Ambos Carlos. No fundo, seriam um só ente: cavalo-cavaleiro.

Havia ainda doze galos. Todos semelhantes entre si em idade, tamanho, peso, penas, armadura e nome. Todos Carlos.

(Corrija-se informação anterior: eram dezesseis e não apenas quatro os Carlos importantes da cidade.)

Iam, um dia, em marcha, quatorze Carlos. Na seguinte ordem: o cavalo, sadio, cascos de ferro, esporões, chifres artificiais de touro e dentes afiados a lima. Montado neste, o homem, tísico, tossindo permanentemente, cantando, peixeira à cintura, pau de vassoura à mão direita, esporas, pracatas de rabicho, banguela e dois chifres invisíveis sob o chapéu de couro à Lampião. Logo atrás, os galos, em fila indiana, esporões naturais e de metal, bicos também naturais e de prata, cristas eriçadas, pescoços de girafa, rijos como cabos de aço, asas espalhadas como de aviões, coxas musculosas como de atletas humanos. Os doze carregavam consigo a glória e a fama de terem fendido o ventre de outros doze galos. Assim mesmo, Carlos Mago perdeu todas as apostas. Havia apostado nos adversários.

A marcha cavaleirosa capitaneada pelo galista Carlos Mago se denominou Coluna Carlos. Partiu do Sítio Dom Chicote, Município de Baturité, quando ficou proibida a realização de rinhas em todo o país.

Alguns anos atrás, Carlos Mago vivia de fabricar vassouras de palha para a prefeitura da cidade. E durante certo tempo percorreu estradas, lugarejos, vilas e ruas, em luta contínua contra a sujeira. Vassoura à mão, comandava um exército de garis. Enxotava os bichos que, soltos, sujavam as ruas e atormentavam as vistas castas de damas e donzelas.

E se fez janista noite e dia. Finda a campanha eleitoral, Carlos largou para sempre a vassoura. E abandonou uma profissão de quase meio século, para se dedicar a galos de briga. Em compensação, livrou-se de um estoque de três mil vassouras e um jumento de estimação. Em troca, recebeu um cavalo velho e doze pintos órfãos.

A Coluna Carlos atravessou a principal rua da cidade numa tarde quente. A molecada vaiou. Os bêbados, no entanto, gritaram e saudaram a marcha. Logo, moleques e bêbados, unidos, davam vivas ao troço. Incentivada pelas manifestações públicas, a comitiva seguiu, airosa, sua marcha guerreira.

A caminho da capital, a Coluna foi interceptada e interpelada por um grupo de pessoas. Fizeram perguntas de toda ordem. Apontaram máquinas para os galos, o cavalo e Carlos Mago. Aborrecido, este gracejou: ia às Índias, à China, à Pérsia, à Indonésia e à Grécia levar a formosura e a valentia dos galos do Ceará.

À noite, já em plena capital, Carlos Mago se viu no vídeo das televisões. O locutor falava de retirantes nordestinos em demanda do Oriente, fugidos da seca.

Alta noite, os retirantes tomaram o rumo da estrada que levava ao Planalto Central. A Coluna Carlos ia derrubar o inimigo das rinhas.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.