domingo, 20 de fevereiro de 2011

Machado de Assis (A Mulher Pálida)


CAPÍTULO PRIMEIRO

Rangeu enfim o último degrau da escada ao peso do vasto corpo do Major Bento. O major deteve-se um minuto, respirou à larga, como se acabasse de subir, não a escada do sobrinho, mas a de Jacó, e enfiou pelo corredor adiante.

A casa era na Rua da Misericórdia, uma casa de sobrado cujo locatário sublocara três aposentos a estudantes. O aposento de Máximo era ao fundo, à esquerda, perto de uma janela que dava para a cozinha de uma casa da Rua D. Manuel. Triste lugar, triste aposento, e tristíssimo habitante, a julgá-lo pelo rosto com que apareceu às pancadinhas do major. Este bateu, com efeito, e bateu duas vezes, sem impaciência nem sofreguidão. Logo que bateu a segunda vez, ouviu estalar dentro uma cama, e logo um ruído de chinelas ao chão, depois um silêncio curto, enfim, moveu-se a chave e abriu-se a porta.

— Quem é? — ia dizendo a pessoa que abrira. E logo: — é o tio Bento.

A pessoa era um rapaz de vinte anos, magro, um pouco amarelo, não alto, nem elegante. Tinha os cabelos despenteados, vestia um chambre velho de ramagens, que foram vistosas no seu tempo, calçava umas chinelas de tapete; tudo asseado e tudo pobre. O aposento condizia com o habitante: era o alinho na miséria. Uma cama, uma pequena mesa, três cadeiras, um lavatório, alguns livros, dois baús, e pouco mais.

— Viva o senhor estudante, disse o major sentando-se na cadeira que o rapaz lhe oferecera.

— Vosmecê por aqui, é novidade, disse Máximo. Vem a passeio ou negócio?

— Nem negócio nem passeio. Venho...

Hesitou; Máximo reparou que ele trazia uma polegada de fumo no chapéu de palha, um grande chapéu da roça de onde era o Major Bento. O major, como o sobrinho, era de Iguaçu. Reparou nisso, e perguntou assustado se morrera alguma pessoa da família.

— Descanse, disse o major, não morreu nenhum parente de sangue. Morreu teu padrinho.

O golpe foi leve. O padrinho de Máximo era um fazendeiro rico e avaro, que nunca jamais dera ao sobrinho um só presente, salvo um cacho de bananas, e ainda assim, porque ele se achava presente na ocasião de chegarem os carros.

Tristemente avaro. Sobre avaro, misantropo; vivia consigo, sem parentes — nem amigos, nem eleições, nem festas, nem coisa nenhuma. Máximo não sentiu muita comoção à notícia do óbito. Chegou a proferir uma palavra de desdém.

— Vá feito, disse ele, no fim de algum tempo de silêncio, a terra lhe seja leve, como a bolsa que me deixou.

— Ingrato! bradou o major. Fez-te seu herdeiro universal.

O major proferiu estas palavras estendendo os braços para amparar o sobrinho, na queda que lhe daria a comoção; mas, a seu pesar, viu o sobrinho alegre, ou pouco menos triste do que antes, mas sem nenhum delírio. Teve um sobressalto, é certo, e não disfarçou a satisfação da notícia. Pudera! Uma herança de seiscentos contos, pelo menos. Mas daí à vertigem, ao estontear que o major previa, a distância era enorme. Máximo puxou de uma cadeira e sentou-se defronte do tio.

— Não me diga isso! Deveras herdeiro?

— Vim de propósito dar-te a notícia. Causou espanto a muita gente; o Morais Bicudo, que fez tudo para empalmar-lhe a herança, ficou com uma cara de palmo e meio. Dizia-se muita coisa; uns que a fortuna ficava para o Morais, outros que para o vigário, etc. Até se disse que uma das escravas seria a herdeira da maior parte. Histórias! Morreu o homem, abre-se o testamento, e lê-se a declaração de que você é o herdeiro universal.

Máximo ouviu contente. No mais recôndito da consciência dele insinuava-se esta reflexão — que a morte do coronel era uma coisa deliciosa, e que nenhuma outra notícia lhe podia ir mais direta e profunda ao coração.

— Vim dizer isto a você, continuou o major, e trazer um recado de tua mãe.

— Que é?

— Simplesmente saber se você quer continuar a estudar ou se prefere tomar conta da fazenda.

— Que lhe parece?

— A mim nada; você é que decide.

Máximo refletiu um instante.

— Em todo o caso, não é sangria desatada, disse ele; tenho tempo de escolher.

— Não, porque se você quiser estudar dá-me procuração, e não precisa sair daqui. Agora, se...

— Vosmecê volta hoje mesmo?

— Não, volto sábado.

— Pois amanhã resolveremos isto.

Levantou-se, atirou a cadeira ao lado, bradando que enfim ia tirar o pé do lodo; confessou que o padrinho era um bom homem, apesar de seco e misantropo, e a prova...

— Vivam os defuntos! concluiu o estudante.

Foi a um pequeno espelho, mirou-se, consertou os cabelos com as mãos; depois deteve-se algum tempo a olhar o soalho. O tom sombrio do rosto dominou logo a alegria da ocasião; e se o major fosse homem sagaz, poderia perceber-lhe nos lábios uma leve expressão de amargura. Mas o major nem era sagaz, nem olhava para ele; olhava para o fumo do chapéu, e consertava-o; depois despediu-se do estudante.

— Não, disse este; vamos jantar juntos.

O major aceitou. Máximo vestiu-se depressa, e, enquanto se vestia, falava das coisas de Iguaçu e da família. Pela conversa sabemos que a família é pobre, sem influência nem esperança. A mãe do estudante, irmã do major, tinha um pequeno sítio, que mal lhe dava para comer. O major exercia um emprego subalterno, e nem sequer tinha o gosto de ser verdadeiramente major. Chamavam-lhe assim, porque dois anos antes, em 1854, disse- se que ele ia ser nomeado Major da Guarda Nacional. Pura invenção, que muita gente acreditou realidade; e visto que lhe deram desde logo o título, repararam com ele o esquecimento do governo.

— Agora, juro-lhe que vosmecê há de ser major de verdade, dizia-lhe Máximo pondo na cabeça o chapéu de pêlo de lebre, depois de o escovar com muita minuciosidade.

— Homem, você quer que lhe diga? Isto de política já me não importa. Afinal, é tudo o mesmo...

— Mas há de ser major.

— Não digo que não, mas...

— Mas?

— Enfim, não digo que não.

Máximo abriu a porta e saíram. Ressoaram os passos de ambos no corredor mal alumiado. De um quarto ouviu-se uma cantarola, de outro um monólogo, de outro um tossir longo e cansado.

— É um asmático, disse o estudante ao tio, que punha o pé no primeiro degrau da escada para descer.

— Diabo de casa tão escura, disse ele.

— Arranjarei outra com luz e jardins, redargüiu o estudante.

E dando-lhe o braço, desceram à rua.

CAPÍTULO II

Naturalmente a leitora notou a impressão de tristeza do estudante, no meio da alegria que lhe trouxe o tio Bento. Não é provável que um herdeiro, na ocasião em que se lhe anuncia a herança, tenha outros sentimentos que não sejam de regozijo; daí uma conclusão da leitora — uma suspeita ao menos — suspeita ou conclusão que a leitora terá formulado nestes termos:

— O Máximo padece do fígado.

Engano! O Máximo não padece do fígado; goza até uma saúde de ferro. A causa secreta da tristeza súbita do Máximo, por mais inverossímil que pareça, é esta: —

O rapaz amava uma galante moça de dezoito anos, moradora na Rua dos Arcos, e amava sem ventura.

Desde dois meses fora apresentado em casa do Senhor Alcântara, à Rua dos Arcos. Era o pai de Eulália, que é a moça em questão. O Senhor Alcântara não era rico, exercia um emprego mediano no Tesouro, e vivia com certa economia e discrição; era ainda casado e tinha só duas filhas, a Eulália, e outra, que não passava de sete anos. Era um bom homem, muito inteligente, que se afeiçoou desde logo ao Máximo, e que, se o consultassem, não diria outra coisa senão que o aceitava para genro.

Tal não era a opinião de Eulália. Gostava de conversar com ele — não muito —, ouvia-lhe as graças, porque ele era gracioso, tinha repentes felizes; mas só isso. No dia em que o nosso Máximo se atreveu a interrogar os olhos de Eulália, esta não lhe respondeu coisa nenhuma, antes supôs que fora engano seu. Da segunda vez não havia dúvida; era positivo que o rapaz gostava dela e a interrogava. Eulália não pode ter-se que não comentasse o gesto do rapaz, no dia seguinte, com umas primas.

— Ora vejam!

— Mas que tem? aventurou uma das primas.

— Que tem? Não gosto dele; parece que é razão bastante. Realmente, há pessoas a quem não se pode dar um pouco de confiança. Só porque conversou um pouco comigo já pensa que é motivo para cair de namoro. Ora não vê!

Quando no dia seguinte, Máximo chegou à casa do Senhor Alcântara, foi recebido com frieza; entendeu que não era correspondido, mas nem por isso desanimou. Sua opinião é que as mulheres não eram mais duras do que as pedras, e entretanto a persistência da água vencia as pedras. Além deste ponto de doutrina, havia uma razão mais forte: ele amava deveras. Cada dia vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer inadmissível outra coisa que não fosse o casamento, e próximo; não sabia como seria próximo o casamento de um estudante sem dinheiro com uma dama, que o desdenhava; mas o desejo ocupa-se tão pouco das coisas impossíveis!

Eulália, honra lhe seja, tratou de desenganar as esperanças do estudante, por todos os modos, com o gesto e com a palavra; falava-lhe pouco, e às vezes mal. Não olhava para ele, ou olhava de relance, sem demora nem expressão. Não aplaudia, como outrora, os versos que ele ia ler em casa do pai, menos ainda lhe pedia que recitasse outros, como as primas; estas sempre se lembravam de um

Devaneio, um Suspiro ao luar, Teus olhos, Ela, Minha vida por um olhar, e outros pecados de igual peso, que o leitor pode comprar hoje por seiscentos réis, em brochura, na rua de S. José nº..., ou por trezentos réis, sem o frontispício. Eulália ouvia todas as belas estrofes compostas especialmente para ela, como se fossem uma página de S. Tomás de Aquino.

— Vou arriscar uma carta, disse um dia o rapaz, ao fechar a porta do quarto, da Rua da Misericórdia.

Efetivamente entregou-lhe uma carta alguns dias depois, à saída, quando ela já não podia recusá-la. Saiu precipitadamente; Eulália ficou com o papel na mão, mas devolveu-lho no dia seguinte.

Apesar desta recusa e de todas as outras, Máximo conservava a esperança de triunfar enfim da resistência de Eulália, e não a conservava senão porque a paixão era verdadeira e forte, nutrida de si mesma, e irritada por um sentimento de amor próprio ofendido. O orgulho do rapaz sentia-se humilhado, e, para perdoar, exigia a completa obediência. Imagine-se, portanto, o que seriam as noites dele, no quartinho da Rua da Misericórdia, após os desdéns de cada dia.

