terça-feira, 18 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 6 de maio: Uma Visita ao Estabelecimento Óptico do Reis


Ontem, por volta de nove horas do dia, saí de casa com tenção de visitar o novo estabelecimento óptico do Reis, à Rua do Hospício nº. 71.

Tinham-se feito tantos elogios deste armazém, do seu arranjo e elegância, que assentei de julga-lo pelos meus próprios olhos.

Não foi, porém, esta a única razão que  excitou a minha curiosidade. O que principalmente me levava àquela casa era um sentimento egoísta, um desejo de míope.

Les yeux sont les fenêtres de l’âme, diz Alfonse Karr num livrinho espirituoso que dedicou às mulheres

Ora, há muitas almas que têm a felicidade de poderem de manhã cedo abrirem as suas janelas de par em par, e se debruçarem nelas para espreitarem o que se passa diante do nariz.

Outras mais modestas, como as almas das mocinhas tímidas, abrem a meio as suas janelas, mas se escondem por detrás das gelosias que formam seus longos cílios de seda; e assim vêem tudo sem serem vistas

Algumas, porém, são tão felizes, que, quando abrem as suas janelas, vêem-se obrigadas a descerem imediatamente as empanadas. Estas são as almas dos míopes que usam de óculos fixos.

Estou, portanto, convencido que as janelas d’alma são em tudo e por tudo semelhantes às janelas das casas, com a única diferença do arquiteto.

Assim, há olhos de sacada, de peitoril, de persianas, de empanadas, de cortinas, da mesma maneira que há janelas azuis, pretas, verdes, de forma chinesa ou de estilo gótico.

Essas janelas d’alma são de todo o tamanho.

Umas excedem a medida da Câmara Municipal, e deviam ser multadas porque afetam a ordem e o sossego público; são os olhos grandes de mulher bonita.

Outras não passam de pequenas frestas ou seteiras, como certos olhos pequeninos e buliçosos que, quando olham, fazem cócegas dentro do coração. 

O que, porém, dava matéria a um estudo muito interessante é o modo por que a alma costuma chegar à janela.

A alma é mulher, e como tal padece do mal de Eva, da curiosidade; por isso, apenas há o menor barulho nas ruas, faz o mesmo que qualquer menina janeleira, atira a costura ao lado e corre à varanda.

Entretanto cada um tem o seu sistema diferente.

As almas francas e leais debruçam-se inteiramente na sacada, sorriem ao amigo que passa, cumprimentam os conhecidos, e às vezes oferecem a casa a algum dos seus íntimos.

Outras, ao contrário, nunca se reclinam à janela, ficam sempre por detrás da cortina, e olham o que se passa por uma pequena fresta. Deste número são as almas dos diplomatas, dos jesuítas e dos ministros de Estado.

Em compensação, há também algumas almas que, quando pilham um espírito descuidado, saltam pela janela como um estudante vadio, e vão flanar pelas estrelas, abandonando por um instante o corpo, seu hóspede e companheiro.

Animula vagula, blandula,
Hospescomesque corporis.

As almas andaluzitas, e de algumas mulheres coquettes que eu conheço, têm um costume mui lindo de chegar à janela.

Escondem-se e começam a brincar com as cortinas, a fazer tantos requebros graciosos, tantos meneios encantadores, que seduzem e martirizam um homem.

Para exprimir esta travessura d’alma na janela, os espanhóis inventaram uma palavra mui doce, o verbo ojear, que não tem tradução nas outras línguas.

Ia eu meu caminho, pensando em todas estas coisas, e formando um plano de estudo sobre as janelas d’alma, quando encontrei um amigo que se prestou a me acompanhar.

Chegamos juntos ao armazém óptico da Rua do Hospício nº. 71. O seu proprietário nos recebeu com toda a amabilidade e cortesia, e nos mostrou o seu estabelecimento.

Com efeito, não eram exagerados os elogios que me tinham feito dessa casa, onde se encontra um sortimento completo de instrumentos e objetos de óptica, tudo perfeito e bem acabado.

Vi um telescópio que me asseguraram se o melhor que existe no Rio de Janeiro atualmente, e com o auxílio do qual pode um homem uma bela noite ir fazer uma visita aos planetas e examinar de perto os anéis de Saturno.

Vi muitos outros instrumentos para medir as distâncias, tomar as alturas das montanhas, estudar as variações da atmosfera, muita coisa enfim que os nossos avós teriam de certo classificado como bruxaria.

Chegamos finalmente, aos óculos, e entre todos aqueles primores d’arte, no meio de tantos trabalhos delicados e de tantas invenções admiráveis, causou-me reparo uma velha luneta de grossos aros de tartaruga, de feitio tão grosseiro que me pareceu ser uma das primeiras obras do inventor dos óculos.

Estava metida numa caixa de marroquim roxo, sobre o qual se destacavam uns traços apagados, que me pareciam de letras desconhecidas de alguma língua antiga.

Disse-me o proprietário que esta luneta lhe viera por acaso entre uma coleção de elegantes pince-nez que lhe chegara ultimamente da Europa; excedia o número da fatura, o que fazia supor que naturalmente tinha-se confundido com as outras, quando o fabricante as arrumara na caixa.

Embora não me dê a estudos de antiquário, contudo aprecio esses objetos de outros tempos, que muitas vezes podem ter um caráter histórico.

Continuei a examinar a luneta, levei-a aos olhos, e por acaso fitei o amigo que me acompanhava.

Horresco referens!

Li na boca do meu companheiro, em letras encarnadas, estas formais palavras:

- Forte maçante! Está me fazendo perder o tempo!

Agarrei mais que depressa a minha alma que ia lançar-se à janela; e, disfarçando a minha surpresa, voltei-me para o proprietário.

Através do seu ar amável e cortês, li ainda o seguinte:

- Que extravagância! Com tantos óculos bonitos, ocupar-se com uma luneta velha que não vale nada!

