domingo, 20 de julho de 2008

Folclore Indigena (Anhangá, a Mâe do Mato)

Do tupi-guarani, "anhang", significando: ang - ALMA nhã - CORRER; ou seja, "uma alma que corre".

O Anhangá é, portanto, um espírito, e como tal, "invisível" que vive e corre nas matas, protegendo os animais e seus filhotes.

O Padre Tastevin não discrepa da opinião clássica quanto à etimologia do vocábulo:

- Anhangá - etim. - Anhu, só alma; espírito maligno. Designava também as almas dos finados como consta da expressão - Anhangá y yora, viúva. i.e. o marido dela é Anhangá.

O Anhangá pode apresentar-se sob a forma de um pássaro (galinha do mato), rato (soiá), morcego, macaco (jurupá). É também identificado como um veado branco com olhos de fogo com uma cruz no meio da testa, dotado de espírito andarilho, com a missão de proteger os animaizinhos nos prados, mas principalmente as fêmeas prenhas. Se bem que seja essa sua aparição mais comum, encontram-se no fabulário da região norte diferentes formas de sua presença: Mira-anhangá, Tatu-anhangá, Suasu-anhangá, Tapiira-anhangá, ou seja, visagem de gente, de tatu, de veado e de boi.

Em qualquer caso e qualquer que seja visto, ouvido ou pressentido, o Anhangá traz para aquele que o vê, ouve ou pressente certo prenúncio de desgraça, e os lugares que se conhecem como freqüentados por ele são mal-assombrados.

Nas cartas dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernão Cardim fala-se de Anhanga como de um espírito malfazejo, temido pelos indígenas. O alemão Hans Staden chamou-o Ingange. O franciscano André Thevet registrou-o também. São todos do século XVI. Thevet (1558) notou que o Anhangá não tinha forma positiva. O certo era atormentar os viventes. Jean de Léry, o huguenote macio e doce, anotou o seu complicado Aygnhan, irmão de Agnan de Thevet, atormentador das gentes tupinambás. Até a lembrança do Aygnhan os fazia sofrer.

Onde a mesma assobia, a caça desaparece como por encanto.

Existem caçadores espertos que com ela estabelecem um trato, tão logo reconhecem seu assobio:

-"Minha comadre, me dê uma boa caça, que eu lhe dou como presente um pouco de tabaco." Se a pessoa é atendida, deve cortar uma vara, rachar a ponta da mesma, nela introduzir o tabaco, folhas de abade e fósforo. Espetar então a vara nas proximidades em que a caça foi abatida, dizendo:
-"Comadre, aí está o tabaco prometido".

Todos dizem que quando alguém se dispõe a procurar o ofertório, não o encontra mais. Age por intermédio de "tratos", sendo um para cada pedido. Seu assobio se assemelha a de uma anta e o "remorso" somente se apresenta com esse assobio. Se alguém fizer pouco caso da Anhangá, apanha na hora, sem saber de quem, como se fosse atacado por alguma pessoa armada de um pedaço de pau.

Para evitá-la, deve-se acender foguetes com duas ou três cargas, antes de entrar na mata. Outra maneira é a defumação com a castanha de cajú ou ainda, a maneira mais fácil, é fazer uma cruz de madeira encontrada na própria mata.

O caçador desprevenido que aproximar-se do anhangá achando que é um veado e tentar abatê-lo, terá uma desagradável surpresa, pois expelindo fogo pelos olhos, o atacará com incontrolável fúria, despertando um pavor de morte.

A LENDA (colhida por Antônio Brandão de Amorim)

Antigamente, contam aqui mesmo, o veado começou comendo a roça de toda a gente.

Ninguém via nada no caminho, só havia maniva quedrada.

Aqui, ali, além, era assim mesmo, ninguém sabia o que estragava as roças.

A roça já queria acabar, contam, quando um homem foi espiar a roça dele: levou zarabatana para flechar com ela.

Ele, contam, trepou em cima, já de tarde, quando o sol sumiu, viu aparecer um veado na beira da roça.

Mesmo diante de seus olhos, viu esse veado virar numa velha, pegar imediatamente num uaturá, começar a tirar a folha de maniva!

O homem estava quieto, não fez mais do que ouvir essa velha dizer:
-Enredo é mesmo feio, contra mim. Todos me querem matar, por causa da minha maniva. Eu os deixei bolir comigo, então esconderei no mesmo instante minha planta para eles não comerem mais sua raiz.

O homem, ouviu bem o que esse veado disse e, no mesmo instante, desapareceu pelo meio do mato.

O homem desceu logo, foi para casa. Ele não disse nada a ninguém.

Outros donos da roça espiaram também; e eles contam também que depois virou num velho, um veado. Todos os que viram o veado virar gente, não contaram em casa.

Assim, a roça deles foi acabando.

Um dia chegaram debaixo dois moços, a eles contaram logo a respeito das roças.

Os moços disseram:
- Amanhã havemos de ir espiar as roças.
- Eu ficarei aqui, esse meu companheiro irá para acolá.

Assim eles fizeram. Quando já de tarde, cada um deles foi para as roças. Só já de noite, contam, apareceu a veada, o moço a flechou logo de curabi, matou-a imediatamente.

A esse outro moço também apareceu aquele veado, ele a matou imediatamente.

Nessa noite, eles espiaram ainda para ver se havia outra coisa que comesse a roça.

Amanheceu e nada apareceu; eles levaram logo sua embira para casa, quando ali chegaram disseram:

-Aqui está quem estragava a roça de vocês.
- Agora é bom vocês comerem com maniçoba.

Assim mesmo o outro moço disse ao outro dono da roça.

Como a carne fresca é sem gosto, os donos das roças moquearam os veados para comer com maniçoba.

Mesmo dentro de casa eles moquearam.

Quando já de manhã foram biscar do moquém para por com maniçoba, os quartos já estavam todos de gente sobre o moquém! Cabeça de gente sobre eles estava, mostrava todos os dentes como quem se ri! Na outra casa aconteceu o mesmo.

Num instante eles jogaram no rio toda a moqueada. Queriam esquecer-se desse agouro; não podiam fazê-lo, porque cheiravam em casa pixé de carne de gente.

Já então eles fizeram outra casa para se mudar. Então já não cheiravam pixé de gente.

Duas luas depois, contam, apareceram do Papuri pessoas que procuravam seu avô e a mulher dele que tinham dali sumido. Então essa gente soube que aqueles dois veados foram quem estragaram a roça deles.

Assim lhes sucedeu, por isso hoje em dia a gente não moqueia mais veado dentro de casa.

O Padre Tastevin recolheu uma outra lenda, mais ou menos semelhante. Os negros Ba Kamba contam que um caçador encontrou dois antílopes que estragavam sua roça, e matou a fêmea e levou-a para a aldeia.

Apesar de morta, esfolada, preparada, levada para o fogo, a antílope conservava a voz humana e perguntou para onde a levam. Assando, ainda fala. Quem comeu da antílope morreu. Sacudiram o resto no mato. Imediatamente o corpo se recompôs e a antílope, sã e completa, reganhou, numa carreira veloz, a floresta.

Karl Von del Stein lembra que os Bororos não matavam nem comiam o veado-campeiro, o Suçuapara (Cervus campestris). A crença geral é que um veado, saindo do mato, anuncia um acontecimento grave...se não for abatido com um tiro certeiro.

Hans Staden, por sua vez, também descreve o mesmo tipo de fenômeno: "(...) Dormem em redes penduradas, a que dão o nome de ini (...) Durante a noite, uma fogueira permanece acesa ao lado da rede. E, mesmo para fazer suas necessidades, os selvagens não gostam de sair das cabanas sem levar uma tocha, tamanho o medo que sentem do demônio chamado por eles de Anhangá, que acreditam ver com freqüência. (...)"

Já André Thevet, conta: "(...) estes pobres americanos deparam muitas vezes com um determinado espírito que ora assume uma forma, ora outra. Chama-se Anhã (nota: no original Agnan). Este demônio persegue-os frequentemente, de dia e de noite, atormentando não só as almas, mas também - e especialmente - os corpos. Anhã castiga e machuca excessivamente os índios, fazendo com que por vezes se posa ouvi-los gritando medonhamente e suplicando a algum cristão que porventura se encontre por perto: "Não estás vendo que Anhã me bate? Defende-me, se quer que te sirva e corte muitas árvores para ti" (isto porque algumas vezes trabalhavam para nós, cortando pau-brasil, pelo que lhes damos alguma ninharia). Por esta razão, temem sair de suas ocas à noite, a não ser que levem consigo uma tocha, pois acham que o fogo é um soberano remédio e defesa segura contra tal inimigo. "

SIMBOLISMO

Muitos animais foram associados à Cristo, já outros ao Demônio e aos seus sectários. Anhangá, adquiriu uma conotação diabólica, em virtude do diabo muitas vezes tomar forma de animal, segundo alguns demonólogos. A imaginação popular se encarregou te tecer lendas a respeito do assunto. Mas, na verdade, Anhangá é um espírito do "bem", que tenta proteger a floresta e os animais do predador "homem".

A caça para o homem, possui dois simbolismos. De um lado, a morte do animal, o que representa a destruição da ignorância, das tendências nefastas; do outro, a procura da caça, o que significa e procura espiritual. A caça é legítima, uma vez que produz refeições comunitárias, mas também desperta o sentido selvagem no homem.

Nos animais projetamos todos os nossos ódios, nossos desejos, nossas paixões, nossos amores e nossos temores.

Para evoluir, o ser humano deve exercer sobre si mesmo uma caçada ritual, na qual é, a um só tempo, a caça e o caçador. O anhangá, portanto, propicia a todo caçador que não seguir as regras da natureza, a tornar-se a caça.

Com certeza temos muito que aprender com os animais.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Folclore Indigena (Agaíba)

Filha de Sarapó, a velha rendeira, com o semi-deus Guajupiá, Agaiba era também sobrinha da grande feiticeira Taguaiba, irmã de Acatú, o belo deus. Ainda era, neta da divina Jururá-Açu, deusa que juntamente com as sacras Parajás, comanda as chuvas e o orvalho.

Um dia, estava Agaiba junto da bela praia de Timbáu. Segundo uma lenda, nesta praia vivia o famoso guerreiro Canindo da tribo dos Cariris. Colhia a virgem as belas itãs bivalves que o lendário rio Guajú, atira naquela linda praia, pelos direcionados Polo, deus das ventanias, das rajadas e dos ventos brandos e tempestuosos.

Neste momento, Xandoré, o demônio do mal e do ódio, sussurrou nos ouvidos da doce guerreira que, tendo ela, toda sua procedência divina, poderia perfeitamente chegar ao sacro Ibiapaba, bastava-lhe que reunisse na montanha Cuité, todos os bravos guerreiros de todas as tribos e lá então construíssem uma alta torre. Então imediatamente, mandou convidar através de emissários especiais, todas as nações deste do extremo norte do litoral brasileiro, até as barras do lendário Chuí, localizado do extremos sul.

Responderam ao seu chamado, famosos guerreiros, lindas e valentes guerreiras, poderosos pajés e muitos morubixabas destemidos. Na famosa Cairú, junto as terras das verdes jutas, Agaiba os recebeu com festas, que duraram três dias e Três noites com o acompanhamento de suaves músicas, danças e cânticos sagrados. Depois de tanto festejo, Agaiba conduziu a todos para a montanha do Cuité, onde dá início a sua soberba obra de engenharia, que se constituiria em uma torre de pedras, barro, troncos do férreo ubiratã, para poderem assim, alcançar os céus de Tupã. Porém, o sacro deus e Senhor dos Deuses, ficou muito aborrecido com semelhante audçia e descendo do divino Ibiapaba em companhia de Caramurú, deus dos raios, destruiu totalmente a construção dos mortais, matou com uma labareda divina, a soberba Agaiba e confundiu a língua dos guerreiros, de tal modo, que ninguém mais se entendia. Assim, se espalharam os guerreiros por toda a terra, dando origem as várias nações de língua travada.

Então, de um só tronco, nasceram os dois maiores grupos de guerreiros, os Tupis e os Guaranis, além de outros grupos menores que foram os Tapuias, os Caraibas e outros. E assim, Tupã castigou o orgulho dos mortais e o nome Agaiba, ficou sendo o sinônimo de maldade por muitos e muitos anos, entre as tribos e entre guerreiros e guerreiras.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Folclore Indigena (A Filha da Chuva)

O indígena vive em paz e integrado com a Natureza (hoje já não são todos que dispõe deste privilégio!). Acreditam também que todas as plantas possuem alma e são símbolos da vida humana. Isso se explica, pelo seu modo de observação do universo, acentuadamente antropomorfo. Há inclusive tendências totêmicas, no sentido de existência de parentesco com determinadas plantas.