Na véspera do dia em que o major Bento veio de Iguaçu comunicar ao sobrinho a morte e a herança do padrinho, Máximo reuniu todas as forças e deu batalha campal. Vestiu nesse dia um paletó à moda, umas calças talhadas por mão de mestre, deu-se ao luxo de um cabeleireiro, retesou o princípio de um bigode mal espesso, coligiu nos olhos toda a soma da eletricidade que tinha no organismo, e foi para a Rua dos Arcos. Um colega de ano, confidente dos primeiros dias do namoro, costumava a fazer do nome da rua uma triste aproximação histórica e militar. — Quando sais tu da ponte d’Arcole? — Esta chufa sem graça nem misericórdia doía ao pobre sobrinho do major Bento, como se fosse uma punhalada, mas não o dizia, para não confessar tudo; apesar das primeiras confidências, Máximo era um solitário.

Foi; declarou-se formalmente, Eulália recusou formalmente, mas sem desdém, apenas fria. Máximo voltou para casa abatido e passou uma noite de todos os diabos. Há fortes razões para crer que não almoçou nesse dia, além de três ou quatro xícaras de café. Café e cigarros. Máximo fumou uma quantidade incrível de cigarros. Os vendedores de tabaco certamente contam com as paixões infelizes, as esperas de entrevistas, e outras hipóteses em que o cigarro é confidente obrigado.

Tal era, em resumo, a vida anterior de Máximo, e tal foi a causa da tristeza com que pôde resistir às alegrias de uma herança inesperada — e duas vezes inesperada, pois não contava com a morte, e menos ainda com o testamento do padrinho.

— Vivam os defuntos! Esta exclamação, com que recebera a notícia do major Bento, não trazia o alvoroço próprio de um herdeiro; a nota era forçada demais.

O major Bento não soube nada daquela paixão secreta. Ao jantar, via-o de quando em quando ficar calado e sombrio, com os olhos fitos na mesa, a fazer bolas de miolo de pão.

— Tu tens alguma coisa, Máximo? perguntava-lhe. Máximo estremecia, e procurava sorrir um pouco.
— Não tenho nada.

— Estás assim... um pouco... pensativo...

— Ah! é a lição de amanhã.

— Homem, isto de estudos não deve ir ao ponto de fazer adoecer a gente. Livro faz a cara amarela. Você precisa de distrair-se, não ficar metido naquele buraco da Rua da Misericórdia, sem ar nem luz, agarrado aos livros...

Máximo aproveitava estes sermões do tio, e voava outra vez à Rua dos Arcos, isto é, às bolas de miolo de pão e aos olhos fitos na mesa. Num desses esquecimentos, e enquanto o tio despia uma costeleta de porco, Máximo disse em voz alta:

— Justo.

— O que é? perguntou o major.

— Nada.

— Você está falando só, rapaz? Hum? aqui há coisa. Hão de ver as italianas do teatro.

Máximo sorriu, e não explicou ao tio por que motivo lhe saíra aquela palavra da boca, uma palavra seca, nua, vaga, susceptível de mil aplicações. Era um juízo? uma resolução?

CAPÍTULO III

Máximo teve uma idéia singular: experimentar se Eulália, rebelde ao estudante pobre, não o seria ao herdeiro rico. Nessa mesma noite foi à Rua dos Arcos. Ao entrar, disse-lhe o Senhor Alcântara:

— Chega a propósito; temos aqui umas moças que ainda não ouviram o Suspiro ao luar.

Máximo não se fez de rogado; era poeta; supunha-se grande poeta; em todo caso recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns olhos cheios de morte e de vida. Abotoou o paletó com uma intenção chateaubriânica, mas o paletó recusou-se a intenções estrangeiras e literárias. Era um prosaico paletó nacional, da Rua do Hospício nº... A mão ao peito corrigiu um pouco a rebeldia do vestuário; e esta circunstância persuadiu a uma das moças de fora que o jovem estudante não era tão desprezível como lhe havia dito Eulália. E foi assim que os versos começaram a brotar-lhe da boca — a adejar-lhe, que é melhor verbo para o nosso caso.

— Bravo! bravo! diziam os ouvintes, a cada estrofe.

Depois do Suspiro ao luar , veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia denominava-se Uma cabana e teu amor — houve um geral murmúrio de admiração. Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em Eulália.

— Forte tolo! disse a moça consigo.

Geralmente, quando uma mulher tem de um homem a idéia que Eulália acabava de formular — está prestes a mandá -lo embora de uma vez ou a adorá-lo em todo o resto da vida. Um moralista dizia que as mulheres são extremas: ou melhores ou piores do que os homens. Extremas são, e daí o meu conceito. A nossa Eulália estava no último fio da tolerância; um pouco mais, e o Máximo ia receber as derradeiras despedidas. Naquela noite mais do que nunca, pareceu- lhe insuportável o estudante. A insistência do olhar — ele, que era tímido, — o ar de soberania, certa consciência de si mesmo, que até então não mostrara, tudo o condenou de uma vez.

— Vamos, vamos, disseram os curiosos ao poeta.

— Uma cabana e teu amor, repetiu Máximo.

E começou a recitar os versos. Essa composição intencional dizia que ele, poeta, era pobre, muito pobre, mais pobre do que as aves do céu; mas que à sombra de uma cabana, ao pé dela, seria o mais feliz e mais opulento homem do mundo. As últimas estrofes — juro que não as cito senão por ser fiel à narração — as estrofes derradeiras eram assim:

Que me importa não tragas brilhantes,

Refulgindo no teu colo nu?
Tens nos olhos as jóias vibrantes,
E a mais nítida pérola és tu.
Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso, a teus pés,
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!

O efeito destes versos foi estrondoso. O Senhor Alcântara, que suava no Tesouro todos os dias para evitar a cabana e o almoço, um tanto parco, celebrado nos versos do estudante, aplaudiu entusiasticamente os desejos deste, notou a melodia do ritmo, a doçura da frase, etc...

— Oh! muito bonito! muito bonito! exclamava ele, e repetia entusiasmado:

Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso a teus pés,
Amoroso a teus pés... Que mais?
Amoroso a teus pés, e... Ah! sim:
Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!

Note-se — e este rasgo mostrará a força de caráter de Eulália —, note-se que Eulália achou os versos bonitos, e achá-los-ia deliciosos, se os pudesse ouvir com orelhas simpáticas. Achou-os bonitos, mas não os aplaudiu.

“Armou-se uma brincadeira” para usar a expressão do Senhor Alcântara, querendo dizer que se dançou um pouco. — Armemos uma brincadeira, bradara ele. Uma das moças foi para o piano, as outras e os rapazes dançaram. Máximo alcançou uma quadrilha de Eulália; no fim da terceira figura disse-lhe baixinho:

— Pobre sou, pobre quero ajoelhado...

— Quem é pobre não tem vícios, respondeu a moça rindo, com um pouco de ferocidade nos olhos e no coração.

Máximo enfiou. Não me amará nunca, pensou ele. Ao chá, restabelecido do golpe, e fortemente mordido do despeito, lembrou-se de dar a ação definitiva, que era noticiar a herança. Tudo isso era tão infantil, tão adoidado, que a língua entorpeceu-se -lhe no melhor momento, e a notícia não lhe saiu da boca. Foi só então que ele pensou na singularidade duma notícia daquelas, em plena ceia de estranhos, depois de uma quadrilha e alguns versos. Esse plano, afagado durante a tarde e a noite, que lhe parecia um prodígio de habilidade, e talvez o fosse deveras, esse plano apareceu-lhe agora pela face obscura, e achou-o ridículo. Minto: achou-o ousado apenas. As visitas começaram a despedir-se, e ele foi obrigado a despedir-se também. Na rua, arrependeu-se, chamou-se covarde, tolo, maricas, todos os nomes feios que um caráter fraco dá a si mesmo, quando perde uma ação. No dia seguinte meteu-se a caminho para Iguaçu.

Seis ou sete semanas depois, tornado de Iguaçu, a notícia da herança era pública. A primeira pessoa que o visitou foi o Senhor Alcântara, e força é dizer que a pena com que lhe apareceu era sincera. Ele o aceitara ainda pobre; é que deveras o estimava.

— Agora continua os seus estudos, não é? perguntou ele.

— Não sei, disse o rapaz; pode ser que não.

— Como assim?

— Estou com idéias de ir estudar na Europa, na Alemanha, por exemplo; em todo o caso, não irei este ano. Estou moço, não preciso ganhar a vida, posso esperar.

O Senhor Alcântara deu a notícia à família. Um irmão de Eulália não se teve que não lançasse em rosto à irmã os seus desdéns, e sobretudo a crueldade com que os manifestara.

— Mas se não gosto dele, e agora? dizia a moça.

E dizia isso arrebitando o nariz, e com um jeito de ombros, seco, frio, enfarado, amofinado.

— Ao menos confesse que é um moço de talento, insistiu o irmão.

— Não digo que não.

— De muito talento.

— Creio que sim.

— Se é! Que bonitos versos que ele faz! E depois não é feio. Você dirá que o Máximo é um rapaz feio?

— Não, não digo.

Uma prima, casada, teve para Eulália os mesmos reparos. A essa confessou Eulália que o Máximo nunca se declarara deveras, embora lhe mandasse algumas cartas.

— Podia ser caçoada de estudante, disse ela.

— Não creio.

— Podia.

Eulália — e aqui começa a explicar-se o título deste conto — Eulália era de um moreno pálido. Ou doença, ou melancolia, ou pó-de-arroz, começou a ficar mais pálida depois da herança do Iguaçu. De maneira que, quando o estudante lá voltou um mês depois, admirou-se de a ver, e de certa maneira sentiu-se mais ferido. A palidez de Eulália tinha-lhe dado uns trinta versos; porque ele, romântico acabado, do grupo clorótico, amava as mulheres pela falta de sangue e de carnes. Eulália realizara um sonho; ao voltar de Iguaçu o sonho era simplesmente divino.

Isto acabaria aqui mesmo, se Máximo não fosse, além de romântico, dotado de uma delicadeza e de um amor-próprio extraordinários. Essa era a outra feição principal dele, a que me dá esta novelita; porque se tal não fora... Mas eu não quero usurpar a ação do capítulo seguinte.

CAPÍTULO IV

— Quem é pobre não tem vícios. Esta frase ainda ressoava aos ouvidos de Máximo, quando já a pálida Eulália mostrava-se outra para com ele — outra cara, outras maneiras, e até outro coração. Agora, porém, era ele que desdenhava. Em vão a filha do Senhor Alcântara, para resgatar o tempo perdido e as justas mágoas, requebrava os olhos até onde eles podiam ir sem desdouro nem incômodo, sorria, fazia o diabo; mas, como não fazia a única ação necessária, que era apagar literalmente o passado, não adiantava uma linha; a situação era a mesma.

Máximo deixou de freqüentar a casa algumas semanas depois da volta de Iguaçu, e Eulália voltou as esperanças para outro ponto menos nebuloso. Não nego que as noivas começaram a chover sobre o recente herdeiro, porque negaria a verdade conhecida por tal; não foi chuva, foi tempestade, foi um tufão de noivas, qual mais bela, qual mais prendada, qual mais disposta a fazê-lo o mais feliz dos homens. Um antigo companheiro da Escola de Medicina apresentou-o a uma irmã, realmente galante, D. Felismina. O nome é que era feio; mas que é um nome? What is a name? como diz a flor dos Capuletos.