Enfim, olhei para o caixeiro da casa, e vi imediatamente a tradução de um sorriso complacente que lhe assomava nos lábios:

- Ah! se o homem me livra deste alcaide! Dizia o sorriso do caixeiro.

Não havia que duvidar. Tinha em meu poder a célebre luneta mágica de que falam os sábios antigos. Comprei-a por uma bagatela, apesar da insistência do proprietário que não queria abrir preço a um traste velho e sem valia.

Despedi-me do meu amigo, pedindo que desculpasse a maçada, guardei com todo o cuidado a minha luneta, e segui o meu caminho.

Precisava refletir.

 Como é que aquele vidro mágico que se perdera na antiguidade, e que depois Frederico Soulié achou nas Memórias do Diabo, o emprestou um instante a Luigi, se achava nesse momento na minha algibeira?

Por que fatalidade o lorgnon de Delfina Gay viera parar ao Rio de Janeiro, e se achava naquela casa, desconhecido, ignorado de todos, podendo cair nas mãos do chefe de polícia, que então se veria obrigado a prender nove décimos da cidade?

Pensem que turbilhão de idéias, que torvelinho de pensamentos, me agitava a mente  exaltada por este fato. Visões fantásticas surgiram de repente começavam a dançar um sabbat vertiginoso no meu cérebro escandecido.

Via cenas do Roberto do Diabo, de Macbeth, do Paraíso Perdido e da Divina Comédia, mais bem pintadas do que as de Bragaldi, de Dante, de Milton, e de todos os pintores e poetas do mundo.

Enfim, decidi-me e fui almoçar.

O almoço – e especialmente o almoço diplomático e parlamentar – é um dos mais poderosos calmantes que eu conheço. Atua sobre o espírito pelo sistema homeopático.

Se este ano pudesse haver a mais pequena sombra de oposição, aconselharia os ministros que pusessem em voga nesta estação os almoços parlamentares.

Depois de almoçar, senti-me mais senhor de mim, e pude refletir friamente sobre a posse da minha luneta.

Lembrei-me que era escritor, e avaliei o alcance imenso que tinha para mim aquele vidro mágico.

Bastavam-me três ou quatro coups de lorgnon, para escrever uma revista que antes me roubava bem boas horas de descanso e sossego.

Não precisava mais estar preso a uma banca, a escrever, a riscar, a contar as tábuas do teto em busca de uma idéia a esgrimir contra a musa rebelde.

O meu folhetim tornava-se um agradável passeio, um  doce espaciar, olhando à direita e à esquerda, medindo a calçada a passos lentos, e rindo-me das coisas engraçadas que me revelaria a minha luneta.

Assim, pois, não é um artigo ao correr da pena que ides hoje ler, mas um simples passeio, uma revista ao correr dos olhos

São duas horas.

É a hora da flânerie parlamentar.

Lá vêm braço a braço dois deputados oposicionistas.

Oposicionistas?... Quero dizer queixosos. Oposicionista é uma palavra  antediluviana, cujo sentido se perdeu na confusão das línguas da Torre de Babel, e que naturalmente existiu no tempo que havia governo.

 Oposicionistas ou queixosos eram dois belos tipos a estudar. Isto é, eu pensava que eram dois: mas, fitando-lhes a minha luneta, vi com pasmo que ambos pensavam não só da mesma maneira, mas com as mesmas palavras.

- A falar a verdade, diziam os olhos de ambos, é uma asneira comprometer-me com o ministério, que parece estar seguro a duas amarras. O melhor é esperar!... entretanto vamos a ver se este sujeitinho, que aqui vai, toma a coisa ao sério, e mete-se na corriola!...

Quase ao mesmo tempo em que terminavam esta idéia luminosa, um deles virou-se para o outro:

- Então sempre está decidido?

- De pedra e cal.

- Pois conta comigo.

Um sorriso, um aperto de mão, e separaram-se na mais estreita entente cordiale.

Um tomou a direção do Caminho Novo de Botafogo; o outro entrou no Jornal do Comércio.

Estava ainda moralizando o fato, em pé na porta do Walerstein, quando descobri um moço político, esperanças da pátria, que vinha mordendo os beiços de uma maneira desesperada.

- Que lhe terá acontecido? Disse eu comigo.

E assestei-lhe a luneta.

Um interessante monólogo, que tinha lugar no seu espírito, acompanhava as furiosas mordeduras de beiços.

- Que época! Que época! pensava o homem. Le monde va de mal em pire.Tudo se profana! Tudo se desmoraliza!

“Não há mais crédito senão no comércio. Em política é vender a dinheiro e não fiar de ninguém.

“Esses oradores, que prometiam esmagar o ministério, nem se atrevem a tocar na casa dos marimbondos; antes de começarem os discursos, já adoçaram a boca; já beberam o copo d’água com açúcar.

“No tempo de Cícero e Demóstenes não se usava o copo d’água com açúcar; por isso nota-se que o estilo daqueles famosos oradores é forte e vigoroso. 

“Os de hoje, ao contrário, levam mel pelos beiços, e por isso têm sempre palavrinhas doces e açucaradas.

“E tenha um homem princípios numa quadra como esta! Tudo é mentira! Tudo é falsidade!

“Fronti nulla fides! Não há homem hoje em dia no qual se possa acreditar.

“Até o reverendo consta-nos do Jornal do Comércio já não é uma verdade oficial, uma confidência de ministros, uma página da pasta....

”Esse pigeon ministerial, mensageiro fiel dos segredos de Estado, tornou-se velho, mudou de penas, e hoje não passa de um canard, que por aí anda mariscando à beira da praia os poissons de primeiro de abril!

“Há dias fez o Sr. José Ricardo tomar posse da presidência duas vezes; ontem nomeou um Chefe de Polícia que infelizmente o Ministro da Justiça não quis confirmar”.

