quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 10


BARBUDOS E AFINS


Já fui Jesus, já fui John Lennon, Che Guevara...
E fui Leminski... Raul, Dührer... fui Benito,
todo barbudo como eu tem essa cara
dos que alcançam, sem querer, o infinito.

Nunca. fui mito, dos caminhos que escolhi,
alguns tão lindos e outros tristes ou perversos,
são a essência desse tempo em que eu vivi,
quando me li, vendo inocência nos meus versos.

Já fui Cabral e fui Gregório... fui Camões
sem olho cego... sou ilustre luso... leiro,
de barba em riste mas, nos olhos... emoções...
fui Dom Quixote... e nunca tive escudeiro...

Engels, Hemingway, Júlio Verne, Aiatolá ,
fui quatro Beatles, fui Machado... Juarez...
não sou freguês das lâminas de barbear...
Eric Clapton... e até monge japonês.

Abraham Lincoln, Marx, Bee Gees, fui todos eles
e mais alguns, na aparência ou na atitude,
filosofia, ideologia...herdei deles,
e agora velho, ainda esperam que eu mude.

A mesma barba, o cavanhaque e o bigode,
os mesmos óculos... de grau... e quem diria...
ainda faço rock'n roll, blues e pagode,
jazz, bossa nova, tango, samba e poesia.
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CONVITE

A dor convida o meu amor para brincar...
Ele é ingênuo e inocente e não diz não...
A brincadeira é dentro do meu coração,
Só que o amor só brinca mesmo é de sonhar.

A dor lhe mostra uma lágrima infeliz,
Chorando, diz que que o coração se acostumou
Com esse pranto, que o sonho renegou,
E a tristeza, ao mesmo pranto pediu Bis.

O amor hesita, mas a dor é insistente
E dramatiza de forma tão convincente,
Que ele sente uma lágrima cair,

Porém meu sonho toma a mão da alegria
E o meu amor transforma a dor em fantasia
E a poesia faz meu coração sorrir.
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CUPIDOS PASSIONAIS

Quando Cupido esvaziou a sua aljava,
Sem acertar bem dentro do teu coração,
Não era o teu mais doce amor que ele alvejava,
Ele flechava, sem querer, tua razão.

Teu raciocínio se esquiva... não se fere,
Ele prefere observar a trajetória
Desse projétil... estudando quem desfere
Os seus desejos, sem saber da tua história.

Casos de amor são como setas de Cupido
Que se desviam do destino original
E vão ferir quem se tornou tão distraído

Com a solidão, que é incapaz de perceber
Que um amor, quando se torna passional,
Jamais acerta o coração que ele quer ter.
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GENTE QUE SONHA

Tem gente que me amou e eu não amei...
Tem gente que eu amei e não me amou;
Tem gente que não sabe o que eu sei,
Tem gente que nem sabe quem eu sou.

Tem gente que partiu ou que ficou,
Tem gente que ficou... mas já partiu,
Tem gente que não viu o que olhou,
Tem gente que olhou o que nem viu.

Tem tanta gente vendo o que não vê,
Ou crendo no que pensa que não crê,
Que eu vou reconstruindo o que eu sonhar,

Meu pé sempre pisando o mesmo chão
Que faz do meu momento, um coração
Que pulsa na emoção do meu olhar.
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MUITO MAIS QUE UM PRISIONEIRO

O amor chega como um pássaro que canta;
O amor encanta com tanta espontaneidade
E com virtudes poderosas... e são tantas,
Que não há como ignorá-las, de verdade.

Alguns o prendem em gaiolas coloridas
E o exibem como um lírico troféu;
Aprisionam, entretanto, suas vidas,
Mas todo pássaro extasia-se com o céu.

Até que um dia, a porta aberta da gaiola
Mostra, lá fora, mais que um céu de passarinhos;
O amor, então, esquece a grade que o isola
E se consola com a ilusão de outros caminhos.

O amor é assim, pode voltar a qualquer hora;
Há alimento e solidão no cativeiro
Mas quando o sonho de voar fica lá fora,
Ele se sente muito mais que um prisioneiro.

Fonte:
Luiz Poeta (Luiz Gilberto de Barros). Nuvens de Versos. Campo Mourão: Editado por José Feldman, 2020.

Benedita Azevedo (Susto de Carnaval)


Dia 26 de fevereiro, o Monobloco  fecha o Carnaval carioca 2012, desfilando da Candelária à Cinelândia, sob o sol escaldante de mais de trinta e cinco graus. A Rio Branco se transformou numa grande centopeia cujas pernas eram as ruas transversais, vazadouro da multidão comprimida em todo o percurso, onde se reuniram 500 mil foliões, segundo estimativa da Polícia Militar, número recorde do bloco, em relação aos outros anos.

Ao som de sambas tais como, “Fogo e Paixão” de Wando, “Samba, Suor e cerveja” de Caetano, Sambas - enredo, xotes, funk e tantas outras. Os foliões se esbaldaram, durante três horas e meia sob o calor de quase quarenta graus, suavizados com jatos d’água, água mineral, refrigerante e cerveja bebida e despejada na cabeça. Viam-se foliões pendurados em pontos de ônibus, postes e árvores, o que fez o cantor, Pedro Luís, pedir várias vezes que descessem dali. Indiferente a esses detalhes, ao som do tamborim, da cuíca e do agogô, a multidão serpenteia, numa mistura de som e movimento bem sincronizados na despedida do carnaval de rua.

Ao meio dia, decidida a almoçar no Amarelinho, uma comida bem leve, peguei o Christian pelo braço e seguimos em sua direção. Os blocos estavam se aproximando. Eu quis chegar mais perto e andamos ao encontro dos foliões.  Num determinado ponto ele queria voltar, amedrontado com a possibilidade de ser engolido pela multidão. Paramos em um ambulante, compramos duas cervejas e voltávamos para almoçar. De repente, não o vi mais a meu lado. Pensei que poderia estar brincando, um costume seu para me assustar. Andei para um lado para o outro e nada. Fui até o Verdinho, a ver se estava por lá. Depois fui até o Amarelinho, será que entendera errado o nome do restaurante? Também não estava naquele restaurante. Dei mais uma volta no meio da multidão olhando detalhadamente para todos os lados, voltei pelo outro lado da praça e nada. Comecei a ficar meio apavorada. Será que fora sequestrado com aquela cara de gringo?  A preocupação tomou vulto e cresceu feito um monstro. Eu não deveria tê-lo convidado para ver o bloco. O que fazer agora? Telefonar para minha filha e os netos para pedir ajuda na procura daquele homem que para mim, naquele momento, parecia tão desprotegido!

Fui mais uma vez aos dois restaurantes e nada. A multidão crescia à medida que os blocos iam chegando ao destino. Agora já era muito difícil a locomoção, tive certeza de que não o encontraria e resolvi ir até o apartamento para telefonar e pedir ajuda. Ao me livrar da multidão andei o mais rápido que pude. A distância me parecia maior que de costume;  apressei o passo, virei a esquina, cheguei em frente ao prédio, a porta estava fechada. Toquei a campainha, pareceu-me um século até o porteiro abrir. O elevador estava no último andar e não chegava. Meu coração estava aflito, imaginando aquele homem em mil situações de perigo. Desci do elevador andei até o final do corredor e ia pensando se Jane estaria em casa naquele momento... Abri a bolsa e já  ia com chave à mão. Abri a porta e quase tive um desmaio ao encontrar o Christian sentado à mesa, comendo um sanduíche de queijo com presunto e suco de uva, na maior tranquilidade.

Desmoronei no sofá e agradeci a Deus por acabar com aquela angustia. Passados alguns minutos saímos para almoçar no restaurante. Segurei firma sua mão e só soltei ao nos sentirmos seguros dentro da divisória de metal que nos separava do público.

Fonte:
Recanto das Letras da autora. Crônicas.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3528395

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Bica


O elevador (bondinho) amarelo, sob a forma de um pequeno elétrico da carris, continua a galgar a encosta íngreme da Bica. E, durante a viagem lenta, podemos avistar as calçadas e os becos mais típicos do Bairro.

Os moradores da Bica sempre mantiveram uma estreita ligação com a vida marítima do Tejo. Este pitoresco bairro é composto por um conjunto de calçadas, escadinhas, quelhas e becos. A sua origem remonta a uma catástrofe natural.

Em 1597, um assentamento de terras entre o Alto de Santa Catarina e o Alto das Chagas formou um vale que deu o aspecto íngreme à Bica. Nesta altura, Lisboa era muito procurada por pessoas de fora que queriam trabalhar no rio. O grande aumento populacional fez que as zonas da Bica, São Paulo e Boavista fossem habitadas por marujos, pescadores, aguadeiros, peixeiras e todo o tipo de vendedoras.

Julga-se que o nome do bairro deriva de uma bica cuja água flui ruidosamente para um tanque do século XVlll, no Pátio de Broas ou Vila Pinheiro. Fica na Calçada da Bica. Para além desta, este espaço é composto por nomes como a Calçada da Bica Pequena, o Beco dos Alciprestes, o Largo de Santo Antoninho, a Bica Duarte Melo, a Rua do Almada, e o famoso elevador da Bica. É este que mantém estreitos os laços entre a Bica e Santa Catarina ou o Bairro Alto. Porém, nem todas as bicas e fontes se resumem à toponímia.