— D. Felismina tem um defeito, disse Máximo a uma prima dela, um defeito capital; D. Felismina não é pálida, muito pálida.

Esta palavra foi um convite às pálidas. Quem se sentia bastante pálida afiava os olhos contra o peito do ex-estudante, que em certo momento achou-se uma espécie de hospital de convalescentes. A que se seguiu logo foi uma D. Rosinha, criatura linda como os amores.

— Não podes negar que D. Rosinha é pálida, dizia-lhe um amigo.

— É verdade, mas não é ainda bem pálida, quero outra mais pálida.

D. Amélia, com quem se encontrou um dia no Passeio Público, devia realizar o sonho ou o capricho de Máximo; era difícil ser mais pálida. Era filha de um médico, e uma das belezas do tempo. Máximo foi apresentado por um parente, e dentro de poucos dias freqüentava a casa. Amélia apaixonou-se logo por ele, não era difícil — já não digo por ser abastado, — mas por ser realmente belo. Quanto ao rapaz, ninguém podia saber se ele deveras gostava da moça, ninguém lhe ouvia coisa nenhuma. Falava com ela, louvava-lhe os olhos, as mãos, a boca, as maneiras, e chegou a dizer que a achava muito pálida, e nada mais.

— Ande lá, disse-lhe enfim um amigo, desta vez creio que encontraste a palidez mestra.

— Ainda não, tornou Máximo; D. Amélia é pálida, mas eu procuro outra mulher mais pálida.

— Impossível.

— Não é impossível. Quem pode dizer que é impossível uma coisa ou outra? Não é impossível; ando atrás da mulher mais pálida do universo; estou moço, posso esperá-la.

Um médico, das relações do ex-estudante, começou a desconfiar que ele tivesse algum transtorno, perturbação, qualquer coisa que não fosse a integridade mental; mas, comunicando essa suspeita a alguém, achou a maior resistência em crer-lha.

— Qual doido! respondeu a pessoa. Essa história de mulheres pálidas é ainda o despeito que lhe ficou da primeira, e um pouco de fantasia de poeta. Deixe passar mais uns meses, e vê-lo-emos coradinho como uma pitanga.

Passaram-se quatro meses; apareceu uma Justina, viúva, que tratou de apoderar-se logo do coração do rapaz, o que lhe custaria tanto menos, quanto que era talvez a criatura mais pálida do universo. Não só pálida de si mesma, como pálida também pelo contraste das roupas de luto. Máximo não encobriu a forte impressão que a dama lhe deixou. Era uma senhora de vinte e um a vinte e dois anos, alta, fina, de um talhe elegante e esbelto, e umas feições de gravura. Pálida, mas, sobretudo, pálida.

Ao fim de quinze dias o Máximo freqüentava a casa com uma pontualidade de alma ferida, os parentes de Justina trataram de escolher as prendas nupciais, os amigos de Máximo anunciaram o casamento próximo, as outras candidatas retiraram-se. No melhor da festa, quando se imaginava que ele ia pedi-la, Máximo afastou-se da casa. Um amigo lançou-lhe em rosto tão singular procedimento.

— Qual? disse ele.

— Dar esperanças a uma senhora tão distinta...

— Não dei esperanças a ninguém.

— Mas enfim não podes negar que é bonita?

— Não.

— Que te ama?

— Não digo que não, mas...

— Creio que também gostas dela...

— Pode ser que sim.

— Pois então?

— Não é bem pálida; eu quero a mulher mais pálida do universo.

Como estes fatos se reproduzissem, a idéia de que Máximo estava doido foi passando de um em um, e dentro em pouco era opinião. O tempo parecia confirmar a suspeita. A condição da palidez que ele exigia da noiva, tomou-se pública. Sobre a causa da monomania disse-se que era Eulália, uma moça da Rua dos Arcos, mas acrescentou-se que ele ficara assim porque o pai da moça recusara o seu consentimento, quando ele era pobre; e dizia-se mais que Eulália também estava doida. Lendas, lendas. A verdade é que nem por isso deixava de aparecer uma ou outra pretendente ao coração de Máximo; mas ele recusava-as todas, asseverando que a mais pálida ainda não havia aparecido.

Máximo padecia do coração. A moléstia agravou-se rapidamente; e foi então que duas ou três candidatas mais intrépidas resolveram-se a queimar todos os cartuchos para conquistar esse mesmo coração, embora doente, ou parce que...

Mas, em vão! Máximo achou-as muito pálidas, mas ainda menos pálidas do que seria a mulher mais pálida do universo.

Vieram os parentes de Iguaçu; o tio major propôs uma viagem à Europa; ele, porém, recusou. — Para mim, disse ele, é claro que acharei a mulher mais pálida do mundo, mesmo sem sair do Rio de Janeiro.

Nas últimas semanas, uma vizinha dele, em Andaraí, moça tísica, e pálida como as tísicas, propôs-lhe rindo, de um riso triste, que se casassem, porque ele não acharia mulher mais pálida.

— Acho, acho; mas se não achar, caso com a senhora.

A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.

Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes de cair teve tempo de murmurar.

— Pálida... pálida...

Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim desposar, outros, acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros que de Eulália, etc... Alguns crêem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião, posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.

Fontes:
Publicado originalmente em A Estação, de 15/08/1881 a 30/09/1881.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sérgio Ferreira da Silva (Caderno de Trovas)


A brisa traz, de antemão,
seu perfume pela rua...
e eu chego a ter a impressão,
de que é você que flutua!

A inocência, em teu semblante
num contraste, se desfaz,
por ser a prova flagrante
de que me roubaste... a paz!

A mesma brisa que à noite,
sugere encanto e poesia
pode ser, também, o açoite
dos que não têm moradia.

Amigo é aquele artesão
que, sem receios, lapida -–
com o cinzel do perdão
as pedras brutas... da vida!

A sogra entrega o genrinho
ao faminto canibal:
“Cuida dele com carinho...
mas... vê se tá bom de sal!”

À solidão condenada,
na Praça da Eternidade,
minha súplica é chamada
de Monumento... à Saudade!

Choveu... e agora, a enxurrada
leva as coisas, feito alguém
que, ao partir, numa alvorada,
levou minha alma... também!

Confusão na madrugada,
que o bebum transforma em drama:
atira... na namorada
e leva a sogra pra cama !

Desejo é o jovem arrais
que, em vez das embarcações,
suplica encontrar um cais
para ancorar ilusões!

Em sua breve existência,
não pode a brisa supor
que, trazendo a tua essência
me traz a essência do Amor...

É pescador de primeira...
mas, antes que alguém se queixe,
leva no bolso a carteira
e o fone do disque-peixe!

Essa lágrima que corta
teu semblante, sem favor,
é uma gota, mas comporta
um Oceano... de dor!

Essa ternura que exalas,
e os meus receios acalma,
faz um vôo sem escalas
da tua pele... à minh’alma!

Este teu querer incerto,
imprevisível demais,
fez de minh’alma um deserto,
com chuvas... ocasionais.

É tanta fome que eu sinto
(parece coisa de louco!),
que eu só vou ficar faminto
depois de comer um pouco!

Eu suplico, a todo instante,
por tua volta... é verdade.
Mas, a súplica constante
não é súplica... é Saudade!

Faminto, não vi, querida,
talvez, por eu ser tão moço,
que eras fruta proibida
e a tua mãe... o caroço!

Meu destino não se escreve
à força de um vento forte:
teu olhar é a brisa leve
que determina meu norte!

Não vem me chamar de omisso,
porque a culpa não foi minha:
levei o anzol... o caniço
e só me esqueci... da linha!

No compasso das batidas,
o meu coração suplica,
pelo bem de nossas vidas:
Fica...ca! Fi...ca! Fi...ca! Fi...ca!

No curso de nossas vidas,
por diferentes estradas,
nossas almas, distraídas,
continuam de mãos dadas!

Nos sonhos, minha alma alcança
o infinito... e, se estou só,
volto aos tempos de criança
e aos braços... de minha avó!

No velório, a confusão
quando o genro, num rompante,
chegou com pinga, limão,
cerveja e refrigerante.

Numa foto digital,
teu semblante, em luz e cor,
é saudade virtual,
no microcomputador...

O chão batido,... a porteira...
o teu semblante... e o destino...
são os marcos da fronteira
entre a saudade... e um menino!

Para pescar tubarão,
qual foi a isca que usaste?”
“Um pouco de diversão:
minha sogra... num guindaste!”

Quando o pranto fez morada
no teu semblante grisalho,
trouxe a imagem da geada,
cobrindo as gotas de orvalho.

Receio o destino incerto
de perder-me em teus encantos
e tornar-me um livro aberto,
esquecido.. pelos cantos.

Receio que a solidão,
esta falsa liberdade,
faça do meu coração
um escravo... da saudade.

São de brisa os teus carinhos...
teus beijos são vendavais...
e eu me perco em teus caminhos,
aguardando... os temporais!

Teu receio, que dispensa
meu querer e meu carinho,
é trilha fechada e densa...
mas eu encontro o caminho!

Tô faminto... e não tem bóia!
Eu num guento esse jejum!!!
Fome Zero??? Uma pinóia:
minha fome... é MENOS UM!

Tua alma desperta em mim
tanta calma e tanto ardor,
que, se o amor não for assim,
eu mudo o nome do amor!

Um pescador esquisito,
num gesto desesperado,
se revela, ao dar um grito:
“HOJE EU PESCO... UM NAMORADO!!!”

Lima Barreto (O Único Assassinato de Cazuza)


HILDEGARDO BRANDÂO, conhecido familiarmente por Cazuza, tinha chegado aos seus cinqüenta anos e poucos, desesperançado; mas não desesperado. Depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustiças, que tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.

Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado; tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, não falhou, foi devido à audácia de que se revestiu, audácia de quem “queimou os seus navios”. Assim mesmo, todas as picuinhas lhe eram feitas. Às vezes, julgavam-no inferior a certo outro, porque não tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior e determinado “antologista”, porque semelhante autor havia, quando “encostado” ao consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente do rei do Sião, uma bengala de legítimo junco da índia. Por essas e outras, ele se aborreceu e resolveu retirar-se da liça. Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nunca mais ver o mundo, como o herói de Jules Verne, no seu “Náutilus”.

Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. Não se arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual. Ao cinqüenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si. Vivia, por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.

A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manhã, tomava café e ia até a venda, que supria a sua casa, ler os jornais, sem deixar de servir-se, com moderação, de alguns cálices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a casa, almoçava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo, passeava a esmo pelos arredores, tão alheio e soturno que não perturbava nem um namoro que viesse a topar.

Aos domingos, porém, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma única e sempre a mesma. Era também a um desalentado amigo seu. Médico, de real capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia “propositalmente” e não – “propositadamente”, “de súbito” e não – “às súbitas”, etc., etc. Tinham sido colegas de preparatórios e, muito íntimos, dispensavam-se de usar confidências mútuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.

Pelos domingos, como já foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela manhã, após o café, à casa do amigo, que ficava próximo, ler lá os jornais e tomar parte no “ajantarado”, da família. Naquele domingo, o Cazuza, para os íntimos, foi fazer a visita habitual a seu amigo doutor Ponciano. Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O médico sentava-se a uma cadeira de balanço; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou de lona. De permeio, ficava-lhes a secretária. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros anatômicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo. Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:

– Não sei como se pode viver no interior do Brasil!