Neste ponto do diálogo o nosso filósofo dobrou a esquina de modo que não pude mais acompanhar o seu monólogo.

Voltando-me, dei com um representante de província que caiu sob o raio do meu lorgnon.

Estava ocupado a guardar um livrinho verde; o seu Agenda.

Veio-me a curiosidade de ler uma página desse livro; e com o auxílio da luneta o consegui.
A primeira folha rezava assim:

LEMBRANÇAS

1.º - Encomendar um fraque de cor no Dagnan, e visitar os ministros.
2.º - Projeto para que se trate seriamente de providenciar a respeito do papel existente no mercado, a fim de que não se sinta falta com o consumo feito em regulamentos.
3.º - Proposta para que se autorize o governo a confeccionar um  regimento de custas para a Câmara dos Deputados, com o fim de estimular o trabalho e fazer com que se abra a assembléia no dia marcado.

Pouco depois do representante, passou um folhetinista dando o braço a um personagem importante.

- Então como é isso? Dizia o personagem; desvaneceu-se a nuvem negra? Não há mais oposição?

- Não; tudo isto acabou.

- Ora, senhor...

- De que se admira, meu amigo?

- Pois esses homens que gritavam tanto...

- Ouviram a missa do Espírito Santo, meu caro.

- E então?...

- Ficaram inspirados.

- Ah! Intendo, como diz o Gentile.

- Por falar nisto, retrucou o folhetinista, lembra-se que na ocasião da abertura da assembléia, a música tocava a ária de tenor do 4.º ato do Trovador: Madre infelice, corro a salvarti!.... 

- Seria uma alusão?

- Não sei, meu amigo; mas a época é de calembures e trocadilhos..

Enganei-me: é um correio de ministro vestido em grande uniforme.

Depois que os estafetas de correio adotaram a jaqueta de pano com vivos, é justo que o estafeta do ministro, que constitui a aristocracia da classe, recorra à sobrecasaca militar. A tout seigneur tout honneur.

Tinha já visto tanta coisa, faltava-me ver o que existe dentro de uma pasta de ministro.

Em primeiro lugar, havia o rascunho de um projeto para estabelecer o emprego de escritor público, à guisa do promotor, do professor e do advogado público.

Necessidade de marcar-se um bom ordenado ao escritor público, o qual deve ser examinado como o professor, e marchar de acordo com a polícia como o promotor.

Vi também os papéis relativos à nomeação do novo inspetor da instrução pública, lugar que exerce interinamente o ilustrado e infatigável Dr. Pacheco da Silva.

Entre os nomes li o do Sr. Visconde de Sapucaí, do Sr. Marquês de Abrantes, e de muitas outras pessoas habilitadas; mas num cantinho descobri escrito de um modo especial o nome do Sr. Herculano Pena.

Deixei estes papéis, convencido que a dignidade e energia com que o Sr. Visconde de Itaboraí exerceu este cargo, exige que o governo medite bem antes de decidir-se na escolha do seu sucessor.

Vi também uma porção de pedidos de demissões de presidentes, de nomeações de outros, de lembranças a respeito que me deram a entender ia haver uma contradança geral nas altas posições administrativas.

Tudo isto, porém, ainda é segredo, e vos conto em confidência.  

Parece que os Srs. Pena e Zacarias renunciaram as suas presidências, e que irá para o Alto Amazonas o atual Presidente do Maranhão, um dos mais dignos caracteres e dos mais notáveis administradores que temos.

Os Presidentes da Bahia e Rio Grande do Sul vêm assistir a esta sessão com a idéia firme de não reassumirem os seus cargos.

Ia-me esquecendo dizer que estava na tal pasta um voto de agradecimento da Província de Rio de Janeiro, por se acharem na vice-presidência e no cargo de chefe de polícia dois dignos fluminenses.

Vinha de envolta uma pequena queixa por ser tudo isto apenas uma interinidade; mas também, para uma província cuja deputação não tem em seu seio quem a possa reger, é ser muito exigente.

Passou o tal capitão improvisado e eu limpei os vidros da minha luneta, guardei-a cuidadosamente para me servir em melhores ocasiões, e fui tratar de escrever alguma coisa, para que os meus leitores não me tomem por negligente.

Li hoje um belo folhetim lírico, em que se acha mau tudo quanto o Mercantil caiu na asneira de achar bom. Li-o com muito prazer, e sem surpresa.

Quem julga que a Zechini encantou na Luísa Miller devia lógica e necessariamente achar que a Charton cantou como uma fúria nos Puritanos.

O Campestre deu sua partida no dia 28 de abril. O baile vai em decadência quanto à dança; mas, em compensação, o serviço é excelente e de uma profusão inesgotável. O Francioni conseguiu vencer a sorvete e à empada a carga cerrada dos cossacos e zuavos de vinte polegadas de altura.

A nova empresa lírica fez a eleição da sua diretoria, e da notícia que publicaram os jornais haveis de ver o acerto da escolha. O Sr. Visconde de Jequitinhonha aceitou a presidência.

No horizonte poético da bela sociedade já se lobriga um baile do cassino, uma regata em Botafogo, e algumas partidas familiares e encantadoras.

Venham essas flores do mês de maio, flores perfumadas dos salões, que apenas vivem uma noite, mas que deixam na alma tantas reminiscências.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Cláudia Dimer (Pranto dos Anjos)

Fonte:
facebook da autora

Socorro Lima Dantas (Ah, se eu fosse um pássaro)


Ah, se eu fosse um pássaro
Livre, partiria,
E sem duas vezes pensar
Voaria... Voaria...
Pelo espaço, e sem rumo...
Flutuaria sonhando pelo ar
Para a minha fantasia realizar:
O céu alcançar, passear pelas nuvens,
Deslizar entre as estrelas, abraçar a lua,
E neste voo coreografado
Com a mais pura exaltação
Cantar a minha canção.
E quando eu sentisse a sedução do teu olhar,
As fortes batidas do teu coração,
Eu bateria asas com leveza
Pousaria em teu ombro
Deslizaria o meu bico em teu rosto
Contemplaria os teus olhos
E a tua face, com amor, eu beijaria.