A Natureza para o índio, não é passiva, objetiva, neutra e muda, mas é um ente integrante de sua sociedade. Observem que a categoria que comanda as relações entre o homem e a Natureza é, para a modernidade ocidental, a da produção concebida como ato de subordinação da matéria ao desígnio humano.

Já para as sociedades indígenas da Amazônia, a categoria paradigmática deste contexto é a da reciprocidade, a da comunicação simbólica entre sujeitos que se interconstituem pelo mesmo ato de troca. Estes povos, portanto, vivem sob o signo de uma troca de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do Cosmo e não de uma produção de bens sociais a partir de uma matéria informe.

É importante entendermos esta concepção indígena, para podermos desvendar seus mitos e compreendermos a dimensão do que lhe é sagrado, bem diversa dos povos civilizados em que o sagrado se apartou da universalidade da Natureza.

Ilustrando o que lhes digo:

Na fase final da festa Bemb (Caiapós), em marcha triunfal, os homens arrastam uma enorme árvore pela aldeia e erguem-na no meio de uma grande praça redonda. Os índios chamam tal árvore de “wari”.

Indagados pelo sentido de tal cerimonial, um deles respondeu:

-“Aquilo que para vocês significa bandeira, para nós Caiapós, é a árvore, wari”.

Mas vamos então a nossa lenda:

Nos tempos muito antigos, um grupo de índios Caiapós estava em uma jornada pelas matas e campos.. Os jovens corriam na frente, para encontrar o caminho.

Um desses jovens afastou-se de seus companheiros para fazer uma pequena necessidade. Encontrou então uma moça, sentada na raiz de uma imensa árvore. Era a filha da chuva, Nyobog-ti, ou seja, “a grande luz”.

O índio apressou-se em voltar para seus irmãos e chamou-os para mostrar-lhes o seu achado. Eles haviam trazido uma grande cabaça e dentro dela colocaram a moça. Em seguida, fecharam-na cuidadosamente e amarraram a tampa com cordas de algodão. Foi deste modo, que conseguiram transportar a filha da chuva sem que alguém percebesse.

Ao chegarem em casa, os irmãos esconderam a cabaça, pois nem à mãe queriam dizer que haviam encontrado a moça.

Passaram-se muitas luas sem que a mãe desconfiasse de coisa alguma. Mas certo dia, os jovens saíram para caçar e a senhora ficou sozinha em casa. Foi aí então, que ela descobriu a grande cabaça debaixo do teto da choça, coberta com folhas de palmeiras.

Cheia de curiosidade, a mãe dos jovens índios, desatou as cordas e levantou a tampa. Qual não foi a sua surpresa quando, no interior da cabaça, viu a moça.

-“Levanta-te”, falou a senhora, “de modo que eu possa vê-la melhor”.
-“Não quero”, respondeu a filha da chuva, “tenho vergonha”.
-“Mas vergonha de que?” indaga a mãe.
-“Por nada”, replicou a moça.
-“Gostaria tanto de te ver!”, insistiu a senhora.
-“Não quero, não quero que me olhes” retrucou a filha da chuva.

Daí a mãe enfiou a mão na cabaça, pegou a moça pelo braço e puxou-a para fora.

-“Venha, não tenhas medo”, falou “pois vou cortar teu cabelo e pintar-se, para ficares bonita”.

A filha da chuva sentou na beirada do jirau e a mulher começou a cortar o seu cabelo, raspando-o das entradas até a risca. Em seguida pintou-a: primeiro com a cor de urucu, aplicando-lhe uma faixa larga de vermelho, bem vivo, atrás do rosto e em volta dos olhos. Também pintou de vermelho o corpo, os braços e as pernas. Com traços finos fez um motivo artístico, usando a cor preta, brilhante, do jenipapo. Pintou a moça do mesmo modo que as mulheres Caiapós se pintam até hoje.

Tão logo acabou o trabalho, seu marido voltou para casa e ao ver a moça sentada na beirada do jirau, perguntou:

-“Mulher, por que libertaste a filha da chuva?”
-“Ora, eu queria vê-la, mas ela estava do jeito que caiu do céu, nada bonita, por isso, raspei seu cabelo e pintei-a. Agora ele ficou bonita, igual a qualquer uma de nossas moças. Agora ela é nossa parente e ninguém pode bater nela ou mal”, respondeu a esposa.

E a filha da chuva ficou com eles por muitas e muitas luas, viveu na aldeia com as outras moças Caiapós. Mais tarde casou-se com um indígena e teve filhos.

Aconteceu, então, que, por bastante tempo, os homens não tiveram sorte nas caçadas e as mulheres encontraram poucos frutos silvestres. Nypbog-ti, seu marido e filhos, começaram a passar fome. Aí, a filha da chuva falou ao esposo:

-“Lá em cima, no Céu, onde estão meu pai e minhas irmãs, há muitas coisas gostosas. Lá crescem batata-doce, mandioca, macaxeira. Nas florestas há muita caça e também muitas tartarugas terrestres. Aliás, para comer, há de tudo que se possa imaginar”.
-“Então vá lá buscar algumas dessas coisas gostosas para termos o que comer”, propôs o marido.

No dia seguinte, bem cedo, ele partiu com Nyobog-ti. Deixaram a aldeia e foram para os campos. Lá, o marido, de braço forte, dobrou uma palmeira buriti, para que sua mulher sentasse na ponta da árvore. Aí, então, o índio soltou a palmeira, que voltou à sua posição normal com tanta velocidade e força que a mulher foi atirada ao ar. E a filha da chuva voou alto e sempre mais alto, até o Céu.

O marido foi deitar-se à sombra de uma palmeira para espera-la. Assim ficou até o meio-dia, quando o sol estava em posição vertical no Céu.

Daí, um pouco triste, falou para si mesmo:

-“Minha mulher me abandonou”. Quando estava se levantando para ir embora, ouviu atrás de si, uma voz:
-“Aqui estou de volta!”

O indígena olhou para trás e viu Nyobog-ti. Muito feliz, exclamou:

-“Olhe, aqui está minha bem-amada mulher, de volta! E quanta coisa trouxe: batata-doce, macaxeira, bolo de mandioca e banana.

No entanto, a mulher falou:

“Lá no Céu, de onde eu venho, onde moram meu pai, minha mãe e minhas irmãs, há mandioca e ainda muitas outras coisas boas para comer. Espere um pouco, eles virão nos visitar e trazer dessas coisas”.

Logo apareceram seu pai, a chuva, chamado Bebgorórotí, sua mãe e suas irmãs. Trazendo, como prometido, muitas coisas gostosas do Céu.

Bebgorórotí, dirigiu-se ao índio advertindo-o:

-“Jamais deve bater em minha filha. Agora vou voltar para o Céu. De lá sempre vejo minha filha e protejo-a”

A filha da chuva e seu esposo voltaram juntos dos campos para casa. Levaram para a aldeia dos Caiapós batata-doce, macaxeira, banana, bola de mandioca e ainda muitas outras coisas.

Fonte:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/

Constance Mozart (Missa Fúnebre)

— Com licença, mas esse caso eu preciso contar...
— Pois não?
— Sabe como é, né? Fila de banco é fogo. Minha língua arde. Preciso falar alguma coisa.
— Entendo, entendo.
— Obrigado. A vida é estranha, o senhor deve saber como é, certo? É esquisito. Numa hora estamos aqui, na fila de um banco, esperando o pagamento, no outro, estamos dentro de um caixão, sendo pranteados. Olhe como é estranho: meu pai morreu faz uns doze anos e nunca fomos visitar seu túmulo.
— Que coisa.
— Pois é. E não pense, por favor, que somos filhos desnaturados. Não é isso. É que o cemitério fica tão longe...duas quadras, na verdade. Mas a preguiça mata. Tanto que meu pai morreu e nós herdamos esse mal. Somos em oito. Oito homens preguiçosos e só um se casou.
— Sei, sei.
— E esse que casou é o primogênito. Teve um filho que tinha sete anos quando meu pai morreu. É engraçado, sabe? Hoje o menino tem dezenove anos e, no ano passado, quis de aniversário uma coisa esquisita.
— O quê?
— Lavar, limpar e pintar o túmulo de meu pai. É a vida. Achamos que papai tivesse tomado posse do meu sobrinho exigindo a limpeza de seu túmulo.
— Nossa.
— Pois é. E fomos, eu e meu sobrinho, lavar, limpar e pintar o túmulo do falecido. Nunca tinha entrado no cemitério, nem meu sobrinho. Localizamos o túmulo e, enquanto eu lavava, limpava e pintava, André soprava as velas que estavam em cima do outro túmulo. Até que a boca dele entortou. Deu derrame.
— Puxa.
— Puxa? Isso não é nada. Mesmo com a boca torta, ele ajudou a limpar o túmulo. Sabe o que é limpar um túmulo que há doze anos não era limpo? Quase morri e me enterrei ali mesmo. Tá vendo a minha boca torta? Também entortou no cemitério.
— Você também assoprou as velinhas?
— Não. Pintei o túmulo errado.
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Sobre a Autora
Constanze Mozart (1983), também conhecida por Srta. Stanzi, é natural de Campinas (SP) e jura que nunca teve uma publicação em jornal, revista ou qualquer veículo que valha, pois nunca tentou algo desse tipo. É, segundo afirma, uma escritora frustrada. Cursa publicidade e propaganda na ESPM / ESAMC e realiza paralelamente seus estudos de piano com afinco, para, talvez, chutar a futilidade da propaganda e cair de dedos no incrível e maravilhoso mundo musical. Diz ser "dona de boletins subversivos e redatora oficial de minha turma de faculdade, conhecida por ser irônica e hilária quando me convém, porque quando não me convém sou uma verdadeira mala e acabo escrevendo coisas que só eu entendo.". Apaixonada pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, é tricampeã na leitura de Cem Anos de Solidão tem verdadeiras crises de histeria quando ouve seu nome. Por ser muito tímida, prefere não revelar o nome verdadeiro e usar um pseudônimo.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_constanze_missa.asp
http://sal.zip.net (imagem)

Adriana Costalunga (O Açougueiro)

Era dia de faxina na casa de Zulmira quando o toque insistente do telefone a fez descer do alto da escada onde limpava uma prateleira.

— Desculpe-me a ousadia... — foi o que logo ouviu de uma voz galante. — Há tempos venho ensaiando para te ligar...

O coração começa a bater descompassado. Quem diria? Alguém a notara por aí! E pensar que o marido nem chegou a perceber que pintara o cabelo de vermelho...

— Eu quero marcar um encontro com você...

Ao ouvir a proposta, Zulmira enrubesceu. O coração parecia querer pular fora de seu peito. E agora? O que dizer?

— E então? — insistiu a voz.
— Eu... eu... não posso... — gaguejou.

Quem seria este homem? Aquele vizinho novo que vivia às voltas com um poodle? Não! Ele parecia ter um jeito meio afetado. Deus meu!, seria o Odorico? O açougueiro? Bem que percebera que ultimamente ele sempre lhe escolhia a melhor peça...

— Eu sei que você é uma mulher casada... eu entendo... mas é apenas um encontro...
— Não, eu não posso! — repetiu com firmeza. Afinal de contas tinha lá os seus princípios, e ainda por cima dois filhos adolescentes. E se fosse mesmo o Odorico? Ah! O Odorico sim valia a pena. Um homem que mexia com a carne daquele jeito, o que é que não faria com uma mulher?
— Ninguém ficará sabendo... eu prometo! — continuou ele, persuasivo. – E tenho certeza que será uma noite inesquecível... Começaremos com um jantar à beira-mar... Depois iremos navegar durante a madrugada...

Zulmira deixava-se levar pela imaginação quando foi surpreendida por uma pergunta:

— Você gosta de ostras?
— Ostras? — repetiu, sem saber o que responder. Nunca comera ostras em toda sua vida, mas lera numa revista da cabeleireira que ostras eram afrodisíacas.
— Se você não gosta eu...
— Não! Imagine... gosto sim! — exclamou.
— Eu posso esperá-la amanhã à noite? — perguntou–lhe o homem. — Estou bastante ansioso para encontrá-la.

E agora? Deixaria a vida passar sem lutar por algumas boas lembranças? Este pensamento fora suficiente para convencê-la.

— Sim! — respondeu decidida. — Onde podemos nos encontrar?
— Faz o seguinte Telma: às 8:30 você me liga...
— Ei! Peraí! Meu nome não é Telma!
— Não?!! — exclamou o homem, aturdido.
— Não! — confirmou Zulmira, com a voz zangada.
— Mil perdões! — disse ele e desligou envergonhado num baque rápido.