– Porque?

– Mata-se à toa por dá cá aquela palha. As paixões, mesquinhas paixões políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme eliminar o adversário e por meio do assassinato, às vezes o revestindo da forma mais cruel. O predomínio, a chefia da política local é o único fim visado nesses homicídios, quando não são a questões de família, de herança, de terras e, às vezes, causas menores. Não leio os jornais que não me apavore com tais notícias. Não é aqui, nem ali; é em todo o Brasil, mesmo às portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses assassinatos, praticados por capangas – que nome horrível! – há os praticados pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversários dos governos locais, adversários ou tidos como adversários. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar plantações, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho, devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na câmara, no senado, nos ministérios, até na presidência da república se alicerça no crime, no assassinato. Que acha você?

– Aqui, a diferença não é tão grande para o interior nesse ponto. Já houve quem dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de Janeiro.

– É verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster de política; mas, no interior, não. Vêm as relações, os pedidos e você se alista. A estreiteza do meio impõe isso, esse obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As coisas vão bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis você arriscado a levar uma estocada em uma das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um cão danado. E eu quis ir viver no interior! De que me livrei, santo Deus!

– Eu já tinha dito a você que esse negócio de paz na vida da roça é história. Quando cliniquei, no interior, já havia observado esse prurido, essa ostentação de valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, é causa de assassinatos estúpidos. Poderia contar a você muitos casos dessa ostentação de assassinato, que parte da gente da roça, mas não vale a pena. É coisa sem valia e só pode interessar a especialistas em estudos de criminologia.

– Penso – observou Hildegardo – que esse êxodo da população dos campos para as cidades, pode ser em parte atribuído à falta de segurança que existe na roça. Um qualquer cabo de destacamento é um César naquelas paragens – que fará então um delegado ou subdelegado? É um horror!

Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:

– E não há remédio.

Hildegardo secundou-o.
– Não acho nenhum.

Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:
– Deus não me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. Não posso compreender como esses políticos, que andam por ai, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascensão é marcada por cruzes. Se por ventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que acha você?

– Eu também; mas você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

– Não.

– Que todos nos matamos.

Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:
– Estou de acordo. Já matei também.

O médico espantou-se e exclamou:
– Você, Cazuza!

– Sim, eu! – confirmou Cazuza.

– Como? Se você ainda agora mesmo...

– Eu conto a coisa a você. Tinha eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você sabe que, a bem dizer, não conheci minha mãe!

– Sei.

– Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém – o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.

Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:
– Vamos, Carleto; conta o assassinato que você perpetrou.

Hildegardo ou Cazuza conteve-se e começou a narrar:
– Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...

– Conte a história, homem! – fez impaciente o doutor Ponciano.

– A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando, soluçando e gritando: “Mamãe, mamãe! Matei, matei.. .“ Os soluços me tomavam a fala e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: “O que é, meu filho! Quem é que você matou?” Afinal, pude dizer: “Matei um pinto, com o pé”. E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de água de flor e mandou-me sentar a um canto: “Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia.” E eu fiquei muito sossegado a um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua,
pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...

Dª Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o “ajantarado” estava na mesa.

Fonte:
Revista Sousa Cruz, Rio, fevereiro, 1922.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.131)


Uma Trova Nacional

Ganha tão pouco o Ademar
na profissão de engraxate,
que a mulher, para ajudar,
anda fazendo biscate...
(ANA MARIA MOTA/RJ)
(Nota: A Trova acima deixou o Ademar "encafifado" )
.
Uma Trova Potiguar

Dia do jegue é lazer
por decreto criado a esmo:
quem não tem o que fazer
homenageia a si mesmo.
(CELSO DA SILVEIRA/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > TRABALHO > Menção Especial

O trabalho é punição,
uma herança do passado...
Deus quis castigar Adão,
e sobrou pro nosso lado!...
(RENATO ALVES/RJ)

Simplesmente Poesia

Ialmar Pio Schneider (RS)
VENTO DO MAR

Vento que sopras furibundo
e vens meus sonhos despertar,
as tristezas de todo o mundo
parece que trazes do mar...

Ouvindo o lamento profundo
sempre constante a marulhar,
quedo-me triste, me confundo
co’a voz misteriosa do mar...

Altas horas, cada segundo
teimas o meu corpo abraçar,
quando em reflexões me aprofundo
para obter segredos do mar...

Uma Trova de Ademar

Matuto “fraga a muié”
na cama com o Ricardão,
e, pra manter a honra em pé
toca fogo no colchão.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto…
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
(CYRO ARMANDO CATTA PRETA/SP

1922-2010)

Estrofe do Dia

Nem sei os anos que tem
o meu velho avô de aço,
talvez já passe de cem
janeiros no espinhaço;
quando chega de um passeio,
fica naquele aperreio
se passa uma noite só;
tira um quadro da parede
faz amor dentro da rede
no retrato de vovó!
(OTACÍLIO BATISTA/PE)

Soneto do Dia

– Luiz Leitão/PE –
NA LOJA.

Seguida da vovó, meiga e bonita,
ela entrou numa loja, no armarinho...
– Tem fita de cetim azul-marinho?
Qual o preço? – perguntou ela, catita.

Um beijo cada metro, senhorita!
Respondeu-lhe o caixeiro com carinho.
– É muito caro, mas, enfim, mocinho,
corte-me doze metros desta fita!

Já se sabe: o caixeiro como um raio,
cortava a fita quase num desmaio
sem ter sequer da tesourinha dó.

– Pronto, formosa! O pagamento agora...
E a moça lhe responde sem demora:
– Adeus! Quem paga as compras é a vovó...

Fonte:
Ademar Macedo

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Mariinha Mota (Caderno de Trovas)


Mesmo que a mágoa te açoite,
não te entregues ao sofrer,
pois o fim de cada noite
traz sempre um amanhecer.

Vede: o rio de ondas de ouro,
vindo de plagas amenas,
foi no próprio nascedouro
um fiozinho de água apenas...

Nunca tente amaldiçoar
todo o vozerio alheio.
De gente má a gritar
o nosso mundo está cheio.

Se guardaste com esperança
muitas riquezas humanas,
reparte tua abastança
aos que gelam nas choupanas.

Aproxima-te do bem,
procura-o com decisão,
e verás fulgir, além,
a suprema perfeição

Reparte, com amizade,
a prece, a comida, as vestes.
São juros da eternidade.
São dividendos celestes.

Os laços indestrutíveis,
que reúnem corações,
são, geralmente, invisíveis:
nascem só das emoções!

A bondade é flor que encerra,
no mundo, o maior troféu,
daqueles que, aqui na Terra,
vivem voltados pro Céu.

Nasceu na Terra a Bondade,
por ordem do Criador.
Tem por mãe a Caridade
e tem como pai o Amor.

Eu procuro, com freqüência,
desparzir o bem, a luz.
Sei que o fruto dá notícia
da árvore que o produz.

Quando vejo um passarinho
voltando para o seu ninho,
sinto uma dor muito aguda:
saudade do meu filhinho.

Vi, agora, um beija-flor
beijando uma linda rosa!
Lembrei-me, com grande dor,
do meu filhinho, tão prosa!

A diferença do olhar,
do homem que ama de verdade,
é como a brisa do mar
logo após a tempestade...

Recebe de alma serena
todo o golpe que te doa.
Opõe à voz que condena
tua paz serena e boa.

Como é bom sentir o vento,
ver árvores generosas,
ver astros no firmamento,
ouvir canções, ver as rosas.

Sempre, em tudo, o morticínio,
vê o homem bruto, em ânsia;
tendência para o extermínio
é suprema ignorância.

Há tanta gente vibrando
para que a vida me vença
que às vezes, fico pensando:
Ah! Se não fosse esta crença...

Se neste mundo mesquinho
nos tratarem com motejo,
tornar-nos-emos arminho
aproveitando este ensejo.

Toda esperança é qual lume
cheio de luz e calor,
é o mais dulcido perfume
que minora a nossa dor

Guarda no teu coração
a fé viva e a esperança
é da resignação
que nasce toda confiança.

Sempre que o véu da tristeza
ensombrar teu coração,
repara, quanta beleza
está ao alcance da mão!

Os laços indestrutíveis
que reúnem corações,
são, geralmente, invisíveis
nascem só das emoções!

És, Brasil, meu ar, meu pão,
o meu templo, a minha escola,
és Pátria do coração
que Deus me deu por esmola.

Ó minha alma insatisfeira,
na escuridão que te alcança,
ante a noite contrafeita,
ergue a tocha da esperança!

Fontes:
Jose Ouverney http://www.falandodetrova.com.br
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Mariinha Mota (Livro de Poesias)


ESTE NOSSO AMOR

Então, fiz desse amor que me inspiraste um dia,
a escada que Jacó, em sonhos, viu surgir;
e que não tinha fim, ligando a Terra fria,
aos céus de luz e paz, de sonhos a luzir.

Sinto que desse afeto imenso e tão sublime,
só compreendemos nós a única razão...
É um verdadeiro amor, ternura que redime.
Estejas longe ou perto és minha adoração.

Pensando só em ti componho os meus poemas,
que traduzem pureza e confiança supremas,
e partem de minha alma como um longo grito.

Sou feliz por te amar. Todo o meu pensamento
quer fruir desse amor, que é paz e que é tormento,
e buscar para nós as luzes do infinito.

ESSE TEU OLHAR

Esse teu olhar tão terno que eu reclamo,
desejando que seja todo meu,
é uma jóia tão rara! Eu o proclamo
ser presente do Céu que Deus me deu.

Ao império desse olhar, enlanguecida,
encontro mil belezas de mil mundos,
pois ele transformou a minha vida
com um amor dos mais nobres e profundos.

Esses olhos bondosos que eu venero,
que admiro com alma e tanto quero,
só me ensejam momentos de venturas.

Teu pulcro olhar, que tanta luz encerra,
são dois faróis guiando-me na Terra,
envolvendo-me em ondas de ternuras!

SOMENTE EU

Esta ansiedade enorme, este fascínio louco
que eu desperto em teu ser - e disto estou consciente -
não nasceu nesta vida. Um milênio é bem pouco
para consolidar esta atração fremente.

Não é só, pois, biológico, este ardor supremo
quando nós pressentimos um do outro a presença.
Nosso amor transcendeu o encantamento extremo
e ele é para nós a luz de toda a crença.

Neste mundo, ninguém, por mais força que faça
desunirá nossa alma no tempo que passa
já que este nosso amor é feito de arrebol.

Só eu posso estancar a tua sede de afeto.
Só eu posso acalmar teu coração inquieto.
Sei que sou, somente eu, o teu dia de sol.

VATE GLORIOSO

Viveu na Terra um sonho eterno de beleza
que palpitava, sempre, em todo o seu espírito,
nas sínteses de amor da humana natureza,
anelava buscar as luzes do infinito.

Um saltério divino, cérebro fecundo,
ornou a "Flor do Lácio" com acordes supremos,
deixando-nos, também, um conceito profundo:
"Amar ainda mais a terra em que nascemos."