Fonte:
AVSPE, por e-mail.

Clevane Pessoa (Rastros Poéticos: de Pessoa para Pessoa)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 759)


Uma Trova de Ademar

De um olhar triste, alquebrado,
desse meu filho que é "mudo"...
eu vejo, mesmo calado,
seus olhos dizerem tudo!
–Ademar Macedo/RN–

 

Uma Trova Nacional 


 

Quanto mais vivo, mais creio,

pelo que vejo na vida,

que só o amor sabe o meio

de curar alma ferida!

–Amilton Maciel/SP–

 
Uma Trova Potiguar 


 

A insensatez, na verdade,

separou nossos lençóis;

e agora a dor da saudade

dói muito mais entre nós!

–Prof. Garcia/RN–

 
Uma Trova Premiada 


 

1976 - Nova Friburgo/RJ

Tema : CULPA - 4º Lugar

 

Dou-te a mão à palmatória…

Foi minha a culpa, confesso;
mas, não te darei a glória
do perdão, que não te peço!


–Antonio Carlos Teixeira/DF–


...E Suas Trovas Ficaram

 

Eu trago minha alma aflita,

bem vês ciúme em meu rosto;

o mal é seres bonita


e os outros terem bom gosto!

–Aparício Fernandes/RN–

 

U m a P o e s i a 


 

Entre abraços e beijos ofegantes,

regressar ao passado eu não me atrevo,
nas mil noites de amor que tive eu devo,
ter passado nas mãos de mil amantes,
me cansei das procuras incessantes,


hoje estou com você realizado,

resta apenas dizer muito obrigado,
se eu mudei plenamente o mérito é seu;
o presente maior que Deus me deu,
foi você por quem vivo apaixonado.


–Hipólito Moura/PI–

 

Soneto do Dia 


 

A MINHA PAZ

–Raymundo de Salles Brasil/BA–




Eu fiz muitas e muitas tentativas

em busca do prazer – todas em vão,
porque me foram todas tão nocivas,
não me trouxeram paz ao coração.

Busquei no mundo essas prerrogativas,
e o mundo me acenou para a ilusão,
e em todas elas – belas e atrativas –
um gosto amargo de decepção.

Olhando em volta tudo e vendo nada;
nas ilusões – uma ferida em cada,
e exausto de buscar a paz no chão,

olhei pro céu e vi brilhar a luz
maravilhosa e linda de Jesus
que me inundou de paz com seu perdão.

domingo, 16 de dezembro de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 3


Affonso Montenegro Louzada
(Rio de Janeiro/GB, 1904 – ?)

" DE ARVERS "

Guardo na alma um recôndito segredo:
este amor que surgiu tão de repente -
como um sonho sonhado quase a medo
e quem o despertou nem o pressente.

Ao vê-la, no silencio imenso e tredo,
eu sinto que ela me olha indiferente
e, assim irei para o último degredo -
sem que ela o saiba, amando-a loucamente.

Essa que é o próprio amor que tudo vence,
vai pela vida tão serena e pura -
meus gemidos talvez nunca ouvirá.

E fiel ao seu amor que a outro pertence,
ainda lendo os meus versos, porventura,
dirá consigo mesma: - Quem será?

" FATALIDADE "

Sonhei, amei, pela existência afora,
na dourada ilusão da primavera
e muito mais sonhara, se pudera
e mais amara, permitido fora.

Sonhei, amei, cantei, sabendo embora
que pelo mundo imenso da quimera
a treva do horizonte se apodera
e o perfume das flores se evapora.

Afinal, pelo abismo em que resvalo,
talvez o desengano foi meu prêmio
e quem fora capaz de desejá-lo?!

No desengano imenso que me inquieta,
eu vou vivendo ao léu, como um boêmio
e vou sonhando sempre, como um poeta.

" MAL DE AMOR "

Ha tanto amor que é falso, que é perjuro,
que mente e engana traiçoeiramente -
que, sempre cauteloso, enfim procuro
fugir do mal que sofre toda gente.

Mas, pobre coração que se faz duro!
Só para não sentir a dor pungente
de uma desilusão, mais me torturo
evitando esse amor que ilude e mente.

Antes sofrer, portanto, o mal que, eterno,
mata depois de todas as torturas
onde a traição tão facilmente medra.

Embora queime tanto ou mais que o inferno -
antes a dor de todas as criaturas,
que ter no peito um coração de pedra.
================

Agrippino Grieco  
(Paraíba do Sul/RJ, 15 de outubro de 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 25 de agosto de 1973 )

" COPO DE CRISTAL "

Naquele quarto estreito e abandonado,
onde passo estirado na rede,
horas de tédio, enquanto o sol despede
as setas de ouro sobre o campo ao lado,

esquecido num canto, e, da parede
junto, entre flores, vasos, e um bordado,
há um velho copo de cristal lavrado,
em que, às vezes, aplaco a dor da sede.

Contam-me que esse copo pertencera
outrora a uma esquisita e romanesca
jovem, que nele muita vez bebera.

E ainda hoje a extravagar – cabeça louca ! -
se ao lábio o levo, sinto na água fresca
o perfume e o sabor daquela boca...
===============

Alberto de Magalhães Hecksher                      
(Rio de Janeiro/GB, 1916 – Rio de Janeiro/RJ, 6 de fevereiro de 1950)

" Mais Tarde... "

Eu penso às vezes que algum dia, certo,
quando mais tarde andarmos pela vida,
com passo incerto e tendo a voz sumida,
um do outro havemos de passar bem perto !...