Construída em 1675, a Bica dos Olhos é conhecida pela sua eficácia no tratamento de doenças dos olhos. Neste bairro, eram frequentes os pregões dos aguadeiros, na sua grande maioria Galeses, que enchiam as ruas de sons e de presença humana. Em Lisboa, a falta de água era frequente. As bicas e fontes eram habitualmente locais de encontro.

A origem do Marítimo Lisboa Clube foi muito influenciada pelo Tejo e pelas suas atividades marítimas. Em 1944, um grupo de homens ligados à faina marítima resolveu fundar a coletividade.

Em 1952, a Marcha da Bica saiu pela primeira vez à rua. Nesse ano, o bairro atingiu o primeiro lugar. O que voltaria a acontecer em 1955, 1958, 1963, 1970 e 1992. Todos os meses de Junho, a Bica veste-se a rigor para a folia. As sardinhas, o vinho, o caldo verde e o arroz doce perfumam o ar. Por entre estes cheiros característicos de Lisboa neste mês, a alegria dos cantares tradicionais: “É este amor, revolto e a saber a sal, que cantam as gargantas das mulheres deste bairro, tão frescas como a água que jorra das bicas, tão rebeldes como o mar que lhes leva os seus amados”.

A organização das marchas populares da Bica está, desde sempre, a cargo do clube. O mesmo acontece com os Arraiais, que também já foram premiados. Em 1989, 1922 e 1995, a Bica ganhou o prêmio pelo melhor arraial das festas da cidade. O bairro também já levou para casa o título da rua mais bem enfeitada. Além da componente cultural, o clube dedica-se à prática desportiva, onde se inclui o atletismo, o futebol e o tênis de mesa.

MARCHA DA BICA
(Na Bica o sol brilha mais)


Letra de Carlos Barrela
Música de António Miguel Henriques

 
 “Na Bica o sol brilha mais
Vem aquecer as gaivotas
Que andam a namoriscar
Primeiro incendeia o cais
Depois vai de porta em porta
Por todo o bairro a brilhar.

Beija os corpos enlaçados
Afaga a curva de um rosto
Cobre de ouro a solidão
E anda a tecer bordados
Desde manhã ao sol posto
Sobre as pedrinhas do chão.
(Refrão)

A bica aquece
Quase endoidece
E a vida parece
Menos dura
A Bica brilha
Que maravilha
Veste-se de poesia
E de ternura

A Bica aquece
Quase endoidece
Por com tanto calor
Ser abraçada
A Bica brilha
Que maravilha
Sente-se mais feliz e
Mais amada.

Na Bica o sol brilha mais
Vem maquilhar as tristezas
Que passam de rua em rua
Faz das janelas seus vitrais
Come à mesa pobreza
Anda às avessas com a lua.

Conhece histórias velhinhas
Sabe de cor as cantigas
Que andam na Bica pelo ar
E quando chega a tardinha
Apesar de mil fadigas
Teima em não se querer deitar ...
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 17

 

Rocha Pombo (Sarica)


Afinal, parece que era preciso compreender que a vida é aquilo mesmo...

Queixam-se todos, mais ou menos, da sorte; mas, lá um dia, a Providência como que nos surpreende com a sua misericórdia infinita.

Viviam, há tantos anos, naquela tristeza: ele, o pobre Luiz, paralítico e cego, uma alma simples e fina, atada aquele castigo de uma existência dolorosa, na imobilidade e na escuridão; ela, a mísera Josepha, ainda mais delicada e sensível, sempre espantada em presença da desgraça; procurando, resignada e sublime de ternura, talvez inconsciente da sua grandeza tão humilde, provar ao mundo que, ainda no meio das vicissitudes mais duras e amargas, pode um peito fiel e amoroso levar alguma coisa que zomba impassível do tempo e das amarguras.

Viviam há tanto naquela miséria; ele, ruminando mistérios, como um deus vencido e desolado; ela, a desentranhar-se em ternuras por aqueles entes tão inditosos que o destino lhe confiara.

Queixavam-se continuamente de Deus e dos homens... No entanto, só agora é que ela, a boa Josepha, está compreendendo como não tinham razão para acusar a vida. O Julio já presta algum serviço; e a coitadinha da Sarica... já sabe pedir... De certo que era horrível esmolar! Mas que direito haverá, mais do que este, sagrado para o mundo, quando se tem fome?

A primeira vez que lhe passou pelo espírito esta ideia de fazer a filhinha esmolar, a Josepha chorou tanto que o Luiz, lá da sua noite, chegara a perceber e afligir-se. Expor aquela criaturinha tão hedionda aos olhares curiosos de todos... era horrível!

Mas a miséria vence as naturezas mais resistentes... Demais, pior, mil vezes pior, do que este recurso a caridade do seu semelhante, havia no mundo tanta coisa!

A princípio, Josepha seguia de longe a aleijadinha acompanhada do Julio. Levava o coração agitado ao ver a filha arrastando-se pelas ruas e praças a estender as mãos aos passantes. Depois, tudo se foi normalizando; ficou tudo muito natural: a mãe, desafogada, lidava na casa; a Sarica e o irmãozinho exerciam fora a sua profissão.

As duas crianças, logo cedo, arranjaram-se e partiram, para só voltar à tarde, muito fatigadas, com a colheita do dia. Quando tinham sido felizes e traziam uma boa féria, o Julio entrava muito contente; mas a Sarica, morta de cansaço quase sempre, pedia logo o seu repouso numa enxerga, junto ao catre do pai. Mal tinha ela forças para afagar o cego, e dar-lhe alguma boa notícia: quando a mãe dava por ela, a Sarica dormia, atirada ao chão, como um embrulho, sem forma humana...

Uma vez, demorava ela em preparar-se, e já se fazia tarde. O Julio, muito aflito, diz-lhe que outros mendigos já deviam ter-lhe tomado os melhores pontos da praça. Josepha mesmo entendeu que era tempo de apressar a filha, ao vê-la muito cuidadosa, a compor-se melhor, a esconder bem as pobres pernas atrofiadas e torcidas. Tinha muita vergonha quando lhe viam as pernas... Da corcunda já não fazia mais caso; mas deixar aparecer o horror das pernas...

— Ah! — fez-lhe sentir a mãe sem cuidar — Tranquiliza-te... Quem haverá, minha filha, que te queira ver essas perninhas tão secas e tortas...

E o Julio disse mais:

— Será melhor até que todos vejam toda a tua tristeza...

A menina calou-se, mas revelando no gesto compungindo a infinita desconsolação de todo aquele infortúnio.

Saíram os dois. A Sarica tinha a frontezinha sumida, como imersa naquela mistura de ossos: bela frontezinha, o único sinal de majestade humana que havia naquele corpo monstruoso. Dir-se-ia uma cabeça, um semblante de anjo metido na fealdade, na hediondez de uma rã, a olhar vagamente para cima, lá do chão onde rasteja.

Horas e horas, abraçadas às vezes por um sol de Janeiro, a um canto da praça, ela passava pedindo. Quando as esmolas lhe caíam lá de cima, ela sorria e se alvoroçava, e tinha vontade de erguer-se... Mas, às vezes, as esmolas não vinham... Ela pedia inutilmente; e o Julio chegava a dizer-lhe, com maus modos, que ela não tinha jeito para o ofício; que não sabe fazer voz comovente, e que não revira para o alto os olhos meio nublados... Ela se esforçava na sua função, falando como os moribundos, e fazia, trêmula e exausta, por imitar os mais hábeis dos pedintes que enchem a praça...

Muitos daqueles eram mais felizes do que ela. Chamavam sempre a atenção do público, e sempre com fruto copioso. E, no entanto, nenhum deles tinha, como ela, o direito de pedir. Ela devia ser ali a primeira; mas a piedade dos homens não compreendia isso. Os próprios cegos não estão no seu caso. Os cegos têm ao menos o seu aspecto humano, e não sabem o que é a dor de ser... monstro. E aquele público passa às vezes por ela sem vê-la... Era horrível!

E quase sempre ia pensando assim, até chorar.

Quando, porém, as esmolas caíam, tudo se acabava; esquecia as queixas; e até o seu semblante readquiria a serenidade das auroras. Sentia-se boa e meiga, capaz de uma simpatia incondicional por todos os entes, mesmo os mais ditosos da vida. Já era alguma coisa aquela justiça, que lhe faziam, de reconhecer quanto ela é digna de compaixão.

À tarde, um dia, entrou ela, de volta das ruas, naquele triste lar. A receita fora das boas. A mãe recebeu-a, como de costume, com todos os carinhos; e o cego, lá no seu escuro, teve um farto beijo aquele dia.

Ah! a vida era aquilo mesmo... Estavam então amparados todos pela desgraça daquela criatura...