Príncipe dos Poetas, nobre brasileiro,
há cem anos fulgiu na Pátria do Cruzeiro,
alcançando, entre nós, merecido destaque.

Esse que tanto amou a língua portuguesa,
cantando-a em seus versos de nímia beleza,
é Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac!

ASCESE

Vim, através do todo de elementos,
dos eternos princípios embrionários,
saltando das matérias cósmicas...
Produto telúrico do mundo,
gérmen fui em expedições grandevas,
até ganhar na solidão da Terra
o princípio de impulsos e instintos
com a face de gorila.
Pensei, senti, chorei. Mas, ai!
A dor terrível lavrando esta minha alma,
laboriosa operária iluminando a evolução dos evos,
no emaranhado das lutas cognitivas.
Doridas algemas torturam a mente,
penumbra terrena nas grades do horror.
Surgiu o remorso!
Simbiose do mal, de dor e tristeza.
Hoje, sinto o Além dentro do meu ser.
Sou um vulcão de emoções!
Quanta melodia na mente!
Quero ser perfume.
Quero ser essência rara no Espaço infinito.

PIQUETE

Piquete, tua natureza
é poema de singeleza,
ornamentada de flores,
embalsamada de olores,
que tais encantos resume,
cheios de luz e perfume!

Piquete, sempre eu quisera,
em perene primavera,
unir-te toda à poesia
e à linda polifonia.
És do Brasil um florão
que merece saudação

Fonte:
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Mariinha Mota (1930 – 2011)


Maria Augusta Beraldo Leite Mota nasceu em Piquete no dia 18 de fevereiro de 1930, filha de Horácio Pereira Leite e Maria de Lourdes Beraldo Leite. Faleceu em 26 de janeiro de 2011.

Professora, poetisa, trovadora, cronista, romancista, historiadora, jornalista, biógrafa.

Nasceu Maria - Maria Augusta Beraldo Leite. Maria Augusta tornou-se Mariinha e assim ficou sendo por toda a sua vida: Mariinha do Horácio; depois, Mariinha do Geraldo; mais adiante, professora e poetisa Mariinha Mota.

Saída das faldas da Mantiqueira, Mariinha Mota cresceu através de seus versos e de sua arte, impulsionada apenas pela força de sua inteligência e sensibilidade. Voou Brasil afora nas asas de suas rimas.

Filha de Horácio Pereira Leite, fazendeiro e chefe político do Vale do Paraíba, em São Paulo, membro de tradicional família de cafeicultores da região e de sua segunda esposa, Maria de Lourdes Alves Beraldo, Mariinha nasceu de um amor temporão e como tal foi adorada e mimada pelo pai.

Horácio Pereira Leite nasceu em Bananal, SP, casando-se em primeiras núpcias, com Corina Jardim, também de tradicional família do norte fluminense. O casal teve seis filhos, todos Pereira Leite: Maria, José, Paulo, Irtes, Haroldo e Moema.

O declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba fez com que Horácio diversificasse seus negócios e se dedicasse à pecuária.

Além de fazendeiro, Horácio possuiu fábrica de refrescos, açougue, restaurante, olaria e foi proprietário do primeiro jornal da cidade de Piquete: o quinzenário "Sentinella", que iniciou sua circulação em 18/09/1927, tendo como redator o Prof. José Ribeiro da Silva. Juiz de Paz, delegado, dono de terras e gado, Horácio foi o doador dos terrenos do cemitério de Piquete e ajudou a construir ruas e casas da cidade que então se formava.

Dois de seus descendentes herdaram-lhe a veia política, tornando-se prefeitos de Piquete: seu neto José Armando de Castro Ferreira e seu filho Luiz Carlos Beraldo Leite. Enviuvando, Horácio casou-se com a jovem Maria de Lourdes Alves Beraldo; tão jovem era a noiva, que possuía a mesma idade de Maria, sua filha mais velha. Com ela, Horácio viveu um grande amor, tornando-a a pessoa mais importante de sua vida. O mundo era pequeno para que ele o pusesse aos pés de sua adorada e de seus filhos, dos quais Mariinha era a primogênita.

Maria de Lourdes descendia, através de seu pai José Alves Beraldo, do clã Beraldo, do Sul de Minas. Sua mãe, Maria Augusta Alves Beraldo, era natural de Guaratinguetá, SP e falecera quando Lourdes contava apenas nove anos de idade, deixando oito filhos: Ovídio, Ormindo, Carlos, José, Lourdes, Álvaro, Messias e Josepha, todos Alves Beraldo. Maria de Lourdes educou-se no Colégio do Carmo, em Guaratinguetá, onde sua mãe também estudara e pertencera às primeiras turmas deste estabelecimento de ensino. Saindo do Colégio do Carmo, Lourdes, cujo pai casara-se em segundas núpcias, morou até o seu casamento com o irmão mais velho Ovídio Alves Beraldo e sua esposa Alcina Ribeiro Beraldo. Ovídio dedicara-se à carreira militar, à princípio no Exército e depois na Aeronáutica, tendo servido no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial, como oficial da FEB. Passou à reserva em 1962, como Major Brigadeiro, após uma carreira brilhante.

Do segundo casamento de José Alves Beraldo nasceu um nono filho: Osvaldo Alves Beraldo, advogado, professor universitário e um dos fundadores da Universidade de Taubaté, SP. O casal Maria de Lourdes e Horácio teve seis filhos: Maria Augusta, João Roberto, Antônio Carlos, Suzana Maria, Luiz Carlos e José Sílvio, todos Beraldo Leite.

Mariinha estudou em Piquete nos seus primeiros anos de vida. Inteligente e vivaz, despertou a atenção de suas professoras e do padre da cidade, que alertaram o velho fazendeiro sobre o grande potencial de sua filha. Maria Augusta encaminhou-se, então, para Guaratinguetá, o maior centro cultural do Vale do Paraíba, na época.

Sob os cuidados de seu jovem tio Osvaldo, freqüentou o Colégio Nogueira da Gama, por dois anos. Quando Osvaldo seguiu para cursar Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, Mariinha foi matriculada no Colégio do Carmo, comandado por freiras salesianas, fechando o ciclo das três gerações consecutivas, que ali se educaram.

Desde tenra idade, Mariinha desenvolveu o gosto pela poesia, literatura e história. Quando menina, sonhava declamar poemas maravilhosos de sua autoria, dos quais não se recordava ao acordar.

Sensível, apaixonou-se pela vida tranqüila das freiras do Carmo e quis tornar-se uma delas. "Cheguei a usar a capinha de noviça", conta com orgulho. Não conseguiu a aprovação de seu pai que exigiu sua permanência fora do colégio por um ano, antes de seguir sua vocação.

De volta a Piquete, convidada para dar aulas de Educação Física na Escola Industrial da Fábrica Presidente Vargas, Mariinha deparou-se com os olhos azuis de um "expedicionário". Geraldo Silvia Mota, filho de um imigrante italiano com uma mineira de Baependi, pistonista de primeira linha, recém chegado da Segunda Guerra Mundial, povoou seus sonhos de adolescente e a fez esquecer o claustro.

Casaram-se em 30 de setembro de 1947, quando Mariinha contava apenas 17 anos. Sua filha mais velha recebeu o nome da padroeira das freiras do Carmo: Maria Auxiliadora, como uma compensação devida pelo abandono da vocação.

Mariinha abriu uma loja de tecidos finos e rendas, mas a necessidade de desabrochar a sua inteligência era intensa.

Quando foi criada, em Piquete, a Escola Normal Duque de Caxias, Mariinha, então com duas filhas, vendeu sua loja e retornou aos estudos.

Com Mariinha, na Escola Normal, diplomou-se uma plêiade de jovens senhores e senhoras, que brilhariam, posteriormente, no magistério e na vida cultural do Vale do Paraíba.

Concursada e aprovada como professora do Estado de São Paulo, Mariinha trabalhou, por algum tempo, em uma escola rural de Cunha, SP, para onde levou seus filhos pequenos, acrescidos do caçulinha, ainda bebê, Salvador Augusto e de Nancy Maria, filha escolhida pelo seu coração, por ela salva das vicissitudes da vida.

Mais tarde, Mariinha escolheria outra pequena menina - Maria Benedita Inácio, a Lili - para completar o seu lar. Durante alguns anos, posteriormente, Tony, também cresceria ao lado de seus filhos.

Retornando à Piquete, como professora do Grupo Escolar Antônio João, Mariinha dedicou-se aos seus alunos, não limitando-se às aulas cotidianas: montou grupos de teatro e declamação, fanfarras; organizou desfiles grandiosos, com carros alegóricos criativos e movimentados. Participou de campanhas filantrópicas várias, como a Campanha do Agasalho, Natal dos Pobres e Campanha do Quilo Mensal, não descurando a formação moral e intelectual de seus filhos.

Embora com saúde precária, tendo sido submetida a várias e seguidas intervenções cirúrgicas, inclusive uma nefrectomia, continuava em suas lides. Declamadora de escol, não só arrebatou inúmeros prêmios em concursos de declamação, como preparou suas filhas e alunos, que também se destacaram nestas apresentações.

A caravana de declamadores de Piquete, encabeçada pela professora Mariinha Mota, era respeitada pelo Vale do Paraíba e Sul de Minas. Mariinha começou a compor seus poemas, tendo os sonetos como primeira forma de expressão, seguidos por trovas, peças de teatro e poemas infantis, que espalhavam-se pelas páginas literárias dos jornais e revistas da região.

Em 1968, inesperadamente, seu filho caçula, Salvador Augusto, com dez anos de idade, faleceu acometido por um osteossarcoma. Mariinha não esmoreceu. Havia uma família a ser educada que apenas se esboçava; tudo dependia de sua força e equilíbrio.

Em 1973 retornou aos bancos escolares, formando-se em pedagogia e letras: língua portuguesa e inglês. Passou a lecionar para adolescentes, mas preferiu sempre as crianças.

Em memória de seu filhinho tornou-se uma das fundadoras, em Piquete, de um movimento ligado à Rede Feminina de Combate ao Câncer.

Aposentada, dedicou-se totalmente à literatura e, da pequena cidade de Piquete, espalhava-se através de seus versos, por todo o Brasil, chegando a assumir uma cadeira na Academia de Letras do Vale do Paraíba.

Uma doença neurológica incapacitante impediu a continuação de seu brilho, mas não apagou a beleza de sua trajetória, cultuada por seus descendentes, que procuram transmitir aos filhos a história da inteligência e sensibilidade desta menina fazendeira e brincalhona que nasceu Maria.

Detentora de grande número de prêmios em poesia e prosa, nacionais e internacionais, foi eleita pela revista belga "Poemas" para o seu "Tableau D'Honneur - 1982", como uma das seis intelectuais brasileiras de maior renome internacional.

Publicou diversas obras, muitos trabalhos traduzidos para o francês, inglês, espanhol e grego.

São composições de sua lavra:
Ascese (sonetos),
Ascetério (poemas),
Acendalhas (poesias infantis),
Vida Afora (trovas),
Per Viam Vitae (trovas),
Três Artistas Baipendianos (biografias),
Res Non Verba (crônicas),
Filipe II e sua História (romance) e
Bárbara Heliodora e a Inconfidência (estudo histórico).

Seu nome figura em diversas antologias, como Trovadores do Vale, Crônicas de Barra Mansa, Poetas Valeparaibanos, Roteiro Biobibliográfico da Poesia Feminina no Brasil, Anuário de Coletânea de Trovas Brasileiras - 1978 e 1979, Poetas do Brasil - 1977, 1978 e 1979, A Trova no Brasil, Escritores do Brasil - 1978 e 1979, Coletânea de Contos e Poesia e Dicionário Conciso de Autores Brasileiros.

Pertenceu a diversas associações culturais:
Academia de Letras do Vale do Paraíba, cadeira número 27, patronímica de José de Anchieta;
Academia de Letras de Uruguaiana,
Academia Internacional de Letras "Três Fronteiras" (Brasil, Argentina e Uruguai),
Academia de Letras da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul,
Academia de Trovadores da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul,
Associação Uruguaianense de Escritores e Editores,
Academia Internacional de Heráldica e Genealogia,
Academia Internacional de Ciências Humanísticas e
Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana.

Obteve onze medalhas de ouro e prata e inúmeros diplomas conquistados em concursos de declamação no Vale do Paraíba e Sul de Minas,
diploma de Honra ao Mérito do Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana,
diploma e medalha "Mérito Cultural - 1978" da Federação de Academias do Sul do País,
diploma e medalha "Mérito Cultural - 1979", da Academia de Trovadores da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul e
Troféu Evangelina Cavalcanti - Recife, Pernambuco.

Fontes:
http://depressaoepoesia.ning.com/profiles/blogs/minha-mamae-mariinha-mota-e
http://mariinhamotapoeta.blogspot.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.130)


Uma Trova Nacional

A mais dorida verdade,
e a que me cala mais fundo,
é a notória brevidade
das ilusões deste mundo.
(PEREIRA DE ALBUQUERQUE/CE)

Uma Trova Potiguar

Ontem quando a lua veio,
tão cheia, por trás do monte,
parecia um lindo seio
no decote do horizonte.
(JOSUÉ TABIRA/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Bandeirantes/PR
Tema > AUDÁCIA > Menção Especial

Luto por meus ideais,
com audácia entre os abalos,
que não abalam jamais
a esperança de alcançá-los!
(WANDA DE PAULA MOURTHÉ/MG)

Simplesmente Poesia

– Dalinha Catunda/CE –
EU E ELE.

Vem que o dia é nosso,
aquece meu corpo que gosto.
Faz-me inteirinha suar.

Deixa-me de rosto corado,
brinquemos de namorados,
antes que chegue o luar.

Vem me fazer mais morena,
garanto que vale a pena,
em minha pele tocar.

A nossa química é perfeita.
Desce seus raios, aproveita!
Sou epiderme a lhe provocar.

Uma Trova de Ademar

Na transposição mais nobre,
podemos, sem qualquer risco,
matar a sede do pobre
com as águas do São Francisco!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Se na estrada em que transponho,
só tem pesares daninhos,
eu peço carona ao sonho
e nem piso nos espinhos.
(LILA RICCIARDI FONTES/SP)

Estrofe do Dia

– Carlos Drummond de Andrade (RJ) -
A CASA DO TEMPO PERDIDO

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

Soneto do Dia

Raymundo de Salles Brasil/BA –
AO RELER MEU SONETO

Um verso eu quis fazer melhor elaborado,
um clássico soneto igual aos de Bilac,
soneto à moda antiga, bem metrificado,
como o fizera Arthur, que foi do verso um craque.

Fiquei ante o papel, horas a fio, parado,
buscando um verso puro, um verso sem sotaque,
corri atrás da rima até ficar cansado,
coloquei a cesura em lugar de destaque.

Achei que o meu soneto já estivesse pronto,
mas quando o fui reler, verso por verso, vi
que em cada um faltava ainda um contraponto

que lhes pudesse dar riqueza à melodia;
e as cordas dedilhei de novo, e descobri:
faltava-lhe a unção – e dá-la eu não sabia.

Fonte:
Ademar Macedo

Lygia Fagundes Telles (A Consulta)


Doutor Ramazian debruçou-se na janela e ficou olhando o jardim banhado por um débil sol de inverno. Alguns pacientes estavam sentados nos bancos, outros passeavam, pálidos e perplexos. Um velho deitou-se no gramado, despiu o pulôver, atirou-o longe e quando já ia arrancar a camiseta de lã, o enfermeiro de jeans tomou-o pelos cotovelos e trouxe-o para dentro. Um jovem de alpargatas escondeu depressa a cara nas mãos.

- Max! Maximiliano! - o médico chamou. - Pode vir aqui um instante?

O homem que espiava a rua através do portão de ferro voltou-se. Veio vindo sorridente, as mãos metidas nos bolsos do blazer azul-marinho com botões prateados. Inclinou-se para tirar uma folha seca da calça de flanela.

- Boa tarde, doutor.

O médico bateu na janela o cachimbo já esvaziado, soprou um pouco de cinza e encarou o homem.

- Você me parece muito bem-disposto, Max.

- Eu estou bem-disposto. E tive pesadelos, doutor, vi um pombo esmagado no meio da rua, com um raminho verde no bico. Tão verde o raminho no meio do sangue. Não é curiosa essa coincidência?

- Que coincidência?

- Um gatinho foi atropelado bem aí na frente do portão. Ficou que nem o pombo.

- Sem o raminho verde.

- Sem o raminho verde - repetiu Maximiliano fixando 0 olhar no cachimbo que o médico deixou na mesa. - O senhor vai sair?

- Tenho um compromisso e Dona Dóris ainda não apareceu, eu queria que você ficasse aqui para atender o telefone, me faz esse favor? Antes das quatro devo estar de volta.

- Com prazer - disse Maximiliano apoiando-se na janela baixa. Pulou ágil para dentro do consultório. - Fico feliz quando o senhor confia em mim mesmo para tarefas menores como atender o telefone ou limpar seus sapatos.

O médico fechou o zíper da maleta.

- Você nunca limpou meus sapatos, Max. - Mas limparia. Os seus e os de Jesus.

- Jesus usava sandálias - disse Doutor Ramazian guardando a caneta no bolso. Apontou para um bloco ao lado do telefone: - Qualquer recado, tome nota aqui, sim? Se quiser café, já sabe onde encontrar. Não demoro.

Quando o médico saiu, Maximiliano sentou-se na cadeira giratória e apoiou os cotovelos na mesa. Apanhou o cachimbo, examinou-o atentamente. Ficou aspirando o cheiro de fumo. Deixou o cachimbo, apanhou a espátula metálica. As batidas na porta eram tímidas, constrangidas.

- Doutor Ramazian? - perguntou o recém-chegado abrindo a porta e espiando pela fresta. Ainda segurava o trinco: - Me desculpe ter vindo assim adiantado, minha hora era às quatro, mas se o senhor pudesse me atender agora... Pode me atender agora?

- Sim, claro, entre. É a primeira vez, não? - A primeira. Falei com Dona Dóris, mas... - Ela não veio hoje. Sente-se, faz favor.

- É que não agüentei esperar - disse o homem afrouxando o colarinho. Passou ansiosamente a mão no queixo. -Nem fiz a barba, está vendo? Cheguei cedo demais e fiquei andando lá na calçada, mas foi me dando uma aflição, acho que estou em ponto de enlouquecer!

- Exagero. Os que estão em ponto de enlouquecer, não dizem. Nem sabem. Quer fumar? - perguntou Maximiliano abrindo a caixa de cigarros, ao lado do porta-cachimbos.

- Obrigado, prefiro minha marca - disse o homem tirando o maço do bolso. Sua mão tremia. - Estou fumando três, quatro maços por dia, acendo um no outro, sem parar - acrescentou, vagando em torno o olhar inquieto. Fixou-o na janela. - São todos loucos? Esses aí fora.

Maximiliano abriu a bolsa de fumo. Encheu o cachimbo. - Nem todos, têm médicos e enfermeiros misturados com eles. Aqui o regime é de liberdade total, suprimimos aventais, uniformes, os doentes precisam se sentir iguais a nós. Eu mesmo ás vezes, não distingo. - Meu pai conhecia os loucos pelos olhos.

Maximiliano apertou os seus. Sorriu.

- E um elemento - disse inclinando-se. Segurava ainda o cachimbo apagado. - Mas então?

- Nem sei como começar, doutor, é demais absurdo, ridículo! Essa obsessão... Não faz sentido tanto medo, tanto medo! - Medo do quê, filho?

- Da morte.

O telefone branco em cima da mesa tocou baixinho, com o som reprimido de uma cigarra fechada na gaveta. Maximiliano atendeu, disse um não está, fez um movimento para pegar o lápis e depois de um conformado como queira, desligou. Apanhou o cachimbo mas recusou o isqueiro que o recém-chegado lhe ofereceu, agradecia mas não ia fumar, contentava-se em ficar segurando o cachimbo assim cheio como fazia nesse instante. O homem teve uma expressão desolada.

- Quisera eu poder resistir, doutor. Mais de três maços por dia - queixou-se, pousando o cigarro no cinzeiro. Entrelaçou com veemência as mãos magras. - Já não durmo, não como direito, não cumpro minhas obrigações, não faço mais nada a não ser pensar nisso. Não posso nem dizer a palavra, nem ouvir que já me sinto mal. Ainda agora, não viu?, eu falei e já comecei a transpirar, me veio uma ânsia! O tempo todo pensando, pensando, perdi o apetite da vida. No trabalho, em casa com minha mulher, na cama com minha amante, tenho uma amante, uma menina tão boazinha, nem sei como ainda me agüenta, venho me esquivando dos encontros, a última vez foi um vexame, no meio, doutor, parei no meio feito um velho, broxei feito um idiota ali em cima dela ou debaixo, nem me lembro, parece que foi há séculos! Séculos - repetiu, sacudindo a cabeça. Tragou profundamente, cerrando os olhos congestionados. - Hoje minha mulher precisou me mandar trocar de roupa, esqueço de fazer a barba, estou exausto, exausto! Quase um ano nessa agonia, doutor. Começou aos poucos, com um certo mal-estar, quando me avisavam que alguém tinha mor... tinha empacotado. Eu evitava o assunto, me desviava dos campos-santos, das casas de saúde, onde sentia de longe o cheiro dela, da coisa, desinfetada, enluvada mas presente, atuante, está me compreendendo? Até que o mal-estar foi aumentando, virou náusea, pânico, me levanto já pensando que ela pode acontecer não só para mim mas para as pessoas que eu amo. Olho meus filhos, tenho dois meninos que já estão rindo de mim, desse meu medo de contágio, de acidentes, acho que tudo nos conduz a ela e num galope. Já senti todas as doenças do mundo! Fiz dezenas de exames, radiografias, meu médico nem quer mais me receber, Você não tem nada!, já me repetiu não sei quantas vezes. E tenho tudo. O medo quando me deito, medo que aconteça durante o sono, medo que ela me pegue em flagrante, às vezes a imagino com uma cara de puta safada, cafona, me gozando com seu olho antiqüíssimo. Outras vezes, quando ouço música - meu único consolo ainda é a música, doutor -, nessas horas ela me aparece etérea, suave como uma dessas virgens das baladas, coroada com uma grinalda de jasmins, me acenando com seus frios dedos de éter... Ainda não sei qual das duas me assusta mais, se essa ou a outra, que é suja, podre. Ah, doutor um homem de trinta e cinco anos e tremendo inteiro como uma criancinha perdida no escuro, choramingando beleza, escondida lá no fundo, a semente da coisa. Na plenitude hoje, mas e amanhã?

Platão lembraria a metáfora da maçã. Mas continue, senhor Gutierrez, continue.

- Uma manhã dessas acordei sem nenhum medo, diluído, eu, que estava tão denso, cheguei a pensar que tinha me libertado quando aos poucos comecei a sentir medo de não ter medo, está me compreendendo? Parece que ficou pior ainda o vazio, esse espaço que o medo ocupava. Então quis me provar, saber se realmente estava livre: entrei a passos largos num ce... num desses campos-santos. Não passava perto deles nem que me arrastassem pelos cabelos. Fui indo até que na curva da alameda pressenti um... uma cerimônia, o doutor sabe onde quero chegar, antes mesmo já senti o cheiro da coisa; fiquei com o olfato apuradíssimo, sinto de longe, doutor. Foi o suficiente para começar a vomitar ali mesmo atrás de um cipreste. Saí ventando, só dei acordo de mim em casa, encharcado de suor. Amarelo de medo. Ou verde? - perguntou, esboçando um riso frouxo. Olhou as próprias mãos. - A cor do medo. Tire uma licença, meu chefe aconselhou, sou funcionário público. Se o senhor está doente, faça um exame médico e vá viajar, espairecer. Quis me ajudar, todos querem me ajudar. Mas dizer o que aos médicos lá do Instituto? Se o meu mal é o medo, com que cara vou confessar que estou doente de medo? Tudo em ordem. E esta desordem, esta angústia. Seria melhor enlouquecer. Ainda outra noite pensei muito nisso, seria uma solução. Mas não vou enlouquecer, vou...

- Morrer.

- Não fala, doutor, não fala! Só de ouvir, está vendo? murmurou ele enxugando no lenço o queixo, a testa. Acendeu um cigarro. Suspirou. - Eu avisei que era uma história ridícula, absurda, não avisei? Quando vinha hoje para cá, meu táxi foi cortado por um cortejo, o senhor sabe. Só de ver aqueles carros todos atrás do carro principal foi me dando tamanha aflição que saltei, mudei de rua, mas pensa que adiantou? Logo mais dei com a manchete de um jornal, o menino me abriu a manchete na cara, mal tive tempo de desviar e a voz adiante de outro jornaleiro anunciando a tragédia, um ônibus que despencou num precipício, dezenas de feridos fatais... Entrei num café e lá dentro a conversa sobre um condenado americano que quer, que exige que o... que o executem. Mas só se fala na coisa?! Ou já falavam antes, apenas era eu que estava distraído? Não sei. Sei que ando com vontade de me isolar, sumir num lugar onde essa presença não tenha tanta importância, mas existe esse lugar? Os conventos são solitários. Defendidos. Lá, nem a vida nem a ante vida importam, era de se esperar que não se preocupassem com a nossa... finitude. Mas se importam, querem a santidade através da auto-flagelação, e nessa flagelação está a memória da coisa exaltada em orações, cantorias, imagens, repetida até nos cumprimentos, lembra-te da... O senhor sabe, tem uma comunidade que se cumprimenta assim, desde que eles acordam, um vê o outro, sorri e diz - lembra-te da... - Ah! Ah, não sei por que tirar a despreocupação da vida enquanto vida.

Maximiliano ficou olhando o cachimbo fechado na gruta da mão.

- Vou lhe contar um caso, Senhor Gutierrez, serei rápido. - Fernandez, doutor. Samuel Fernandez.

- Perdão. Mas todo esse horror que o senhor tem por essa, digamos, fatalidade, um meu paciente tinha pelo automóvel. Pela máquina. Começou também assim, como o senhor, manifestando a princípio uma certa má vontade de guiar, vendeu o carro. Queixava-se do trânsito, dos motoristas. A má vontade se agravou, ficou agressivo, assustadiço, o medo de entrar num carro crescendo de tal jeito que só andava a pé, desconfiado, fugindo das ruas movimentadas, as orelhas atufadas de algodão para atenuar o som das buzinas, entrando em pânico se um carro se aproximasse mais. Ora, nossa cidade tem carro à beça, o que significa que ele vivia em estado de pânico permanente. Quando chegavam as férias, ele era bancário, fugia alucinado para o campo, para as praias, mas praia e campo, está tudo invadido, o carro está em toda parte, como Deus. Fugir para onde? Tentou se adaptar, dominar o horror. Não conseguiu. Quando resolveu me procurar, parecia um cadáver. Perdão, estava abatidíssimo. Fez a confissão quase em prantos: a fobia estava ficando insuportável. Essa repugnância que o senhor tem pelo avesso da vida, o cheiro especial que o senhor sente quando esse avesso se aproxima, ele sentia também, mas no cheiro da gasolina, do óleo, daquele bafo negro do motor, sentia tudo mesmo fechado num armário, mesmo escondido debaixo da cama. Então ordenei-lhe que se empregasse imediatamente numa fábrica de automóveis. - De automóveis?

Maximiliano deu uma risadinha.

- Vejo seu espanto, Senhor Gutierrez, mas não é novidade que a única forma de se curar de um veneno é recorrer ao próprio veneno. Como é que se cura picada de cobra? Hum? E o que vem a ser a homeopatia? Empregue-se numa fábrica de automóveis, receitei. E o moço, que não podia se aproximar sequer de uma garagem, de carros, entrou no coração deles, obrigado a lidar com as peças, montando, desmontando, parafusando, pintando, a cara enfiada na máquina, os ouvidos saturados do barulho da máquina. De manhãzinha já ia se esfregar nos motores, as unhas impregnadas de graxa, vi suas unhas, nem escova com sabão podia limpar aquelas unhas da presença detestável. Ensinei-lhe que é preciso destruir os fantasmas indo de encontro a eles, desvendá-los, meu caro, sabe o que é desvendar? É levantar o véu e olhar a coisa nos olhos. Nos olhos!

O telefone tocou e dessa vez Maximiliano tomou algumas notas, depois de informar que a pessoa em questão se ausentara da clínica por algumas horas. Voltou-se para o homem que esperava, ansioso, o cigarro pendendo do canto da boca, as mãos tortuosas abertas nos joelhos. Examinou-o num silêncio cordial. Tranqüilo.

- Ele sarou, doutor? - Quem?

- O moço...

- Ah, definitivamente. Passada aquela fase de sofrimento maior, começou a se interessar pelo trabalho. Vinha me ver três vezes por semana, nunca pensei que o processo de adaptação marchasse assim rápido: um mês depois já tinha comprado um carro. E lia revistas de automóveis, ajudou a montar o Salão da Máquina, colaborava na revista Oito Rodas, contava anedotas sobre o trânsito, virou um técnico. Durante esse período, só teve uma recaída, quando foi todo satisfeito ver uma fita sobre corrida de carros e de repente, no meio, se levantou aos gritos e saiu espavorido, todo o antigo horror explodindo tão forte que pensei, pronto, voltou ao marco zero. Mas não, no dia seguinte já estava normal, tudo bem. De admirador da máquina passou a ser seu amante, ih, a paixão que eu tenho por isto, me disse certa vez, alisando um pára-lama como se alisa a coxa da namorada. Mas sua paixão pelo automóvel não era de ficar por aí, não demorou muito e integrou-se no próprio.

- Não estou entendendo, doutor.

- Tão simples, Gutierrez: ele assumiu o automóvel. Virou um automóvel, e com tamanho fervor que certa manhã bebeu gasolina azul e saiu buzinando pela rua afora, uon! uon! uon! brrrrrrrrrr!... brrrrrrrrrr!... Perdeu para uma jamanta que vinha em sentido contrário.

- Morreu?

- Isso aí. E agora o senhor soltou a palavra tão natural, está vendo? Pronto, já é o caminho da cura assumir os fantasmas. Melhor ainda, virar um deles.

- Então ele não se curou, doutor.

Cariciosamente, Maximiliano passou e repassou no lábio risonho o cachimbo apagado.

- Mas o que o senhor chama de cura? Por acaso queria que ele continuasse um automóvel para o resto da vida? O senhor, por exemplo, quer continuar assim em pânico até o fim? É isso que quer? Me responda! Quer sofrer esse medo até morrer de medo?

- Não, doutor, não é isso que eu quero, não queria ter medo nunca mais, nunca mais!

- Eu poderia lhe recomendar um estágio de enfermeiro num hospital daquele estilo em que o doente entra sem o raminho verde no bico, sem esperança - disse e riu. Ficou sério. Olhou o relógio de pulso. - Seria retomar o tratamento daquele caso, os hospitais são fábricas de defuntos, os que não morrem da doença com que entram pegam outra lá dentro, o senhor teria um material de primeira ordem. Mas quero que pule essa fase, não vamos fazer cera, mesmo porque não vai ter outra consulta, esta é a última.

- A última?

- Seria pura perda de tempo, filho. Por que uma volta tão grande para se chegar ao mesmo fim? No hospital, o senhor iria se acostumando com - posso falar a palavra? - com a morte, e de tal jeito que acabaria se afeiçoando à idéia. De simples admirador passaria a ser seu amante, que nem o moço da máquina, montado nela o dia inteiro, aquele tesão. Mas não parava nisso, a identificação seria tão profunda que de repente ia querer se matar. Melhor então que se mate já.

- Doutor?!

- Imediatamente. Saia e se mate, é uma ordem.

O homem levantou-se, cambaleando. Deixou cair no cinzeiro o cigarro e ali ficou de pé, a boca entreaberta, a face porejando, branca.

- O senhor está falando sério, doutor?

- Nunca falei tão seriamente em minha vida. Só com a morte se cura o medo da morte. Mate-se. Não quer se libertar? Pois lhe ordeno a libertação, está salvo, mate-se - disse Maximiliano fixando no homem o olhar reto. - Saia e se mate em seguida. Uma boa morte para o senhor.

- Mas doutor, espera!...

Suave mas firmemente, Maximiliano foi impelindo o homem até a porta.

- Obedeça. Agora, adeus.

Assim que se viu sozinho foi até a janela e através do vidro ficou vendo o homem atravessar o jardim num passo vacilante, as mãos abertas, pendidas. Virou-se ainda uma vez, a face aterrada se contraindo inteira numa interrogação de quem se esqueceu ao dizer - ou fazer - alguma coisa, o quê?

Quando o Doutor Ramazian voltou, Maximiliano estava de pé ao lado da mesa, com o bloco de notas na mão. O cachimbo esvaziado. O cinzeiro limpo.

- Pronto, Max. Agora pode ir tomar seu lanche. Algum recado?

- Uma senhora telefonou, mas não quis dizer o nome. E um cliente, o Professor Nóbrega, também ligou, disse que só pode vir na sexta-feira, vai combinar a hora com Dona Dóris.

Doutor Ramazian encheu o cachimbo. Falou depois de uma baforada.

- Ótimo. Nada mais? Alguém me procurou?

- Um momento, deixa eu ver - disse Maximiliano franzindo a testa. Encarou o médico: - Não, ninguém. Ninguém. Posso ir? - Sim, sem dúvida - disse o médico passando o olhar distraído na folha de bloco com as anotações. - Ótimo, Max. Você vai indo muito bem, o progresso que fez. Estou muito satisfeito.

- Eu também.

- Falta apenas o último passo, você sabe, assumir sem possibilidades de retrocesso. Então estará curado. Maximiliano sorriu. A voz saiu mansa, num quase sussurro, “curado e fodido”.

- O que foi? Você disse alguma coisa?

- Não, doutor, nada. O senhor tem razão. Vamos ao lanche?

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos.

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas III)


A BRUXA

A Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

A CÂMARA VIAJANTE

Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver
O real nu, cru, triste, sujo.
Desvenda, espalha, universaliza.
A imagem que ela captou e distribui.
Obriga a sentir,
A, driticamente, julgar,
A querer bem ou a protestar,
A desejar mudança.
A câmara hoje passeia contigo pela Mata Atlântica.
No que resta - ainda esplendor - da mata Atlântica
Apesar do declínio histórico, do massacre
De formas latejantes de viço e beleza.
Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? acabará
Na infinita desolação da terra assassinada.
E pergunta: "Podemos deixar
Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize,
Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?"
Este livro-câmara é anseio de salvar
O que ainda pode ser salvo,
O que precisa ser salvo
Sem esperar pelo ano 2 mil.

ACORDAR, VIVER

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

(in A Paixão Medida)

A EXCITANTE FILA DO FEIJÃO

Larga, poeta, a mesa de escritório,
esquece a poesia burocrática
e vai cedinho à fila do feijão.

Cedinho, eu disse? Vai, mas é de véspera,
seja noite de estrela ou chuva grossa,
e sem certeza de trazer dois quilos.

Certeza não terás, mas esperança
(que substitui, em qualquer caso, tudo),
uma espera-esperança de dez horas.

Dez, doze ou mais: o tempo não importa
quando aperta o desejo brasileiro
de ter no prato a preta, amiga vagem.

Camburões, patrulhinhas te protegem
e gás lacrimogêneo facilita
o ato de comprar a tua cota.

Se levas cassetete na cabeça
ou no braço, nas costas, na virilha,
não o leves a mal: é por teu bem.

O feijão é de todos, em princípio,
tal como a liberdade, o amor, o ar.
Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.

Bocas oitenta mil vão disputando
cada manhã o que somente chega
para de vinte mil matar a gula.

Insiste, não desistas: amanhã
outros vinte mil quilos em pacotes
serão distribuídos dessa forma.

A conta-gotas vai-se escoando o estoque
armazenado nos porões do Estado.
Assim não falta nunca feijão-preto

(embora falte sempre nas panelas).
Método esconde-pinga: não percebes
que ele torna excitante a tua busca?

Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.

Suspense à la Hitchcock ante as cerradas
portas de bronze, guardas do escondido
papilionáceo grão que ambicionas.

É a grande aventura oferecida
ao morno cotidiano em que vegetas.
Instante de vibrar, curtir a vida

na dimensão dramática da luta
por um ideal pedestre mas autêntico:
Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!

Caldinho de feijão para as crianças...
Feijoada, essa não: é sonho puro,
mas um feijão modesto e camarada

que lembre os tempos tão desmoronados
em que ele florescia atrás da casa
sem o olho normativo da Cobal.

Se nada conseguires... tudo bem.
Esperar é que vale - o povo sabe
enquanto leva as suas bordoadas.

Larga, poeta, o verso comedido,
a paz do teu jardim vocabular,
e vai sofrer na fila do feijão.

(in Amar Se Aprende Amando)

A FALTA DE ÉRICO

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.
Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.
Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.129)


Uma Trova Nacional

Por mais que eu garimpe e tente,
nos meus pedregulhos tantos,
nem com lupa ou forte lente
eu não acho os meus encantos.
(TIA PRISCA/SP)

Uma Trova Potiguar

Amo bastante, não minto;
sem envolver-me em lambanças,
sentir saudades, não sinto;
sinto, agradáveis lembranças.
(PEDRO GRILO/RN)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > IMAGEM > Menção Honrosa

A grande riqueza humana
consiste em se perceber
quando a luz do "ter" profana
e ofusca a Imagem do "ser".
(WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR)

Simplesmente Poesia

– Sérgio Severo/RN –
TRIBUTO A NOVA FRIBURGO.

Nova Friburgo se ergue
das brumas de um pesadelo
e não há ninguém que negue:
nunca o fez por merecê-lo.

Essa Cidade tão Bela,
"Capital dos Trovadores",
tornará a ser aquela,
"Eterna Terra das Flores".

Ó Terra dos meus Avós,
permita falar por Vós,
e ao Brasil, todo, eu conclamo:

"Venham à Terra revivida,
de novo, cheia de Vida,
Nova Friburgo, TE AMO!!"

Uma Trova de Ademar

Estão nos desígnios meus
lições de uma eternidade:
só na colheita de Deus
se colhe Fé de verdade!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Para não sentir remorsos
de roubar os beijos teus,
cada dia mais me esforço
de pagá-los com os meus.
(MIGUEL RUSSOWSKY/SC)

Estrofe do Dia

Relembrar um grande amor,
uma ausência lamentar,
ficar triste, suspirar,
ver a beleza da flor,
andar com ar sonhador,
parecendo estar ausente,
isso é banzo recorrente
uma coisa que maltrata,
pois saudade ninguém mata,
é ela que mata a gente.
(JOSÉ ALBERTO COSTA/AL)

Soneto do Dia

– Humberto Rodrigues Neto/SP –
PLÁGIOS.

Há poetas que vivem no ostracismo,
mas julgam-se a si próprios magistrais,
e em tábidas manobras imorais
fazem do plágio seu falaz lirismo.

Surdos à lei e às convenções morais,
entregam-se da inveja ao fatalismo,
essa filha bastarda do egoísmo
que tantos danos à poesia traz!

Por falha herdada de um viver pretérito,
pouco lhes toca que um poema ultrajem
pra disfarçar seu crônico demérito!

Mal sabem os medíocres que assim agem,
que a inveja é até uma forma de homenagem
que prestam, sem saber, aos que têm mérito!

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

João Freire Filho (Caderno de Trovas)


A lua, que nos clareia,
é diferente de quem,
recebendo luz alheia,
não ilumina ninguém!

Ante a dor... não esmoreço,
sabendo, em meu caminhar,
que a Vida não cobra preço
que não se possa pagar

A Terra vive conflitos,
sangrando, de guerra em guerra,
e é com voz branda... e, não, gritos...
que se há de ter Paz... na Terra!

A saudade é dependência...
É meu vício, em tal medida,
que você se fez a ausência
mais presente em minha vida!

As revoltas não têm fim
e explodem cada vez mais,
que a fome acende o estopim
das convulsões sociais!

A tormenta, que atordoa,
não distingue, em mar bravio,
a humildade da canoa...
da soberba do navio!...

A Verdade anda tão rara,
que a Mentira, sorridente,
já nem sequer se mascara
para enganar tanta gente!

A vida me presenteia
com tamanhas alegrias,
que a tristeza é um grão de areia
na ampulheta dos meus dias!

Bendita a fonte escondida...
que escorre e, por onde passa,
trazendo a graça da vida,
dá tanta vida de graça!

Cai na rua... Perde o tino,
no alcoolismo em que se esvai...
E, aos passantes... um menino
diz, inocente: - "É meu pai"...

Cantando terno estribilho
e esquecendo que era escrava,
Mãe Preta aleitava o filho
de quem os seus açoitava!...

Com sabor de penitência...
de brinde contra a vontade,
vou bebendo a tua ausência...
em meus porres de saudade!

Da ternura ao desvario..
do desvario à ternura,
nosso amor vive no fio
da mais sublime loucura...

Distante, a lua prateada,
entre nuvens de inconstância,
me lembra a mulher amada...
mais amada... se à distância!

Distante do olhar das ruas,
num sonho que me enternece,
em nosso céu brilham luas
que só nosso amor conhece!...

Dos meus tempos mais risonhos
descubro, agora, os segredos:
- cabia um mundo de sonhos
no meu mundo de brinquedos!

É o desvario do mando
de alguns Senhores da Terra...
que implanta, de quando em quando,
os desvarios da guerra!

Eu compreendo os desvios
a que leva uma paixão...
As vezes, são desvarios
que dão à vida... razão!...

Fim do amor... Desiludidos,
sabemos juntos, mas sós,
que há silêncios inibidos...
tentando falar por nós!

Hoje, em meu leito, sem ela,
enquanto resisto ao sono,
a Saudade é sentinela...
dando plantão... no abandono!

Imperfeito, eu rogo, aflito,
por nosso amor, que é perfeito:
- Não faças de mim um mito...
que mitos não têm defeito!

Liberdade -- sentinela
da Paz, em qualquer lugar!
E quem não lutar por ela...
não tem mais por que lutar!

Lutando por ideais,
mesmo à beira da utopia,
tenho enfrentado os "jamais"
com meus "sempres" de ousadia

Meu coração se acautela
e, imerso em desilusões,
faz da razão sentinela...
contra novas invasões!

Meus ideais mais risonhos
correm livres, sempre em frente,
numa corrente de sonhos,
que rompe qualquer corrente!

Na vida, que te conduz
às mais diversas pelejas,
se não puderes ser luz,
que, ao menos, sombra não sejas!

Nosso amor, desde o começo,
tem tal alcance e medida,
que, quanto mais envelheço,
mais o sinto... além da vida!

O meu amor te ocultei!
Seguimos rumos diversos...
Passou-se o tempo, e, hoje, eu sei:
- permaneceste em meus versos!

Poeta é aquele que abraça
a noite, sentindo-a sua,
e bebe estrelas na taça
inspiradora... da lua!

Quem ama... libera o ardor
dos impulsos naturais,
que, em desvarios de amor,
loucura alguma é demais !

Quem tem a luz do saber,
muito mais que outro qualquer,
tem de cumprir o dever
de ser luz... onde estiver!

Saudoso, namoro a Lua
e sinto, por seu feitiço,
que o nosso amor continua,
embora nem saibas disso!

Sonhador, poeta... e amante
de quanto a vida me dá,
que importa a lua distante...
se os meus sonhos chegam lá ?!...

Tenho um segredo profundo
- e, é de amor... – e, tarde ou cedo,
eu gostaria que o mundo
soubesse desse segredo!

Teu ciúme, cortando os laços
do nosso amor, me magoa...
mas meu amor abre os braços
e, por amor, te perdoa!

Toda noite ela regressa
em meus sonhos erradios...
Não há distância que impeça
de eu tê-la... em meus desvarios !

Vem do sol a luz de prata
que parte da lua encerra...
E a lua, modesta e grata,
deita pratas sobre a terra!

João Freire Filho (1941)



Nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de maio de 1941.

Cursos de Bacharel pela Faculdade de Letras e Licenciatura pela Faculdade de Educação, ambas da UFRJ. Também em ambas foi professor, tendo se aposentado após mais de 35 anos de serviço.

Foi também diretor do Colégio de Aplicação daquela universidade.

Iniciou-se na Trova em 1979. Sua primeira premiação foi em São Bernardo do Campo, no mesmo ano.

Magnífico Trovador (gênero "líricas e filosóficas") por Nova Friburgo.

Ex-presidente da UBT - União Brasileira de Trovadores.

Lançou, em 2007, o livro de trovas "Entre achados e perdidos".