E há de pousar a tua vista erguida
em meu olhar parado... E se ora acerto
nosso passado há de ficar desperto
mesmo que passes despercebida !...

E hão de se ver nos últimos arrancos
nossas ruínas cada qual maior,
todas floridas de cabelos brancos !...

E tal se dando embora não mereças,
- que eu não te veja então será melhor...
E é bem melhor que não me reconheças !…

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Carlos Lúcio Gontijo (Caminhada)


Carlos Lúcio Gontijo (Meus Amigos do Lado Esquerdo do Peito)


O dom da palavra escrita me empurrou desde cedo para pessoas de mais idade, que se me apresentavam mais dispostas (e capazes) de me dar ouvidos. Dessa forma, praticamente não tenho amigos de infância, mas conhecidos de infância ? era um preço a pagar e eu paguei! 

Parte considerável de meus amigos do lado esquerdo do peito já não se fazem presentes no mundo material; são lembranças vivas em minha memória. Eles estão comigo a cada vez que parto à procura de algum patrocínio, ainda que mínimo, para alcançar a edição de um livro, quando a grande maioria das portas se fecha ou me dá as desculpas mais esfarrapadas, para se eximir de me auxiliar na produção de um projeto cultural gráfico. As negativas são tão comuns que não me incomodam mais, pois afinal se tratam apenas de portas que não desejam se abrir, segundo a vontade desprovida de horizontes daqueles a que abrigam!

Confesso que meus amigos de cabelos encanecidos me fazem muita falta, até mesmo na hora de tomar uma cervejinha gelada, cujo tira-gosto principal é o bate-papo construtivo, real e às vezes até metafórico, quando a conversa mergulha no invisível ou na imaterialidade, que anda longe da disputa pelos produtos expostos sob as vitrines iluminadas do capitalismo, onde é preciso ter para se apropriar do sentimento de existir. 

Todo fim de ano, ponho-me a lembrar dos tempos felizes que passei ao lado de meus velhos amigos. Vem-me à mente a figura de Elias Maboub, que era meu substituto de absoluta confiança na época em que supervisionava turno de Revisão dos jornais ?Diário da Tarde/Estado de Minas?. Grande conhecedor de gramática, mas acima de tudo uma das pessoas mais honestas que conheci em minha vida, nasceu na cidade de Damur, no Líbano, veio para o Brasil aos dois anos e não havia (nem há) neste mundo alguém mais brasileiro que ele.

Que saudades, guardo no coração do amigo José Cândido Ferreira, que foi ao meu encontro por causa de meus artigos no ?Diário da Tarde?! Ele era meu leitor assíduo e certa feita, num fim de tarde, subiu as escadas até a redação do jornal com a finalidade de me conhecer pessoalmente. José Cândido tinha naquela ocasião 88 anos e, em seguida, lançou um livro com dedicatória para mim, premiando-me inclusive com citação de frase extraída de um de meus artigos. ?Eu, candeeiro de boi? (nome por mim sugerido) é livro que de vez em quando folheio, numa espécie de homenagem ao inesquecível José Cândido Ferreira, que faleceu aos 100 anos.

Outro amigo inarredável de minha memória é Mário Clark Bacellar, arquiteto e também jornalista da extinta e conceituada revista ?Manchete?, que lhe deu a oportunidade de conhecer 65 países. Na sala de minha casa, conservo uma mesa que ele me deu de presente, além de um quadro na parede. Mário Bacellar era admirador declarado e constante incentivador de meu trabalho literário. Foi através dele que conheci Graça Paiva em Contagem, que conseguiu reunir um grupo de empresárias contagenses para patrocinar a edição do livro ?Pelas Partes Femininas?.

E tem ainda o jornalista Pedro Rabelo Mesquita, que enquanto teve saúde esteve presente em todos os lançamentos de meus livros em Belo Horizonte, chegando mesmo a conseguir patrocinador para coquetel em concorrida noite de autógrafo, com a presença de mais de 300 pessoas, na Associação Mineira de Imprensa (AMI), da qual ele foi membro de diretoria por muitos anos. Hoje, com grave perda de memória, o querido amigo Pedrinho se encontra internado em clínica na cidade de Divinópolis, sob a mais completa solidão de amigos.

No mais, que me desculpem meus casuais leitores pela exposição de lembranças pessoais, mas talvez assim eu esteja passando-lhes, de alguma maneira, a noção de que devemos honrar os amigos, festejá-los para além e acima das comemorações natalinas e de fim de ano, pois a verdadeira amizade é coisa de toda dia, devendo ser protegida e aquecida na humildade e no calor da aura da manjedoura de nossa alma, como se fossem estrelas-guia em nossas vidas. 

Fonte:
O Autor

Ialmar Pio Schneider (O Jogador de Bocha)


Poesia premiada em 2º Lugar pela Estância da Poesia Crioula 
3º Concurso Literário de Poesia Exaltando o Rio Grande - 2012

Cancha do jogo de bocha
transformada em tradição,
onde encontro a diversão
para as horas de lazer,
eu não posso te esquecer
e te trago na lembrança
desde quando fui criança
e começava a entender.

Pois até sinto saudade
das façanhas que eu fazia,
quando no braço soerguia
uma bocha e arremessava
num estilo de tuxava
que desfere com certeza,
a boleadeira na presa
e uma clavada na tava.

E mesmo jogando a ponto
sempre fazia por mim,
pois colava no bolim
uma riga ou uma lisa
e como quem não precisa
de seguir por mão alheia,
não provocava peleia:
que briga não dá camisa.

Por estes pagos então,
neste jogo de campanha,
dono de muita façanha,
era muito respeitado,
porque dentro do tablado
que neste verso retrato
jogava até por barato,
nunca apostava fiado.

Outro princípio que trago
desde os tempos de piazote:
quem se atira de garrote
contra touro colmilhudo
e de chifre pontiagudo,
nunca consegue vantagem,
mesmo que tenha coragem
acaba perdendo tudo.