E sem mais nada por esperar daquela tarde, Zulmira continuou a espanar a prateleira, pensando, de quando em quando, num longo suspiro, que a vida é assim mesmo.
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SOBRE A AUTORA
Adriana Costalunga (1968) é de Campinas (SP). Graduada em Comunicação Social, com Pós-Graduação em Administração, cursa a Faculdade de Direito. É redatora e revisora de textos de publicidade. Colaborou com crônicas para os jornais Diário do Povo, de Campinas, e Diário de Sorocaba. Atualmente estagia em um escritório de advocacia. Em 2006, lançou o livro "A arte de conquistar clientes", sobre empreendedorismo, pela R G Editores.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_acostalunga_acougueiro.asp

http://oglobo.oglobo.com (imagem)

Rachel de Queiroz(A Imagem Feminina)

Vocês já repararam que o Rio e as outras grandes cidades do Brasil não têm mudado muito em matéria de crimes? Na maioria eles sucedem dentro do binômio homem x mulher e se baseiam todos no amor. É fácil concluir, portanto, que o amor é a mais matadeira de todas as paixões.

O amor tem como condição primária ser exclusivo. E, como o ser humano tem como aspiração máxima a variedade, o amor acaba batendo de frente com tudo a que o homem aspira. Durante séculos admitiu-se que o privilégio da exclusividade pertencia ao homem. Antigamente, toda heroína de romance se ousava variar de amor, trair o prometido, era castigada imediatamente pelo autor, que não lhe consentia liberdade para tais assomos sem a devida punição. Foi o nosso grande Machado que liquidou com o binômio “crime e castigo” em matéria de amor.

Mas nem ele nem nenhum outro permitiu a uma heroína pecadora o direito de espezinhar, sem castigo, a lei e os bons costumes. Isso se deu não apenas no Brasil, mas no geral da literatura universal.

Os escritores chamados malditos, não recordo nenhum deles que fizesse a mulher triunfar dentro do crime e da maldição. Só é castigada com uma eventual condição de pobreza ou com a morte do amante. Quem quiser verificar essa afirmação é só correr a lista das amantes de romance: Mme. Bovary, a Dama das Camélias, etc.

Verdade que todos esses tipos são criações masculinas, e o homem, por melhor escritor que seja, tem a tendência de estereotipar a mulher: a má e a boa, a fiel e a infiel, e assim por diante. O mais sutil dos nossos romancistas, que foi Machado, só cria mulheres naturalmente tendentes para o engano, a mentira, a duplicidade. É, aliás, o que a crítica costuma chamar de sutileza esse esmero com que eles se empenham em interpretar o coração da mulher. Segundo eles, só as muito ingênuas, as quase imbecis, são capazes de um amor fiel e leal. As outras estão sempre a oscilar entre uma mentira e um passo em falso, entre um pouquinho de traição e uma dose necessária de fidelidade. Pensando bem, a literatura masculina só traduz as informações que eles acham ter do eterno feminino; afinal, eles só conhecem a mulher pelo que vêem e ouvem dela: como é que iriam saber realmente o que se passa dentro de um coração de mulher? Flaubert, um emérito conhecedor da alma feminina, traduz bem essa impotência masculina, diante do feminino, com a sua célebre frase: “Mme. Bovary c'est moi.” Quer dizer que ele, homem, pretende interpretar a sua criação feminina com sua própria alma de homem. Em que entra o feminino nisso? Se Mme. Bovary é ele, com quais elementos a formou? Se ele, grande autor, só consegue tirar informações sobre o feminino da sua experiência masculina, que crédito merecem essas informações? A carência é, pois, total. Os mestres da alma feminina, quando pensam em mulher, pensam em si próprios. Chega quase a ser ridículo. E a mulher continua, em todas as literaturas, um monstro indecifrável e, talvez por isso mesmo, irresistível.

Refiro-se apenas à literatura masculina. As mulheres escritoras não se desfazem em confissões, ou as que o fazem, em geral, se permitem mais confissões chocantes ou comoventes em vez de honestos estudos psicológicos. Como não ousam desnudar-se o texto da prosa, o que é mais chocante, tomam mais liberdade com a poesia, que lhes permite metáforas e confissões mais abertas.

Abrindo exceções quanto à pouca confessionabilidade da literatura feminina no geral, temos por exemplo Emily Brontë, que rasga todos os véus e não se esconde sob o seu eu feminino para se confessar.

Mas foi ela, e poucas mais.

Hoje em dia, com a permissibilidade geral sobre assuntos de sexo, as mulheres descerraram as cortinas com maior ou menor modéstia; sendo que a menor é a mais comum. Damas que normalmente estariam na condição de uma Colette se abrem em confissões que no tempo de um Zola escandalizariam. Essa intemperança atual tem o seu mérito. Acabaram-se os territórios fechados onde a mulher não poderia entrar. E se há excessos, por que os há, quanta coisa boa que hoje temos não seria escrita por mão de mulher, temerosa de pisar no terreno vedado dos autores masculinos. É o caso de se dizer: liberdade ainda que tarde.

Fonte:
O Estado de Minas - Belo Horizonte - MG, 11/06/2000 Rachel de Queiroz
http://www.academia.org.br/

Bernard Shaw (A Serenata)

Festejei o meu quadragésimo aniversário natalício, com uma daquelas representações teatrais pelas quais a minha casa em Backenham é famosa. A peça escrita por mim, como é costume, era uma história de fadas, em três actos e todo o seu enredo girava em torno de uma trompa mágica que o herói, um jovem príncipe persa, possuía. As minhas obras já são muito conhecidas para que valha a pena descrever o argumento em todos os seus pormenores. Devo, apenas, elucidar o leitor, que uma das importantes cenas do segundo acto é a interrupção de um festival pelo toque lúgubre da trompa do tal príncipe persa, enterrado no coração de uma montanha magnética, por uma feiticeira maligna. Eu contratara o cornetim da banda do meu regimento para se desempenhar do dito pormenor, e ficara combinado que ele iria colocar-se, não nos bastidores, mas lá em baixo, no «hall», para que o efeito fosse o de uma trompa ressoando ao longe.

A recepção começou muito bem. Houve um desapontamento natural ao saber-se que eu não representaria, mas os meus convidados desculparam-me de boa vontade, quando invoquei o meu duplo dever de dono da casa e director de cena. O melhor lugar do auditório fora reservado para a lindíssima Linda Fitznightingale. A cadeira ao lado, que eu destinara para mim, fora ocupada (com certo atrevimento) por Porcharlester do 12.º Regimento, um jovem muito amável, dotado de relativo talento musical e de uma voz de barítono afeminado que ele, sagazmente, muda para o tom de tenor. Como a paixão de Linda pela música se aproximava do fanatismo, aquela única faculdade vocal de Porcharlester dava-lhe aos olhos dela, uma vantagem sensível sobre todos os homens de físico mais sólido e de mais idade. Resolvi interromper aquele «flirt», assim que ficasse livre, o que não foi tão depressa como eu julgava, pois reconheço ser um tipo exigente, cuidando que tudo quanto possa vir a ser utilizado nas representações dadas em minha casa, esteja à mão e no seu devido lugar. Por fim, «Miss» Waterloo, que desempenhava o papel de heroína, queixou-se da minha ansiedade dizendo-me que eu a punha nervosa, e pediu-me que fosse para a sala. Obedeci da melhor vontade e apressei-me a encaminhar-me para onde Linda se encontrava. Quando me acerquei da sua cadeira, Porcharlester ergueu-se, dizendo:

- Vou dar uma olhadela pelos bastidores se é que é permitida a entrada, ali, a pessoas estranhas ao serviço...
- Pode ir - disse eu, encantado por me ver livre dele. - Mas não interfira em coisa alguma. O mais pequeno contratempo...
- Está bem - interrompeu-me ele. - Eu sei como o senhor é «miudinho». Garanto-lhe que não tirarei as mãos dos bolsos, todo o tempo.
- O senhor não deveria consentir na falta de respeito de Porcharlester para consigo, coronel Green - disse-me Linda, quando o outro se retirou. - Além disso, estou certa de que o rapaz não mexerá em nada, nos bastidores.
- Rapazes serão sempre rapazes. Aliás, as maneiras de Porcharlester não são diferentes das do general Johnston que já é um homem de idade avançada. Diga-me, como vão os seus estudos musicais?
- Oh, Schubert enfeitiçou-me, sabe? Ah, coronel Green, conhece a Serenata de Schubert?
- Conheço. Lindíssima. Não é assim? Tirara-ra, tirarara-ra, tira, tarirara-rô.
- Sim, é mais ou menos isso. Mr. Porcharlester saberá cantá-la?
- Tenta. Mas na minha opinião, ele só tem voz para a música ligeira. Em peças que exijam um sério sentimento, ideias profundas, simpatia amadurecida, não me parece que...
- Sim, sim, sei que o senhor não leva Mr. Porcharlester, a sério. Mas gosta da serenata?
- Hum! Bem, o facto é... e a senhora gosta?
- Adoro-a. Sonho com ela. Tenho vivido dessa música, nestes últimos dias!
- Confesso que a Serenata de Schubert sempre me pareceu uma peça de música de excepcional beleza. Espero ter o prazer de a ouvir, cantada por si, quando acabar a representação.
- Eu! Cantá-la? Oh, não me atrevo. Ah! Aí vem Mr. Porcharlester. Obrigá-lo-ei a prometer-me que a cantará, daqui a pouco.
- Green - disse Porcharlester, com mal disfarçado sarcasmo. - Não quero trazer-lhe preocupações desnecessárias, mas o tipo encarregado de tocar a trompa mágica, ainda não chegou.
- Santo Deus! - exclamei. - Disse-lhe para estar aqui, às sete e meia em ponto. Sem ele, a peça vai ser um fiasco.

Pedi perdão a Linda, pela minha brusca retirada e apressei-me a correr ao «hall». A trompa estava sobre a mesa. Porcharlester recorrera a um infame truque para se ver livre de mim. Eu estava já disposto a voltar, afim de lhe pedir uma explicação, quando me ocorreu que, de facto, o cornetim poderia ter deixado o instrumento ali, após o ensaio da manhã, e ainda não ter aparecido. Contudo, um criado que eu chamei, informou-me de que o homem chegara com uma pontualidade militar, às sete e meia e fora, de acordo com as minhas ordens, introduzido na copa, para tomar um copo de vinho e uma «sandwich».Porcharlester, ludibriara-me, pois. Quando o criado se retirou, deixando-me só e zangado, a minha curiosidade foi atraída para o brilho metálico da trompa, que jazia sobre a mesa. Entre os objectos inanimados que me rodeavam, aquele instrumento parecia silencioso e imóvel, num mundo à parte, como se, albergando em si um som aterrorizador, aguardasse o momento propício para o libertar.

Aproximei-me da mesa e, cautelosamente, tacteei com o dedo, um dos pistões. Após uma leve hesitação, ousei premi-lo. Soltou um estalido. Nesse momento, um ruído na copa, fez-me recuar, assustado. A campainha do contra-regra retiniu. Era o sinal para o cornetim se preparar para entrar em atenção.

Aguardei o aparecimento do homem, receoso de que ele notasse eu ter estado a mexer no instrumento. Mas ele não apareceu. A minha ansiedade aumentou; corri à copa. Ao entrar, deparei com o soldado de cabeça repousada sobre os braços cruzados à laia de travesseiro. Dormia regaladamente, e à sua frente estavam cinco canecas vazias. Agarrei-o pelo ombro e sacudi-o com violência. Ele resmungou, abriu os olhos, empurrou-me e recaiu na insensibilidade.

Enraivecido, jurando aos meus botões que o faria fuzilar no dia seguinte por insubordinação, voltei ao vestíbulo. A campainha retiniu, de novo. Este segundo sinal era para o soldado tocar a trompa. O palco esperava. Só havia uma maneira de salvar a situação. Agarrei o instrumento levei-o à boca, e soprei com força. Baldado esforço! O maldito não soltou um único som. Fiquei roxo de tanto soprar. De novo, a campainha rompeu, exigente, o silêncio da sala. Então, tomado de súbito furor, empunhei a trompa como se esta fosse um torno, enchi os pulmões, ferrei os dentes no bocal, como se o fosse trincar de lado a lado, e cuspi com toda a força. O resultado foi uma rajada ensurdecedora. Senti uma pancada tremenda nos tímpanos, os globos do candeeiro tremeram, os chapéus dos convidados saltaram das escápulas onde estavam pendurados, o soldado surgiu, à porta da copa, pálido, como se a trombeta do Dia de Juízo o tivesse arrancado do sono da morte, e eu, premindo com as palmas das mãos, as fontes latejantes, voltei-me para defrontar os convidados que me olhavam, boquiabertos, do alto da escadaria.

Durante os três meses seguintes, estudei a arte de tocar trompa, sob a direcção de um profissional. É certo que o homem me aborrecia com as suas maneiras de classe baixa e o seu enfadonho costume de repetir que a «trumpa», como ele lhe chamava, era o «enstromento» que mais se assemelhava à voz humana; mas sou forçado a reconhecer a sua competência e boa vontade. E eu perseverava, apesar dos múltiplos protestos dos meus vizinhos. Por fim, aventurei-me a perguntar ao meu professor, se me achava bastante avançado para tocar um solo privado a um amigo íntimo.

- Bem, coronel - disse o digno homem - para lhe dizer a verdade, acho ainda cedo. O senhor toca com muita força. Acredite, senhor, essa força é escusada e além disso, estraga o som. Qual era o solo?
- Qualquer coisa. A serenata de Schubert, por exemplo.

Olhou-me fixamente e fez um aceno negativo com a cabeça.

- Não foi escrita para este «enstromento», coronel. Nunca será capaz de tocá-la.
- A primeira vez que a tocar, sem um erro, dar-lhe-ei cinco guinéus além dos seus honorários.

Esta promessa dissipou-lhe todas as dúvidas. Apesar de toda a minha perseverança, levei tempo a aprender a Serenata, pois não só era extremamente difícil, como bastante incerta. Mas por fim, triunfei.

- No seu caso, coronel - aconselhou-me o meu professor ao mesmo tempo que metia os cinco guinéus, na carteira - guardaria essa música para mim, e tocaria coisas mais simples para distracção dos amigos. É verdade que o senhor é capaz de a tocar menos mal, mas só quando estou presente. Verá que não estando eu a seu lado, a execução desta música ser-lhe-á muito mais difícil.

Não fiz caso daquele conselho cujo bom senso reconheço agora. Naquele tempo, porém, eu alimentava o insensato projecto de fazer uma serenata a Linda. A sua casa, situada na extremidade norte de Park Lane, prestava-se admiravelmente para tal, e eu já subornara um criado para ele me introduzir no pequeno jardim, que ficava entre a casa e a rua.

Uma noite, cerca das nove horas, meti a trompa no estojo e enfiei num «coupé», de onde só desci em Marble Arch, na intenção de fazer a pé o resto do caminho. Nesse momento, uma voz chamou pelo meu nome; era Porcharlester. Como de forma alguma me convinha ser interrogado sobre o meu destino, achei preferível ser eu a perguntar-lhe aonde ia ele, monopolizando assim a conversa.

- Vou a casa de Linda - respondeu o meu rival. - Ela ontem deu-me a perceber que hoje não teria visitas. Não me importo de lhe dizer essas coisas, coronel. O senhor é um homem de honra, e sabe que eu adoro essa mulher. Se eu tivesse a certeza de que ela está apaixonada por mim, e não pela minha voz, seria o homem mais feliz da Inglaterra.
- Oh, não! Pela sua voz não pode ser, tenho a certeza.
- Oh, muito obrigado - exclamou ele, apertando-me a mão. - O senhor faz-me criar alma nova. Contudo, confesso-lhe que me sinto quase desmaiar, quando olho para ela. Sabe que eu nunca mais tive coragem para cantar a Serenata de Schubert, desde o dia em que Linda me disse ser a sua peça favorita?
- Porquê? Ela não gosta que o senhor a cante?
- Se lhe digo que nunca tive coragem para a cantar diante dela, embora Linda esteja sempre a pedir-me.

Até já tenho ciúmes da maldita música. No entanto, como seria capaz de dar a própria vida só para lhe ser agradável, reservei-lhe essa surpresa para amanhã, em casa de Mrs. Locksly. Tenho estado a tomar lições de canto, e a trabalhar como um burro, para poder cantar a Serenata, sem cometer uma falta. Se o senhor encontrar Linda, não divulgue o meu segredo. Quero que seja surpresa.

- Não duvido que vai ser uma grande surpresa - disse eu, exultando com a ideia de que ele chegaria um dia atrasado. Tinha a certeza de que seria preciso uma voz muito mais bela que a dele para poder rivalizar com a suavidade, melancolia, ameaça soturna e expansão da minha trompa. Separámo-nos; e eu vi-o entrar em casa de Linda. Alguns minutos depois, encontrava-me no jardim. Do sítio onde eu estava, podia vê-los muito bem, sentados junto à janela, conquanto não conseguisse ouvir o que diziam.

Porcharlester parecia resolvido a ficar ali eternamente. A noite estava um pouco fria, e a erva, húmida. Bateram as dez horas, dez e um quarto, dez e meia. Quase me resolvera a abandonar o campo.

Felizmente, Linda tocou ao piano algumas peças do seu repertório, que vieram aliviar a solidão em que eu me encontrava. Por fim, os dois levantaram-se e agora, eu podia ouvir, perfeitamente, o que diziam.

- Sim - admitiu Linda - já vão sendo horas. (Concordei plenamente com as suas palavras). Mas o senhor podia ter cantado a Serenata. Olhe que a toquei três vezes para o incitar...
- Apanhei uma constipação tremenda - disse Porcharlester. - Garanto-lhe que me é impossível. Boa noite!
- Lérias! O senhor não mostra o mais pequeno sintoma de estar constipado. Não importa: não tornarei a pedir-lhe que a cante. Boa noite, Mr. Porcharlester.
- Não seja cruel - rogou ele. Ouvi-la-á mais cedo do que supõe.
- Ah! Diz isso com um tom misterioso! Mais cedo do que suponho... Se me prepara alguma surpresa, perdoo-lhe desde já. Espero vê-lo amanhã em casa de Mrs. Locksly.

Ele fez um gesto afirmativo e apressou-se a sair, sem dúvida receoso de atraiçoar-se de um momento para o outro. Quando desapareceu, Linda veio para a varanda e, apoiando-se ao peitoril, contemplou as estrelas que brilhavam no céu. Ao vê-la esqueci toda a minha impaciência; e os meus dentes cessaram de bater castanholas. Tirei a trompa do estojo. Linda soltou um suspiro, fechou a janela e correu a cortina. A visão da sua mãozinha, enquanto corria a cortina, inspirou-me. Vi-a sentar-se e agarrar um livro. Chegara a minha vez. Park Lane estava quase deserto, e o tráfego em Oxford Street demasiado distante para perturbar o silêncio.

Comecei. À primeira nota, vi-a ter um sobressalto e ficar imóvel, a escutar. Quando a frase completa lhe revelou o nome da música, deixou cair o livro. O bocal do instrumento parecia uma pedra de gelo, e os meus lábios estavam tão duros e gretados que, apesar do meu cuidado, mais de uma vez, a música foi interrompida por umas tossidelas estranhas e desafinadas, que os melhores cornetins não podem evitar.

No entanto, levando em conta o frio e o estado de nervos em que eu me encontrava, devo dizer que me desempenhei brilhantemente do meu papel de executante. À medida que tocava, ia ganhando confiança e, de certo modo, remediei mesmo a imperfeição do início, terminando os últimos compassos com uma sonoridade impressionante, e alcançando até, um «tremolo» bastante enternecedor, na penúltima nota.

Aplausos entusiastas vindos da rua, quando acabei, mostraram-me uma multidão ali reunida que me impedia de executar uma retirada imediata. Tornei a guardar a trompa no estojo, e preparei-me para sair logo que a populaça dispersasse. Entretanto, olhava para a cortina onde o vulto de Linda fazia sombra. Ela escrevia agora. Seria a mim? Levantou-se e a sombra cresceu de tal forma na cortina da janela que tornou impossível adivinhar-lhe os movimentos. Ouvi o retinir de uma campainha. Um minuto depois, a porta da rua abriu-se. Escondi-me atrás de um vaso de aloés, mas, reconhecendo o criado que eu subornara, assobiei baixinho. O homem aproximou-se de mim com um papel na mão. Senti o coração pulsar com mais força.

- Vai tudo bem, senhor, - disse-me o criado. - «Miss» Linda mandou-me entregar-lhe esta carta. Mas pede o favor de não a abrir, antes de chegar a casa.
- Então, ela sabia que era eu!
- Assim o creio. Quando ouvi a campainha, tratei de acorrer imediatamente. Então, «Miss» Linda, disse-me: «Encontrarás um senhor no jardim. Entrega-lhe esta carta mas pede-lhe que não a abra antes de chegar a casa».
- Vês alguém na rua?
- Já se foram todos embora, senhor coronel. Muito obrigado, meu senhor. Muito boa noite.

Corri até Hamilton Place, onde consegui arranjar uma tipóia. Dez minutos depois, encontrava-me no meu gabinete e abria com mãos trémulas, a carta de Linda. Não estava metida em envelope, mas, apenas, dobrada em três partes, com um dos cantos voltados para baixo. Desdobrei-a e li.

714, Park Lane, Sexta-feira.

Meu Caro Porcharlester

Parei. Teria ela suposto que fora ele quem tocara a «Serenata»? Mas o mais importante era decidir se eu tinha ou não o direito de ler uma missiva que não me era dirigida. A curiosidade e o amor prevaleceram sobre os escrúpulos. A carta continuava como segue:

«Lamento o facto de o senhor não ter visto na minha paixão pela Serenata de Schubert, algo mais do que um motivo de chacota. Talvez, com efeito, fosse uma paixão exagerada, mas jamais eu lha teria dado a entender, se não acreditasse que o senhor seria capaz de compreendê-la. Ficará talvez mais satisfeito se lhe disser que conseguiu curar-me dessa paixão e posso assegurar-lhe que não voltarei a ouvi-la, sem um estranho sentimento, mescla de dor e vergonha. Eu ignorava ser possível a uma garganta humana poder soltar tais notas, como tão pouco julgava, pela promessa feita pelo senhor de cantar a Serenata mais cedo do que supunha, que o senhor engendraria tão mesquinha partida. Só tenho mais uma palavra a dizer-lhe: Adieu. Não terei o prazer de o ver em casa de Mrs. Locksly, pois os meus compromissos não me permitem lá ir. Pela mesma razão, receio negar-me ao prazer de o receber outra vez em minha casa.

Sem mais, subscrevo-me,
Linda Fitznightingale»

Pensei que remeter esta carta ao pobre Porcharlester, seria magoá-lo sem necessidade. Achei, também, que o meu professor tinha razão ao afirmar que eu não nascera para a música. E desde então, desisti. Linda é hoje minha mulher. Muitas vezes, pergunto-lhe qual o motivo porque ela persiste em não receber Porcharlester, que me assegurou, dando-me a sua palavra de cavalheiro e militar, não saber em que a ofendeu. E Linda recusou-se sempre a dizer-mo.

Fonte:
Biblioteca Eletrônica. vol. III. Magister (CD-ROM).
http://wwww.weno.com.br (desenho)

sábado, 19 de julho de 2008

Sorocaba em Destaque (4a. Semana do Escritor em Sorocaba)

(veja localização e mapas do evento e acesso à cidade ao pé do artigo - clique nos mapas para ampliar)

Organizada pelo escritor Douglas Lara, com o apoio do Gabinete de Leitura Sorocabano, da confraria Teia dos Amigos, e da Editora Ottoni, a Semana consiste numa oportunidade para que escritores, principalmente os iniciantes, divulguem seus trabalhos. Da mesma forma, a mostra garante maior visibilidade às produções literárias locais.

A semana literária reunirá dezenas de autores independentes, editoras e livrarias, com sessões de autógrafos, lançamentos e palestras. Como acontece em todos os anos, haverá, no dia 24, o lançamento da coletânea Roda Mundo 2008, junto com a primeira antologia infanto-juvenil, Rodamundinho 2008. Para participar, o interessado recolhe uma taxa de R$ 50 por título publicado; em caso de lançamento, o valor é de R$ 100. Coletâneas com dez ou mais participantes, contribuem com R$ 200.

A programação ainda não foi fechada, mas os organizadores, reservaram o dia 25, sexta-feira, para que profissionais da imprensa promovam seus trabalhos. Nesse dia, participa da noite de autógrafos, o jornalista do Cruzeiro do Sul, José Antônio Rosa, autor de O Livro de Salomão, projeto aprovado pela Linc, que conta as histórias do radialista, comunicador e proprietário do Sistema Vanguarda de Comunicação e da Tv Sorocaba, Salomão Pavlovsky.

Pretendemos abrir espaço para que os jornalistas que possuam obras publicadas, ou que estejam por ser lançadas, o façam durante a Semana. Essa interação é muito importante, comentou Douglas Lara. A representante da confraria Teia dos Amigos, Sonia Maria Grando Orsiolli, também destacou o potencial do evento que já faz parte do calendário cultural da cidade. Temos a certeza de que a semana não só repetirá, como deverá alcançar um sucesso ainda maior nesta edição.

Para participar, os interessados podem manter contato com escritor Douglas Lara, pelo telefone (15) 3227-2305, ou pelo e-mail douglara@uol.com.br

A Semana do Escritor de Sorocaba será realizada de terça-feira a sábado, das 14h às 22h, e no domingo, das 10h às 18h com entrada gratuita.


Dois livros de Marta Beraldi na semana do escritor
Os Quimikimox - Em defesa do meio ambiente:

Este livro tem como objetivo desenvolver na criança um espírito de amor à natureza e de preservação do meio ambiente, bem como o lado cientifico dos mesmos, pois ao tratar dos elementos químicos da Tabela Periódica de maneira lúdica e construtiva estamos despertando a curiosidade cientifica dos alunos.

Neste livro encontramos temas atuais como, por exemplo: a busca por energia renováveis e históricos como: a primeira bomba nuclear, narrados pelos “Os Quimikimox, que são os103 personagens, baseados nos elementos químicos da tabela periódica tendo como objetivo principal levar o maior número de informações possíveis sobre a poluição através dos elementos químicos.

Preço nas livrarias: R$19,50 Preço para evento: R$ 15,00

Leitura Viva – Uma experiência de sucesso.
Leitura Viva tem como objetivo dividir as experiências de uma jornada de pesquisas e trabalho sobre a pratica de contar histórias. Fazendo com que o professor reflita sobre a necessidade de fazer da leitura em sala de aula um ato planejado, eficaz e significativo. Buscando ampliar o incentivo à leitura nas escolas através de metodologias e recursos comprovados.
Preço nas livrarias: R$12,50 Preço para evento: R$10,00

Maria do Carmo Alves Chaves Torres (De coração para coração)
O livro destina-se como apoio à educação e resgate dos valores humanos. A autora recomenda aos leitores que o leiam em família, em reuniões de tertúlia, a fim de desenvolverem maior harmonia e conhecerem melhor os próprios filhos. Parte da renda deste livro será destinada ao Instituto Internacional e Responsabilidade Social da Família Manoel Alves Bezerra.

Magda Vilas-Boas faz palestra para crianças e jovens em Sorocaba
http://www.servidorpublico.net/noticias/2008/07/15/magda-vilas-boas-faz-palestra-para-criancas-e-jovens-em-sorocaba

Lançamento de Escritor Ordinários, de Carlos Roberto Mantovani
No dia 26, sábado das 20 às 22h, na Fundec (Rua Brigadeiro Tobias, 73), durante a Semana do
Escritor, amigos e admiradores promovem o lançamento do livro Escritos Ordinários, da autoria de Carlos Roberto Mantovani.

Rodamundo 2008
O lançamento com noite de autógrafos será na próxima quinta-feira (24) na Fundação de Desenvolvimento Cultural Fundec. Entre os autores, o colaborador do Cruzeiro do Sul, Celso Marvadão Ribeiro, que também assina o prefácio, e a jornalista Estela Casagrande. A capa é da artista plástica Mary Maia e a organização de Douglas Lara. O Rodamundo 2008 é da Ottoni Editora.

Roda Mundo é uma Antologia Internacional que tem um caráter globalizado por contar com a participação de autores dos cinco continentes, numa integração da comunidade lusófona e também espanhola. A obra reúne crônicas, contos, poemas, ensaios e textos em português, inglês, italiano e espanhol, montando assim um panorama dos diferentes estilos, tendências, culturas e maneiras de enxergar o mundo, por meio da palavra impressa.
Edival de Moraes Blagitz - Arroubos Poéticos
Renato de Oliveira Leme (A Baleia que Aprendeu a Voar)
O livro A baleia que aprendeu a voar, do escritor Renato de Oliveira Leme, nascido em Itapetininga, (e radicado em Sorocaba desde 1991) estará a venda na 4ª Semana do Escritor . A renda será revertida para o Gpaci (Grupo de Pesquisa e Assistência ao Câncer Infantil). A obra, uma história de ficção para adultos, tem como cenário o ambiente rural e promete fazer o leitor embarcar numa reflexão sobre as possibilidades de planejamento da vida, suas metas e sonhos. O autor estará autografando e conversando com os leitores dia 26/7, sábado a partir das 15 horas. O preço promocional de venda durante a semana do escritor será de 12 reais cada.

Ivone Carvalho (Poeminando)
“Poeminando” é o primeiro livro de poesias de Ivone Carvalho, reunindo 46 poemas que falam de amor, saudade, vida, natureza, criação, poesia da alma.
Número de páginas: 62. Preço promocional para a Semana do Escritor : R$ 10,00
"É o silêncio da madrugada, esse momento tão sublime que nos remete ao nosso interior, que inspira, à alma da poeta, o extravasar da sua essência, dos seus sentimentos e sonhos, da sua forma de pensar e sentir".

Livro: “Poiesis”: seis artistas em Londrina
Projeto aprovado pelo Programa Municipal de Incentivo a Cultura de Londrina em 2005. O livro, escrito e coordenado por Juliana Simonetti, tem o objetivo de refletir sobre a produção de seis artistas atuantes em Londrina: Cláudio Garcia, Danillo Villa, Fernando Augusto, Fernanda Magalhães, Letícia Márquez e Paulo Menten. A publicação traz análises de obra, entrevistas e imagens de trabalhos. Publicado em maio de 2006. A autora, editora do caderno Mais Cruzeiro do jornal Cruzeiro do Sul doou 10 exemplares para serem sorteados entre os presentes na 4ª Semana do Escritor, sábado dia 26/7, devidamente autografados.

Nilsa Florentina Vendramini,58, e Larissa da Silva Vendramini, 11, na Semana do Escritor
Avó e neta participam da 4ª Semana do Escritor de Sorocaba, que recebe inscrições até amanhã. A estudante Larissa da Silva Vendrami, 11 anos, pegou gosto pela poesia, motivada pela sua avó. A artesã Nilsa Florentina Vendrami, 58, lançou um livro de versos no ano passado e despertou a sensibilidade da neta pela literatura. As duas poetisas terão a oportunidade de mostrar os seus trabalhos durante a 4ª Semana do Escritor de Sorocaba

Laé de Souza no Evento
O escritor Laé de Souza estará presente na 4ª Semana do Escritor de Sorocaba no dia 24 de julho, quinta-feira, a partir das 19h30. Cada convidado receberá como cortesia um exemplar do livro Nos Bastidores do Cotidiano, e durante a realização do evento será distribuída a revista do Projetos de Leitura para o público conhecer melhor o seu importante trabalho de fomento à leitura, em execução há dez anos.
Laé de Souza é autor dos livros Espiando o Mundo pela Fechadura, Acredite se Quiser!, Acontece..., Coisas de Homem & Coisas de Mulher e Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braile). Interessados em conversar com o escritor poderão aproveitar esta oportunidade.

Rodamundinho 2008
lançamento do primeiro livro Rodamundinho 2008 será no dia 24 de julho às 18h, com a apresentação do Grupo da Associação de Mágicos de Sorocaba e Região e durante o evento também haverá os autógrafos dos participantes nos 25 exemplares do livro a serem colocados a venda.

O Rodamundinho é uma coletânea infanto-juvenil que reúne 25 autores de até 15 anos de idade.

É uma antologia - seleção de textos - gerada com muito talento pelos seus participantes reunindo poesias, contos e crônicas, sobre amor, natureza, escola, família, viagens, entre outros. O projeto recebeu inscrições no início do mês de maio deste ano, foram selecionados 25 autores de Sorocaba e Região para participarem gratuitamente dessa antologia. Cada jovem participou com quatro páginas deste belíssimo livro de 115 páginas. Todo o projeto tem o objetivo de estimular a leitura e a escrita aos jovens. No dia do lançamento os participantes receberão, gratuitamente, quatro exemplares do Rodamundinho 2008 e um do Roda Mundo 2008.

O projeto foi idealizado pelo escritor sorocabano, Douglas Lara e pelo ex-presidente da Fundec Alexandre Latuf, com o patrocínio do editor Mylton Ottoni. A organização é da jornalista Cintian Moraes, apoio do suplemento infanto-juvenil Cruzeirinho do Jornal Cruzeiro do Sul, do Gabinete de Leitura Sorocabano e da Fundec.

Entrada gratuita. Quem quiser obter o livro poderá entrar em contato com o organizador Douglas Lara pelo telefone (15) 3227.2305.

Confira os nomes dos 25 participantes da antologia:
André Borges Dias, André Felipe Camargo Bruni, Beatriz Rodrigues Soares, Beatriz Silvério da Rocha, Bianca Marques Milanda, Carolina Arakaki de Camargo, Felipe Giacomin, Isabela Rodrigues Rigo, Jaqueline Andressa Oliveira Manão, José Estevão Pinto de Oliveira, Joyce Souza da Conceição, Júlia Mira dos Santos, Juliana Guimarães Terse, Katherine Martins de Oliveira, Laís Castro Franco de Almeida, Larissa da Silva Vendrami, Laura de Oliveira Marchetti, Laura Mattucci Tardelli, Lucas Geraldo de Milanda Miranda, Luiz Alberto Braga Stopa, Maria Giulia Jacção Alves, Matheus Dantas, Rafaela Moreno Lopes Benevides, Roberta Rodrigues Giudice e Verônica Rodrigues S. Lima."
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A Fundec tem sua sede no antigo Teatro São Rafael, construído em 1844, em pleno coração da cidade, já serviu de abrigo à Prefeitura Municipal de 1935 a 1980 e à Câmara Municipal de 1982 a 1999. Restaurado e modernizado, o prédio conta com auditório e espaço para as mais variadas mostras artísticas.
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A Fundec fica na Rua Brigadeiro Tobias, 73.
A R. Brigadeiro Tobias liga a R. Cel. José Prestes com a R. Monsenhor João Soares.Faz cruzamento com as ruas Santa Cruz, Cel. Cavalheiros e XV de Novembro.Tem como travessas as ruas Cel. José de Barros, Dr. Afonso Pena, Ubaldino do Amaral e Dom Pedro II.
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Fonte: Douglas Lara. In http://www.sorocaba.com.br/acontece
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Hélio Polvora (O Busto do Fantasma)

O fantasma que apareceu lá em casa, ao contrário ao fantasma de James Thurber, não cometeu estrepolias nem teve caráter transitório. Instalou-se para ficar e desde o primeiro dia manifestou, pela impassibilidade do rosto, que estava ali cumprindo penitência ou em busca de algo Difícil desalojá-lo. Realmente, muitas tentativas se fizeram, experimentaram-se todos os recursos; imaginação não nos faltava, inveterados leitores de romances em fascículos que um vendedor ambulante fornecia quinzenalmente. Mas o fantasma resistiu a tudo e a todos. De nada adiantou, por exemplo, substituir uma telha de vidro na cumeeira, por onde, segundo asseverava minha mãe, ele entrava à meia-noite; e as rezas de Nunila, minha tia, tão eficazes para sarar mordeduras de cobra e espantar mau-olhado, provaram sua absoluta e total ineficácia. O fantasma zombou, no seu modo sério, do mastruço, alecrim e outras ervas recolhidas no campo, ao entardecer, quando a campanha movida contra ele pela família inteira atingira o ponto culminante, o ponto do desespero.

Houve quem recuasse no tempo e pressentisse no pio estrídulo de uma ave agourenta — que não chegou a ser vista, sequer identificada — o anúncio da visita próxima e duradoura do fantasma. O que não é para admirar: naquela altura, com ele dentro de casa, invisível durante o dia, bustificado depois das doze badaladas, as explicações choviam, tentava-se tudo, numa escala que partia do lógico e enveredava pelo absurdo. Como o pio da ave agoureira precede sempre acontecimentos tristes, acabamos todos por admitir o mau presságio. No seu vôo súbito sobre a casa, norte para sul, aquela ave deixara sinal de desgraça.

A ave foi ouvida numa tarde em que meu pai e seu ex-tutor Chico de Luanda cochilavam no alpendre, abordando temas vagos e aparentemente desconexos, que, aliás, não tinham pressa de concluir. Já então os olhos dos morcegos, sensíveis ao desfalecimento da claridade, estremeciam, e dentro em pouco eles estariam chiando na copa do jenipapeiro, nos frutos maduros que tombariam ao alvorecer. A conversa entre os dois, meu pai e o visitante, pendia num silêncio prolongado de propósito para acentuar o peso da última observação proferida não se sabe por quem, e os ruídos da casa se haviam aquietado, num repentino poço de silêncio, quando alguma coisa penugenta cruzou o ar, sobre o alpendre, por cima da cumeeira — e soltou um pio medonho que por muito tempo fendeu a tarde, como uma quilha que deixa sulco.

"Ai", gemeu Chico de Luanda.

“Ai” , gemeu meu pai.

Chico de Luanda, que era supersticioso, levantou-se e não conseguiu encontrar as pernas. Suas articulações pareciam de geléia. Meu pai deixou-se ficar na espreguiçadeira, estatelado, de boca aberta.

"Você ouviu?", perguntou Chico de Luanda.

Uma pergunta inútil, mas inteiramente desculpável, porque o espírito dos dois não estava bem equilibrado.

“Ouvi, sim. Foi um pio infernal"

"Talvez um pombo do inferno", sugeriu Chico de Luanda. "Não conheço ave nenhuma que pie desse modo, assim tão alto e fino."

"Nem eu", confessou meu pai, que era caçador nas horas vagas, um caçador que tinha pena de caça e pretendia, no fundo, era matar o tempo, mas se gabava de conhecer aves, pássaros, galinholas e passarinhos, perdizes e arapongas, anuns e xexéus. A conversa ficou nisso - ou quase nisso. Interrogados discretamente a princípio, para não se espalharem temores vãos, os outros habitantes da casa confirmaram o pio, a que não deram importância maior. Naturalmente dentro de casa o pio lhes chegara amortecido. Lá fora, no alpendre que divisava o descampado, fora terrível, "um guincho de endoidecer", conforme dissera Chico de Luanda.

Se o objetivo do pio da ave agoureira era transmitir um alerta, falhou. Passado o primeiro estremecimento, meu pai voltou às suas ocupações rotineiras, e Chico de Luanda, apenas uma visita rápida, também se esqueceu do episódio, que de qualquer forma não lhe dizia respeito. Os dias correram, a vida prosseguiu no mesmo ritmo, marcada pelo relógio grande, de badalo, da sala de visitas. Quando algum de nós se esquecia de dar-lhe corda, o que era freqüente, podia-se acertá-lo mais ou menos certo pela passagem das marnetes. A vida era mansa, quase boa, na casa velha que tinha uma capoeira atrás e um pasto na frente, em declive.

A casa era grande; vista de longe, do fundo do pasto, embaixo, para quem chegava parecia quadrada, não fosse a despensa que avançava em forma de telheiro, numa aparência, ela só, de caixão de defunto. Subia-se ao alpendre por uma escada lateral, de poucos degraus de tábuas carunchosas que no verão estalavam e no inverno arrancavam sons ocos. O primeiro degrau era um enorme cepo de vinhático. Depois do alpendre, com duas janelas e uma porta, vinha a sala de visitas, vasta, de teto alto, adornada com uma escrivaninha de jacarandá que tinha tampos e fechos de prata, e ao lado o relógio de pêndulo que malhava, assustador, o silêncio das tardes e noites modorrentas. Uma porta abria-se à esquerda para um quarto onde eu dormia numa cama de couro de zebu e cuja janela dava para o já mencionado jenipapeiro. A janela era alta, porque a frente do casarão se apoiava em firmes e grossos esteios que iam diminuindo à medida que subia o declive, de forma que na frente da casa havia um porão ótimo para galinhas chocarem, pôr ovos e se revolverem na poeira. Guardavam-se ali velhas tábuas, ferramentas decrépitas, as vespas faziam casas e voejavam endoidecidas nos dias de verão intenso. A direita da sala começava um corredor não muito longo, mas escuro, e bem no meio dele desembocava um quarto comprido e úmido, que ia dar a uma janela minha vizinha e menos alta. Era o quarto do fantasma. O corredor findava numa ampla e já térrea sala de jantar, com outro quarto de dormir ao lado do quarto do fantasma, como ficou chamado. Comíamos numa mesa nua, orlada por dois bancos compridos, de madeira. Num dos cantos, junto à parede da cozinha, uma talha. A cozinha, à esquerda, possuía um fogão alto, sobre estacas; defronte, um pilão onde a negra Ana moía café torrado numa folha-de-flandres, de beiradas. A cozinha dava para a despensa, com armários, e abria para o terreiro. Uma pedra roliça servia de batente. Além do terreiro, um descampado que descia até o brejo. As árvores rareavam até se transformar em liquens, trepadeiras, samambaias ou o que quer que fosse, que eu nunca fui bom em botânica.

A casa do finado José, agora a casa do meu pai. Mas nela o que interessa mesmo é o quarto úmido c::de o fantasma boiava. O quarto começava por uma arca de cedro, pesadíssima, a um canto da parede, onde meu pai guardava instrumentos de carpintaria: serrote, serrotão, pua, trado, enxó, nível, escala, machada, fio de prumo, facões e coisas de vária serventia. Perto da janela ficava a cama, uma dessas camas antigas, de cabeceira alta. Em baixo da cama, o urinol. Em cima, uma telha de vidro por onde se divisava a madrugada, e que coava o sol quando o dia esquentava. Eu quase ia esquecendo, logo à entrada, um crucifixo de madeira, mostrando um Jesus agoniado, de rosto contraído pela dor, o Crucificado mais sombrio que já vi. Parecia real, o sangue quase escorria das feridas abertas nas mãos e nos joelhos pelos cravos. E a coroa de espinhos era metálica, penetrava fundo no couro cabeludo.

Meu pai, asmático, acordava muitas vezes durante a noite, sobretudo no inverno, para fumar cigarros de folhas de estramônio. Chiava, ofegante, recostado em travesseiros, enquanto minha mãe, já habituada, ferrava no sono, ao seu lado, ou, se desperta ante uma tosse mais renitente, murmurava queixas indistintas. Uns dez dias depois do prenúncio da ave agoureira meu pai acordou numa de suas crises, respirando como um fole; tateou a mesinha ao lado, à procura da caixa de fósforos, riscou um palito e acendeu a lamparina de querosene. À fraca luz da chama, depois de tirar a primeira baforada do estramônio e acomodar melhor as camadas dentro do peito, divisou então um vulto.

Não era bem um vulto — disse ele, no dia seguinte, calmo. Era um busto, apenas um busto a sobrenadar a escuridão do quarto. Sobrenadar, não. O busto pairava, entre o chão e o teto, como se fora uma neblina suspensa na manhã que mal se inicia. A metade de um homem, do tórax para cima. Claro que meu pai só chegou a formar imagem completa nos dias subseqüentes, porque naquela noite, percebida a névoa de contorno humano, apagou logo a lamparina, achegou-se à minha mãe e se esqueceu até de tossir. Dormiu mal, acordou de olhos remelentos e lacrimejantes, olhos encovados em bolsas flácidas.

A novidade não custou a se espalhar, primeiro entre os de casa. Iniciaram-se especulações de toda sorte, palpites partiam de um e de outro, todos intrigados, é claro.

"Será o finado José ainda penando no lugar em que morreu?"

Digo logo que esse finado José, meu avô, morrera não exatamente ali, mas a uns quinhentos metros, atrás da cancela. Voltava da feira, montado em cavalo esquipador, com uma barrica de aguardente no arção da sela, quando caiu do animal, que era árdego e lhe desferiu uma série de coices na cabeça, tronco e membros. Mas, de qualquer forma, que são quinhentos metros, meio quilômetro apenas, para uma alma que se pode deslocar sem o menor esforço, que entra e sai através de portas e janelas fechadas, que ultrapassa paredes? Esse o argumento de minha tia Nunila — e não foi contestado.

"Só pode ser o finado José."

"Talvez não seja. Justo é muito impressionado, pensou que viu alguma coisa", aparteou minha mãe, pessoa prática e teimosa para quem as coisas deste mundo já constituíam tormentos mais do que suficientes.

A dúvida permaneceu, só veio a ser desfeita quando meu pai, vencidos os temores iniciais, aventurou olhadelas para a coisa enevoada, primeiro furtivas, suspendendo rápido a ponta do cobertor, depois mais ousadas, e, por fim, cara a cara. O retrato do fantasma foi composto, ou recomposto, aos pedaços. O problema da barba, por exemplo: comprovou-se que ela era cerrada, mas não alta; uma barba que tomava ou fechava quase o rosto todo, confundindo-se com as costeletas, estas mais bastas e branqueadas; uma excelente e austera barba à antiga, dessas que impunham respeito, rendiam consideração, valiam mais que assinatura em letra promissória. A testa era estreita, o cabelo crescia logo em longos fios luxuriantes. Provavelmente o defunto era avesso ao barbeiro, só aparava as madeixas em última instância — e morrera bem necessitado de tesoura. Se era um fantasma vingativo, esta dúvida não tardou a ser aplacada. Porque o vulto, ou o busto, não se movia, não avançava pelo quarto, não franzia o sobrolho, não vincava a testa, não enrugava o canto da boca, não piscava os olhos, não fazia trejeitos zombeteiros. O rosto do fantasma não demonstrava amuo, queixa, recriminação, nem tentava qualquer aviso, qualquer comunicação com os terrenos que ali ressonavam na paz do quarto comprido e escuro como breu. Limitava-se a ficar suspenso, olhando. Meu pai logo• reconheceu o seu pai. Era, com efeito, o finado José. Por que voltara? Que desejava transmitir-lhe? Estaria pagando penitência? Nas madrugadas de crise asmática, fumando os cigarros de estramônio com filtro de algodão, meu pai vasculhava a memória, em busca de faltas. Nada encontrava digno de punição extraterrena. Ficara com a fazenda, é verdade, mas comprando a parte dos irmãos Romão Baptista e Justino. Não lhe arquejara o defunto, em vida, pouco antes de morrer, que confiava nele?
Travavam, o busto no meio do quarto e o busto na cama, um monólogo pouco esclarecedor. Nas noites em que minha mãe estava ausente, em visita a parentes ou amigos na cidade, meu pai achava até reconfortante a presença do vulto na casa enorme e vazia. O fantasma inspirava-lhe coragem contra possíveis assaltantes. Adquiriu até o hábito de, nos seus monólogos, dirigir-lhe a palavra, pedir conselhos, como fazia em vida ao finado José.

“Faço bem, meu pai?”

E tinha até a impressão de que o busto curvava de leve a cabeça, em vago aceno afirmativo.

Esse fantasma nem sombrio nem alegre, nem pacífico nem perseguidor, acabou sendo o pretexto há longo tempo buscado por minha mãe para mudar de vida, instalar-se na cidade, "viver como gente", como ela dizia em momentos de rabugice maior. Uma noite, meu pai dialogava com o vulto e, como se habituara a pensar em voz alta, despertou-a.

"Estou pensando em mandar João Gonçalves fazer nova estufa ...”

...
"O senhor acha que a safra deste ano vai ser boa?

"É isso mesmo, o cacau temporão promete. E o :.c-:=.po está propício, parece que teremos chuvas fra-
...,

"Se os birros vingarem todos, ou quase todos, vou colher aí umas duas mil arrobas. E precisarei de estufa.”

Minha mãe apurou os ouvidos, soergueu-se na cama e perguntou, zombeteira:

"Deu pra falar sozinho, homem? Já é caduquice?”

"Não", respondeu meu pai, distraído. "Estava conversando com o finado José."

“Com o finado ... o quê?”

Meu pai calou-se, tentou soprar a lamparina, mas antes disso os olhos de minha mãe deram com o quê não deviam dar: com o busto suspenso na escuridão esgarçada. O berro varou a noite, como um punhal de lâmina aguçada, e ela se meteu embaixo do cobertor, convulsa e conturbada. A casa acordou toda, batidas à porta não tardaram, ninguém dormiu mais. No dia seguinte começou de verdade a luta contra o fantasma. As primeiras providências couberam, como eu já disse no início, à minha tia Nunila, mas infeliz ou felizmente ela só sabia cuidar de seres deste mundo, que benzia com raminhos de alecrim e nos quais aplicava mastruço.

Os ramos de alecrim colocados no assoalho de tábuas de putumuju, no lugar do busto, murcharam com os dias — e o busto continuou a aparecer depois da meia-noite, com a mesma expressão severa mas resignada. Nunila tentou então as rezas. A mais forte, ensinada por uma curandeira que ela conhecera em Sergipe antes de emigrar para o sul, perguntava num dos seus mais expressivos quartetos:

Espírito das trevas
o que buscas?
Acaso pescas
em águas turvas?

O fantasma não deu resposta, nem em prosa nem em verso. Continuou a se mostrar todas as noites, teimoso, no mesmo lugar, com o mesmo olhar, a mesma barba, os mesmos olhos fixos como verrumas, mas que não doíam, não trespassavam ninguém. Exceto, é claro, minha mãe, que, depois da aventura daquela noite, se transferiu para o quarto ao lado, onde sepultava os terrores num sono de chumbo, ajudada por magnífico jantar. Claro que esta situação, camas separadas, quartos separados, não podia durar muito. "Não sou inglês", berrou meu pai, uma noite, sem mais preâmbulos, perdida a compostura. Queria dizer “não sou americano", mas detestava os ingleses, por que não sei. Minha mãe se recusou terminantemente a voltar à alcova, e ele, para não dar demonstração de fraqueza perante a família, também não quis renunciar à cama de dossel. Passaram dias emburrados, usando filhos e parentes como tabela para se dizerem apenas o essencial. Esses diálogos indiretos podiam ser assim resumidos:

"Pensando bem, é apenas um busto."

“Mas é um busto de pessoa morta."

"Tudo na vida depende do modo de ver", filosofou meu pai. "Por que não imagina que embaixo do busto há um pedestal?”

"Isso é faz-de-conta, é carochinha."

,”'Aliás, o quarto é grande e nu, um busto ali no meio até que enfeita ... "

As soluções começaram a germinar na cabeça de meu pai. Pensou, a princípio, em colocar um espelho em frente do busto; o finado José poderia espantar-se e desaparecer para sempre. Provavelmente os cabelos teriam crescido depois da morte. Não dizem os entendidos que, parado o coração, as unhas continuam a crescer no lodo da terra? Pensou em substituir a telha de vidro por uma telha comum, de barro. Pensou em ficar de atalaia, uma noite, no telhado, no sítio por onde se supunha que o fantasma entrasse — mas temia os resfriados, abominava correntes de ar.

Afinal, numa de suas viagens semanais à cidade, voltou com um busto de gesso, algo parecido com o do fantasma — e colocou-o no mesmo lugar onde o outro boiava.

"Pronto", anunciou ele à minha mãe. "Agora você pode dormir tranqüila.”

Minha mãe, desejosa de demonstrar boa-vontade, retornou à alcova, à cama de dossel. Inutilmente, porque não pregou olho. Era um remexer-se incessante, um coçar-se, um inquietar-se, um cuidado excessivo para que os pés não sobrassem do cobertor, ficassem expostos a puxões.

"Não posso", dizia ela, pedindo-lhe para acender a lamparina. "Sei que por cima do busto que você comprou está o outro. "

O busto era de gesso; objeto inútil, acabou dentro da arca de cedro. E minha mãe, cada vez mais assombrada, lançou o ultimato: a casa ou ela, o fantasma ou ela. Arrumou a mala e partiu, disposta a uma longa temporada na cidade. Meu pai coçou a cabeça, fingiu alheamento, mas, à noite, puxando fumaça do seu estramônio, estirou o beiço para o busto, como a perguntar:
“E agora?”

A idéia mais razoável para resolver a situação incômoda partiu de Joãozinho Feitosa, que só vestia terno preto, tinha fala macia e andava descalço. Calça e paletó pretos, sempre, e um chapéu de feltro de tira preta, que ele quebrava na frente; adquiria com isso um ar gaiato, de bravata e de audácia, que em absoluto se coadunava à sua pessoa triste. Vendo-o passar nas estradas e tirar o chapéu para o cumprimento, eu pensava: "Vai a algum velório." Esse Joãozinho Feitosa, dizia-se que um primo distanciado de minha mãe, servia de mote a brincadeiras de meu pai. Nos momentos em que Justo estava de bom humor, o que lhe acontecia raro, porque os negócios nem sempre corriam bem, ou a sua sovinice nunca se dava por satisfeita, parodiava a letra de Scrivimi:

Tu me deste uma rosa,
ó Joãozinho Feitosa ...

Minha mãe respondia às risadas com muxoxos vexados que, às vezes, de tão soturnos, estancavam o riso, detinham a relembrança do seu namoro antigo com o primo macambúzio. Se é que houvera mesmo namoro. Nas visitas do primo pobre tratava-o com cerimônia, punha-o a distância. Joãozinho aparecia sempre bem barbeado, com a pele azulada no queixo e até o meio das bochechas, mas entre os dedos dos pés percebia-se a lama seca dos caminhos.

Pois foi esse Joãozinho Feitosa quem sugeriu afinal a idéia que, se não solucionou o problema do fantasma, deu pelo menos um rumo mais decente à nossa vida, de acordo com o figurino da civilização defendido por minha mãe em momentos de zanga, angústia e desespero: a mudança para a cidade. Com os olhos compridos pousados no dedão do pé direito, que ele mexiam como a traçar sinais misteriosos nas tábuas do alpendre, Joãozinho avançou em voz tímida:

"Conheço um rezador de primeira ordem."

“'Quem, Joãozinho?”

“Tomé de Arapiraca.”

Não era bem um rezador; era, segundo eu já ouvira falar, um pai-de-santo que recebia o espírito de um caboclo adivinhador e versejador. Meu pai, que só acreditava na natureza como princípio e fim de todas as filosofias e crenças ("deixe que a natureza resolve" era sua frase favorita), enfraqueceu o entusiasmo recém-desperto, mas como perdera dois sacos de cacau seco tirados noite velha por baixo do zinco da barcaça, sem que o cachorro latisse contra o ladrão sutil, viu aí a esperança de reaver o que era seu, quem sabe? Quanto ao fantasma, ele pouco estava ligando, habituara-se ao busto enevoado — mas se o exorcismo de Tomé de Arapiraca o devolvesse às profundas do céu ou do purgatório, devolvendo a ele, Justo, a mulher e a :;paz,, tanto melhor.

"Quanto o homem cobra, Joãozinho?"

"Nada, não aceita um dez réis. Você tem de levar apenas uma garrafa de aguardente, que é o que ele sempre pede. E, às vezes, charutos ordinários, grossos, do tipo escora-carroça.”

Meu pai resolveu ir, por desfastio. Não tinha o que fazer, estava-se no paradeiro — tempo terrível, de verão,, entre a última safra e a vindoura, quando o dinheiro ea curto e as cismas mais longas. Joãozinho nos conduziu, certa manhã, ao terreiro. Filho mais velho, admitiram-me na comitiva, a princípio com relutância, depois com leve condescendência — a mesma relutância e a mesma condescendência com que às vezes falavam de mulheres, longe dos ouvidos de minha mãe e a distância razoável dos meus. E assim, eles na frente, eu um pouco atrás, a distância respeitosa, desembocamos no terreiro de Tomé de Arapiraca, que estava varrido e seco, e onde algumas pessoas fumavam, caídas de cócoras, numa posição que durou muito e me provocou angústia. Até que o rezador apareceu, de olhar estremunhado. Ou estivera dormindo ou em transe.

Não vou descrever tudo o que Tomé de Arapiraca fez e falou; a parte importante é a dos versos. Digo, porém, que invocado o espírito adivinhador e formado o círculo de assistentes, o homem entrou em convulsões, e nestas, braços, pernas e ventre tiveram muito trabalho. Temi que ele fosse se desconjuntar; sem dúvida aquilo exigia muito preparo físico, que eu jamais poderia associar à carne seca com farinha e rapadura, prato único no cardápio dos pobres. Recebido o espírito, que se ajustou no seu corpo com uns espasmos derradeiros e umas torções de quem tenta encaixar a carne em roupa apertada, Tomé de Arapiraca, sujeito ainda moço, denunciou quem desencaminhara certa moça ultimamente muito falada na Baixa Grande. E antes de responder à primeira consulta transmitida em voz baixa por Joãozinho Feitosa (o furto do cacau tinha prioridade), deu três voltas completas pelo círculo de assistentes, com a garrafa de aguardente destampada sobre a cabeça e a dançar. Não caiu uma só gota.

Depois que o sol se deita
o mal caminha do Leste.
A morte a mão lhe enfeita.
com o que tira, se veste.

"Um ladrão profissional, sem dúvida", cochichou meu pai no ouvido de Joãozinho Feitosa. "Com o que tira, se veste.”

“E mora onde nasce o sol", lembrou Joãozinho.” 'Isto mesmo, no Leste. “

Conclusões fáceis para quem, como meu pai, matava charadas novíssimas com o auxílio do dicionário pratico e ilustrado de Jayme de Séguier, distração predileta nos domingos, quando não havia visitas. Charadas bem mais difíceis do que os versos do caboclo adivinhador ele já matara, como, por exemplo uma que lhe fora proposta em mesa do bar de Carneiro, na cidade, enquanto disputavam pôquer de dados atirados chocalhados num copo de couro, para ver quem pagaria a rodada de cerveja. No meio da sociedade a honra cambaleia. Uma e duas. Ébrio. E aquela outra, um primor de composição: Rente ao túmulo de Jesus, chorava Madalena sem coragem e com temor. Uma e duas. Respeito. Chegara 2.té a matar, depois de semanas de duro labor, uma péssima charada que haviam dedicado a um sujeito chamado Edgar, vendeiro que usava um toco de lápis grosso atrás da orelha cabeluda e passara tardes debruçado no balcão, sobre folhas de papel almaço, tentando em vão decifrá-la. O homem tem garbo de ser homem. Uma e uma. Edgar. Ed, afinal de contas, não é nome de ninguém, e o recurso de tirar gar de garbo era burrice de charadista inepto.

Mas o Leste era vasto e razoavelmente habitado: coronéis e suas famílias, administradores, agregados, lobisomens. Quem seria o ladrão? Ladrão, ladravaz. O cérebro de meu pai trabalhava. Caminha, portanto não tem cavalo. Caminha do Leste. Gente pobre ou remediada. Furta para se vestir, está claro. Se tem terra, ela não dá colheita. Estéril. Sáfara. Árida. Ou talvez não desse colheita porque o homem não plantava. O homem seria um preguiçoso de nascença, conhecia muitos assim. Habituara-se sem dúvida a furtar e a roubar, as coisas lhe chegavam fáceis, o de-comer não faltava, então por que se esfalfar? A morte a mão lhe enfeita.

Verso obscuro. A morte enfeitando uma mão?

Só se fosse vela, a vela que enfiam na mão do defunto. Mas não, o homem estava bem vivo, furtara-lhe o cacau com arte, nem sequer despertara o cão. É bem verdade que Vesúvio estava velho, de ouvidos moucos. Eu tive um cão, chamava-se Veludo ... Lá estava meu pai outra vez a divagar. Gozado como uma palavra puxa outra; os pensamentos surgem atrelados, a reboque. A morte a mão ...

"Matei.”

Naquele justo instante Tomé de Arapiraca soltava um dos seus maiores pinotes, sempre com a garrafa de aguardente equilibrada no alto da cabeça, como se ali pregada com visgo de jaca. Joãozinho Feitosa, que tinha os olhos ferrados em Tomé, nas cabriolas de Tomé, estremeceu:

"O quê?"

"Matei, Joãozinho, matei. Quem é que mora no Leste, não trabalha, tem uma filharada para sustentar e vive por aí, caminhando ao léu, com uma espingarda na mão?”

'Petronílio.”

"Exato, Petronílio”

"Pois se foi ele, homem, e tudo indica que foi, perca a esperança. Ninguém nunca descobriu. Se desconfia, ele dá mesmo o que falar, mas provar é o diabo. Acabou-se”.

Tomé de Arapiraca deu outra volta no terreiro, a garrafa presa no cocuruto, sem derramar uma única gota: Os olhos rolaram, brancos, na direção de meu pai. Pareciam vidros foscos, ou contas espetadas em bruxas de pano pra acalentar meninas pobres.

“Agora", anunciou Tomé, "vou responder à sua segunda pergunta.”

Os lábios grossos abriram-se como feridas vermelhas e inchadas em volta do charuto grosso. Tomé de Arapiraca se concentrou, levantou os braços, invocou o espírito das musas caboclas.

No livro está a resposta
à penitência do vulto.
Ninguém volta porque gosta,
mas para achar o oculto.

Era o problema do fantasma. Ainda ébrio pela descoberta do ladrão — descoberta inútil, mas que intelectualmente daria os seus dividendos na família e na roda de amigos — meu pai teve o cuidado de anotar o enigma numa caderneta que sempre trazia no bolso traseiro da calça, para quando lhe tomavam dinheiro emprestado fora de casa, ou um trabalhador pedia um adiantamento no meio da semana, longe do livro-caixa que ele herdara do finado José. No caminho de volta, releu os versos, as mãos tremeram, os olhos cresceram.

"Isto está me cheirando a botijão de ouro, Joãozinho.”

Joãozinho Feitosa concordou: onde havia fantasma, havia botija de moedas antigas, enterradas bem fundo. Ou ocultas de outra forma, talvez em paredes, entre caibros e vigas, debaixo do assoalho. Não tocara nisso antes para não provocar inquietação e mal-estar na família. O finado José fora um sovina de marca maior; ao sentir as primeiras pontadas da velhice, talvez uma voz interior lhe houvesse soprado: "Esconde o que é teu para não teres de repartir com os filhos. Precisarás do que amealhaste quando perderes as forças. Sabes como são os filhos: crescem, se desapegam, o pai se transforma num estranho para eles. Tu mesmo conheces casos de pais corridos porta a fora ...”