Coração de mãe, por mais vencido que ande, às vezes como que se deixa galvanizar pela própria miséria. É por isso que, ainda familiarizado com a dor, vem de repente lá do seio materno um protesto que parece espantar o próprio destino. Josepha dissera aquilo, e teve logo ímpetos de esmagar de carícias a filhinha: aquelas palavras como que despertaram naquela alma de mãe a consciência de tanta desgraça... de que os pais se aproveitam. O cego, que tem toda a sua vida concentrada na filhinha, e que, se não vê com os olhos, tem a luz
interior que devassa as profundezas do ser, estremeceu numa convulsão de pranto ouvindo aquelas palavras.

O Julio, a um lado, desconfiava de tudo aquilo. Ele sentiu que todas as demonstrações eram para a Sarica. A ele não lhe reconheciam coisa alguma. Entretanto, sem os esforços dele, a irmãzinha nada faria. Muitas vezes a Sarica chegava até a querer cantar e sorrir, a ele é que evitava tais imprudências...

— É certo — explicou a menina — eu, às vezes, tinha mesmo vontade de cantar. Eu estava triste, vendo que não me davam coisa alguma... e sem que eu soubesse como... um grupo de moços passava... e tantos níqueis eu recebia num instante, que meu coração parece que saltava... Era em tais momentos que sentia umas ânsias de cantar para o céu um hino com que uma vez sonhei, cantado pelos anjos... E não hei de morrer sem compor uma oração que exprima tudo que sinto pela bondade da minha santa... Eu sei que é santa Cecília quem me protege. Por mim mesmo, que poderia eu merecer de Deus? Se ele me fez nascer assim, não seria porventura para avisar-me que não devo esperar coisa alguma do céu neste mundo? Não, Julio, tem paciência: hei de cantar a minha oração...

— Pois se tu cantares nas ruas — disse o Julio gravemente — desde já te asseguro que não traremos um vintém. Tu bem viste hoje: foi bastante que te alvoroçasse um pouco para que ninguém mais te desse. Não há quem goste de mendigos alegres, ou de mendigos que cantem...

E suspirando muito intencionalmente:

— Não fosse eu... e havíamos de ver... Eu é que te ando a ensinar a fazer cara de miséria e ares de fome. Tu estás sempre a querer ocultar as pernas e os braços... Não fosse eu...

E concluiu amuado:

— Entretanto, nada mereço... Tu é que fazes tudo... Este mundo é mesmo assim... Não sei por que também não me fez Deus aleijado…

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

George Abrão (Poemas Avulsos) 2


DESFILE DAS FLORES


Na passarela encantada,
no lindo reino das flores,
todas as belas desfilaram
espalhando feitiço e amores.

A ordem foi determinada
por sua majestade o girassol,
que imponente e belo,
coordenou todo  o desfile
com sua coroa  de raios de sol.

A primeira foi a violeta,
que singela e bela,
dominou a passarela.

Depois veio o amor-perfeito
com toda a graça e beleza,
uma joia da natureza.

O lírio, por ser perfeito,
deu à festa tom de pureza
desfilando sua beleza.

E a altiva e bela orquídea,
com toda sofisticação,
desfilou com perfeição.

Depois com saia de pétalas
veio a linda margarida,
girando bem atrevida.

E a meiga madressilva
Com toda a delicadeza
desfilou com graça e beleza.

A Maria-sem-vergonha
debochada como só ela é,
desfilou, riu, e deu no pé.

E chegou a onze horas
colorindo a passarela,
todos deram passagem a ela.

E a divertida boca -de- leão
chegou beijos jogando
e os cravos se apaixonando.

E por fim a bela rainha
sua majestade a rosa amarela
fechou o desfile na passarela.
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PRIMAVERA

Primavera!
Com seu singular perfume festeja a vida,
afastando a dormência do frio inverno,
espantando as névoas e o cinza,
colorindo e dando brilho a todas as coisas,
sugerindo o amor
e fazendo com que o amor se intensifique
no movimento dos insetos e dos animais,
no canto e na dança das aves multicores,
fazendo com que o mundo retome sua força plena
na explosão do brotar da vegetação!

Primavera!
Quisera eu ter o poder de mantê-la sempre em minha vida,
jamais deixá-la partir,
reter perpetuamente o seu perfume,
a festa de suas cores, seu brilho intenso,
a sensualidade que paira em seu ar!
Com sua força, primavera, quisera eu poder impedir
que o triste inverno um dia chegasse aos meus dias.
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SÚPLICA DE UM PECADOR

Pelos caminhos que percorri
eu sempre procurei semear flores.
Algumas sementes brotaram,
outras secaram, pela aridez,
pelo descaso, por falta de amor.
Tentei cumprir a minha parte
procurando não espalhar espinhos,
não ferir a quem estava à minha volta;
mas como não sou infalível,
assim como muitos, eu sei que pequei,
outras vezes me omiti, ou me calei.
A cada esquina do meu caminhar
recebi novos ensinamentos, nova lição,
se os apliquei bem, não tenho como julgar,
pois tal juízo não me cabe, mas sim a Ele,
ao Senhor que rege todas as coisas.
Então, nesta minhas oração, eu Lhe suplico:
Meu Deus, se for possível, absolvei-me!
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TE CUTUCO! NÃO CUTUCA! TE CUTUCO! NÃO CUTUCA!

Foi na mágica e quente Bahia
do século dezenove, que ele nasceu.
Numa animada roda de dança
num terreiro no alto do morro.

A festa estava muito animada,
quando o Zé provocou o Chico
que dançava com a Maria Fulô.
E a provocação virou briga,
briga das feias, um grande fuzuê.

O Zé puxou de um estoque,
e com passos de capoeira
ele dizia para o Chico: - te cutuco!
E o Chico respondia: - não cutuca!

E era uma briga esquisita
parecendo mais que dançavam
numa cantilena monótona:
- Te cutuco! - Não cutuca!
- Te cutuco! – Não cutuca!
- Não cutuca que eu te taco a mão!
- Te cutuco! Não cutuca!
- Olhe, eu vou te cutucar!
- Cutuca cabra safado,
pois vou a sua cara quebrar!

E a briga ficou nisso, até se acabar.
no ritmo quente dessa marcação
foi que o samba nasceu no morro,
desceu de lá e se espalhou nos salões,
se tornando unanimidade nacional!

Fonte:
Facebook do poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Se não fosse pela gafe cometida...)


TUDO O QUE ACONTECEU e está narrado no presente texto, não foi no tempo em que os animais falavam. De fato, são verídicos e merecem todo o crédito atribuído ao autor. Pedi um uber para me levar (eu e minha neta Ellen) ao aeroporto Santos Dumont. Menos de quinze minutos, pintou na área, um Renault Duster branco da Sandero, quatro portas, novinho em folha. No volante, uma figura estranha para os tempos atuais. Não propriamente uma figura. Na verdade, um bode. Imagine! Ao entrar no veículo, de pronto, constatei ser a criatura um bode justo e perfeito. Achei esquisito um bode trabalhando como motorista de aplicativo. Fizemos as apresentações de praxe, seguindo os protocolos de segurança:

— Seu Linguiça, bom dia. Eu sou o Bode, às suas ordens.

— Bom dia, seu Bode. Prazer em conhecê-lo.
 
— E a simpática mocinha?

— Ellen, minha neta.

— Bom dia senhorita. Seja bem-vinda.

Ellen respondeu sem desgrudar os olhos do celular:

— Bom dia, obrigada.

Antes de se ater ao caminho, a pergunta que, de antemão, sabia a resposta:

— Aeroporto Santos Dumont?

— Por favor...

— Viagem à negócios, ou a passeio?

— Passeio.

— Posso saber para onde está voando?

— São Paulo.

No trajeto de pouco mais de treze quilômetros, da Borges de Medeiros, na Lagoa Rodrigo de Freitas, até o Santos Dumont, o Bode (intercalando os olhos, ora no transito, ora dialogando comigo, pelo retrovisor) seguiu procurando ser gentil. Explicou que recente perdera o emprego. Como não arranjara nada de carteira assinada dentro de sua profissão e na especialidade que se formara, resolveu, com o dinheiro recebido de quase trinta anos, ser seu próprio patrão:

— Pesquisei daqui, dali e cheguei à conclusão que no momento em que atravessamos tempos difíceis, atrelados aos percalços de um país falido, o melhor seria me virar em algo por conta própria. Decidi ser meu patrão. E me apareceu trabalhar como motorista à semelhança dos táxis. Aqui estou belo e formoso...

— E está dando certo? — Assuntei sem muita animação.

— Até agora sim, graças à Deus. O senhor crê me faltar muito pouco para acabar de pagar o carrinho?

— Carrinho? Que carrinho?

— A lindeza que agora leva o senhor e a sua netinha ao aeroporto...

— Ah, sim. Acredito!

— Coloquei um objetivo. Por dia preciso fazer tantas corridas para alcançar o valor idealizado.

— Legal.

— Ontem, por exemplo, uma vitória inesperada. Antes do meio dia, já havia obtido o limite estabelecido...

— Parabéns. O senhor é um vencedor.

— Obrigado, meu amigo. “O pouco com Deus é muito e o muito, sem Deus é nada”.