Mas até por passatempo
a bocha tem muita graça,
por um copo de cachaça
ou um maço de cigarro,
que o guasca feito de barro
nesta terra se apresilha
ao moirão de coronilha
do velho pago bizarro.

Hoje os recuerdos me trazem
grandes partidas de bocha
e como uma acesa tocha
certa doença me invade,
queimando barbaridade
no peito meu coração,
quero voltar ao rincão
onde me leva a saudade!

E numa sombra campeira
reviver meu jogo antigo;
e se outra coisa não digo
neste sentimento adverso,
para encerrar o meu verso
minh’alma xucra se plancha
junto ao mistério da cancha
que envolve todo o Universo!...

Fonte:
O Autor

Raquel Ordones / MG (Ser Forte)

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Francisco Marques “Chico dos Bonecos” (Folhas Secas)


Eu estava dando uma aula de Matemática e todos os alunos acompanhavam atentamente. 

Todos?

Quase: Carolina equilibrava o apontador na ponta da régua, Lucas recolhia as borrachas dos vizinhos e construía um prédio, Renata conferia as canetas e os lápis do seu estojo vermelhíssimo e Hélder olhava para o pátio. 

O pátio? O que acontecia no pátio?

Após o recreio, dona Natália varria calmamente as folhas secas e amontoava e guardava tudo dentro de um enorme saco plástico azul. Terminando o varre-varre, dona Natália amarrou a boca do saco plástico e estacionou aquele bafuá de folhas secas perto do portão. Hélder observava atentamente. E eu observava a observação de Hélder – sem descuidar da minha aula de Matemática. De repente, Hélder foi arregalando os olhos e franzindo a testa. 

Qual o motivo do espanto? 

Hélder percebeu alguma coisa no meio das folhas movendo-se desesperadamente, com aflição, sufoco, falta de ar. Hélder buscava interpretações para a cena, analisava possibilidades, mas o perfil do passarinho já se delineava na transparência azul do plástico. 

Um pássaro novo tinha caído do ninho e, confundido-se com as folhas secas, foi varrido e agora lutava pela liberdade.

– Ele tá preso!

O grito de Hélder interrompeu o final da multiplicação de 15 por 127. 

Todos os alunos olhavam para o pátio. E todos nós concordamos, sem palavras: o bico do passarinho tentava romper aquela estranha pele azul. Hélder saiu da sala e nós fomos atrás. 

E antes que eu pudesse pronunciar a primeira sílaba da palavra “calma”, o saco plástico simplesmente explodiu, as folhas voaram e as crianças pularam de alegria.

Alguns alunos dizem que havia dois passarinhos presos. Outros viram três passarinhos voando felizes e agradecidos. Lucas diz que era um beija-flor. Renata insiste que era uma cigarra. Eu, sinceramente, só vi folhas secas voando.

E, para concluir esta inesquecível aula de Matemática, pegamos vassouras, pás e sacos plásticos e fomos varrer novamente o pátio. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 758)



Uma Trova de Ademar  

Posso jurar (não é finta):
eu não temo pesadelos,
pois fiz da saudade a tinta
para pintar meus cabelos... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

No embalo da serenata,
quisera ser como a lua
vestindo com tons de prata
os homens tristes da rua!
–Selma Patti Spinelli/SP– 

Uma Trova Potiguar  

A nossa vida é tão curta, 
para tantas diretrizes, 
e o tempo ainda nos furta 
muitos momentos felizes! 
–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada  

2010   -   Falando de Trova/SP 
Tema   -   SAUDADE-Oculta   -   M/H 

Que nome você daria 
à imagem da mãe que chora 
ao pé da cama vazia 
de um filho que foi embora?... 
–Renato Alves/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Ante as sandálias furadas
que entre cascalhos gastei,
não culpo o chão das estradas,
culpo os maus passos que dei. 
–José Maria M. de Araújo/RJ– 

U m a P o e s i a  

Eu não sei se o passado hoje se importa
que o presente me faça tão feliz,
todos erros que na vida eu já fiz
no meu livro da vida é folha morta;
porque Deus para mim abriu a porta
da poesia, da verdade e do amor,
e mostrando que a vida tem valor,
deu-me o dom mais divino da poesia
pra eu poder fabricar no dia a dia
um remédio eficaz pra minha dor!... 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

DEUS HOMO
–Pe. Antônio Tomás/CE– 

Amo-Te, oh Cristo, dessa cruz pendente, 
varado o coração de acerbas dores, 
do teu suplício os bárbaros rigores 
sofrendo humilde e resignadamente. 

Porque assim te revelas claramente 
deus dos filhos de Eva sofredores, 
apto ouvir os brados e os clamores 
da miseranda e triste humana gente. 

Folgo em saber, nas horas de amargura, 
que um Deus de natureza igual à minha 
sofresse a mesma dor que me tortura. 

Não quadra um Deus feliz ao desgraçado; 
por isso mesmo aos homens não convinha 
senão somente um Deus crucificado.

Mário de Carvalho (Carolina)


Foi mantida a grafia original

Pareceu-me um fulano complicado, miudinho de carácter, basto obsessivo, explorador de pequenas vantagens até à náusea. No caso, ele era senhor duma embarcação e eu não conseguia transporte para a Ilha de Grimush. Não o larguei toda a manhã. Desconversava, dava evasivas, trejeitos, silêncios, voltava-me as costas para se ocupar em tarefas pífias, de linha e rede. Fazia-se caro e importantíssimo. Apetecia-me bater-lhe. Ser ele proprietário duma draga disforme, ferrugenta, empastada de limos e sujidade não lhe dava o direito de me tratar de alto. Se eu o esmurrasse talvez ele descesse a ser mais equitativo no trato, mas isso não me garantia o transporte.

