sexta-feira, 7 de junho de 2019

Almachio Diniz Gonçalves (O Velho Médico)

O mostruário exibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.
Estefânio e Judite — esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador da mulher vencida em mais anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e linhas, luzes e perfumes — gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo…

Marco Antônio — o médico afamado — cofiando as enevoadas barbas em que se escondiam as ilusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante domínio, de suas atenções...
***
 —Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o restituído ao fulgor da mocidade...

— É exato, doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por sobre chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: “Tirem os médicos e as enfermidades desaparecerão”... Mas, eu digo: fugi deles e estou curado. Deem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.

— E quem te curou, meu caro?

— A natureza...

— O novo deus pagão...

— Assim diz o doutor., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que sofria?

— Lembro-me, sim.

— Foram tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.

— O Sr. era verdadeiramente um doente.

— E o dr. escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.

— Realmente.

— Pois confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o último médico que me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.

— Afinal... quem te curou?

— Dir-lhe-ei tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...

— A história vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...

— Creio que o senhor adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.

— Desculpe-me.

— Pois não! Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura proveio de minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em último grau de desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata. Homeopatas e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus padecimentos. Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de enfermidade efetivamente assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez primeira, objetivar uma paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio próprio da idade, a posse fácil, e passageira contra a minha vontade, de uma mulher amada. O mundo inteiro concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos pesadelos de minha carne inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas e quarenta horas, ou oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético jogo de instintos, durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando as fichas do meu gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto, fatal. Esgotou-se e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que procura as alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me combalia as fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para derribar as minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...

— De um crime delicioso...

— Talvez, doutor.

— E então?

— Encegueirado pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras fantásticas... E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me punha a tremer com tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de minha alcova e soar fora de tempo a campainha do relógio sobre a mesa... Senti-me muitas vezes balançado como a esferazinha de madeira que anima o trilo dos apitos...

— É curioso, deveras, o seu caso.

— Foi, doutor.

— Sim! Foi! E hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.

— Mas viu-me um outro médico e diagnosticou-me: um paranoico.

— Paranoico?

— Exatamente, doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos do sentimentalismo clinico desse primeiro médico, os meus pais esgotaram uma fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as cores. Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos meus males Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por alta dose, mas não tóxica, de estricnina. Veio um segundo médico—já a esta hora e há muito tempo — vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse, carrancudamente, diante de uma das minhas crises de saudade carnal: “são delírios epileptiformes”... E o tratamento passou a ser feito com altas doses de bromureto. A minha enervação deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto que nem pranteei a morte de minha mãe, desgostosa com a minha trágica existência... Novo médico; vim a ser um simples neurastênico, com atonias nervosas. Reconstituintes, passeios, boas alimentações, prazeres, etc.: nada, porém, matava as saudades do meu instinto animal. Comecei de padecer do estômago, ora por excesso de alimentação, ou por escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias, tornei-me um narcoticômano. Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui um cardíaco, um arteriosclerótico... Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um Esculápio chamado às pressas, levando em conta a minha magreza, o sangue esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos meus sofrimentos, num rápido prognóstico, anunciou a minha morte breve, por força de adiantadíssima tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam, nunca tiveram o escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me coisas que só dali por diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os seus remédios ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento nervoso, e um vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado nas suas forças comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos de pessoas novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de ser eu rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea, que, de sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu malfeitor, com um galho da famosa arrudeira...

— E nem rezado, Sr. Estefânio?

— Para o doutor ver! Nem rezado!

— É única a sua história.

— Creio que sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento renal... E foi quando o senhor foi chamado.

— Assim acaeceu*. (*aconteceu)

— E inda pensa o doutor que eu tivesse afecção nos rins?

— Se me não falha a memória, efetivamente.

— Pois escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferência.

— Que disseram eles?

— Discordaram preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor discordaram reputando sãos os meus rins.

— Sãos, ou curados?

— Curados, não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnóstico de uma hepatite aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.

— Mas, afinal, acertaram?

— Supõem que sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.

— É espantoso, meu caro senhor.

— Não é, não, doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que eu amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim, Judite?

— Parece-me!
***
Assim exclamou, apenas, a sedutora mulher, com os olhos espelhando o enfeitiçamento de um lindo manteau exposto no mostruário de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava solenemente a espaçosa fronte…

Fonte:
Revisão atualizada de Iba Mendes.

Almachio Diniz (1880 – 1937)


Almachio Diniz Gonçalves nasceu em Salvador, a 7 de maio de 1880, filho do farmacêutico e naturalista Adolfo Diniz Gonçalves e de Maria Rosa Guimarães Diniz Gonçalves. Formado em Direito, três anos depois, mediante concurso torna-se lente da Faculdade Livre de Direito da Bahia, especializando-se no campo da filosofia jurídica.

Em 1915, ele decide se transferir para o Rio de Janeiro. Também ali faz-se catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, lecionando Direito Civil. Foi um dos fundadores da Faculdade Teixeira de Freitas, em Niterói.

Em 1935, Almachio Diniz foi advogado da Aliança Nacional Libertadora (ANL) de Luís Carlos Prestes, tendo impetrado um mandado de segurança buscando reverter a decisão do governo de Getúlio Vargas que havia fechado as sedes da ANL, mas que foi negado pelo Supremo Tribunal Federal.

Quando candidatara-se à vaga na Academia Brasileira de Letras deixada pela morte de Euclides da Cunha, Almachio encontrou por oponente outro autor baiano, Afrânio Peixoto, então jovem médico e que, tendo escrito crítica favorável a Mário de Alencar, foi lançado por este candidato mesmo sem o seu conhecimento e estando em viagem à Europa. Num gesto em que procurava abortar o opositor, Almachio apresentou à direção da Casa um pedido de impugnação, onde argumentava que a candidatura do rival havia sido apresentada extemporaneamente. A impugnação foi rejeitada, e Peixoto, eleito.

Em seus argumentos, Almachio ataca a candidatura de Afrânio Peixoto: “Quero a sua valiosíssima atenção de caráter pujante e inquebrantável, diante de todas as heroicidades – não é lisonja porque não a sei tecer – para o escândalo que cometeria a Academia se sufragasse em maio próximo um nome que não foi candidato dentro dos termos do Regimento da Academia. A sua intervenção livrará a belíssima Instituição de uma derrocada moral lastimável. Creio na sua ação em benefício do renome da Academia.” Outras três vezes procurou o ingresso na instituição maior das letras brasileiras, em todas elas fracassando no intento.

Foi Presidente de Honra da Academia Baiana de Letras, entidade formada em 1911, proferindo o seu discurso de instalação, ali ocupando como membro-fundador a Cadeira de número 11. A instituição, contudo, não prosperou, desaparecendo. 

Finalmente, em 1917, sob auspícios do então governador Antônio Moniz, com a fundação da Academia de Letras da Bahia, é seu membro-fundador, ocupando a Cadeira 37.

Em 1934 faz-se membro-fundador da Academia Carioca de Letras, onde ocupa a Cadeira 3 (onde foi sucedido por Evaristo de Moraes); foi também correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Instituto dos Advogados Brasileiros.

Faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de maio de 1937.

Deixou mais de cem obras publicadas, sobre literatura, direito, história e outros temas, como por exemplo:

Ensaios Filosóficos Sobre o Mecanismo do Direito. Salvador, 1906.
Pavões. (romance) Salvador, 1908.
Zoilos e Estetas. (crítica literária). Porto, 1908.
Questões Atuais de Filosofia e Direito. Rio de Janeiro, 1909.
O Diamante Verde. (romance) Lisboa, 1910.
Um Artista da Moda. Lisboa, 1910.
Troféus em cinzas. (peça teatral). Salvador, 1911.
Curso de Enciclopédia Jurídica. Salvador, 1913.
Bodas Negras. (romance). Rio de Janeiro, 1913.
Direito da Família. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Coisas. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Sucessões. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito das Obrigações. (Manuais Alves). Rio de Janeiro, 1916.
Direito Público Constitucional. Rio de Janeiro, 1917.
Teoria Geral do Processo ou Teoria das Ações. Salvador, 1917.

Fonte:

Vinicius de Moraes (Operários em construção)


Às vezes, enquanto trabalho em casa, na minha máquina, e busco no abstrato da paisagem urbana a forma do que quero dizer, acabo esquecendo de tudo para fixar minha atenção sobre os operários que terminam o edifício em frente. Chegaram agora à fase em que só falta pintar as esquadrias e dar caiação final no primeiro andar. Venho, há meses, observando-os trabalhar, erguer a sólida estrutura de oito pisos, com três apartamentos por andar. Vi-os situar as fundações, levantar o cipoal de aço e cimento que era como o esqueleto do prédio. Vi-os colocar-lhe os soalhos, enquadrar-lhe as portas e janelas, revesti-lo de sua epiderme intensa de tijolos refratários. Fui espectador emocionado de suas perigosas passagens para a prancha móvel, à guisa de elevador, sobre a área mínima da qual suspendiam-se para rebocar e caiar os grandes muros externos laterais da construção paciente e imóvel. Juro que ouvia tambores surdos, como antes do número de sensação ao trapézio volante de um circo, cada vez que um daqueles homens cor de cimento fazia arriscadíssima passagem da janela para a prancha estreita presa a roldanas colocadas no alto do edifício. Admirei-os em suas displicentes poses escultóricas, mãos na cintura sobre a tábua balouçante, indiferentes à sucção do abismo aberto em espirais de morte sob seus pés. A um vi fazer pipi lá para baixo, num perfeito à-vontade, provocando-me necessidade idêntica, ai de mim, fruto de uma reação de meu vago-simpático (pois que sofro de vertigem das alturas). À noite, ouvi-os cantar, no barracão que levantaram no pátio dos fundos, enquanto o fogo de sua cozinha rústica crepitava no escuro e seus violões ponteavam bordões dolentes. Apreciei-os brincar e brigar, passarem-se objetos, jogando-os com incrível precisão, discutir problemas de construção e lances de futebol e receber empregadas da vizinhança com as quais se internavam prédio adentro: e que alegres voltavam desses rápidos sequestros! 

Agora a estrutura se erige - mais um apartamento na colmeia em torno - e os operários esticam seu labor na preguiça dos retoques finais. Ergueram o prédio. Cumpriram seu dever. Criaram com suas mãos o plano de um arquiteto. Deram vida ao espaço. E em verdade eu vos digo que é justo o lazer que ora se permitem, pois multiplicaram uma só unidade residencial em muitas, capazes de abrigar as alegrias, tristezas, amores e lutas de outros tantos homens. E, fazendo-o, fizeram trabalho de homem.

Fonte:

Academia Ituana de Letras (Convite para 15 de Junho)

 

Academia Formiguense de Letras (Abertura de Vagas para Novos Acadêmicos)


quinta-feira, 6 de junho de 2019

Luiz Poeta (Portugal Pequeno– Vila Sapopemba – Marechal Hermes)




Não é à toa que Portugal me atrai. Para começo de conversa, meu avô paterno chamava-se Áureo Monteiro de Barros. O que guardo dele, além do jeito autenticamente Lusitano de falar, são dois olhos muito azuis, os cabelos muito brancos e um nariz que certamente deixou para mim. Alguns diziam que ele tomava banho de chuveiro com o cigarro aceso e o nariz era tão grande, que o cigarro não apagava. Claro que nunca fiz esta experiência, porque não gosto de cigarros e nem de charutos, mas meu nariz?- apesar de menor um pouquinho que o dele - não nega as raízes. O DNA é inequívoco.

Um cirurgião do Hospital Carlos Chagas - onde trabalhei durante algum tempo como Técnico de Enfermagem - Dr. Flávio Bahia, todas as vezes que me via, provocava-me:

- Vamos operar este narizinho?

Qual nada, meu nariz nunca atrapalhou minha vida. Pelo contrário: quando minha mulher me viu, quem chegou primeiro foi o nariz, que até hoje me dá um certo ar de fidalguia e, porque não dizer, sensualidade.

Quando minha filha Michelle nasceu, o nariz português também estava lá e ela reclamava que gostaria de ter puxado o narizinho da mãe. Há pouco tempo fez uma cirurgia e ficou mais linda ainda, mas, na minha opinião, acho que traiu a nossa lusomorfia.

Por parte de mãe, está o meu avo Alcino Lobo de Souza... esse era baixinho e gordinho, de rosto redondo; minha avó é a Adelina Ventura de Sousa (com V) preciso falar mais ?

Claro que temos também italianos na família: além dos portugueses, somos fruto dos Zaniboni (e obviamente nos orgulhamos muito disso).

Mas Portugal...

Em 1960 mudei-me de Bangu para Marechal Hermes, bairro onde resido, Quando comecei estudar a história do lugar, descobri que o nome original era "Portugal Pequeno" - "Vila Sapopemba" - Que bênção! Como veem, Portugal me atrai ou sou atraído por Portugal. Minha rua, a General Cláudio, é repleta de portugueses e de vez em quando sou convidado para um Casalinho, um Porto ou um Periquita e aceito de bom gosto, embora não despreze ou rejeite uma bela cerveja bem gelada – com colarinho - de preferência. Afinal, o Brasil é um país tropical e moro no Rio de Janeiro: 40 graus. Aqui, as lareiras perdem inevitavelmente para os condicionadores de ar.

Mas, voltando ao Portugal Pequeno - segundo historiadores, o nome se deve um expressivo grupo de portugueses que aqui se instalaram, produzindo e administrando os nossos primeiros estabelecimentos comerciais como padarias, açougues, quitandas e afins. Neste lugar, as famílias portuguesas criaram seus filhos, netos, bisnetos, tetranetos, enfim completaram uma árvore genealógica imensa cujos filhos ainda residem por cá.

Como Marechal Hermes era primitivamente uma vila operária, os primeiros moradores que o construíram, foram também os primeiros clientes dos primeiros comerciantes, a maioria advinda de Portugal.

Vale lembrar que a capital do Brasil - hoje Brasília - era o Rio de Janeiro e nosso bairro, fundado em 1913, deve seu nome a um dos nossos mais ilustres presidentes: Hermes da Fonseca, o homem que autorizou a obra.

Trata-se de um local de tradição musical e o chorinho, um dos nossos estilos musicais mais importantes, ainda é ouvido em diversos estabelecimentos como tabernas, bares e afins. Luperce Miranda, considerado um dos maiores instrumentistas do mundo, morava em Marechal Hermes. O bandolim brasileiro lembra muito a gultarra portuguesa e ouvi-lo é unir dois sons instrumentalmente parecidíssimos: o do fado e o do choro. Pura lusofonia... musical.

Fonte:
Livro enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Caldeirão Poético XXIV


ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Máscara

Por que se escondem vós, forças do mal?
Abandonai de vez vosso covil!
Por que escondeis o vosso rosto vil,
atrás de um rosto puro, angelical?

Já chega de prosápia assaz banal,
de tanto fingimento, vão, servil!
Há muito conhecemos vosso ardil,
p’ra  tudo conseguirem no final!

Pois mal se apanham donos do poder…
Só querem seus discursos esquecer,
e não cumprir promessas propaladas!

E enquanto o Zé povinho vai sofrendo,
vós, tubarões, os bolsos vão enchendo,
sem nenhum preconceito, às descaradas!

ANIBAL BEÇA
Manaus/AM, 1946 – 2009

Soneto da Sentida Solidão

 A falta é complemento da saudade,
 servida em larga ausência nos ponteiros,
 bandeja dos segundos que se evade,
 em pasto das desoras, sorrateira.

 Estar é seduzir sem muito alarde,
 no avaro aqui agora companheiro,
 o porto da atenção que se me guarde
 o ser presente da sanha viageira.

 Partir é sentimento de voltar,
 liberta, eu sei, no vento e seu afoite,
 navega a sina em rasa preamar;

 ela, essa ausente, é dona e meu açoite,
 no seu impulso presto em navegar,
 vai se enfunando em névoa pela noite.

DIONÍSIO VILARINHO
Amarante/PI, 1921 – 1947, Alegrete/RS

Desenlace

Foste sincera em revelar, querida,
que não me queres mais. Muito obrigado:
já não serás por mim mais iludida,
já não serei por ti mais enganado.

Eu também já vivia amargurado
de suportar essa paixão fingida,
sabendo que não era mais amado
e que não eras mais a preferida.

Hoje, quebrando os derradeiros elos
que te traziam presa aos meus desejos,
que me traziam preso aos teus anelos,

troquemos, sem tristeza, o último adeus:
tu, sem saudade alguma dos meus beijos,
eu, sem pensar sequer nos beijos teus…

ELMO ELTON
Vitória/ES, 1925 – 1988

Vossas Mãos

   Vossas mãos de alabastro, ágeis e puras,
são para mim objetos de respeito:
– delas, em prece, todo bem que aceito
concede á minha vida mais venturas.

Vossas mãos, – delicadas esculturas,
em nada mostram o menor defeito,
e, unidas, lembram um jasmim perfeito
sempre cheio de aromas e canduras…

Vendo-as assim, tão leves como um sonho,
temo beijá-las, pois até suponho
ser um crime cruel, – e sem perdão

macular, com a volúpia de meu beijo,
umas sagradas mãos que apenas vejo
voltadas para Deus, em oração…

ERNÂNI ROSAS
Florianópolis/SC, 1886 – 1955, Rio de Janeiro/RJ

Rimas à Lua

Dorme em lascivo leito, reclinada…
Repontando de Astros e fogueiras,
Ateias a coivara prateada
Dos caminhos desertos, pegureira…

Lua! Da meia noite, solitária,
Urna errante p’la nave do infinito…
Cravas o lácteo incêndio funerária,
Às montanhas geladas de granito…

Peregrinando em tua marcha hiante
E exausta de fadiga em água amara
Buscas o mar, o oceano o teu amante…

Artista, cuja tela, ao ver-Te aclara!
N’esse sonambulismo inebriante…
Em suas vagas verdes Te enlaçara…

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
Teresina/PI

Contra a Teoria

Meus mestres do fazer por sentimento
me põem guardas contra as teorias,
de religiões, partidos, guerras frias,
quentes, mornas, e deuses…Que tormento!

Lendo o verbo, seus versos em poemas,
vindos de longe mas chegados cedo,
sem ter medo de ser, para que medo?
Humanidade, amor são nossos temas!

No mundo velho, o tudo é o tecer novo,
o melhor vem de nós e vem do povo,
porque, dizendo assim é que não minto.

E eu, sem acreditar em tanto aleijo,
descreio nas verdades que não vejo,
confio ao coração o que amo e sinto.

GREGÓRIO DE MATOS
Salvador/BA, 1636 – 1696, Recife/PE

Soneto II
(A uma dama dormindo junto a uma fonte)

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabéns à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

LUIS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal

Soneto 125

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.

OLEGÁRIO MARIANO
Recife/PE, 1889 – 1958, Rio de Janeiro/RJ

A Velha Mangueira

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa…
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa…

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.

TEREZINHA DANTAS
Peruíbe/SP

O Maior Poeta Que Existiu 

O maior Poeta que existiu 
Foi deixando sua luz; 
Num caminho que floriu 
Com seus versos nos conduz. 

Com seus versos nos conduz 
Mostrando as aves do céu; 
Este Poeta é Jesus 
Que foi retirando o véu. 

Que foi retirando o véu 
Revelando um Deus amor; 
Nos lírios do campo o céu 
Se transforma em esplendor. 

Se transforma em esplendor 
Com este Poeta Divino; 
Andando pelo campo em flor 
Com seu olhar cristalino. 

Com seu olhar cristalino 
Vai ensinando o perdão; 
O Evangelho é um ensino 
Pra guardar no coração. 

Pra guardar no coração 
Quais sementes de luz; 
Semeando pelo chão 
Por onde passou Jesus. 

Por onde passou Jesus 
O Poeta da humanidade; 
Pai Nosso nos conduz 
Ao poema da Verdade. 

Ao poema da Verdade 
Cantando ao Pai da vida 
Encontrando a felicidade 
Achando a dracma perdida. 

Achando a dracma perdida 
Este Poeta sem igual; 
A todos dava acolhida 
No seu amor incondicional. 

No seu amor incondicional 
A humanidade viu; 
Ele perdoar o mal 
O Maior Poeta que existiu! 

Antonio Roberto de Paula (De Quarta para Quinta)


Marcão sorri debruçado na janela do seu apartamento no nono andar. São mais de 11 da noite e o movimento da cidade nesta quarta-feira é pequeno. Meio de semana, tempo chuvoso. Uma quietude quebrada apenas por um distante ronco de motocicleta e dos pingos da chuva na vidraça.

Um CD na sala toca uma música leve que se harmoniza perfeitamente com o visual, o som e o cheiro da cidade quase pronta para dormir. A música também se identifica com o estado de espírito de Marcão.

Seu sorriso é sereno. Desligou-se. Os cotovelos no parapeito, as mãos cruzadas, O queixo apoiado nos polegares. As luminárias destacam o chuvisco sobre as copas das árvores. |

Marcão não quer pensar em nada. O que passou é passado – e o que virá? Se é que virá, se é que vai estar aqui para ver... Passa a analisar cada peça deste cenário. Nunca havia passado pela sua cabeça que aquele é um momento único. Marcão filosofa: nada do que agora é se iguala ao que foi e ao que será, mesmo que milésimos de segundo separem estas três etapas. 

Muda de assunto porque o que pensou não foi nada original. Se lembra da música do Lulu Santos (Nada do que foi será...) e percebe o plágio filosófico. Os cotovelos continuam no parapeito e a chuva fina faz cantiga de uma nota só na janela.

Meia-noite sem lua, céu negro. Marcão agora é parte do concreto desta cidade. O que há de concreto é só o que se pode ver e pegar. O real e o físico sobrepõem-se às divagações. A música no CD já não enleva e Marcão já colocou seu espírito no devido lugar. Sai o Marcão com suas imaginações e retorna o Marcão prático.

Fecha a janela, fecha a cortina, quinta-feira chegou.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Monteiro Lobato (A Vingança da Peroba)


A CIDADE DUVIDARÁ DO CASO. Não obstante, aquele monjolo de João Nunes no Varjão foi durante meses o palhaço da zona. Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia Pedro Porunga, mestre monjoleiro de larga fama, fungavam-se à conta do engenho risos sem fim.

Sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados pelo espigão do Nheco — e por malquerença antiga. Levantara Nunes uma paca, certo domingo; mas ao dobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um Porunguinha que casualmente lenhava por ali. Zás! Certeiro golpe de foice dá com ela em terra.

Até aí nada.

Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto de presente ao legítimo dono. Legítimo, sim, porque, afinal de contas, aquela paca era uma paca de nomeada. Sabida como um vigário, dizia Nunes, nem cachorro mestre, nem mundéu, podiam com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do outro lado não ignorava isso. Paca velha e matreira tem sempre a biografia na boca dos caçadores. Paca muito conhecida, portanto; moradora em suas terras. Paca de Nunes, homessa. Ora, justamente no dia em que, numa batida feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha?

— Mas é uma criança!

Sim, mas o pai não aprovou? Não disse, entre risadas, “o Nunes que se fomente?”. Haviam de pagar! Veio daí a malquerença. O espigão vinha do período um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.

Agravava a dissensão uma rivalidade quase de casta. Pertencia Nunes à classe dos que decaem por força de muita cachaça na cabeça e muita saia em casa. Filho homem só tinha José Benedito, de apelido Pernambi, um passarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete anos. O resto era uma récula de “famílias mulheres” — Maria Benedita, Maria da Conceição, Maria da Graça, Maria da Glória, um rosário de oito mariquinhas de saia comprida. Tanta mulher em casa amargava o ânimo do Nunes, que nos dias de cachaça ameaçava afogá-las na lagoa como se fossem uma ninhada de gatos. O seu consolo era amimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito, a ajudá-lo no cabo da enxada, enquanto o mulherio inútil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol. Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga. A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço pegou lesto no vício. Bebia e fumava, muito sorna, com ares palermas de quem não é deste mundo. Também usava faca de ponta à cinta.

— Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta, não é homem — dizia Nunes.

E cônscio de que já era homem, o piquirinha batia nas irmãs, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de muitas outras coisas próprias de homem. Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na pinga, Pedro Porunga casara com mulher sensata, que lhe dera seis “famílias”, tudo homem.

Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito. Plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha dois monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duas porcas de cria. Caçava com espingarda de dois canos, “imitação Laporte”, boa de chumbo como não havia outra. Morava em casa nova, bem coberta de sapé de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas à mão por dentro, coisa muito fina. Já Nunes — pobre do Nunes! — não punha na terra nem um alqueire de semente. Teve égua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda velha.

Comido o porquinho, sobrou do negócio o caco da pica-pau, dum cano só e manhosa de tardar fogo. Sua casa, de esteios com casca e portas de imbaúba rachada, muito encardida de picumã, prenunciava tapera próxima. Capado, nenhum. Galinhada escassa.

Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama; andava de barriga às costas, com bernes no toitiço. O pobrezinho não caminhava dez passos sem que parasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros, tentando inutilmente abocar o parasita inatingível. Que preasse. Cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preás atolambadas. E tudo mais no Varjão afinava pela mesma tecla.

Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negócio duma besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeu-lhe aquilo no fundo da alma. Era atrepar demais.

— Quê! Já roncam assim? — braveteou. — Pois hei de mostrar à Porungada quem é o João Nunes Eusébio dos Santos, da Ponte Alta!

E entrou-se, desde aí, de grandes atarefamentos. A mulher pasmava da súbita reviravolta do marido, duvidando e esperando.

— Durará esse fogo? Quem sabe?!

Planejava Nunes grandes coisas, roça de três alqueires, conserto da casa, monjolo...

Aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.

— Monjolo? Ché, que esperança!

Nunes, metido em brios, roncou:

— Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto até moinho! Hei de fazer a Porungada morder a munheca de inveja. Vai ver!...

Com assombro de todos não ficou em prosa fiada a promessa. Nunes remendou mal e mal a casa, derrubou um capoeirão descansado de oito anos e, num esforço de mouro, meteu na terra nove quartas de milho.

Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou:

— Eh! Aquilo é fogo de jacá velho. Calor de pinguço não dura...

O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em janeiro o milho desembrulhava pendão, muito medrado de espigas. Nunes não cabia em si. Visitava as roças muito contente da vida, unhando os caules viçosos já em pleno arreganhamento da dentuça vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se da cabelugem louro-translúcida. Segurava então a barbica do queixo e sonhava opulências futuras, balanceando prós e contras. Os contras já estavam de fora. Só havia prós. E concluía, entrando em casa, para a mulher:

— Este ano quebro um milhão desgramado!

Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados os lucros. Não foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução de tal vulto, porém, não se toma assim do pé para mão: era preciso meditar, calcular. E Nunes imaginava... O chóó-pan do futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornelo de música do céu.

— Hei de mostrar ao Porunga que ele não é o único monjoleiro do mundo. Empreito o serviço com o compadre Teixeirinha da Ponte Alta.

A mulher botou as mãos na cabeça.

— Nossa Virgem! É coisa de louco! Pois o compadre nem braço tem...

— Bééé! — urrou Nunes, estomagado. — Cale essa boca! Mulher não entende das coisas...

E ela, nas encolhas:

— Tá bom. Depois não se queixe.

— Bééé! — rematou o marido.

Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relações familiares. Quando ali roncava o “bééé”, mulher, filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silêncio. Sabiam por dolorosa experiência pessoal que o ponto acima era o porretinho de sapuva.

Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razão, porque o Teixeirinha Maneta era um carapina ruim inteirado, dos que vivem de biscates e remendos. Só a um bêbado como o Nunes bacorejaria a ideia de meter a monjoleiro um taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma vista. Mas era compadre e acabou-se. “Bééé!”

Uma nova semana passou Nunes em trabalhos de “maginação”. Coçava lentamente a cabeça, pitava enormes cigarrões, muito absorto, com os olhos no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim. Rumou à Ponte Alta e trouxe de lá o velho carapina, com a ferramenta capenga. Só restava resolver o problema da madeira. Nas suas terras não havia senão pau de foice. Pau de machado, capaz de monjolo, só a peroba da divisa, velha árvore morta que era o marco entre os dois sítios, tacitamente respeitada de lá e de cá. Deitá-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado — como lhe fizeram à paca.

Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.

— Está resolvido: derrubo a peroba!

Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não raiava a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes. Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do bando, interpelou:

— Com ordem de quem, seu...

— Com ordem da paca, ouviu? — revidou Nunes provocativamente.

— Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia sua.

— Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... — retrucou Nunes apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa.

Pedro continha-se a custo.

— Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...

— Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira “cuia” que passar o rumo!...

Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta:

— Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!…

A Porungada, afinal, abandonou o campo — para não haver sangue.

— Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita lágrima por amor disso...

— Bééé!... — estrugiu Nunes triunfalmente.

Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar vitorioso de Nunes.

— Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro!

E assombrou o velho com muitos lances heroicos, quebramentos de cara, escoras de três e quatro, o diabo.

— O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta.

A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memória. Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo acachaçado, comemorativo do triunfo, até que uma soneira letárgica os derreou pelo chão.

Com a derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo sacudindo a cabeça, a cismar...

— Que monjolo sairá disto, mãe do céu!...

Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte à peroba, muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco antigo, e a feitura do monjolo teve início com grande quebradeira de corpo. Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só. Pasmava daquilo, e do ajutório que ao braço perfeito dava o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que Nunes respondia com outros, sempre tendentes a patentear a ruindade dos Porungas.

Falquejado o toro, correram um barbante embebido num mingau de carvão.

— Pegue nesta ponta, compadre — dizia o velho. — Agora estique; isso.

E tomando entre os dedos o meio do cordel — plaf —, chicoteava a madeira, riscando nela um traço negro. Nunes revelou grande vocação para esfria-verruma. Esfria-verrumas são os “empaliadores” dos carapinas. Sentam-se com uma nádega à beira da banca e durante horas pasmam do rebote correr na tábua encaracolando fitas, ou do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da enxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam: “É Grive? (Greaves) Quanto custou?”. E quando sai da madeira a verruma, quente da fricção, pegam-na e põem-se a soprá-la muito sérios.

Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho a machado e enxada. Depois rasgou as furas da haste e afeiçoou a munheca. Prontas que foram, atacou o pilão. Escava que escava, em três dias pô-lo de banda, concluso. Restava somente aparelhar a “virgem”.

— O compadre sabe a história do pau de feitiço?

Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa alguma, tirante emborcar o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o esquadrejamento da “virgem”, Maneta narrou o caso que ouvira ao pai, o Teixeirão serrador, madeireiro de fama.

— Em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato toda vida, lidei com toda casta de árvore, desdobrei desde imbaúba e embiruçu até bálsamo, que é raro por aqui. Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho do mato. E de tanto lidar com paus, fiquei na suposição de que as árvores têm alma, como a gente.

— Te esconjuro! — espirrou Nunes.

— Isto dizia lá o velho; eu por mim não dou opinião. E têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. Não vê como gemem certos paus ao caírem? E outros como choram tanta lágrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora pois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de Deus.

— Lá isso...

— Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qual é, a modo que peitado pra desforra dos mais. É o pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o machado no cerne desse pau pode encomendar a alma pro diabo, que está perdido. Ou estrepado, ou de cabeça rachada por um galho seco que despenca de cima, ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não escapa. Não adianta se precatar: a desgraça peala mesmo, mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada. “Isto dizia o velho — e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada do Figueirão, alembra-se?, morreu o filho de Chico Pires. Estava cortando um guamerim quando, de repente, soltou um grito. Acode que acode, o moço estava com o peito varado até as costas. Como foi? Como não foi? Ninguém entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e disse: ‘É feitiço de pau...’. Como este um, quantos casos? O mundo está cheio. Sebastiãozinho da Ponte Alta fez uma casa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. Pois não é que a cumeeira arreia e estronda a cabeça do rapaz? Por isso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por ali perto não tinha havido desgraça. Era para ver se o feitiço estava solto ou preso, e precatar-se.”

Com estas e outras ia Maneta florejando de lérias as horas de serviço, enquanto dava os derradeiros retoques no engenho. Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que é pouco — e ele batia tapas amigos na peroba-vermelha.

— Aí, minha velha! Mansinha, hein? Há de chamar-se Tira-prosa — tiraprosa de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh!

Recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito à custa dum ancorote de cachaça, que esvaziaram a meio.

Dias depois, bem fincado, bem socado o pilão, o monjolo recebeu água. Aberta a bica, um jorro de enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou para o “inferno”.[16] A engenhoca gemeu na “virgem” e alçou o pescoço. O cocho despejou a aguaceira — chóó! A munheca bateu firme no pilão — pan!

Nunes pulava de alegria.

— Conheceu, porungada choca, quem é João Nunes Eusébio da Ponta Alta?

Mas não lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da menina a palmear, nem os ladridos de Brinquinho que, espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontapés. Queria mais. Correu à espingarda, espoletou-a e, erguendo-a para o “outro lado”, desfechou. Mas o caco velho da pica-pau não compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alçada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou com ela para longe, embrulhada num palavrão. Lembrou-se depois de três foguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los; atacou-os em direção aos Porungas.

— Cheira essa pólvora, cuiada!

Infelizmente as bombas, muito úmidas, negaram fogo por sua vez.

— Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega também.

Não negou. E a prova foi roncarem logo para ali como dois gambás. No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com grande sentimento do Nunes, que perdia nele um companheirão. Quanto ao monjolo, como não houvesse milho a pilar, ficou sua estreia para quando se quebrasse a roça. Cessaram as chuvas de verão. Entrou o outono, refrescado, limpo. Amarelaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Começou a quebra. Muito impaciente, Nunes debulhou o primeiro jacá recolhido e atochou o pilão. Ai! Não há felicidade completa no mundo. O engenho provou mal. Não rendia a canjica. Desproporcionada ao cocho, a haste não dava o jogo da regra.

A mão, por muito leve ou por defeito de esquadria na “virgem”, guinava à esquerda ao bater, espirrando milho para fora. Por mal dos pecados, à primeira chuvinha o pilão entrou a rever água. Fora escavado em madeira ventada. Não prestava.

Nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se a reparar tantas “torturas”. Diminuiu o peso ao macaco, engrossou as águas, amarrou ali, especou acolá, calafetou fendas. Consumiu dias em luta surda contra as manhas do mal engonçado. Mas a peste do mostrengo respondia a cada arranjo com uma reincidência de desalentar.

O pobre homem explodiu, então. Da boca lhe espirraram injúrias sem fim contra o patife do carapina.

— Excomungado do diabo de maldelazento de maneta...

Impossível meter no papel todas as contas do rosário; as miúdas inda cabem, mas as graúdas não podem sair do Varjão. Além de injúrias, ameaças. Que iria à Ponte Alta rachar o compadre a foice; que lhe vazava a outra vista; que...

Num desses desabafos a tola da mulher meteu a colher torta no meio.

— Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o “queixo-duro” não fez caso...

Ai! Nunes, que só esperava por aquilo, passou a mão na sapuva e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova de consertar ladrão.

— Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno! Aprende a fazer monjolo, porco sujo! — e malhava...

A mulher sumiu-se aos pinotes mato adentro, seguida do mulherio miúdo; e por oito dias andou em esfregações de salmoura pela polpa avergoada. Nunes, porém, melhorou consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da bílis.

A nova de tais sucessos chegou à Porungada. Pedro, exultante, não teve mão de si, quis ver com os próprios olhos a caranguejola que o vingava tão a pique. Meditou um plano, e lá um dia transpôs o espigão, rumo à casa do rival. Voltou uma hora depois espremendo risos fungados.

— Eh, eh, minha gente! Vocês não calculam. Quando quebrei o serrote já ouvi o barulho — chóó-pan —, uma ronqueira dos diabos! Disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh!

Fui chegando. Nunes, jururu, estava debulhando milho na porta. Quando me viu entreparou, amode que assombrado.

— É de paz! — eu disse, e me plantei diante dele. — Dois chefes de família, inda mais vizinhos, não podem viver toda a vida assim, de focinho “trucido” um pro outro. O que foi, foi. Acabou-se. Toque.

Ele relanceou os olhos pro lado da ronqueira — eh, eh! — e muito desconchavado me espichou a mão sem abrir o bico.

— Traga um café! — gritou pra dentro.

Enfiei os olhos pela casa: estava “assim” de mulherada na cozinha! Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversava sem graça, amarradinha. Por fim especulei:

— E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?

Nunes amarelou que nem esta folha!

— É bonzinho, rende bem...

— Quero ver” — disse eu —, se não é curiosidade...

— Pois vá — respondeu, sem se mexer do lugar.

Eu fui.

Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem na casa do diabo! Só se vê amarrilhos de cipó e espeques e macacos. A haste tem nove palmos e o cocho a mó que tem dez!...

— Quiá! quiá! quiá! — cacarejou a roda, que em matéria de monjolo era entendidíssima.

— A mão não pesa, home, não pesa nem arroba e meia! A “virgem” está errada e fora do prumo. Milho está que está alvejando o chão. A mão pincha duma banda.

Os Porunguinhas babavam.

— Então, roncar ele ronca?

— Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas, socar? O boi soca! Nem três litros rende por dia. Homem, gentes, aquilo é coisa que só vendo!

A cara dos Porungas, anuviada desde o incidente da peroba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos do despique. As nuvens foram escurentar os céus do Varjão. Era um nunca se acabar de troças e pilhérias de toda ordem. Inventavam traços cômicos, exageravam as trapalhices do mundéu. Enfeitavam-no como se faz ao mastro de são João. Sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os Porunguinhas iam atando cada qual o seu buquê, de modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente cômica. A palavra ronqueira entrou a girar nas vizinhanças como termo comparativo de tudo quanto é risível ou sem pé nem cabeça.

Aos ouvidos de Nunes foram bater tais rumores. O orgulho, muito medrado no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhe como fruta verde colhida antes do tempo. Mas impossibilitado de vingar-se deu de criar um rancor surdo contra a Ronqueira, que, trôpega, lá ia malhando, dia e noite, chóó-pan, muito lerda, muito parca de rendimento. Para acalmar a bílis Nunes dobrou as doses de cachaça.

A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da vida, esmolambada, sem mais esperanças de arranjo para aquele homem. Sempre rentando o pai, sorníssimo, Pernambi parecia um velhinho idiota. Não tirava da boca o pito e cada vez batia mais forte no mulherio miúdo. Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a cabeça, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua gente. E assim, meses.

Afinal, veio a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso foi que o inocente pagou o crime do pecador, como é da justiça bíblica. Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo da Pedra Branca, outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de Ronqueira. Era demais.

— Até aquele cachorro do Cuitelo! — gemeu o mísero, passando a mão na garrafa.

Sorveu um gole e:

— Pernambizinho, vem cá. Bebe com teu pai, meu filho.

O menino não esperou novo convite: bebeu um, dois e três goles, estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo. Mal tonteado pelos eflúvios do álcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu. Nunes estirou-se ao sol para dormir.

Era um dia feio de agosto. Céu turvo do fumo das queimadas. Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas carbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes. Transcorrida uma hora o bêbedo acordou, relanceou em torno os olhos mortiços.

— Quedele Pernambi? — disse às filhas acocoradas à soleira da porta.

As meninas não sabiam do irmão.

— Chamem Pernambi — engrolou o bêbedo, recaindo em cochilo.

Uma das pequenas saiu no encalço do menino. Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se lhe houvessem desossado o pescoço. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas. Súbito, um grito lancinante ao longe alvoroçou a casa.

A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, para à porta, orienta-se e corre para onde há voz. As filhas disparam-lhe atrás, rumo ao monjolo. Silêncio trágico.

Depois novos gritos — gritos em coro —, gritos de desespero.

— Coitadinho do meu filho! — uivava lá longe a mãe.

Nunes soergue-se, amparado ao portal.

— Que é isso? — grunhe.

Ninguém lhe responde. Não há ninguém por ali.

Mas no monjolo recrudesce a grita. Para lá segue o bêbedo, cambaleante. Em caminho dá de cara com a mulher, que voltava descabelada, a falar sozinha.

— Que é que foi, mulher?

Arrostando com o marido, a pobre mãe afuzila nos olhos um raio de cólera incoercível.

— O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É a tua pinga, homem à toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá ver, desgraçado!...

Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa num quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão. Para fora, pendentes, duas pernas franzinas — e o monjolo impassível, a subir e a descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pelanca... Esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemência Nunes corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.

— Chegou teu dia, desgraçado!

Cena lúgubre foi aquela! Entre rugidos de cólera o louco arremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. Uma pancada na mão — toma Barbazu! Outra na haste — rebenta demônio! Outra no pilão — estoura feiticeiro do diabo! E pan, pan, pan — dez, vinte, cem machadadas como nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijeza de pulso. Cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da peroba assassina. E lascas. E achas...

Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra a matéria bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já um monte escavacado de peças em desmantelo, o mísero caboclo tombou por terra, arquejante, abraçado ao corpo inerte do filho. Instintivamente sua mão trêmula apalpava o fundo do pilão em procura da cabecinha que faltava.

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês

quarta-feira, 5 de junho de 2019