Que chato! O Bode não parava de tagarelar:

— Hoje comecei no trampo, como todos os dias, às cinco horas da manhã. Paro ao meio dia, para um rápido almoço. Em seguida caio de novo no mundo. Às dezoito horas, me recolho. Espero ter a mesma sorte benfazeja de ontem. Antes do horário previsto galgar o “Ponto- X”. Então poderei desligar o telefone e partir para o abraço...

— Mora aqui por perto?

— Quem dera! Me escondo no Cocotá, Ilha do Governador.

— Família?

— Mulher e duas filhas. Uma com seis anos e a mais velha com treze...

— A idade da minha neta aqui.

— A Cabra me ajuda. Não estou sozinho na peleja pela sobrevivência.

Quase dei um salto repentino no banco traseiro:

— Quem?

— A Cabra, minha esposa...

— Ah, verdade...  

— Esqueceu que sou um bode?

— Olhando assim para o amigo... se a gente não prestar atenção, quase não dá para aceitar o fato de que seja um...

— Entendo. Todavia, no meu humilde modo de encarar a vida, acho que o senhor me reconheceu... como é discreto, não quis inquirir ao menos para tirar a dúvida.

— Em parte o amigo tem razão. Faço vistas grossas. Falo sempre sobre essas coisas à minha neta. Às vezes sou meio antiquado. Ensino a ela que a gente não deve ser abelhudo. A curiosidade costuma matar o gato.

O Bode aquiesceu, mostrando junto com o sorriso franco uma arcada dentária perfeita:

— O senhor tem toda razão.

Completei o que pensava, observando:

— Melhor ser um gato vivo que um bichano a caminho do cemitério...   

— Concordo plenamente com suas palavras, meu caro Salaminho...

— Perdão, amigo Bode. Linguiça. De onde foi que tirou o Salaminho?

Bode se desculpou veementemente envergonhado:

— Desculpe-me pelo vacilo, seu Linguiça. Eis nós aqui. Chegamos ao seu destino. Aeroporto Santos Dumont. Façam, o senhor e a sua netinha, uma boa e proveitosa viagem.

Puxei da carteira o dinheiro para o pagamento da corrida.

O Bode se virou e, sem deixar a alegria que inundava suas faces coradas, naquele momento, observou:

— Negativo, seu Linguiça. O senhor não me deve nada.

Franzi o cenho, interrogativamente:

— Como assim não lhe devo nada?   

— Estou lhe dizendo que estamos quites.

— Acaso errei o valor visto aqui pelo meu celular?

— De forma alguma...

— Estou, inclusive, acrescentando um pouquinho mais, como gorjeta...

— Como lhe falei, corrida sem pendência alguma. Foi um prazer ter lhe conhecido e transportado o senhor e a sua netinha. Vão em paz. Aqui está o meu cartão e o número. Se quiser me dar o prazer de outras viagens, é só mandar um alô.

Desembarcamos. O sujeito foi embora. Minha neta pediu para olhar o cartão de visitas deixado:

— Vô, o cara se chama “Bodi?!”

— Sim, minha linda. Ele é o marido da Cabra.

Sem mais delongas, entramos e rumamos para o check-in.     

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

XXIII Concurso Nacional Poeart de Literatura – 2022 (Prazo: 30 de novembro de 2022)

 

(somente pela INTERNET)

Para a edição do livro Vozes de Aço (XXV Antologia Poética de Diversos Autores)
Homenagem a um renome das letras brasileiras

(PoeArt Editora – DESDE 2006 COM VOCÊ! já com mais de 70 publicações)

A PoeArt Editora de Volta Redonda RJ, institui o livro XXV Antologia Poética de Diversos Autores 2023 (depois das bem sucedidas Antologias Poéticas de Diversos Autores, Vozes de Aço da I a XXIV, depois do sucesso da I a XIII Coletânea Século XXI, do livro Cardápio Poético, 1ª e 2ª edição, I a IX Coletânea Viagem pela Escrita. Dentre os já homenageados por suas contribuições literário-culturais em nossos livros (ou em entrevistas), estão:
Adahir Gonçalves Barbosa, Adriano Espínola, Alan Carlos Rocha, Alexei Bueno, Álvaro Alves de Faria, Antonio Carlos Secchin, Antônio Torres, Astrid Cabral, Antonio Miranda, Anderson Braga Horta, Carolina Ramos, Clevane Pessoa, Denise Emmer, Evandro Sarmento, Flávia Savary, Flora Figueiredo, Geraldo Carneiro, Gilberto Mendonça Teles, João Almino, José Eduardo Degrazia, José Inácio Vieira de Melo, Lourdes Sarmento, Maria Braga Horta (in memoriam), Maria José Bulhões Maldonado, Matilde Diniz Lacerda, Mauro Mota, Menulfo Nery Bezerra, Olga Savary, Oscar Niemeyer, Pedro Albeirice da Rocha, Pedro Lyra, Pedro Viana Filho, Raquel Naveira, Roseana Murray, Reinaldo Valinho Alvarez, Ruy Espinheira Filho, Rubens Jardim, Tanussi Cardoso dentre outros.
 
Premiação
 
Os cinco melhores poemas serão publicados sem qualquer ônus.

Cada um dos cinco autores premiados receberá três exemplares da obra pelos direitos autorais, diploma e a sua foto colorida no livro.

Será cobrada apenas a taxa de envio dos livros pelos Correios.


A partir do sexto trabalho selecionado, os autores serão convidados a participar do livro pelo sistema de cooperativismo, pois serão escolhidos trabalhos de até 50 escritores ou mais, dependendo da qualidade literária.

Sem taxa de inscrição (até três poemas)

Ao efetuar a sua inscrição, o autor estará concordando com as regras do concurso, e, se selecionado, autorizando a publicação dos trabalhos no livro XXV Antologia Poética de Diversos Autores 2023.

Em caso de cópia indevida e demais crimes previstos na Lei do Direito Autoral, será responsabilizado judicialmente.
 
Tema e apresentação
 
O tema é livre.

Cada autor poderá inscrever de um a três poemas (versos livres ou poema com forma fixa), cada um em uma página, inéditos ou não, máximo de até 20 versos cada, fonte Times New Roman, corpo 12 e foto de rosto em jpg – imagem com alta qualidade.

Não é necessário pseudônimo.

Muita atenção na hora de enviar seu texto: já envie revisado para não termos futuros questionamentos. Enviar em doc. anexo contendo os trabalhos e os seguintes dados: nome completo, nº do RG, nome do concurso, títulos dos trabalhos, endereço completo, dados biográficos (no máximo dez linhas) , telefone e e-mail.

As obras que chegarem sem esses dados não serão consideradas inscritas.

Todos os trabalhos enviados (selecionados ou não) serão incinerados, após a divulgação do resultado.
 
Forma de inscrição
 
As obras deverão ser enviadas pela internet para:

poearteditora@gmail.com

Jean Carlos Gomes / organizador e editor / organização e realização: PoeArt Editora de Volta Redonda

telefone e WhatsApp (24) 99979-3205.


Apoiadores: Câmara Municipal de VR, Academias Volta-redondense de Letras e Barramansense de História, Evangélica de Letras do Brasil, Costelas Felinas Livros Artesanais, IEV – Instituto de Estudos Valeparaibanos, Val Lourenço – Cabelo e Corpo, Vitor Contabilidade a imprensa falada e escrita e redes sociais.

Fonte:
Enviado por Jean Carlos Gomes

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 03

 

Cecy Barbosa Campos (A Visita)


Na obscuridade da tarde que caía, o céu ficava mais alto e as pessoas ficavam menores. Aquela casa me oprimia. Suas janelas me contemplavam com olhos vazios e baços, como alguém que não espera mais nada da vida.

As paredes, pele desbotada de ancião, mostravam as marcas do tempo. E eu, ali, imóvel e querendo fugir, com os pés agarrados ao solo e olhar fixo, na angústia sufocante de quem não pode reagir.

Pressentia que algo terrível estava para acontecer. Quando consegui mover-me, uma força misteriosa impeliu-me, não para longe da casa, mas para dentro do jardim, e meus passos me levaram à entrada lateral.

Entrei na casa. Um amplo salão, vestido com tapetes estilo persa e cortinas pesadas, num tom vinho, tornava-se mais escuro do que se poderia esperar naquele horário.

Olhei para o grande relógio que se encontrava de pé num dos cantos da saía e confirmei que ainda não haviam soado as seis badaladas da tarde.

Observei o local atentamente. Havia poeira sobre os móveis e a casa não parecia habitada. Entretanto, a porta não estava trancada, embora, nela houvesse ferrolhos que possibilitavam a segurança necessária para evitar a presença de intrusos.

Tive a sensação de que alguém me esperava e que providenciara para que a minha entrada tivesse sido facilitada. Procurando ser racional, pensei que isto não seria possível, já que nem eu mesma imaginara fazer tal visita.

De repente, notei uma escada ao fundo do salão. De dois lances, a escada levou-me a um pequeno "hall" que se abria para outros aposentos, provavelmente os quartos. Um aroma de rosas perfumava o ambiente, e fui inundada por uma sensação de bem estar que superou a tensão inicial.

Tranquilamente, continuei a minha investigação. Abrindo as portas, encontrei um banheiro, onde verifiquei que sabonetes novos exalavam um cheiro agradável, e me encantei com belas toalhas, que pareciam nunca terem sido usadas.

Duas portas conduziam a quartos decorados com cortinas leves e colchas coloridas, que pareciam destinadas a jovens. Ao abrir a terceira porta, senti uma presença ao meu lado. Não conseguia torcer a maçaneta. Fiquei ansiosa. Haveria alguém segurando a minha mão?

Apesar de uma breve hesitação, novamente fui movida por um estranho impulso que me fazia seguir em frente. Insisti e consegui abrir a porta. Deparei com um quarto de casal onde a cama estava coberta de flores, rosas brancas. Uma suave melodia ecoava em meus ouvidos. Um estranho torpor invadiu o meu ser e, conduzida por um toque invisível, cheguei até à janela aberta, meio escondida pelas cortinas que balançavam levemente.

Ouvi, de forma indistinta, exclamações de transeuntes assustados com aquele corpo caído no jardim. Eu não pude e talvez nem soubesse explicar o que acontecera.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 7


GRILO FOI AGRACIADO,
FOI UM PRESENTE DE DEUS!


Por não ser um devotado,
nem um homem penitente,
pelo Ser Onipotente,
Grilo, foi agraciado.

Foi de fato, diplomado,
através de versos seus,
quem diria, que os ateus,
louvassem, o Ente Divino
e, ainda mais, com que refino,
foi um presente de Deus!

(O Poeta Pedro Grilo (Natal/RN, 1936 – 2022) foi vencedor, num concurso de trovas, alusivas, à Santa Terezinha)
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MORREU O CANCÃO, QUE PENA,
DEIXANDO PENA PARA NÓS


O artista saiu de cena,
no palco, desce a cortina,
na terra, a missão termina,
morreu o Cancão, que pena.


Um novo show ele ordena,
pra bem distante de nós
e, num voo, sutil, veloz,
foi versar em outro evento,
foi trinar, no firmamento,
deixando pena pra nós.

( Ao poeta Cancão, falecido, a minha homenagem)
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João Batista de Siqueira, mais conhecido como Cancão (São José do Egito/PE, 1912 — 1982)
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NA BALANÇA DA VERDADE,
DEUS SABE QUEM PESA MAIS!


Quando, enfim, na eternidade
for chegado o teu juízo,
passarás no paraíso,
na balança da verdade.

Provarás tua humildade,
no convívio dos mortais,
do que tu foste capaz
e o que fizeste, de bem,
e, ao por teus males, também,
Deus sabe quem pesa mais.
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OS MEUS SONHOS DE POETA
JÁ FORAM REALIZADOS


Decidi ser um esteta,
ser a trova o meu fanal,
pois nela eu via afinal,
os meus sonhos de poeta,

E a utopia se completa,
nos versos metrificados,
em seu contexto, rimados,
me mostrando de antemão,
que os frutos da aspiração,
já foram realizados,
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POR QUE FUI FEITO DE BARRO,
EU ME CHAMO ZÉ AREIA!


Em meu nome, eu me amarro,
é bonito, com certeza,
é de argila, é natureza,
por que fui feito de barro.

Pode perecer bizarro,
mas, muito me lisonjeia,
pois, me estima, galhardeia,
sou poeta, simplesmente,
não quero ser, diferente,
eu me chamo Zé Areia!

(Ao estimado e inesquecível Poeta, Zé Areia (1901 – 1972))
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QUEM DERA, EU FOSSE A SAUDADE,
PRA VOCÊ LEMBRAR DE MIM

Para acabar a ansiedade,
os males que ela apresenta,
essa angustia, essa tormenta,
quem dera, eu fosse a saudade.

Certamente, na verdade,
mudaria tudo enfim,
quem sabe, talvez, assim,
nessa instância derradeira,
fosse a única maneira,
pra você lembrar de mim.
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QUEM SE VINGA SEMPRE ESPERA,
COM RANCOR E SANGUE FRIO


Quando a raiva se apodera
da mente sã, de um alguém,
um torpor, o faz refém;
quem se vinga, sempre espera.

Ele nunca se exaspera,
não sabe, que é doentio
que o revide é um desafio,
que lhe torna um anormal,
um verdadeiro animal,
com rancor e sangue frio.
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UMA EXISTÊNCIA DE VIDA
NA ETERNIDADE DO AMOR


Que posso eu dizer, querida!
Nós cumprimos tantos planos,
já são quase cinquenta anos,
uma existência de vida.

Com certeza, bem vivida,
ao seu lado, ao seu calor,
ao seu divino candor,
com sua tênue ternura,
secreta em nossa clausura,
na eternidade do amor.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Sioux: Unktomee e o Alce)


"Conte-nos outra história de Unktmee, vovozinho!", gritaram muitas das crianças assim que ingressaram na tenda do velho contador de histórias naquela décima noite.

"Ah, eu imaginei que me pediriam outra!", observou com satisfação o velhote. "Existem muitas histórias de suas arteirices com o povo animal. Ele adora ficar entre todos até mesmo chega a roubar-lhes a aparência. Com isso pode fazer muitos deles de tolos com facilidade. Isto funciona muito bem por um tempo, mas geralmente não demora muito para ele gritar: "Basta!"

UNKTOMEE E O ALCE

Era o solstício de verão, o povo Alce estava banquenteando-se na encosta da montanha. Pele lisa, gorduchos e bonitos, eles pastavam aqui e ali os brotos suculentos e as gostosas ervas, bebiam no córrego da montanha e deitavam-se para descansar sossegadamente e amenizar o calor do dia à sombra verde das árvores.

Unktomee, que havia viajado desde longe estava faminto e sentia os pés doloridos, olhava para eles com muita inveja.

"Ah!", disse para si mesmo, "esta é a vida que eu quero ter! Certamente, este é o povo mais feliz na face da Terra, eles têm tudo em abundância e são tão velozes que para eles é como se o perigo não existisse!"

Ele escondeu o seu arco e o alforje cheio de flechas no oco de uma árvore juntamente com a roupa e outras armas que trazia para assim parecer despojado e inofensivo diante do tímido povo Alce. E lá foi ele. Viram que estava desarmado e permaneceram tranquilos.

"Chegou Unktomee", sussurraram eles sem muita certeza entre si.

"Ah, irmãos!", apelou ele, "vocês têm o bastante; vivem em paz com as outras tribos; contemplam do alto todo o vale e todos os outros habitantes que vivem embaixo! Ninguém é tão feliz quanto vocês! Será que nâo poderiam me tornar um de vocês?"

"Amigo!", exclamou o líder, "você não sabe o que está pedindo! Para ser exato, agora estamos no solstício do verão, nossas roupas e nossas únicas armas, os chifres, são novos; sim, há comida em abundância e parecemos felizes, porém nossos chifres ainda estão fracos e o Lobo e o Gato Selvagem estão prontos e não temem nos atacar. Nossa única esperança de escapar está em nossa rapidez, pois durante todo o dia somos vigiados pelos olhos cruéis daqueles que vivem de carne, e destes o mais perigoso é o Homem!"

"Sei de tudo isto", replicou Unktomee, "outros talvez possuam armas mais poderosas do que as suas, mas não vejo ninguém com a vossa beleza, vossa dignidade, vossa liberdade e vossa facilidade de viver. Eu imploro que me permitam partilhar de vosso mundo!"

"Se você passar no teste, nós o admitiremos!", disseram-lhe finalmente. "Observe nossos olhos — temos de permanecer sempre vigilantes; nossos ouvidos — eles estão constantemente em guarda! Pode você sentir o cheiro de um inimigo até mesmo na direção contrária ao vento? Pode você detectar o som de seus passos antes que esteja próximo?"

Unktomee passou no teste e foi decididamente admitido na Sociedade dos Alces; na verdade, ele acabou nomeado chefe do grupo, e isso era o que ele tanto queria.

"Agora", eles disseram, "nós o fizemos nosso líder. Portanto, você precisa nos guiar para que estejamos a salvo dos caçadores!"

Orgulhoso de seus longos chifres, que passaram a ser suas imponentes armas, ele os guiou vale abaixo, já correndo de volta para apressar algum que ficara para trás. Quando pararam para descansar, ele deixou-se cair embaixo de uma sombra de carvalho um pouco afastado.

De repente, todos eles começaram a pular e a fugir, assim que Unktomee gritou para eles;

"Fujam! Fujam! Fui golpeado por uma flecha!"

Quando nenhum caçador foi visto, os Alces sentiram-se tão insultados, que resmungaram entre si:

"Unktomee nos enganou! Era apenas um galho que caiu da árvore!"

Então, pela segunda vez, todos resolveram descansar e, pela segunda vez, foram advertidos em vão. Ficaram ainda mais desgostosos e um deles disse:

"Era apenas um fruto do carvalho que caiu sobre ele enquanto dormia!"

Por uma terceira vez, eles descansaram, mas desta vez os Alces fugiram furtivamente e deixaram Unktomee dormindo, pois haviam sentido o cheiro do caçador. Quando o caçador chegou, encontrou apenas o Chefe Alce ainda adormecido. Ele arremessou uma flecha e o feriu gravemente.

Unktomee agora vive em grande pânico e dor e sente-se amargurado e arrependido por ter-se tornado um Alce, pois aprendeu que a vida deles é cheia de ansiedade. Os alces lhe ensinaram que é melhor contentar-se com o que somos, pois não existe nenhuma espécie de vida que está livre da necessidade ou do perigo.

Fonte:
Elaine Goodale Eastman e Charles A. Eastman (tradução: Antonio Dorival). O talismã da boa sorte e outras lendas dos índios Sioux. SP: Landy, 2003.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Benfica


 A origem do nome concedido à freguesia de Benfica é ainda um mistério. Foram avançadas as mais diversas propostas, desde as mais românticas e palacianas até às puramente linguísticas. Uma das teorias defende que se dizia que "bem fica” localizada esta zona. Uma ideia criada pela riqueza agrícola e pela abundância e qualidade das suas águas. Outra, conta que D. João l, ao dar a sua bela Quinta de São Domingos aos padres dominicanos, dissera a D. João das Regras que o acompanhava: “Aqui bem-fica o convento.”

O que se sabe e está registrado, é que no século Xlll já existia a localidade com esse nome. Os habitantes mais antigos, desde o princípio da nacionalidade, foram apelidados de “saloios”, palavra que vem do árabe e designava os mouros “forros” ou livres. Estes muçulmanos tinham decidido acomodar-se a algumas normas dos cristãos e puderam, por isso, continuar nas suas terras. Eram uma gente esperta, trabalhadora, astuta nos negócios, alegre e persistente.

Se, outrora, Benfica esteve fora da área limítrofe de Lisboa, hoje é uma freguesia urbanizada. Benfica de outros tempos é descrita como uma localidade onde as quintas se seguiam umas às outras, a verdadeira horta de Lisboa. Entre as quintas mais famosas encontram-se a de Pedralvas, Tojal, Charquinho e Casquinha.

Os saloios de Benfica deslocavam-se a Lisboa para venderem frutos, legumes e flores. Ao mesmo tempo, coexistia a Benfica dos palácios, quintas grandiosas e casas de campo da aristocracia que fugia da vida da cidade, refugiando-se na então distante província. As festas sempre foram uma constante do bairro.

Bastará lembrar que alguns dos mais famosos retiros de “fora de portas” ficavam nesta zona. Bailes, arraiais, fados e petiscos, eram uma constante na região. As grandes mudanças na fisionomia de Benfica ocorreu já no século XX, quando o ar rural desapareceu e deu lugar a grandes urbanizações. Hoje, é um bairro habitacional dos mais populosos de Lisboa, mas Benfica não perdeu a sua alma.

O Clube Futebol Benfica (CFB) – o popular “Fófó”, fundado em 1933, tem um passado de que se orgulha. Foi várias vezes campeão em diversas modalidades, destacando-se os Campeonatos Nacionais de Hóquei em Patins e Hóquei em Campo. Mas nada de confusões com o outro Benfica, (o Sport Lisboa), conhecido mundialmente, principalmente, no mundo do futebol.

O Clube Futebol Benfica, dedica grande parte das suas energias à causa desportiva, sem descurar a componente cultural que tem como ponto forte a Marcha de Benfica. Assim, mais de mil jovens e adultos da freguesia têm a oportunidade de ocupar os seus tempos livres em modalidades desportivas, como o futebol, voleibol, handebol de sete, basquetebol, “rugby”, atletismo, ginástica, pesca desportiva, natação, tênis de mesa e “caratê”.

 MARCHA DE BENFICA
(1935)

Letra de Norberto de Araújo
Música de Raúl Ferrão


“Eh raparigas
Isto agora é andarmos pra frente
Saltam cantigas aos molhos
Um riso nos olhos
E coração quente.

Cá vai Benfica
E quem fica não vai com certeza
Ser alegre é que é preciso
Pois quem tem o riso
Tem sempre beleza.
(Refrão)

Olha a marcha de Benfica
Qual saloia cantadeira
Que entra na festa contente
Ai, ninguém fica sem cantar
a vida inteira.

A linda marcha da nossa gente.
Haja alegria
Alegria é um bem que se abraça
Um desejo uma quimera
Por isso se espera
A marcha que passa.

Cá vai Benfica
Toda alegre e contente pra dança
Há sempre um sorriso suspenso
Um tesouro imenso
Que nos vem da herança.
 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

domingo, 13 de novembro de 2022

Adega de Versos 94: Jaqueline Machado

 

Sammis Reachers (A rapina bananal)


Uma fruta de apelo universal estava entre as mais cobiçadas pelos pequenos corsários de água doce da Beira Rio: A banana.

A fruta, oriunda do sudeste asiático e que árabes, portugueses e espanhóis ajudaram a espalhar pelo mundo, dava com alguma abundância ao longo das margens do rio, compondo partes da mata ciliar. O problema era que ela crescia nos fundos das casas e barracos que margeavam o Alcântara – ou seja, possuíam “dono”. Dura palavra!

E agora, como roubar uma fruta que era de difícil e o pior, barulhenta colheita? Sim, pois além das pencas estarem situadas a considerável altura, se conseguíssemos cortar todo o cacho – subindo numa árvore paralela à bananeira ou mesmo utilizando uma providencial escada – não tínhamos, crianças que éramos, força nos braços para segurar ou aparar aquela imensidão de bananas. E se cortássemos o cacho, ou mesmo a bananeira inteira, e deixássemos a carga simplesmente desabar no chão, o barulho da queda daqueles reservatórios de potássio
sempre despertava os donos.

Desgraça pouca, reza o clichê, é sempre bobagem. Tínhamos alguns agravantes. A casa cujos fundos eram mais ricos em bananas – um verdadeiro bananal – certa altura foi ocupada por moradores novos, desconhecidos. Um casal sem filhos. O valete, viemos a saber depois, era marinheiro.

A descoberta de que a casa mudara de dono deu-se da maneira mais desagradável possível: Ao lado desta casa, dentre ela e outra, ficava um beco, um beco apartadíssimo, claustrofóbico até, e que só permitia mesmo a passagem de crianças. Aquela era nossa rota usual e mais confortável para acessarmos “a beira do rio” de fato, de onde seguíamos pelos fundos das casas catando ferro velho ou vadiando à esmo.

Acontece que ninguém avisara ao marujo de que aquilo era caminho comunitário. O resultado? Por duas vezes, ao tranquilamente passar por ali, fazendo despreocupado barulho nas muitas folhas caídas do bananal – veja, nem íamos roubar bananas, que demoravam para ficar prontas – fomos recepcionados a tiros, tiros de espingarda de chumbinho. Malditas espingardas, onipresentes nos anos oitenta!

Por sorte nunca fomos atingidos – ou o marujo-milico era ruim de tiro, ou atirava para errar, buscando assustar a molecada.

Aquilo era um agravante. Doravante tínhamos que usar de toda a nossa felinidade, todo o nosso ninjitsu (aprendido nos filmes da franquia American Ninja que lotavam a Seção da Tarde) para passar por ali com o máximo de silêncio possível.

Se passar já era ruim, imagine agora para roubar as bananas! Mas você já ouviu aquele outro clichê ou ditado popular que afirma que “a necessidade faz o sapo pular”? Éramos os piratas titulares daquele rio, não seria um anônimo marujo de água salgada, caído de paraquedas em nossa favelinha, quem iria nos impedir.

Sabe-se lá quem foi o autor da façanha, o portador da chama de tirocínio roubada dos deuses da rapina, mas uma solução foi encontrada.

A ideia primava pela simplicidade, que é sempre a marca, selo das ideias revolucionárias: Munidos de um facão, entrávamos silenciosamente naquele bananal e, sempre à moda dos ninjas ou dos samurais, peritos maiores no manejo da espada, desferíamos um fulminante golpe contra o tronco da bananeira. Aqui estava a sabedoria: O golpe deveria abarcar menos da METADE do tronco, de preferência apenas um terço de sua circunferência.

Desferido o silencioso golpe, o espadachim fugia para outro ponto: em geral do outro lado do rio, de cujas margens, escondidos sob as moitas, aguardávamos os poucos minutos para que a mágica surtisse efeito. E era infalível: dentro de quatro a seis minutos, aquele talho, aquela mágoa no frágil tronco da bananeira comprometia o restante de sua estrutura e, sob o peso do cacho de bananas, a arvorezinha tombava a partir do corte, sempre com grande estrondo.

O estrondo, claro, despertava o marinheiro, aquele colonizador moreno que viera feitoriar nossas terras livres. O bruto abria a janelinha por onde costumava efetuar os disparos, olhava para todo aquele mato compacto e, não vendo ninguém, tomava por certo que alguma bananeira tombara sozinha, o que não era assim muito impossível.

A paciência é uma virtude samurai, uma diretriz mestra dos guerreiros orientais em quem nos inspirávamos. Assim, muitos minutos aguardávamos, antes de atravessar o rio e ir até o nosso cacho. Cortávamos então junto ao talo aquele butim e, segurando um de cada lado daquele pesado botijão de comida, melindrosamente saíamos daquele campo minado.

Já do outro lado do rio, era hora de preparar as coisas para livrarmo-nos de uma outra e tinhosa dificuldade: O Pedágio de Dona Maria.

Enfiávamos aquele imenso cacho inteiro num desses grandes sacos de farinha, de preferência duplo que era para impedir os muitos curiosos – e alcaguetas – do bairro de perceberem o que transportávamos. E, por cima, colocávamos jornais e o principal: Latas, muitas latas. Assim, para todos os efeitos, era ferro-velho o que transportávamos naquele pesado saco. Avançávamos então até a casa de algum dos meliantes, onde enfim dividíamos o fruto da rapina.

Mas, voltando ao pedágio, era o seguinte: Residindo pouco adiante do local do bananal, e bem na rua onde devíamos passar para chegar às nossas casas, morava uma idosa muito pitoresca, daquelas de marcar a história de um lugar, para bem ou para mal. Era dona Maria, afeita ao candomblé, mulher sem papas na língua e com quem, na infância, aprendi a xingar, ao ouvir dia após dia ela esbravejar toneladas de decibéis de impropérios do arco da velha. Éramos vizinhos de fundos e, ainda pequeno, sempre que eu era repreendido pelos palavrões que vomitava como sendo “coisa feia pra um menino dizer”, me defendia: “Dona Maria é velha e xinga, por que eu não posso xingar?”

Além de brava e amedrontadora, dona Maria costumava fiscalizar os moleques transeuntes – ou melhor, fiscalizar as “bagagens”. Assim, se passássemos com alguma bolsa de frutas ou algo que lhe chamasse a atenção, ela se adiantava e, dona daquele trecho, esbravejando com sua rouca voz de trovão ou taquara rachada, tomava posse do pedágio, sempre farto para o lado dela...

Assim, elaboramos a estratégia do saco de latas. E olha que mesmo assim a velha ainda costumava dizer, com aqueles olhos ao mesmo tempo esbugalhados e aquilinos, nos fulminando por sobre o baixo muro de sua casa:

“Estranho isso aí hein... tanto moleque para carregar um saco de lata...”

Saudosa dona Maria, matriarca de uma grande família de outras matriarcas, mulheres guerreiras que criaram seus filhos e filhas praticamente sozinhas. A velha não dava mole pra ninguém!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 15


A existência com leveza,
quando nos faz mais velhinhos,
comparo a uma vela acesa
que vai queimando aos pouquinhos!
= = = = = = = = =

A infância o tempo desfaz!
Mas em meus sorrisos francos,
mantenho o riso da paz,
na paz dos cabelos brancos!
= = = = = = = = =

Antes que o Sol se descubra,
rasgando o seu branco véu...
Deixa a alvorada mais rubra
e o rubro do amor no céu!
= = = = = = = = =

Ecos, sussurros, gemidos,
mãos estendidas, sem nome...
São sinais dos excluídos
mastigando o pão da fome!
= = = = = = = = =

É Deus que, quando entardece,
em silêncio e sem alarde,
põe reticências na prece
das vozes do fim da tarde!
= = = = = = = = =

Enquanto o fogo, na dança,
mata da planta as raízes,
a gente planta esperança
nas cinzas das cicatrizes!
= = = = = = = = =

Entre o poeta e os passarinhos,
há semelhanças demais...
Quanto mais longe dos ninhos
mais tristes cantam seus ais!
= = = = = = = = =

Eu só conquistei na vida,
em meio a tanto cansaço,
essa fronte embranquecida
por tudo, que fiz e faço!
= = = = = = = = =

Famintas e de almas nuas,
na mendicância e sem teto,
de crianças, enchem-se as ruas
entre os monstros de concreto!
= = = = = = = = =

Mãos trêmulas, passo incerto,
que exemplo, o do bom velhinho;
e há gente com o passo certo
que nunca acerta o caminho!
= = = = = = = = =

Meu destino é feito um rio,
que entre escarpas e rochedos,
revela seu desafio
mas não conta os seus segredos!
= = = = = = = = =

Na estação de trem antiga,
há o fantasma de um vagão
que à noite, assusta e castiga
quem volta à velha estação!
= = = = = = = = =

Na igrejinha abandonada,
toda tarde um velho sino
tange em cada badalada
o planger do seu destino!
= = = = = = = = =

Não me esqueço!... E, ao descrevê-la,
praça de minha ilusão!...
Seu chão forrado de estrela
era a esteira do meu chão!
= = = = = = = = =

Na vida, tudo se alcança.
Se é verdade ou se é mentira...
Quanto mais a idade avança,
mais o poeta se inspira!
= = = = = = = = =

No meu baú de lembranças,
revendo antigos folguedos,
encontrei muitas crianças
em meio aos velhos brinquedos!!!
= = = = = = = = =

Numa luta merencória
entre um crente e um incréu...
Um leva o troféu da glória
e o outro, a cruz por troféu!
= = = = = = = = =

O amor, é qual detetive
que, quando a intriga descobre,
troca o castelo onde vive
pelo barraco mais pobre!
= = = = = = = = =

O mar, ao romper da aurora,
aos meus olhos, se assemelha,
a um mar que em silêncio chora
lágrimas de cor vermelha!
= = = = = = = = =

O olhar mais triste e profundo,
vi no olhar de uma criança;
nossa esperança do mundo,
num mundo sem esperança!
= = = = = = = = =

O poeta em seu caminhar,
é qual profeta andarilho,
que vê nos passos, no andar,
os passos do andar do filho!
= = = = = = = = =

Peço que guardem meus versos
longe da traça e cupim,
que há muitos sonhos imersos
nesses pedaços de mim!
= = = = = = = = =

Se acaso, o mar, ante a bruma,
perde a ternura ao se expor...
Sacode a saia de espuma
vestindo a praia de amor!
= = = = = = = = =

Quando a noite de alma nua,
desperta e põe-se a vogar...
No mar, navega uma lua,
no céu, há outra a vagar!
= = = = = = = = =

Se alguém, na aridez do amor,
fizer o bem que é preciso,
vai sim, brotar uma flor,
na fonte seca do riso!
= = = = = = = = =

Se a mágoa te embaça a vista,
ante alguém que te magoa,
não há mágoa que resista
na vida de quem perdoa!
= = = = = = = = =

Se a ti, meu pai, me assemelho,
eis o meu maior desgosto:
Não sentir mais teu conselho
nem o suor do teu rosto!
= = = = = = = = =

Tapera!... Por teus lamentos,
teu pranto!... E, neste abandono...
Até no sopro dos ventos,
ouve-se a voz do teu dono!
= = = = = = = = =

Tempo ingrato, ó quem me dera
tornar mais lentos teus passos,
deixando que a primavera
fique mais tempo em meus braços!
= = = = = = = = =

Três letras, palavra breve,
no mundo de qualquer um;
sem as três, ninguém escreve
mãe - de outro jeito nenhum!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

sábado, 12 de novembro de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 6

 

Raymundo de Salles Brasil (Não é para sentir saudade?)


Acordei hoje, eram 5 horas da manhã, mas ainda embalado por um desses sonhos gostosos, tão gostosos que a gente nem abre os olhos, pedindo para não acordar e, quem sabe, continuar sonhando. Mas aí não tem mais jeito, o sonho já foi embora (que pena!) e a gente se levanta para a realidade, às vezes dura, do agora, do presente, do cotidiano.

Eu era entre adolescente e jovem e morava na casa número 14 da Praça da Purificação, em Santo Amaro, onde passei parte da minha adolescência e toda minha mocidade, enquanto solteiro. Morava com meu pai e minha madrasta, D. Dete, ambos de saudosa memória. Aquele lugar foi o cenário do meu sonho neste finzinho de madrugada.

O passeio lá de nossa casa era a sala de estar, onde se reuniam os amigos e os irmãos de meu pai, para maravilhosos bate-papos, mormente nas épocas de festa quando estavam presentes alguns que moravam em Salvador e religiosamente visitavam Santo Amaro nessas épocas.

Para mim aquelas reuniões eram o melhor da festa. Meu pai era um homem inteligente, bem informado, um excelente epigramista, amante da palavra escrita e falada, atraía para sua porta a nossa elite intelectual. Para mim verdadeiros monstros sagrados.

Se eu, que até hoje sou mais de ouvir do que de falar, frequentador assíduo daquelas reuniões, eu era somente ouvidos, mas encantados. Eu era um componente da plateia e eles os meus atores prediletos:

Juca Salles, (José Gabriel de Salles Brasil) um ator genial, fazia rir e chorar, ora representando as suas personagens cômicas, ora contando os episódios dramáticos de São Bento do Inhatá, e da Vila de São Francisco, todos criados ou recriados por ele. Com seu jeitão descuidado de ser, cabelos por cortar, barba por fazer, e aquele corpo franzino, andando como quem pisa em ovos em virtude dos muitos calos que tinha nos pés, ele usava a sua voz de baixo profundo, os seus gestos, e as suas mãos esguias para nos fazer chorar de rir;

Professor Raimundo Salles, (Raimundo Nonato de Salles Brasil) o lirismo à flor da pele, sua poesia era de rara beleza, estava sempre a nos encantar com os seus versos, as suas trovas, os seus repentes, era um poeta de alma pura.