Na véspera eu desesperava, desenganado de arranjar barco que me levasse. O velho ferry boat estava encostado há que meses, os pescadores que procurei, no cais, nas tabernas, riam-se de mim. «Para Grimush? Ora bem...!» Tinham medo de se fazer ao mar. Finalmente, um veio atrás de mim, não sei se condoído do meu desalento se disposto a desfrutá-lo melhor. Ao dobrar duma esquina que fedia a molusco apodrecido, segredou-me: «Procure o Guedes, o patrão da draga! A draga passa...»

Nunca na vida tinha eu posto os pés numa draga. Vistas de longe pareciam-me sempre um amontoado de sucata, ineptas para o movimento, aparentadas aos velhos guindastes abandonados nos molhes, que apodrecem sobre calhas oxidadas. Mas parecia não ter alternativa. As esfinges revoltaram-se no Museu de Grimush, competia-me apaziguá-las e não era coisa que se resolvesse pelo telefone. Aí estava eu, humilhado, a suplicar ao da draga e ele a trocar-me as voltas. «Ná, não me calha! »

Foi já muito pela noite, ao balcão dum bar equívoco, enfeitado com redes de linho, teias de aranha e bolas de vidro coloridas, que o tal Guedes, exploradas todas as possibilidades de me enfadar e desiludir, concedeu:

«Acha que aguenta a viagem?»

«Mestre, estou por tudo, desde que me leve a Grimush.»

Madrugada, antes do sol, lá estava eu, na gordurosa plataforma, guardada por um tipo esquivo de brinco de latão em forma de oito numa orelha. Da cabina, o patrão não se dignou cumprimentar-me. Retirada a prancha, a draga foi deslizando, vagarosa, com um ruído atroador. Acomodei-me num recosto de chapas menos encardidas e adormeci, indiferente aos salpicos de mar.

O mestre acordou-me, já longe de terra:

«Não convém dormir agora. Olhe!»

Apontava-me uma direcção. O tisnado tripulante tropeçou entre nós, a soluçar, num lanço desandado, e escondeu-se sob um cabrestante. O Guedes sorriu e encolheu os ombros. Lá longe, um rochedo escuro, tortuoso e esguio, lançava-se do mar, até grande altura. Gaivotas planavam em círculo branco, circunscrevendo o afiado píncaro.

Perto, quase à altura do rochedo, emergia das águas o corpo de uma mulher gorda, que segurava uma canastra à cabeça com ambas as grossas mãos, cada qual capaz de envolver a draga em que viajávamos. Tinha feições ao mesmo tempo serenas e grosseiras e o cabelo negro apanhado atrás, num rolo. Rumávamos a cerca de três milhas de distância. Ainda assim, notávamos o arfar lento, da respiração tranquila, logo acima do ponto em que o mar em flor rebentava, ao rés da cintura dela.

«É a Carolina! », disse o mestre.

A draga ia palmilhando, lenta, num penoso entrechocalho de ferros e rodopio de espumas. A mulher, lá ao longe, respirava, suave, mas não se movia do mesmo lugar, nem parecia prestar-nos qualquer atenção. O patrão Guedes dava-lhe agora para conversar. Falava baixinho e não desfitava o enorme busto que assombrava as ondas.

Tinha acontecido meses atrás, talvez por Janeiro, ou Fevereiro, não se lembrava bem. Um pescador dera a notícia, à noite. Arribara com o motor avariado, vinha de olhos arremelgados e só à custa de muita aguardente pelas goelas abaixo conseguira falar. Ainda assim, ficou-lhe a voz para sempre entaramelada. Quase abalroara a mulher que lhe surgira pela vante, dominando as alturas da noite, olhando-o muito séria e fixa, lá de cima. Ninguém acreditou até ao dia seguinte, quando todos puderam distinguir aquela figura imóvel, mas viva, a respiração a condensar-se, em nuvens espairadas, no frio da manhã. Não houve quem ousasse aproximar-se. Mas todos os motores avariaram e aos barcos sem motor apodreceram-lhes as tábuas. Os homens ficaram transidos de medo. E todos os dias perguntavam ao mestre Guedes se a mulher ainda lá estava. O motor da draga, teco-teco, sempre na mesma, rabugento, desafinado, mas sem novidade. No porto, tinham chamado à aparição Carolina, em lembrança duma embarcação com o mesmo nome que naufragara num baixio e ficara anos a sobressair do mar, de proa a pique.

Carolina tinha poupado o patrão Guedes, mestre da draga. Volta e meia, ele fazia aquele percurso só para a ver. Certas vezes, em torno dela, ao arrepio das ondas, firmava-se, fluida, uma tonalidade rubra ao rés do mar, como se vogassem à tona colónias e colónias de algas vermelhas. Nessas alturas, o grasnido das aves era mais baixo e lamentoso. Depois, passava. E ao dizer-me isto, enrolava um cigarro, compenetrado.

«Estará ela apaixonada por si?», sugeri, meio a brincar. «Acho que é mais estima», respondeu-me muito a sério. «Mas, repare...»

Daí a poucas braças teríamos passado o rochedo e perdido de vista a mulher. Foi então que ela pestanejou longamente e os lábios polpudos se franziram num sorriso fugaz. «Viu? Viu?» O mestre agitava-se de contente. O ajudante esgueirou-se do esconderijo e daí a poucas horas aportávamos a Grimush.

Através do diálogo, convenci rapidamente as esfinges do museu ao acatamento da lei. Regressei satisfeito à draga que me esperava no cais deserto e logo abalámos. Mas quando tomámos vista do rochedo, Carolina já lá não estava. E não foram as circum-navegações ansiosas da draga em volta do rochedo que a fizeram reaparecer. Triste, triste, vi eu o mestre. Afundou a cabeça nos braços e assim ficou. Não mais me dirigiu palavra. Senti-me culpado, sem ter porquê.