Nesse ponto tive de correr atrás deles, porque meu pai, se não corria propriamente, trotava, e Joãozinho Feitosa teve de fechar o paletó negro de abas desfraldadas ao vento. Paramos apenas no alpendre o tempo necessário para recobrar o fôlego. Na respiração ofegante de meu pai não ouvi o chiado característico do asmático. As camadas estavam perfeitamente superpostas dentro do seu peito.

No livro está a resposta ...

E meu pai atirou-se à estante, que era modesta, como convém a um homem trabalhador; quem pega no pesado não tem tempo para esses luxos. Romance é coisa pra moças, mesmo assim as que se comprazem no ócio, indiferentes às rendas e bordados, honestas prendas que rareiam hoje em dia. Mas uma leiturazinha pra encher um domingo, um bom enredo à maneira de Pérez Escrich não fazem mal a ninguém. Atiçam a imaginação, um homem também precisa de uma pitada de sonho pra temperar esta vida.

Meu pai começou a busca por um livro que passara de mão em mão na família e todos acharam genial, mas muito triste, muito pesaroso: A Toutinegra do Moinho. Sacudiu-o, folheou-o e nada encontrou. Releu o título. Depois foi a vez de Eugêne Sue e Victor Hugo. O Diamante Maldito, enredo policial muito do seu agrado, nada lhe revelou também. Por fim, numa brochura já sem capa, intitulada Olhos Fascinadores, seu coração quase parou. Lá estava um pedaço de papel. Meu pai desdobrou-o com lentidão. O sangue lhe subira ao rosto. Lembrava-se de uma estória que lhe tinham contado, de um sujeito que sofria do coração e acertara na sorte grande. A família, para não matá-lo com o choque, começou com rodeios: "Imagine se você um dia comprasse um bilhete de loteria ..." E foi assim., num crescendo, até soltar a revelação final e o desgraçado soltar o último alento.

Mas o papel continha apenas um soneto parnasiano, da lavra de meu pai, pecado cometido na juventude, quando ele namorava uma moça gorda que veio a casar deois com um comerciante. Orgulhoso e para que não irassem dúvidas quanto à autoria, meu pai escrevera antes de sua assinatura, embaixo: "Do próprio punho. E datara. O soneto cantava os tormentos marítimos de Ulisses:

Da vasta noite a estrela peregrina
banha a galera de níveos lavores;
dos golpes de remo os leves rumores
ferem o silêncio ermo da piscina.

(Piscina era o Mediterrâneo: licença poética e necessidade de rima.)

Eis que, rompendo a paz d'hora divina
suavíssimo e doce canto se alteia.
Das glaucas ondas ergue-se u' a sereia
esplendorosa, nua, serpentina.
Treme Ulisses sentindo-se arrastado;
a tentadora, mui perto, ao costado,
quer atraí-lo c'o encanto e sedução.
Resiste o herói grego; e em grave apelo
convence a marinhagem a prendê-lo
ao pé do mastro, fugindo à tentação.

Não era hora de sonetos, mas meu pai, apesar de homem prático também um esteta, releu-o, empostando a voz, para deleite meu e de Joãozinho Feitosa. Que rimas, hem? Ricas, sonoras. E pode contar as sílabas nos dedos, tudo certinho, medido. Aqui não tem pé quebrado.

"Tem idéia, tem vigor. Até parece que estou vendo a cena", concordou Joãozinho Feitosa, com um princípio de baba num dos cantos da boca.

Passada a euforia dos dois quartetos e dois tercetos sem fecho de ouro, mas de lavor clássico, meu pai voltou à caça ao tesouro. Não havia criptograma a decifrar, como no caso dos dançarinos de Conan Doyle, nem fio a ser esticado por entre a órbita de uma caveira, como no escaravelho de Poe. Havia apenas um livro a procurar. E ele virou e mexeu, sacudiu e folheou fascículos, brochuras, almanaques, uma coleção inteira de Chácaras e Quintaes, sob o olhar expectante de Joãozinho Feitosa, que não perdia um movimento seu. Esgotada a biblioteca familiar, caiu em desânimo, procurou uma cadeira.

“Acho que Tomé de Arapiraca se enganou desta vez."

“Procurou bem?”

“Já olhei tudo."

Os olhos de meu pai erraram, pesarosos, pela sala, fixaram-se na pêndula que ia e vinha, deram com pitangas maduras além da janela aberta, retrocederam e pousaram com desgosto na escrivaninha de tampos e fechos de prata, bem precisada de uma limpeza. O pó se acumulava nas beiras, a negra Ana ia levar um carão. Se por fora era o que se via, imagine-se por dentro ... Provavelmente as traças se banqueteavam, comiam algarismos, contas amareleciam sob uma camada de bolor e poeira. O livro-caixa ...

“O livro-caixa," berrou, pondo-se de pé num salto de menino novo.

"Eu não dizia?" animou-se Joãozinho Feitosa.

Examinado às pressas, o livro-caixa revelou numa de suas mais antigas anotações, antes do meu pai começar a escriturá-lo, uma entrada de cinco contos de réis, na coluna do haver, mas que não fora registrada; a partir daí, não aparecia mais em nenhum balanço. Os cincos contos, fruto talvez de alguma venda, de uma herança ou de um jogo feliz, haviam desaparecido. Ora, moedas de ouro não se dissolvem no ar, o defunto era muito cuidadoso nas suas anotações.

"Escondeu", disse Joãozinho Feitosa, na sua fala mansa e irretorquível. "Pensava viver muito tempo ainda, mas quem esconde com fome o rato vem e come."

Na sua alegria doida meu pai deixou passar em branco a alusão, que, aliás, não fora proferida de propósito, para ferir. Interessava-lhe apenas a conclusão, clara, meridiana, ardente como a luz do sol: havia dinheiro naquela casa, um monte de moedas que valiam hoje uma fortuna. O ouro explicava a presença do busto fantasmal na escuridão do quarto. O danado do meu avô era mesmo apegado ao dinheiro, sim senhor. Mas onde? Descontados os objetos novos, os trastes introduzidos por meu pai depois do casamento, após a morte do finado José, restava a casa inteira, um casarão. Onde?

Essa pergunta ele ainda fazia depois de várias noites de sono difícil e de consultas inúteis ao fantasma. Pensou em sessão espírita, mas isso demandaria tempo e dinheiro, e depois o finado talvez não quisesse entrar em pormenores. Pensou em arrancar do quarto as tábuas de putumuju, derrubar as paredes — mas a casa era muito velha, podia vir abaixo. Minha mãe é que tinha razão: Virgílio cantara os prazeres do campo, a satisfação das lavouras, mas naquele tempo o mundo era outro. Meu pai procurou as palavras exatas. Bucólico. Contemplativo. Jograis e menestréis percorriam os caminhos, carruagens rolavam, espadachins disputavam o amor fervoroso de castas donzelas.

Não, isso foi depois. O meio sorriso de Mona Lisa podia ser enigmático, mas para ele era demonstração de safadeza da mulher. E a Maja Desnuda, que inocência em todo o corpo exposto... Lá estava ele outra vez a divagar. E deitado sobre ou sob um monte de ouro, fumando o seu estramônio. A valorização do ouro... Sol lucet omnibus, ensinava o dicionário de Jayme de Séguier, na parte das citações latinas. Amor omnia vincit. Quem veio em seu auxílio, afinal, foi o mano Justino, através de uma frase de sentido obscuro, quando recolhera numa festa, com as mãos, um frango que resvalara da travessa: "Levou-os que trouxe! "

"Danou-se, danado está", soprou-lhe o seu outro irmão, Romão Baptista, que sempre tivera queda para o• maldito. Meu. pai examinaria caibros, vigas, cumeeiras, esteios, adobes, o diabo. Os meninos precisavam de escola decente na cidade, aquilo não era vida. Chico de Luanda, seu antigo tutor, aprovaria a resolução: "Isto mesmo, homem, sua família merece o melhor. Acima de tudo, a família."

A casa era grande, desceu aos poucos à superficie da terra. João Gonçalves, o mesmo que a levantara, veio derrubá-la e começou pelos fundos, a parte mais baixa, onde seria possível pular-se do telhado sobre um barranco. As telhas, outrora gosmentas e cor de barro novo, estavam agora encardidas; empilhadas, arrimadas umas às outras, cobriram vasta extensão do terreno que descia suavemente para o brejo; os caibros e vigas, ainda rijos foram amontoados numa clareira do bosque, depois que meu pai os examinou de ponta a. ponta e neles bateu com um martelo em busca de sons ocos; as paredes desceram a golpes de marreta, os adobes sanearam uma parte do brejo, esfarinhados; as tábuas do assoalho, de um putumuju precioso, ainda amarelado apesar do tempo, ele guardou num galpão construído especialmente para esse fim; chegou, por fim, a vez dos esteios — e os de baixo, que sustentavam o alpendre, a sala de visitas, o quarto de cama de couro de zebu e o quarto do fantasma, revelaram, ao serem balançados e arrastados à força de cordas e de braços, apenas buracos. No lugar da casa restou um terreno seco, batido e quase branco, onde a chuva só entrava de enxurrada; visto de baixo, para quem chegava, parecia campo de pouso. A madeira que lá ficou deve estar hoje apodrecida, de mistura com a terra, as ervas daninhas que não tardaram a crescer e muitas chuvas.

Perdemos o tesouro, que esse não foi mesmo encontrado, mas em compensação mudamos para a cidade, adquirimos hábitos compatíveis com o grau de civilização a que aludia minha mãe; por muito tempo ela deixou de soltar muxoxos rezingueiros, mesmo quando falavam, de brincadeira, em Joãozinho Feitosa — mas os muxoxos voltariam, anos depois, quando se enamorou de uma casa na beira da praia. Meu pai tornou-se muito hábil no pôquer e se esqueceu das charadas. E eu entrei no tiro-de-guerra, bem defronte à casa de umas primas que me admiravam o buço nascente. E o fantasma? Mudou-se também. Ainda pairou enevoado, alguns dias, no mesmo lugar, mas depois se desapegou das suas moedas de ouro, ou então foi por elas atraído até a casa de um vizinho, o Petronílio. Não falta quem veja na sua prosperidade súbita e suspeita, traduzida num grande armazém de secos e molhados na cidade, :.a bosque, depois que meu pai os examinou de ponta :. ponta e neles bateu com um martelo em busca de Süns ocos; as paredes desceram a golpes de marreta, os a.::S.obes sanearam uma parte do brejo, esfarinhados; as "i2.buas do assoalho, de um putumuju precioso, ainda ~arelado apesar do tempo, ele guardou num galpão eonstruído especialmente para esse fim; chegou, por '<;m, a vez dos esteios - e os de baixo, que sustenta.am o alpendre, a sala de visitas, o quarto de cama de couro de zebu e o quarto do fantasma, revelaram, ao serem balançados e arrastados à força de cordas e de braços, apenas buracos. No lugar da casa restou um terreno seco, batido e quase branco, onde a chuva só entrava de enxurrada; visto de baixo, para quem chegava, parecia campo de pouso. A madeira que lá ficou deve estar hoje apodrecida, de mistura com a terra, as ervas daninhas que não tardaram a crescer e muitas chuvas. Perdemos o tesouro, que esse não foi mesmo encontrado, mas em compensação mudamos para a cidade, adquirimos hábitos compatíveis com o grau de civilização a que aludia minha mãe; por muito tempo ela deixou de soltar muxoxos rezingueiros, mesmo quando falavam brincando em Joãozinho Feitosa — mas os muxoxos voltariam, anos depois, quando se enamorou de uma casa na beira da praia. Meu pai tornou-se muito hábil no pôquer e se esqueceu das charadas. E eu entrei no tiro-de-guerra, bem defronte à casa de umas primas que me admiravam o buço nascente. E o fantasma? Mudou-se também. Ainda pairou enevoado, alguns dias, no mesmo lugar, mas depois se desapegou das suas moedas de ouro, ou então foi por elas atraído até a casa de um vizinho, o Petronílio. Não falta quem veja na sua prosperidade súbita e suspeita, traduzida num grande armazém de secos e molhados na cidade, e casa própria numa rua das melhores, a descoberta do botijão. Preocupado com paredes, caibros e assoalhos, meu pai esqueceu-se de escavar o porão. Quando um de nós o recrimina, fingindo seriedade, ele levanta os ombros até o queixo magro, como a dizer: "Danou-se, danado está" — filosofia que, com o peso da velhice, vai substituindo aquela outra, aquela que manda deixar porque a natureza é que resolve.
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Fonte: PÓLVORA, Hélio. Noites Vivas.