João Moniz Barreto de Aragão, outro grande poeta, (Santo Amaro é incrível!) o orador, mas, sobretudo o poeta, o declamador. Ainda o recordo e me deleito, ouvindo-o recitar Arthur de Salles em Subumbra, Praia em Festa, Ocaso no mar, amaciando a sua voz e dando mais colorido aos versos, como se, possível fosse, dar mais colorido aos versos do velho Arthur.

Souza Castro, (Antônio Benedito de Souza Castro) comedido, falava baixinho, mas todos nós tínhamos ouvidos atentos porque não queríamos perder uma só palavra do que ele dizia. Brilhante, o velho Souza Castro, o talento dele não se media pelos discursos, mas por uma palavra, um dito, uma frase. Um grande amigo, eu o amava como se fora meu tio.

Nestor e Aloísio Oliveira, dois irmãos de talento fulgurante, dois poetas, se o primeiro brilhava com a palavra escrita, o outro era formidável no discurso improvisado, palavra fácil, fluente e bela.

Participavam daquelas tertúlias, uns, de forma mais assídua, outros esporadicamente, meu tio Adaucto, quando de férias, trazendo o seu entusiasmo, a sua maneira inteligente e simpática de ser e de dizer as coisas; o Pe.Salles Brasil, esquecia um pouco o papa e, espirituoso que era, deixava escapar a sua verve, o seu talento, a sua cultura, enriquecendo os nossos informais bate-papos; Adroaldo Ribeiro Costa, um artista, usava como poucos a palavra, a voz e as mãos. Passaram por aquela assembleia, Eliezer e Heráclio Salles, o Maestro Gomes e tantos e tantos outros dessa mesma estirpe. Até o poeta Eurícledes Formiga, a quinta memória do mundo, e repentista fantástico, que passou por aqui esbanjando talento, participou das nossas reuniões na porta da casa de meu pai.

O Professor Édio Souza, ainda bem jovem, frequentava com assiduidade os nossos saraus e já deixava brilhar o seu talento. Ele não me deixa mentir.

Quando eu acordei hoje às 5 da manhã eu estava sonhando, exatamente, com uma dessas reuniões.

Não é para sentir saudade?

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/265150

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 9 =

CANTIGA


Ai! A manhã primorosa
do pensamento...
Minha vida é uma pobre rosa
ao vento.

Passam arroios de cores
sobre a paisagem.
Mas tu eras a flor das flores,
Imagem!

Vinde ver asas e ramos,
na luz sonora!
Ninguém sabe para onde vamos
agora.

Os jardins têm vida e morte,
noite e dia...
Quem conhecesse a sua sorte,
morria.

E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!
= = = = = = = = = = = = =

HORÓSCOPO

Deviam ser Vênus
e Júpiter, sim,
que ao menos, ao menos,
olhassem por mim,
gerando caminhos
claros e serenos
por onde passar
quem vinha nutrida
de secretos vinhos,
perdida, perdida,
de amor e pensar.

Saturno, porém,
Saturno, o sombrio,
se precipitou.
Não sabe ninguém
que rio, que rio
de luto circunda
a terra profunda
que piso e que sou;

que noite reveste
o mundo em que passo
e os mundos que penso...
Que longo, alto, imenso,
calado cipreste
sobe, ramo a ramo,
entre o meu abraço
e o abraço que amo!
= = = = = = = = = = = = =

PRAIA

Nuvem, caravela branca
no ar azul do meio dia:
— quem te viu como eu te via?

Rolaram trovões escuros
pela vertente dos montes.
Tremeram súbitas fontes.

Depois, ficou tudo triste
como o nome dos defuntos:
mar e céu morreram juntos.

Vinha o vento do mar alto
e levantava as areias,
sem ver como estavam cheias

de tanta coisa esquecida,
pisada por tantos passos,
quebrada em tantos pedaços!

Por onde ficou teu corpo,
— ilusão de claridade —
quando se fez tempestade?

Nuvem, caravela branca,
nunca mais há meio dia?
(Já nem sei como te via!)
= = = = = = = = = = = = =

REALEJO

Minha vida bela,
Minha vida bela,
nada mais adianta
se não há janela
para a voz que canta...

Preparei um verso
com a melhor medida:
rosto do universo,
boca da minha vida.

Ah! mas nada adianta,
olhos de luar,
quando se planta
hera no mar,

nem quando se inventa
um colar sem fio,
ou se experimenta
abraçar um rio...

Alucinação
da cabeça tonta!

Tudo se desmonta
em cores e vento
e velocidade.
Tudo: coração,
olhos de luar,
noites de saudade.

Aprendi comigo.
Por isso, te digo,
minha vida bela,
nada mais adianta,
se não há janela
para a voz que canta...
= = = = = = = = = = = = =

SEREIA

Linda é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
— quem os pode enxugar
devagarinho com a boca,
ai!
com a boca, devagarinho...

Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
passuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios...

Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...

Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.
= = = = = = = = = = = = =

SERENATA

Permite que feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio
e a dor é de origem divina.

Permite que volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Whalmir Anna von Koenig (Menina no parque)


Domingo, não um daqueles ensolarados, mas um em que o frio o tornava cinzento. A Redenção aos poucos ia sendo preenchida por quem ainda confiava que a previsão do tempo estivesse, pelo menos, meio equivocada. Havia esperança de que uns raios de sol ultrapassassem as nuvens. Espalhados pelo canteiro central da José Bonifácio, entre a Oswaldo Aranha e a João Pessoa, os expositores tentavam vender seus produtos no Mercado das Pulgas, o inspirado e similar ao de Buenos Aires. As mercadorias, antigas ou nem tanto, custavam a sair, eles reclamavam, mesmo assim insistiam e seguiam em lenta espera.

Em frente ao Monumento do Expedicionário, do outro lado da calçada, aos poucos os caminhos de areia iam sendo preenchidos. O tempo passava e eu sentei em um dos bancos, explorava o movimento. Era um domingo especial. Comecei a contar as pessoas 1, 2, 3, 4, 5 e parei, eram várias e todas vinham acompanhadas. Uns empurravam bicicletas tentando manter seus pequenos ocupantes equilibrados. Outros compravam balões que acabavam subindo e subindo em direção ao céu pela inabilidade de quem os segurava. Alguns jogavam bola, dividiam e faziam piruetas com bolas de futebol estilizadas, compravam algodão doce, tentavam pular corda, carregavam bonecas sem muita intimidade, empurravam carrinhos de bebe. No ar sorrisos e choros.

Ontem, dia 12, foi o Dia das Crianças. Pais e mães, orgulhosos, comemoravam com seus descendentes na certeza que são imortais. Seus filhos garantiram a sequência dos seus genes, terão continuidade. Enquanto eles desfrutavam a companhia uns dos outros, de longe, aquela menina observava. Imaginei que teria uns dez anos, no máximo. Mal vestida e suja. Descabelada. Só. Uma das tantas crianças abandonadas, sem futuro, sem perspectiva. Eu vigiava e não me contive a uma proximidade. Com um pacote de pipoca nas mãos a seduzi para uma conversa que, na verdade, eram interrogações que eu queria ver respondidas. Me lançou um olhar desacreditado. Depois, se entregou a esses minutos de atenção. Pouco sorria. Agarrou com força e cobiça a embalagem oferecida.

Imersa em sua timidez, contemplava e parecia que nenhum sentimento a emocionava. Apenas olhava o que desconhecia, o que nunca teve no passado, nem no presente e nem terá no futuro. Sequer entende o significado de saudade. Me disse não saber o que é ter um pai, pois nunca teve um, nem conhece bem o significado dessa palavra. Às vezes alguns homens apareciam pelo barraco dividido com sua mãe e vários irmãos, mas eles meramente passavam. Nunca recebeu um afago ou palavra de carinho. Lembra tão somente de momentos tristes e demasiada violência. Entende o sofrimento. Irmãos? Cinco mas desconhece a idade, como não sabe a dela.

A menina olhava interrogativa inundada pelo que desconhecia. Quem sabe aquele seria seu dia de felicidade? Experimentar ser feliz. Afinal ser criança é acreditar que tudo é possível. Talvez alguém segurasse sua mão e a levasse até o parquinho, uma volta no carrossel ou no carrinho de choque. Nunca ganhou um presente sequer simples muito menos bem bonito, bem embalado em folhas coloridas, arrematado com um grande laço de fita. Dia da criança? O que é isso, tia? Ela estava ali, quase morava naquele local onde tentava a compaixão dos passantes para ter algo que comer. Gestos ansiosos.

Falava pouco e mal, as palavras saíam erradamente soletradas. Não conhece bem o linguajar. Em tempo algum frequentou escola. Seu olhar meigo, apesar da vivência, é triste e longo, perdido na imagem de um extenso abraço que um pai dava no seu filho retribuído com um beijo estalado. Desses que só as crianças sabem dar. Ela viveu mais um dia, simplesmente, como tantos outros, apenas passando. Permaneceu em seu interior o silêncio de todos os seus segredos. Os que não compartilha. Talvez o sigilo do que nunca começou, da tristeza por nunca ter vivido.