Quando acostámos, o cais estava coberto de gente que se apinhava pelo molhe e pelos contentores e se pendurava das gruas. Silêncio total da multidão imóvel. Fizeram alas para que eu passasse. De costas voltadas para mim.

Não regressarei a Grimush.

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

Silviah Carvalho (A Súplica do Beija-Flor)


...Quanto a mim, da solidão me vesti,
Vi sangrar o meu coração sem paz,
A segredar à noite tudo que vivi,
Reluto sozinha, não volto atrás.

O sossego das noites não refrigera meus dias,
Poeta beija-flor... Perdi essa identidade!
Exilada morro aos poucos e comigo a poesia,
Tantos “não” que do “sim”, sinto saudades.

Quisera ressuscitar-me, não mais amar...
Já não percebo do amor o fulgor,
Só o silencio que sua ausência deixou.

Eu preciso me redescobrir no teu olhar,
Voar na essência e sabor do seu vasto jardim,
Alimenta esse beija-flor, traga néctar pra mim…

Fonte:
http://umcoracaoqueama.blogspot.com.br/

Teatro de Ontem e de Hoje (Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas)


O espetáculo homenageia Chiquinha Gonzaga, numa biografia musical da compositora e abolicionista carioca. A peça, escrita por encomenda do Teatro Popular do Sesi a Maria Adelaide Amaral, tem sua primeira montagem em São Paulo, sob a direção de Osmar Rodrigues Cruz, em 1983. Quinze anos depois, comemorando os 150 anos de aniversário do nascimento da artista, o Rio de Janeiro apresenta uma remontagem modernizada, numa grande produção encabeçada pelo diretor Charles Möeller e o diretor musical Claudio Botelho. 

A peça de Maria Adelaide Amaral fala da vida pública da compositora que, em meados do século XIX, disse não aos papéis tradicionais da mulher, tornando-se profissional da música e envolvendo-se em todas as grandes causas sociais e políticas do seu tempo. A sua primeira montagem é de 1983 e tem direção de Osmar Rodrigues Cruz, cenografia de Flávio Império, protagonizada por Regina Braga, à frente de grande elenco, numa superprodução do Teatro Popular do Sesi, TPS. O texto apresenta 140 personagens, que a direção distribui entre os 32 atores do elenco, cada um se desdobrando em até seis papéis, numa chave cênica similar ao sistema coringa, de Augusto Boal. 

O cenógrafo Flávio Império fragmenta a cena ao máximo, empurrando-a para fora de seus limites em direção ao público, criando também diversos planos para atender as exigências do texto. Os figurinos, adereços, perucas e chapéus, compostos por mais de seiscentas peças, são divididos em cores: para as mulheres, os tons da primavera e para os homens predominam o branco e o preto. O espetáculo arrebata vários prêmios, dentre eles, Instituto Nacional de Artes Cênicas, Inacen de um dos cinco melhores espetáculos do ano, Molière de melhor autor para Maria Adelaide Amaral, melhor atriz para Regina Braga, Associação Paulista de Críticos de Artes, APCA de melhor cenografia e figurinos para Flávio Império, melhor direção musical para Oswaldo Sperandio, e APCA grande prêmio da crítica para Osmar Rodrigues Cruz, pelos 20 anos de trabalho à frente do TPS. Em mais de um ano e meio em cartaz, a montagem foi vista por cerca de 300 mil espectadores.

A montagem carioca ocorre quinze anos depois, passando por algumas modernizações, sob o título de O Abre Alas, com encenação de Charles Möeller e direção musical de Claudio Botelho. Nessa versão, encabeçada por Rosamaria Murtinho, Chiquinha Gonzaga, a militante da causa abolicionista, da campanha republicana e da luta pelo reconhecimento do direito autoral, é também destacada por seus feitos artísticos e sua participação política. 

Enquanto as cenas de diálogo apresentam o contexto histórico, as cenas musicais mostram a compositora. Nos diálogos, a atriz lança mão de uma interpretação levemente distanciada, que valoriza a clareza da argumentação. Nos números musicais, surge uma igualmente suave estilização, que investe na graciosidade dos movimentos.

O espetáculo recebe um tratamento de grande musical, com cantores, coro e linguagem grandiloqüente. As músicas de Chiquinha Gonzaga são misturadas a canções do diretor musical e de outros compositores da época. A crítica Barbara Heliodora, considerando que o trabalho de Rosamaria Murtinho é responsável pela única e "verdadeira tentativa de chegar perto da homenageada", condena quase integralmente o resultado final, principalmente sua grandiosidade: "Na verdade, as pequenas incursões de Rosamaria pelo canto são muito melhores (porque agradáveis) do que as dos supostos cantores".1 A crítica Mariângela Alves de Lima, que observa que a peça não permite ver a opressão feminina sofrida por Chiquinha, vê qualidades no texto e na montagem: "Mas há, na estrutura da peça, um lugar reservado para o exercício da fantasia, da imaginação e dos outros atributos humanos que, na verdade, alimentam o impulso para a participação na vida coletiva. A artista, poética e sonhadora, se expressa por números musicais. Dividindo com nitidez um plano dramático da militância, configurado nos diálogos, e o da criação, concentrado nos números musicais, o roteiro propõe uma complementaridade quase ideal para o gênero musical. (...) Espetáculo com muitas formas e com algumas formas nada discretas, deleitando-se com a engenhosidade da cenotécnica e da iluminotécnica, com a habilidade vocal dos seus cantores e músicos, funciona também como a celebração de um gênero teatral que deixamos de cultivar".2

Notas
1. HELIODORA, Barbara. Uma grandiosidade que não alcança Chiquinha Gonzaga. O Globo, Rio de Janeiro, 6 set. 1998.

2. LIMA, Mariângela Alves de. 'O Abre Alas' celebra a emancipação da mulher. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 mar. 1999.

Fonte: